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Iniciação Científica Cesumar 69

Ag-Dez 2000, Vol. 02 n. 02, pp. 69-75

A CIÊNCIA POSITIVISTA: O Mundo Ordenado

Manoel Moacir de Farias Chaves Filho1


Faculdades Integradas de Maringá
Centro de Ensino Superior de Maringá

Suzana Maria Lucas de Farias Chaves2


Universidade Paranaense
Faculdades Integradas de Maringá
Centro de Ensino Superior de Maringá

RESUMO:Este trabalho tem como objetivo realizar uma discussão crítica sobre o desenvolvimento da ciência através da história,
contextualizando os elementos que dão origem à ciência positivista. Para tanto, realizamos um levantamento bibliográfico sobre o tema
em questão, sistematizando algumas observações e reflexões referentes a este processo. Pode-se dizer que as características desta
concepção de ciência estão presentes no pensamento humano da atualidade. Dois aspectos são destacados: a) a ciência positivista
mudou a perspectiva que o homem tinha de si mesmo e do universo, e de sua relação para com este; e b) a ciência proposta por Comte,
apresentava limitações na medida em que não tinha respostas para muitos problemas enfrentados pela sociedade, uma vez que,
requeiram soluções políticas, sociais e não somente científicas ou técnicas. Em função dessa limitação, surgem propostas diferentes para
a ciência: tranformar-se num meio através do qual o cientista passe de sujeito da pesquisa e controle social para um sujeito participante,
que se inclua no processo de pesquisa. É necessário então que se procure desenvolver novas formas de ação, diferentes das propostas
pela ciência positivista.

Descritores: ciência; positivismo; conhecimento científico.

THE POSITIVIST SCIENCE: The Orderly World


ABSTRACT: The objective of this work is to undertake a critical discussion about science’s development through history, contextualising
the element that give the origin of the positivist science. Consequently, we have done a bibliographical research on the theme in question,
systematizing some observations and reflections concerning this process. It is possible to say that the characteristics of this conception of
science are present in the current human thought. Two aspects are highlighted: a) the positivist science has changed the perspective that
man had about himself and the universe, and his relation with it. b) The science proposed by Comte, presented limitations once it did not
have the answers to many of the problems faced by society, since they require social and political solutions and not only scientific and
technical. Due to these limitations, different proposals to science have surged: to become the means by which the scientist move from
being the agent of research and social control to a participant element including himself in the research process. It is necessary then that
new ways of actions are developed, different from those proposed by the positivist science.

Index terms: science, positivism, scientific knowledge.

1 Docente do Curso de Psicologia das Faculdades Integradas de Maringá-Faimar do Centro de Ensino Superior de Maringá-Cesumar. Psicólogo e Mestre
em Psicologia. moa@cesumar.br
2 Docente do Curso de Psicologia das Faculdades Integradas de Maringá-Faimar do Centro de Ensino Superior de Maringá-Cesumar e do Curso de

Psicologia da Universidade Paranaense. Mestre em Psicologia e Psicóloga. chaves@cesumar.br

Iniciação Científica Cesumar, Maringá, Ag-Dez 2000, Vol. 02 n. 02, pp. 69-75
Introdução Somente no século XVI, com o sistema
heliocêntrico de Copérnico (1543), que postulava não
Nosso tempo é o tempo da Ciência.” ser a Terra o centro do Universo, mas sim o Sol e
(Tomanik, 1992, p. 15) que quebrava, assim, a idéia da Terra como um
planeta privilegiado, é que efetivamente pode
O objetivo deste ensaio é, de modo geral, o de germinar a nova forma de se conceber a ciência. O
apresentar o desenvolvimento da ciência através da surgimento de propostas como estas possibilitou a
história e, a partir daí, contextualizar os elementos origem e crescimento do modelo de ciência que
que dão origem à ciência positivista. Para tanto, temos hoje, uma vez que, rompeu com a ciência
destacaremos, de início, algumas observações voltada ao pensamento metafísico do período feudal.
referentes a este processo. Para BERNAL (1976), o primeiro e o mais importante
Os séculos XV, XVI e XVII são aqueles, segundo golpe no antigo sistema de pensamento do mundo
PEREIRA & GIOIA (1988), que melhor representam foi desferido, portanto, por Nicolau Copérnico.
as mudanças da passagem do sistema feudal ao Mas foram as contribuições dos patriarcas da
sistema capitalista, nos quais as características da ciência moderna, Galileu Galilei, Francis Bacon,
ciência moderna se instituem. René Descartes e Isaac Newton - citados em
Como afirma CAPRA (1982), BERNAL (1976), MORAIS (1983), CARVALHO
a visão do mundo e o sistema de valores (1991) e ANDERY (1988) como os precursores, mais
que estão na base de nossa cultura, e importantes dessa nova era (CARVALHO, 1991, p.
que têm de ser cuidadosamente 43) que possibilitaram a sistematização e a
reexaminados, foram formulados em instituição de um paradigma de ciência que moldou
suas linhas essenciais nos séculos XVI e nossa cultura.
XVII. Entre 1500 e 1700 houve uma Galileu Galilei (1564-1642) destaca-se na história
mudança drástica na maneira como as como um divisor de águas no pensamento científico,
pessoas descreviam o mundo e em todo pois mesmo não tende elaborado os conceito de
o seu modo de pensar. A nova sistema heliocêntrico, foi o primeiro a tentar uma
mentalidade e a nova percepção do justificativa matemática para esse sistema. Como
cosmo propiciam à nossa civilização afirmam BARRADO et al. (1983), Galileu é quem
ocidental aqueles aspectos que são lança as bases de uma nova metodologia científica.
característicos da era moderna (p. 49). Seus trabalhos mostravam o verdadeiro caminho
para o conhecimento da natureza: a observação dos
Durante a Idade Média, mais especificamente até
fenômenos tais como ocorrem e não como os explica
por volta da metade desse período, a definição e a
a pura especulação (p.95).
concepção de ciência foram dominadas pelo
Seu método de estudo baseava-se na utilização
pensamento da filosofia especulativa e metafísica - o
da linguagem matemática, e na proposta de que os
teocentrismo da Igreja Católica e a concepção do
cientistas deveriam restringir-se aos estudos das
mundo representada pelo geocentrismo de
propriedades que pudessem ser mensuradas nos
Aristóteles e Ptolomeu (CARVALHO, 1991, p. 43).
objetos: forma, quantidade, movimento. Como
Para a Igreja, a instituição poderosa da
afirmam BARRADO et al (1983), Galileu considerava
época, Deus criou a Terra e os homens à
que, o livro da natureza está escrito em caracteres
sua imagem e semelhança. E Ele não
matemáticos, e que sem um conhecimento dos
desperdiçaria seu talento num astro
mesmos, os homens não poderão compreendê-lo (p.
qualquer, localizado na periferia do
97).
universo, mas sim naquele planeta
Galileu propôs, ainda, a observação como
escolhido para ser o centro de referência,
condição metodológica para a construção do
em torno do qual o resto deve girar (pp.
conhecimento. Para tanto, os cientistas deveriam
21-22).
utilizar-se dos sentidos para a obtenção de dados e
Segundo BERNAL (1976), somente o de informações.
pensamento orientado pelo teocentrismo teria Galileu propunha que valorizássemos os
condições de apresentar respostas às indagações sentidos, utilizássemos nossos recursos
acerca do mundo feitas neste período e nenhum físicos como meio autêntico de
outro conhecimento poderia ser comparado ao veiculação do conhecimento; por isto foi
esquema de salvação da Igreja Católica. Como enorme a inversão que ele praticou, indo
afirma MORAIS (1983), neste período havia ultrapassar os limites da ciência e
um predomínio extremamente acentuado transformando-se em uma nova atitude
de preocupações religiosas e, o homem perante a realidade (MORAIS, 1983, p.
medieval estava empenhado, sobretudo, 39).
na salvação de sua alma, na chamada Como afirma CAPRA (1986), os trabalhos de
‘vida de depois da morte’ (p. 35). Galileu tornaram-se um modelo de ciência no século
XVII, persistindo até os dias atuais.
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Galileu, como afirma MORAIS (1983), é indicado humana. Como afirma BACON apud TOMANIK,
como o iniciador da mentalidade científica sem a (1992),
qual o mundo não se tornaria moderno. É, portanto, é falsa a asserção de que os sentidos do
considerado o pai da ciência moderna (CAPRA, homem são a medida das coisas. Muito
1982, p. 50). ao contrário, todas as percepções, tanto
Enquanto Galileu (1564-1642) desenvolvia seus dos sentidos como da mente, guardam
experimentos na Itália, Bacon (1561-1626); na analogias com a natureza humana e não
Inglaterra, elaborava a teoria do método indutivo, (o com o universo (p. 19).
método indutivo, segundo PEREIRA (1988), é um Neste ponto, Bacon divergia de Galileu, à medida
processo de eliminação que nos permite separar o que este último considerava ser possível conhecer a
fenômeno que buscamos conhecer de tudo o que natureza através do uso direto dos sentidos.
não faz parte dele. Esse processo de eliminação Os ídola specus (ídolos da caverna) resultavam,
envolve não só a observação, a contemplação do segundo Bacon, da própria educação e da pressão
fluxo natural dos fenômenos, como também a dos costumes; os ídola fori (ídolos do foro), se
execução de experiências em larga escala, a vinculavam à linguagem e ao mau uso que dela
interferência intencional na natureza e a avaliação fazemos e, finalmente, os ídola theatri (ídolos do
dos resultados dessa interferência), que garantia, na teatro) decorriam da irrestrita subordinação à
realização de seus experimentos, extrair deles autoridade, às falsas teorias, de falsos sistemas
conclusões gerais, a serem testadas por novos filosóficos.
experimentos (CAPRA, 1982, p. 51). Bacon faz severas críticas a várias
Bacon configura-se como o teorizador da escolas filosóficas (...). Entre as críticas
experimentação científica. Como afirma TOMANIK, que fez, estão as de dogmatismo,
(1992), a obra de F. Bacon, especialmente seu infecundidade e esterilidade para a
Novum Organum, tem sido considerada como o produção de resultados práticos, que
alvorecer do discurso epistemológico moderno (p. beneficiem a vida do homem (PEREIRA,
16). 1988, p.194).
Para Bacon, o homem necessitaria disciplinar-se Segundo PEREIRA (1988), Bacon acreditava
para conhecer e dominar a natureza. que o método indutivo, para obtenção do
Bacon acreditava, inicialmente, que o homem conhecimento científico, cumpriria sua finalidade, de
deveria dominar o conhecimento a seu favor, e se colocar a serviço do homem, quando ele (o
afirmava: saber é poder (PEREIRA, 1988, p. 190). homem) utilizasse minuciosos exercícios de
Aqui, mais do que nunca, a sua teoria antecipa a observação e de catalogação de dados a respeito do
moderna forma de se produzir conhecimento objeto ou acontecimento que se pretendia conhecer
científico. (TOMANIK, 1992, p. 20).
Bacon dá ao conhecimento científico um sentido Para tanto, segundo TOMANIK (1992), Bacon
utilitarista. Para ele, o conhecimento científico recomendava o uso de três tábuas (de essência ou
deveria ser colocado a serviço do homem. Entendia, de presença, de desvio ou de ausência e de grau ou
portanto, que o bem-estar do homem estava de comparação) que disciplinariam seu método.
diretamente relacionado ao domínio do homem sobre Segundo PEREIRA apud TOMANIK, (1992) estas
a natureza, o que o levaria a defender a aplicação da tábuas seriam,
ciência no mundo da prática. índice de presença, onde seriam
A natureza não se vence senão quando registradas todas as condições sob as
se lhe obedece. Para vencer é preciso quais se produz o fenômeno; índice de
obedecer e para obedecer é preciso ausência, que conteria as condições sob
disciplinar a mente, eliminar todos os as quais o fenômeno estudado não se
subjetivismos (BACON apud verifica; e finalmente o índice de
FIGUEIREDO, 1991, p. 35). graduação, contendo registros das
condições sob as quais o fenômeno varia
Isso representava a origem do discurso da
(p.21).
objetividade como forma de orientar o homem em
Essa concepção metodológica já possuía
sua busca de conhecer e dominar a natureza. A
características daquilo que futuramente seria
objetividade proposta por Bacon é uma outra das
adotado como método científico ou como o meio pelo
características da ciência moderna.
qual se poderia produzir os conhecimentos
BACON (1973) propõe, ainda, uma maior
considerados úteis.
atenção na análise e no combate aos fatores
Muito embora Bacon não tenha realizado
responsáveis pelos erros cometidos no processo de
nenhum progresso nas ciências naturais, não
produção do conhecimento. Para tanto, compara tais
descobriu qualquer nova lei, não elaborou uma teoria
fatores a ídolos, que, segundo ele, existiriam na
própria em qualquer ramo de investigação
forma de pensar de todos os seres humanos.
(PEREIRA, 1988, p. 191), ele foi uma espécie de
Os primeiros, ídola tribus (ídolos da tribo), se
ideólogo daquilo que estaria representada no mundo
consistiam nas deficiências da própria espécie
máquina. Ninguém antes dele colocou de forma tão

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explicita o papel que os tempos modernos unidade de medida. Pela regra de enunciação,
reservavam para a natureza. dever-se-ia selecionar exclusivamente o que fosse
Inicialmente, dizíamos que a concepção moderna necessário e suficiente para a solução de um
de produção de conhecimentos teve suas raízes problema, evitando as omissões.
entre os séculos XVI e XVIII. Todavia, é no século Nota-se aqui um conjunto de regras que
XVII que o filósofo-cientista René Descartes possibilitaria o conhecimento científico, e que
apresentaria um método para a unificação de todo o orientaria com precisão a visão de um mundo mais
saber. Em seu livro O Discurso do Método, pode-se mecânico.
encontrar não só a visão de mundo de Descartes, Assim,
como também a forma através da qual, para ele, se tomando como modelo as figuras
deve produzir conhecimento científico. Ele afirma mecânicas dos jardins de Versailles que
que, se moviam e produziam sons, Descartes
rejeitamos todo conhecimento que é sugeriu que o movimento corporal era o
meramente provável e consideramos que resultado de causas mecânicas
só se deve acreditar naquelas coisas que semelhantes. (...) imaginou que animais e
são perfeitamente conhecidas e sobre as homens eram, na realidade, um tipo de
quais não pode haver dúvidas (...) Toda máquina complicada, analogamente
ciência é conhecimento certo e evidente constituída. (...) tomou essa resposta
(DESCARTES apud CAPRA, 1982, p. mecânica como modelo para explicar
53). como um estímulo ambiental externo
Para Descartes, a produção do conhecimento poderia causar um movimento corporal
deveria ser efetivada através de um método que (MILLENSON, 1975, p.24).
fosse capaz da descrição racional dos fenômenos
Descartes divulgava que o universo nada mais
naturais, num único sistema preciso de princípios
era que uma máquina. A natureza funcionava
mecânicos, regidos por relações matemáticas.
mecanicamente de acordo com leis matemáticas.
Para explicar sua proposta metodológica,
Esse método de conhecimento tornou-se o
Descartes, de acordo com RUBANO & MOROZ
paradigma dominante da ciência até nossos dias,
(1988) tomava como ponto de partida o método
pois passou a representar o modelo no qual toda
analítico (para CAPRA (1982), o método analítico
produção científica deveria se basear.
consiste em decompor pensamentos e problemas
a crença na certeza do conhecimento
em suas partes componentes e em dispô-las em sua
científico está na própria base da filosofia
ordem lógica. Esse método analítico de raciocínio é
cartesiana e na visão de mundo dela
provavelmente a maior contribuição de Descartes à
derivada (...) a crença cartesiana na
ciência. Tornou-se uma característica essencial do
verdade infalível da ciência ainda é, hoje,
moderno pensamento científico) nas suas duas
muito difundida e reflete-se no
operações intelectuais fundamentais: a intuição e a
cientificismo que se tornou típico de
dedução.
nossa cultura ocidental. o método de
A intuição consiste numa apreensão de
pensamento analítico de descartes e sua
evidências indubitáveis que não são
concepção mecanicista da natureza
extraídas da observação de dados
influenciaram todos os ramos da ciência
através dos sentidos. Tais evidências são
moderna e podem ainda hoje ser muito
frutos do espírito humano, sobre as quais
úteis. mas só serão verdadeiramente
não paira qualquer dúvida (RUBANO &
úteis se suas limitações forem
MOROZ, 1988, p. 202).
reconhecidas (CAPRA, 1982, p. 53).
Para que se pudesse estender a certeza
Vale ressaltar que, apesar da proposta de ciência
matemática ao conjunto do saber, o método
cartesiana ter servido de modelo para todas as
cartesiano apresentava quatro regras de utilização
outras ciências, foi em Newton (1642-1727) que a
da intuição e dedução.
certeza cartesiana se consumou. Como afirma
A primeira delas, segundo DESCARTES (1973),
CARVALHO (1991),
é a regra da evidência pela qual se deveria evitar
o método cartesiano virou sinônimo de
todas as prevenções (conjunto de preconceitos) e
método científico.(...) o ideal cartesiano,
precipitação, para acolher apenas idéias claras e
no entanto, apenas realizou-se com
distintas. Pela regra da análise, os problemas
Newton que, reunindo todas as idéias
deveriam ser divididos no maior número possível de
desenvolvidas a partir de Copérnico,
partes, para melhor resolvê-los. Pela regra da
produziu a sua grande síntese. (...) Com
síntese, deveriam se distinguir as verdades mais
Newton, as leis mecânicas necessárias à
simples das verdades mais complexas. Essa regra
consagração do ‘mundo máquina’ foram
pressupõe a ordenação das partes segundo o critério
equacionadas e a racionalidade
da relação constante entre elas, de modo que
cartesiana teve a sua consagração.
possam ser comparadas com base na mesma

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Conclui-se, portanto, o período de caracterizada pela técnica que ordena a nova forma
substituição da antiga imagem de um de viver.
mundo qualitativo, orgânico, limitado e É Augusto Comte (1798-1857), através de sua
religioso, herdado dos gregos e corrente filosófico-científica denominada positivismo,
canonizado pelos teólogos da igreja, por que estende os pressupostos da ciência natural que
outro, quantitativo, mecânico, nascia, no âmbito das relações humanas.
infinitamente extenso, ilimitado e
dessacralizado (p. 48-49). Comte vive na França num momento
pós-revolucionário, quando a burguesia
Cada uma das fases do desenvolvimento do
havia ascendido ao poder. Na primeira
pensamento científico, apresentadas até aqui,
metade do século XIX, a luta pela
possibilitou o desenvolvimento de uma atitude
manutenção do poder, por parte da
científica, estabelecendo quais seriam os critérios
burguesia, e pela sua tomada, por parte
para a produção científica, freqüentemente ligada à
de uma crescente classe de
maneira como se esperava que o mundo devesse
trabalhadores, desencadeia não apenas
funcionar. A união desses critérios foi a base para o
uma série de convulsões sociais e
estabelecimento de um modelo ―um paradigma.
políticas, mas também um conjunto de
Segundo KHUN (1962), a palavra paradigma
ideologias e sistemas que tem por
pretende sugerir que certos exemplos da prática
objetivo dar sustentação aos vários
científica atual ―tanto na teoria quanto na
setores em luta (ANDERY & SÉRIO,
aplicação― estão ligados a modelos conceptuais de
1988, p. 379).
mundo dos quais surgem certas tradições de
pesquisa. Um paradigma significa um modelo. Por Segundo ANDERY & SÉRIO (1988), Comte
exemplo, a ciência já foi dominada pelo pensamento representava a parcela mais conservadora da
geocêntrico, posteriormente pelo sistema burguesia, tomando partido dela e estabelecendo
heliocêntrico de Copérnico que possibilitou um uma linha de pensamento que significava criar
grande progresso nas ciências, depois pela física condições para fortalecer este poder e impedir
newtoniana, etc.), para a prática da ciência. quaisquer ameaças, identificadas como todas as
O modelo traduz a visão de mundo do momento tentativas democratizantes e revolucionárias de sua
histórico quando foi elaborado. A imersão em um época. Neste sentido, sua proposta de uma filosofia
modelo dominante prepara o cientista para se tornar e de uma reforma da ciência tinha como objetivo
membro de uma comunidade científica. Cada sustentar ideologicamente (o termo ideologia foi
membro dessa comunidade passa a adotar o mesmo criado pelo filósofo francês Destutt de Tracy, em
modelo de produção de conhecimento, utilizando-se 1801, que pretendia elaborar uma ciência de gênese
das mesmas regras básicas e padrões comuns de das idéias. (Ver Ideologia - Enciclopédia Mirador). No
prática científica. Foi assim na chamada Revolução entanto, na obra Ideologia Alemã, MARX (1986) lhe
Científica do século XVII, representada pela dá outro significado. O conceito de ideologia, aí
separação entre Igreja e ciência e que teve como aparece como concepção idealista na qual as idéias
paradigma dominante o pensamento da burguesia aparecem como motor da vida real; nela se
capitalista ascendente em sua época. encontram as concepções de religião, a moral, o
Segundo BOCK (1995), o modelo (a visão de direito, as doutrinas políticas etc.), o poder
mundo) da Igreja perdeu força para um modelo mais conquistado pela classe burguesa.
mecanicista e –em primeiro plano– mercantil, como Para Comte, o conhecimento científico teria de
afirma, ser baseado na observação dos fatos e nas relações
entre eles. Estas relações são as descrições das leis
no século XIX (...) O crescimento da nova que regem o fenômeno. Portanto, para Comte, o
ordem econômica - o capitalismo - traz conhecimento científico só seria possível quando se
consigo o processo de industrialização, observasse o real, o concreto. Tudo aquilo que
para o qual a ciência deveria dar pudesse ser provado por meio de experiências seria
resposta e soluções práticas no campo considerado científico. As denominações: útil, certo,
da técnica. A partir dessa época, a noção preciso, positivo, relativo e neutro, descreveriam as
de verdade passa, necessariamente, a qualidades do conhecimento a ser produzido a partir
contar com o aval da ciência (...) a da filosofia de Comte. Caberia ao conhecimento
ciência avança tanto, que passa a ser um científico então, reconhecer a ordem da natureza e
referencial para a visão de mundo (pp.34- utilizá-la em benefício do homem. Segundo
35). TOMANIK (1992)
A ciência passa a representar, então, o
a crença nesta ordem natural, é talvez, o
sustentáculo da ordem econômica e social.
ponto mais importante para o
A compreensão do mundo agora está demarcada
desenvolvimento dos postulados de
nas coordenadas da civilização tecnológica,
Comte. É ela quem vai determinar os

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limites da atuação humana, e mesmo dos dados do mundo físico tal como eles se
dirigir esta atuação (p. 26). apresentam e não como parte da realidade
percebida pelo homem.
Comte defendia que todas as ciências deveriam
Com base na existência desta pretensa
utilizar-se de um método único, o positivo. Para
objetividade, o positivismo prega, também, a
tanto, o rigor metodológico, a padronização das
necessidade da neutralidade dos cientistas,
condições e a possibilidade de repetição do
desprezando o meio (sócio-histórico) em que estes
fenômeno através de experiências, a neutralidade
se encontram.
científica baseada na objetividade e no abandono da
Segundo JAPIASSU (1981), se observarmos o
subjetividade, a definição operacional do objeto, a
modo de funcionamento da ciência, seu papel social,
ordenação e a precisão dos dados, deveriam ser
sua maneira de explicar os fenômenos e de
condições determinantes para se produzir um
compreender o homem no mundo, perceberemos
conhecimento.
facilmente que as condições reais em que são
Para o estudo da sociedade (o que denominou
produzidos os conhecimentos objetivos e
de física social - a sociologia), Comte propunha que
racionalizados, estão banhadas por uma inegável
o cientista deveria utilizar os mesmos procedimentos
atmosfera sócio-político-cultural. E que, em outros
metodológicos das ciências naturais.
termos, não há ciência pura, autônoma e neutra.
Segundo LOWY (1987), a filosofia positivista, em
Somos levados a crer que o cientista é um
seu caráter social, fundamenta-se nas seguintes
indivíduo cujo saber é inteiramente racional, isento
premissas:
não somente das perturbações da subjetividade
pessoal, mas também das influências sociais.
A sociedade é regida por leis naturais,
Contudo, se o examinarmos em sua atividade real,
invariáveis, independentes da vontade e
em suas condições concretas de trabalho,
ação humanas e na vida social reina
constataremos que a razão científica não é imutável,
harmonia natural. (...) A sociedade pode
ela muda, é histórica.
ser estudada pelos mesmos métodos e
Portanto, a produção científica que se fez numa
processos empregados pelas ciências da
sociedade é profundamente marcada pela cultura na
natureza. (...) As ciências da sociedade,
qual se insere; carrega em si os traços da sociedade
assim como as da natureza, devem
que a gerou, reflete suas contradições, tanto em sua
limitar-se à observação e à explicação
organização interna quanto em suas aplicações.
causal dos fenômenos, de forma objetiva,
Um terceiro pressuposto adotado por esta
neutra, livre de julgamentos de valores ou
concepção de ciência e que é passível de
ideologias, descartando previamente
questionamento é o da ordenação. Para Comte, há
todas as pré-noções e pré-conceitos (p.
uma ordem imutável na natureza na qual o cientista
17).
deve se basear para produzir o conhecimento
Este modelo comtiano, que se caracteriza por científico. Somente através da ordem se pode chegar
idealizar uma realidade, ou melhor, uma concepção ao progresso. Como afirma Comte: Amor por
de mundo determinista, configurado em coordenadas princípio e a Ordem por base; o progresso por fim
cartesianas de um sistema perfeito e harmônico, sem (COMTE apud ANDERY & SÉRIO, 1988, p. 378).
imprecisões e inutilidades, foi o adotado para a Esse conceito da ordenação comtiana, privilegia
produção do conhecimento científico no mundo a concepção de um mundo linear (que segue uma
ocidental. única linha de pensamento), reducionista e
Embora tenha sido importante em sua época, o aparentemente sem contradições. Vejamos o
positivismo de Comte ainda hoje exerce uma exemplo:
influência não só sobre as ciências naturais, como As estrelas não existiram sempre.
também sobre as ciências sociais. Sua concepção Formaram-se a partir de massas de gás
supõe que as leis sociais sejam leis naturais e que a disperso. Uma vez formado, todo o
sociedade não pode ser transformada, na medida em sistema solar, com todas as estrelas,
que é regida pela ordem da natureza. sofreu um processo evolutivo por etapas.
Várias são as críticas feitas à ciência positivista. Algumas estrelas, como o nosso sol,
Essas críticas referem-se, de modo geral, aos adquiriram planetas - um sistema solar.
valores, às idéias e aos conceitos adotados por ela. Assim nasceu a Terra. À medida que a
A ciência positivista apresenta valores sua superfície foi arrefecendo, foram-se
doutrinários (implicados de elementos normativos) formando compostos químicos, cuja
tidos como verdadeiramente irrefutáveis. Portanto, formação era impossível sob alta
tudo aquilo que não for de encontro aos interesses temperatura das estrelas. Assim, a
do sistema positivo não serve, é considerado inútil, matéria começou a manifestar novas
negativo. propriedades que dantes não existiam -
O Ideal de objetividade adotado pela ciência as propriedades da combinação química.
positivista traduz-se nas tentativas de compreensão Então formaram-se compostos orgânicos
a partir da complexa ligação de átomos

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de carbono, e da matéria orgânica procure desenvolver novas formas de ação,


nasceram os primeiros corpos que diferentes das propostas pela ciência positivista.
começaram a manifestar as propriedades
da vida, da matéria viva. Os organismos Referências
vivos sofreram uma longa evolução que
levou eventualmente ao homem. Com o ANDERY, M. A. et al. Para compreender a ciência:
homem nasceu a sociedade humana. E uma perspectiva histórica. 3ª ed. Rio de
continuaram a nascer novos processos Janeiro: Espaço e Tempo, 1988.
(...) (CORNFORTH, 1976, pp.64-65). ANDERY, M. A & SÉRIO, T. M. A. Há uma ordem
imutável na natureza e o conhecimento a
Nesta perspectiva, todo conhecimento deve
reflete: Augusto Comte. Em ANDERY, M. A. et
seguir exatamente a ordenação estabelecida pela
al. Para compreender a ciência: uma
natureza, que se encontra em contínuo progresso
perspectiva histórica. 3ª ed. Rio de Janeiro:
evolutivo.
Espaço e Tempo, 1988.
Produzir uma ciência respaldada na ordem da
BACON, F. Novum organum. São Paulo: Abril
natureza significa, então, produzir uma ciência sem
Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores)
refutação. Portanto, essa concepção de
BARRADO, L. et al. Galileu. São Paulo: Abril
conhecimento impossibilita as perspectivas de se
Cultural, 1983. (Coleção Os Pensadores)
conhecerem os fenômenos dentro de um processo
BERNAL, J. D. Ciência na história. Lisboa: Livros
dinâmico e em constantes transformações.
Horizonte, 1976.
As características desta concepção estão
BOCK, A. M. B. Psicologias: uma introdução ao
presentes no pensamento humano da atualidade.
estudo de Psicologia. São Paulo: Saraiva,
Pode-se dizer, portanto, que a ciência positivista
1995.
mudou a perspectiva que o homem tinha de si
BORDIN, L. O problema do estatuto epistemológico
mesmo e do universo, e de sua relação para com
do marxismo: marxismo “ciência ou ideologia”?
este.
Revista Filosófica Brasileira. UFRJ, 1985.
A ciência proposta por Comte, como afirma
CAPRA, F. O. Ponto de mutação. São Paulo: Cultrix,
BOCK (1995), deveria dar respostas e soluções
1982.
práticas no campo da técnica (p.34). No entanto,
CARVALHO, M. de. O que é natureza? São Paulo:
apresentava limitações na medida em que não havia
Brasiliense,1991.
respostas para muitos problemas enfrentados pela
CORNFORTH, M. Introdução ao método dialético.
sociedade, uma vez que requeriam soluções
Lisboa: Estampa, 1976.
políticas, sociais e não somente científicas ou
DESCARTES, R. Descartes. São Paulo: Abril
técnicas.
Cultural., 1973. (Coleção Os Pensadores)
FIGUEIREDO, L. C. M. Psicologia: uma introdução.
A epistemologia mais recente sustenta
São Paulo: EDUC, 1991.
que é próprio da ciência proceder por
JAPIASSU, Hilton O mito da neutralidade científica.
conjecturas e refutações. Embora a
Rio de Janeiro: Imago,1981.
ciência aspire à verdade, ela só pode
LOWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão
produzir um saber provisório. Além disso,
de Münchhausen: marxismo e positivismo na
mais do que um sistema orgânico de
sociedade do conhecimento. 3a. ed. São Paulo:
conhecimento, a ciência é um conjunto
Busca Vida, 1987.
de hipóteses, que podem ser refutáveis,
MILLENSON, J. R. Princípios de análise do
sobre a realidade e de programas em
comportamento. Brasília: Coordenada, 1975.
competição. Fazem parte da ciência não
MORAIS, J. F. R. Ciência e tecnologia: introdução
só os aspectos lógicos, da ordem natural,
metodológica e crítica. Campinas: Papirus.,
mas também os psicológicos e sociais
1983.
(BORDIN 1985, p. 86).
PEREIRA, M. E. M. A indução para o conhecimento
Em função dessas limitações, surgem propostas e o conhecimento para a vida prática: Francis
diferentes para a ciência: transformar-se num meio Bacon. Em ANDERY, M. A. et al. Para
através do qual o cientista passe de sujeito da compreender a ciência: uma perspectiva
pesquisa e controle social para um sujeito histórica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Espaço e
participante, que se inclua no processo de pesquisa. Tempo, 1988.
Desta forma, com a participação mútua e recíproca PESSANHA, J. A. M. Aristóteles. São Paulo: Abril
entre o sujeito e o objeto tem-se um sujeito Cultural, 1983. (Coleção Os Pensadores).
transformador de si próprio e de sua cultura, ator dos PEREIRA, M.E.M. e GIOIA, S. C. Do feudalismo ao
acontecimentos sociais que, portanto, não podem ser capitalismo: uma longa transição. Em ANDERY,
mais considerados como naturais, mas sim como M. A. et al. Para compreender a ciência: uma
processos humanos. É necessário então, que se perspectiva histórica. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Espaço e Tempo, 1988.

Iniciação Científica Cesumar, Maringá, Ag-Dez 2000, Vol. 02 n. 02, pp. 69-75
Iniciação Científica Cesumar 75
Ag-Dez 2000, Vol. 02 n. 02, pp. 69-75

RUBANO, D. R. & MOROZ, M. A Dúvida como


recurso e a geometria como modelo: René
Descartes, Em ANDERY, M. A. et al. Para
compreender a ciência: uma perspectiva
histórica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Espaço e
Tempo, 1988.
TOMANIK. Eduardo A . Ser e não ser: a pesquisa em
Psicologia no Brasil e a questão da
cientificidade. 1992. Tese (Doutorado)/
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Recebido em: 2000


Aceito em: 2001:

Iniciação Científica Cesumar, Maringá, Ag-Dez 2000, Vol. 02 n. 02, pp. 69-75

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