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COMO CONSUMIMOS A NATUREZA

Maria Eduarda de Carvalho Silva1

RESUMO
O objetivo do trabalho em si é introduzir uma reflexão sobre como a prática de cultivar
plantas em casa, pode nos fazer repensar o significado do que seria consumir a natureza. Para
auxiliar esta reflexão trataremos dos conceitos de “objeto” e “coisa”, relacionando aos conceitos
de “consumo” e “consumidor”, onde o encontro com a natureza estará no desfecho dessa
análise. A análise tem a intenção de ser abordada da forma mais didática possível, salientando
um interesse primário do leitor para este debate tão importante e atual, além de muito familiar
em nossas rotinas.

Palavras-chave: antropologia do consumo. antropologia ecológica. cultura material.

“Uma flor nasceu na rua!


Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
Garanto que uma flor nasceu. [...]
Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”
(ANDRADE, Carlos Drummond. 1902-1987)

DA MATÉRIA A FORMA
Irei introduzir conceitos de Tim Ingold em seu artigo chamado “Trazendo as coisas de
volta à vida: Emaranhados criativos num mundo de materiais”. Ele contextualiza a ideia de
Aristóteles sobre o que seria criar: juntar a forma e a matéria. Desde então o pensamento
ocidental passou a ver a forma como um resultado final da matéria, onde existe um agente que
direciona esse resultado. O objetivo desta contextualização é nos instigar a repensar a maneira
como enxergamos apenas os produtos finais, e passarmos a enxergar os processos de formação,

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Discente do sexto período de Ciências Sociais. E-mail: carvalho_maria@id.uff.br
a movimentação da matéria enquanto se junta a forma. Nessa linha de pensamento, o artista
não seria a pessoa que dá forma à matéria, mas a pessoa que dança junto com os fluxos materiais
que as rodeiam, conduzindo e sendo conduzido.

DOS OBJETOS ÀS COISAS


Este parágrafo começa com uma afirmação: “O mundo em que habitamos é composto
não por objetos, mas por coisas”, (Tim Ingold). Entendemos por objeto um produto final, uma
forma consumada, estática. O objeto é visto como uma superfície impenetrável, que possui uma
função utilitária, serviente a nós. A cadeira nos serve para sentar. A árvore nos serve para
produzir frutos ou até mesmo, para virar uma cadeira (da matéria à forma). Já a coisa,
entendemos por algo que está em movimento constante, que possui uma fluidez, um fluxo de
acontecimentos. A coisa é viva, mas não por possuir uma anatomia biológica. Não por nascer,
crescer, reproduzir e morrer. A coisa é viva porque ela detém uma autonomia, porque ela faz
parte de um conjunto de encontros. O ato da experiência só acontece através do encontro. Não
nos encontramos com o que seria considerado objeto, pois o contato com eles seria mediado
apenas pela utilidade. Nós nos encontramos com a coisa porque ela é pensada para além de sua
forma final, para além da funcionalidade, nós nos encontramos e nos juntamos aos processos
de formação, porque também fazemos parte dele. Nós experienciamos junto com a coisa. A
nossa autonomia é conquistada quando aprendemos a validar a autonomia das coisas. Nós não
somos apenas influenciadores, também somos influenciados pelas coisas ao nosso redor.
Retomando as palavras de Tim: “Pensar a pipa como um objeto é omitir o vento”, incluo aqui
que, pensar a pipa como objeto é omitirmos a nós mesmos.

DO CONSUMO AO CONSUMIDOR
Após desenvolvermos os conceitos de objeto e coisa, iremos embarcar nas ideias de
Daniel Miller em seu artigo “A pobreza da moralidade”. Irei me ater às reflexões sobre consumo
e consumidores. O antropólogo inicia desenvolvendo uma crítica à moralidade pela qual esse
tema foi abordado por muito tempo, principalmente do ambiente acadêmico. O consumo na
maioria dos casos era abordado apenas como um processo de aquisição de bens materiais,
supérfluo e meramente materialista. Já o consumidor, era abordado como vítima da cultura
capitalista do consumo, alienado. O autor pontua que um dos maiores problemas sociais que
temos é a falta de acesso à bens materiais como moradias, transporte, alimentação. Sabemos
que grande parte dessa desigualdade social é acarretada pelo sistema econômico em que
estamos inseridos, mas para além deste fato dado, é importante ampliarmos a nossa percepção
para entender que o acesso a esses bens acontece justamente através do consumo. Ou seja, ao
atrelarmos a ideia de consumo exclusivamente ao consumismo, nós estamos vendo apenas a
forma dada, sem olhar para os demais fluxos materiais que a rodeiam. Quando partimos do
princípio de que o consumo é supérfluo, também estamos partindo do princípio de que
consumimos objetos e não coisas. Como vimos anteriormente, as coisas que nos rodeiam e,
consequentemente, que consumimos, vão para além de meros objetos porque possuem
significado e vida.
É importante termos em mente que o consumo não é homogêneo, ele irá possuir
significados diferentes para cada indivíduo ou grupo social. Como exemplifica Miller, para uma
mãe que presenteia seu filho que tem sonho de ser atleta com um tênis da Nike, esse consumo
pode ser um ato de afeto cheio de sentimentos profundos, nada superficiais. Então, entendemos
que relações sociais, os encontros e as experiências se desenvolvem por intermédio das coisas
que consumimos. Porque nós consumimos para além dos bens materiais, consumimos lugares,
consumimos sentimentos, consumimos a natureza, e entre tantos outros.

Assim como eu, espero que o leitor tenha tirado uns segundos para respirar. É um
processo complexo desassociar uma palavra normalmente atrelada a uma conotação negativa,
para uma conotação onde ela não é necessariamente negativa. Este debate não possui o intuito
de defender a cultura do consumo porque se apresenta como uma crítica alternativa. Uma crítica
que vai para além do produto final, da forma já imposta. Entendemos que a crítica moralista
que vem sendo imposta ao consumo, na verdade, intensifica e fortalece as mesmas estruturas
as quais estão criticando. Na crítica moralista, se desenvolve uma supervalorização dos bens
materiais como objetos, tudo que se enxerga são eles e tudo que se consome são eles. A
conotação negativa imposta a palavra consumo não parece intimidar a cultura capitalista, pelo
contrário, o consumo que valoriza os bens materiais é o que está em destaque, é o único
consumo que é validado. Desta maneira, o consumismo é fomentado, porque gera uma falta de
percepção sobre o que realmente consumimos, que acarreta em um excesso de consumo dos
bens materiais em busca de alguma validação. Onde há falta, há excesso.
Esta ideia de consumo tira a humanidade dos consumidores, ao resumi-los meramente
como vítimas da cultura capitalista, ao reduzir a identidade humana ao ato de consumir bens.
Não somos apenas influenciados pelas coisas ao nosso redor, mas também somos

Discente do sexto período de Ciências Sociais. E-mail: carvalho_maria@id.uff.br


influenciadores. No primeiro parágrafo esta frase estava posta de forma invertida, por tanto, é
aqui que reforço a ideia de que estamos em movimentação, tanto guiando como sendo guiados,
não existe uma hierarquia de imposição às experiências.

DO CONSUMO AO CULTIVO
Por fim, irei introduzir ao debate uma prática de consumo que vem se tornado cada vez
mais comum nos tempos atuais, que é o aumento do interesse em jardinagem, o ato de comprar
plantas e cultivar elas em suas casas. Importante localizar que me refiro às pessoas que vivem
no ambiente urbano em maioria, pois a população que vive no campo experiência de maneira
diferente o contato com a natureza. A ideia que temos sobre consumir a natureza seria extrair
dela as fontes de matéria-prima, medicamentos e alimentos para nossa sobrevivência. Outra
forma de pensar no consumo da natureza está relacionado ao excesso, ao desmatamento e à
exploração. Acontece que esta nova prática de consumo não está associada a ideia nem de
serventia da natureza para nossa sobrevivência, nem a um consumo excessivo e destrutivo da
mesma. O ato de comprar uma planta ou semente e levar para casa para cuidar, está sendo um
instrumento gerador das reflexões que venho abordado ao longo de todo este texto. Em uma
lógica onde vemos apenas a forma, poderíamos considerar as suculentas e as samambaias
apenas como objetos de decoração da casa, um consumo supérfluo. Assim, também
determinaríamos as mudas de pimentão e tomate apenas para usufruirmos de seus frutos.
A questão é que a relação das pessoas com estas plantas cultivadas está sendo de
encontro. As pessoas estão conseguindo ver a natureza de uma maneira mais íntima e,
consequentemente, se vendo nela. Ao analisarmos os comportamentos, as necessidades, as
movimentações e os sentimentos das plantas, nós nos juntamos aos processos de formação da
natureza e passamos a analisar a nós mesmos também. Esta movimentação é involuntária
porque, novamente, nós estamos sendo conduzidos ao cultivarmos as plantas tanto quanto a
conduzimos, porque compartilhamos das mesmas essências, cultivamos dos mesmos encontros.
Pensar a natureza como uma coisa é não omitirmos a nós mesmos.

DO ENCONTRO AO POEMA
No ano de 1945, Carlos Drummond de Andrade escreveu um de seus poemas mais
conhecidos “A flor e a náusea”, ao qual mostrei a vocês no início desse texto. No desfecho do
poema ele relata com uma enorme sensibilidade sobre uma flor que nasceu na rua. Nesse
momento, ele vê o nascimento desta flor como um acontecimento. Ele enxerga a flor para além
da ótica do objeto e para além da ótica moralista sobre o que se consome. Ele enxerga a flor
como coisa. Ele consome a flor como coisa. Ele se encontra com a flor que nasceu e desse
encontro, nasce junto um poema. A flor que nasceu na rua, agora tem nascido também dentro
de nossas casas. Espero que esses acontecimentos nos proporcionem novos encontros e novos
poemas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

INGOLD, Tim. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de
materiais. Horizontes antropológicos, Porto Alegre, v. 18, n. 37, p. 25-44. Junho
2012. Disponível em: Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo
de materiais (scielo.br)

MILLER, Daniel. A pobreza da moralidade. Revista Antropolítica, Niterói, n. 17, p. 21-43,


2. sem. 2004.

ANDRADE, Carlos Drummond. A rosa do povo. 1902-1987. A rosa do povo/ Carlos


Drummond de Andrade. — 1a ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Disponível em:
13222.pdf (companhiadasletras.com.br)

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