Você está na página 1de 18

Verdade e Multiplicidade de Métodos em Bachelard1

Maria da Conceição Alves Feitosa


Maria José Barbosa

Não existe verdade primeira. Há, apenas, primeiros erros.


(G.Bachelard)

1 Introdução
Qual a origem do conhecimento? Como se dá a relação entre sujeito e
objeto? Qual a extensão do conhecimento?

Para responder às indagações, diversas teorias foram apresentadas ao


longo dos séculos por estudiosos dos mais diferentes lugares. Todas tentam
apresentar soluções a essas perguntas, sem, entretanto, obter aceitação unânime.
O que mais conseguiram foi gerar polêmicas e dar margem para sua ampliação ou
aparecimento de outras teorias. Dentre estas últimas, é oportuno ressaltar o
positivismo, surgido na segunda metade do século XIX, fruto do predomínio das
ciências da natureza, e que dominou o pensamento epistemológico, constituindo-
se paradigma da cientificidade.

A predominância do positivismo é um exemplo de como uma teoria gera


outras que a ela se opõem ou tentam superá-Ia. Surgem, assim, o neo-positivismo
do círculo de Viena, o racionalismo crítico de Karl R. Popper, a teoria das
revoluções científicas de Thomas Kuhn e o racionalismo aplicado de Gaston
Bachelard.

1
FEITOSA, Maria da Conceição Alves e BARBOSA, Maria José - Verdade e Multiplicidade de
Métodos em Bachelard, In: Imaginando Erros, Fortaleza, Programa Editorial Casa José de Alencar, 1997
Este capítulo tem por objetivo apresentar algumas reflexões sobre o
pensamento de Bachelard. Antes, porém, sintetizaremos o contexto histórico em
que Bachelard viveu e como, ao se opor ao positivismo, delineou as principais
vertentes do seu pensamento.
A diversidade marcou a vida de Gaston Bachelard. Trabalhou nos Correios
enquanto era estudante de matemática e pretendia formar-se engenheiro. Depois
de lutar na Segunda Guerra Mundial, iniciou carreira no magistério ensinando
química e física no curso secundário e, posteriormente, história e filosofia na
universidade.

Incompreendido em seus posicionamentos, Bachelard foi interpretado como


idealista, materialista e fenomenologista, talvez por nunca se ter deixado prender
às ortodoxias das escolas filosóficas.

No período histórico em que viveu, seu trabalho era quase solitário, visto
que desenvolvia uma filosofia histórica quando se destacavam concepções
antimetafísicas e o enfoque histórico (neopositivismo vienense e o
operacionalismo norte-americano).

Contrário aos neopositivistas, Bachelard discorda de alguns de seus pontos


herdados do positivismo de A. Comte, que sustentava:

a) as únicas verdades a que podemos e devemos nos referir são os


enunciados das ciências experimentais; trata-se de verdades claras, unívocas e
imutáveis.

b) todo e qualquer outro tipo de juízo deve ser abandonado como sendo
teológico ou filosófico;
c) a função das ciências experimentais não é a de explicar os fenômenos,
mas a de prevê-los para dominá-los; o que importa não é saber o porquê, mas o
como das ciências.

d) o aparecimento da ciência esboçaria, para a humanidade, um mundo


inteiramente novo, possibilitando-lhe viver na ordem e no progresso (5:p. 66/67).
Bachelard prega, em contrapartida, a necessidade de nova filosofia, aberta
e histórica. Instaura outro espírito científico que parte de novos pressupostos
epistemológicos ao demonstrar a evolução das idéias através de rupturas.
Visualiza o mundo como um imenso palco e o homem como o ator principal dos
acontecimentos, trilha dois caminhos paralelos: da ciência e da poesia.
Demonstra, assim, a sua principal característica: um espírito aberto, insaciável e,
por isso, sempre Jovem.

2 Racionalismo Aplicado

Bachelard buscava uma forma de adequar o racionalismo ao


desenvolvimento das ciências. Para isso abandonou a idéia do racionalismo puro,
de visão universal, e adotou um racionalismo regional que procura explicitar os
fundamentos de um setor particular do saber científico (7: p. 18). Trata-se de um
racionalismo dialético que se serve da razão e da técnica, denominado
racionalismo aplicado e que não será utilizado em generalidades, mas sim em
partes limitadas de experiência, para daí extrair suas aplicações. Nesse neo-
racionalismo mostrar o real não é o suficiente; é preciso demonstrá-Io.

Para Bachelard, a ciência instrui a razão. A razão, que deve acompanhar a


evolução da ciência, não tem o direito de sobrestimar uma experiência imediata;
deve, pelo contrário, harmonizar-se com a experiência mais ricamente estruturada
(1: p.125). Da mesma forma, uma experiência não pode rejeitar uma teoria sem
expor razões para sua oposição.
O sucesso de uma experiência depende de um projeto bem feito, planejado
a partir de uma teoria. Logo, ao meditar a ação científica, percebe-se que existe
uma permuta entre o realismo e o racionalismo, insuficientes para construir a
prova científica. Nas ciências não há lugar para uma intuição do fenômeno que
revele de uma só vez os fundamentos do real; tampouco há lugar para uma
convicção racional absoluta e definitiva que imponha categorias fundamentais aos
métodos de pesquisa experimentais. Desta forma, é estabelecida uma integração
entre o racional e o empírico, em que um é o complemento do outro.

O racionalismo aplicado procura adequar-se ao pensamento científico em


constante evolução. Considerando a reação dos conhecimentos científicos sobre a
estrutura espiritual, o espírito científico funda-se sobre a consciência de seus
erros. Tem sua evolução a partir de rupturas e da conscientização de que existem
entraves para sua evolução.

Pode-se concluir que o racionalismo é uma filosofia que continua; nunca é


verdadeiramente uma filosofia que começa. Existe uma necessidade de inserir o
objeto de estudo num conjunto de problemas que se fundamenta numa dúvida
específica. Quando alguém se volta para os fundamentos do real, está se dirigindo
para a própria coisa, livrando-se das ilusões primeiras e chegando perto do objeto.
A objetividade, tal como é explorada pela ciência contemporânea, é em cada
descoberta um prolongamento da racionalidade. O poder de explicação aumenta.
Quanto mais profunda for a experiência, tanto mais sistematicamente se organiza
a ciência.

Além do mais, a ciência necessita de uma filosofia. Não de uma filosofia


universal fechada e imóvel, mas de uma filosofia sem um centro, aberta, histórica,
contemporânea da ciência, que se arrisque ao lado dos cientistas nos campos
novos do pensamento. Não de uma filosofia que se limite só a propor soluções
filosóficas para os problemas científicos já superados, mas que vise à produção
dos conhecimentos científicos, sob todos os seus aspectos: lógicos, ideológicos,
históricos. Uma filosofia que interrogue sobre as relações entre as ciências e a
sociedade, entre as ciências e as outras ciências, na procura de descobrir a
gênese, a estrutura e o funcionamento dos conhecimentos científicos. A dinâmica
da cultura científica é o progresso, descrever este progresso é o papel dessa
filosofia, pois, para Bachelard, as ciências nascem e evoluem em circunstâncias
históricas bem determinadas (5: p. 66).
Vê-se, portanto, que dois pontos são fundamentais no racionalismo
aplicado:
1 o filósofo deve ser contemporâneo à ciência de sua própria época (...);

2 a ciência possui inelutável caráter social (8: p. 1011).

Outro aspecto a ser destacado no estudo do racio-nalismo aplicado é a


idéia de que a abordagem do objeto científico deve ser feita através do uso
sucessivo de diversos métodos. As relações entre a teoria e a experiência são de
tal modo estreitas que nenhum método, seja experimental, seja racional, está
seguro de manter seu valor.

O método não pode ser um resumo dos hábitos ga-nhos ao longo da prática
de uma ciência, pois é uma estratégia usada na aquisição do saber. Se não
houver uma renovação no objeto, o método, por melhor que seja, termina por
perder sua fecundidade. Quando a ciência moderna propõe novo método,
compreende-se que um outro foi considerado desgastado. Sempre que um
método passa por uma crise, é reorganizado.

A multiplicação dos métodos, seja qual for o nível em que operem, não
poderá prejudicar a unidade da ciência. Uma modificação nas bases da ciência
não a leva à destruição; pelo contrário, serve para elevá-Ia.

Nenhuma crise interna deterá o progresso da ciência, nem causará sua


destruição, pois a ciência possui um poder de integração que lhe permite
aproveitar aquilo que a contradiz. Para Bachelard, o progresso do novo espírito
científico está na criação de métodos novos, pois

os conceitos e os métodos, tudo é função do domínio da


experiência; todo o pensamento científico deve mudar diante
duma experiência nova; um discurso sobre o método científico
será sempre um discurso de circunstância, não descreverá uma
constituição definitiva do espírito científico (2: p. 70).

Na defesa da retificação permanente dos métodos, Bachelard utiliza o


método cartesiano para expor melhor suas idéias, discordando de Descartes,
quando ele declara a existência de elementos absolutos no mundo objetivo e
ainda que os mesmos são conhecidos em sua totalidade e diretamente. Afirma,
ainda, que

o método cartesiano é redutivo, não é indutivo. Tal redução


falseia a análise e entrava o desenvolvimento extensivo do
pensamento objetivo (2: p. 71).

Para Bachelard, a evolução do conhecimento não tem fim e, todo postulado


pode ser acrescido de outros que venham a enriquecê-Io. Nesse caso, torna-se
uma experiência velha, uma negação temporária, aberta a outros
questionamentos. A essência da reflexão é compreender dialeticamente o que não
se havia ainda compreendido.

Como exemplo, toma-se a negação do cartesianismo ou do euclidianismo,


ocorrida de forma dialética e que apresenta a retificação de um erro, a extensão
de um sistema, o complemento de um pensamento. Poder-se-ia, assim,
considerar o não cartesianismo como um cartesianismo completado.

Entretanto, o método cartesiano não deixa de ter um valor pedagógico,


podendo ser utilizado dentro de um espírito de ordem e de classificação. Quando
se tratar de ensinar a ordem das notas, a clareza na exposição, a distinção dos
conceitos, a segurança nos inventários, o método cartesiano é o ideal.
3 A Estrutura Falível do Conhecimento

O conhecimento científico avança através de sucessivas retificações das


teorias anteriores. Não há verdade sem erro retificado: o espírito científico é a
retificação do saber. Segundo Bachelard, não existe verdade primeira. Existem
apenas primeiros erros (8: p. 1014).

O pensamento científico de Bachelard utiliza o método firmado no risco e na


dúvida; está sempre pondo em jogo a própria organização. Portanto, é
anticientífica a atitude de quem sempre busca uma forma de comprovar sua teoria,
em vez de retificá-Ia, e, por isso, Bachelard mostra-se avesso às pretensões da
certeza científica. É por retificações contínuas, por críticas, por polêmicas, que a
razão descobre e faz a verdade. Para a ciência, o verdadeiro é o retificado, uma
vez que não é contemplando, mas construindo, criando, produzindo,
retificando que o espírito chega à verdade (5: p. 69).

Bachelard afirma que o empirismo tradicional e o racionalismo idealista total


não explicam a ciência, pois, em uma pesquisa científica, o real, objeto do
empirismo, e o racionalismo absoluto (ou subjetivo) sem ser tomado em um
sistema teórico, não explicam a prática e a história da ciência (8: p. 1012-1013).

As sucessivas tradições que, de vez em quando, negam pressupostos,


categorias, métodos que sustentavam a pesquisa na fase anterior, constituem as
regras epistemológicas. Como exemplos, temos as ciências físicas e químicas no
desenvolvimento contemporâneo (átomo, valência...). Caracteriza-se, assim, uma
ruptura entre conhecimento sensível e conhecimento científico. O sensível é
movido pelo real imediato e o científico é racional. Desta forma, o progresso do
espírito científico se faz com a ocorrência de rupturas com o senso comum, com
as pré-noções da filosofia da ciência que deve ser intervencionista.
Bachelard acredita que a ciência progride através da descoberta do erro da
ciência na fase anterior e das mudanças que promovem rupturas na própria
ciência:

a ciência deve ter sua temporalidade específica e proceder


sempre por reorganizações, por rupturas e mutações, passando
pela experiência de aceleração e de recuos (5: p. 79).

Para a filosofia científica, não há racionalismo absoluto, nem realismo


absoluto, pois, para julgar o pensamento científico, não é preciso uma atitude
filosófica geral.

O racionalismo de Bachelard rompe com o racionalismo a priori e propõe


um racionalismo móvel. A ciência deve, então, desenvolver-se contra a
experiência e não ser dela pleonasmo.

Este desenvolvimento se apóia em três axiomas (5: p. 80):

a) Primado teórico do erro. Quanto mais profundo for o erro, mais clara será
a idéia. É preciso errar para se atingir um fim, pois a verdade só adquire seu
sentido ao término de uma polêmica. O reconhecimento e valorização do erro e do
ultrapassado é caminho indispensável para a história da verdade. A ciência
desenvolve- se a partir da descoberta de vários erros. Quanto mais complexo for o
erro, mais rica será a experiência.

b) Depreciação especulativa da intuição. Não deve existir intuição, pois o


imediato deve dar sempre lugar ao construído: O verdadeiro é o dito do dizer
científico (7: p. 21). Bachelard e Canguilhem afirmam que para o pensamento
científico o progresso é demonstrável e é indispensável para o desenvolvimento
da cultura científica.
c) A posição do objeto como perspectiva das idéias. Compreendemos o
real na medida em que o organizamos. Os fatos não apresentam imortalidade
científica, pois não há critérios de cientificidade universal para todos os tempos e
não há um tempo único e homogêneo da ciência. Isso se deve à afirmação de
Bachelard de que o progresso é propriedade essencial das ciências, e pode ser
demonstrado na própria cultura científica (7: p. 49).

Com a mesma fertilidade dos conceitos de erro e ruptura, surge na reflexão


bachelardiana o de obstáculo epistemológico.

O obstáculo epistemológico é uma idéia que impede e bloqueia outras


idéias. Ideologias, a inércia que faz estagnar culturas, hábitos intelectuais
caracterizados, opiniões e conhecimentos não mais problematizados são
exemplos de obstáculos epistemológicos.

O obstáculo é, então, um contra pensamento, uma resistência parada do


pensamento ao pensamento. Assim, o obstáculo aparece todas as vezes que uma
organização do conhecimento preexistente encontra-se ameaçada. Bachelard
considera como obstáculo relevante a experiência primeira que está além da
crítica e que reduz idéias. Diante desses aspectos, Bachelard propõe uma
psicanálise do conhecimento objetivo para identificar e remover obstáculos que
bloqueiam o desenvolvimento do espírito científico e construir o espírito jovem que
deve aceitar as mudanças nas suas idéias, hábitos, opiniões e conhecimentos. Ter
acesso à ciência significa rejuvenescer espiritualmente ( 8: p. 1013).

A noção de obstáculo epistemólogo pode ser estudada no desenvolvimento


do pensamento científico e na prática da educação.

Na história, o epistemólogo deve verificar racionalmente os documentos


recolhidos pelo historiador, para que não sejam obstáculos a uma pesquisa que se
propõe dinâmica e científica.
Na educação, o obstáculo é do tipo pedagógico e ocorre quando os
professores não investigam o erro, a ignorância, a irreflexão; não mudam a cultura
experimental de seus alunos, nem se reciclam em conteúdo e método; isto porque
a cultura deve estar em permanente mobilização.

Para melhor compreensão do que é obstáculo epistemológico, considerem-


se os exemplos seguintes (1: p.170-180):

O primeiro obstáculo é caracterizado pela experiência inicial. Tal


experiência não é normalmente criticada, ocasionando conhecimentos frágeis. O
espírito científico tem de se formar contra o entusiasmo natural de cada um de
nós. Toma-se, por exemplo, a explicação do trovão. No passado, a experiência
inicial com este fenômeno da natureza levava as pessoas ao medo e à angústia.
Nos nossos dias, o medo do trovão está dominado. Só age na solidão. Não pode
perturbar uma sociedade porque, socialmente, a teoria do trovão está inteiramente
racionalizada (1: p. 173). Pode-se, ainda, mencionar a experiência inicial em
física, química e em outras áreas da ciência que não deve ser repassada anos
após anos aos alunos, pois estes devem pesquisar, dinamizar-se. O espírito não
deve bloquear-se pela imagem e experiência inicial.

Bachelard menciona outro empecilho ao conhecimento: obstáculo realista.


Este obstáculo está baseado na certeza, na convicção substancialista do real. É o
sentimento de ter na sua forma natural, isto é, a substância de um objeto é aceita
como um bem pessoal. Apoderamo-nos dela espiritualmente como nos
apoderamos de um benefício evidente (1: p. 173).

Uma terceira dificuldade para o conhecimento científico reside no


obstáculo animista. Isto ocorre quando outros princípios ficam obscurecidos pelo
sentido da palavra vida. Há matéria viva e é ela que comanda a matéria morta. Só
tem valor, então, a matéria viva. Sem qualquer prova, pela simples sedução de
uma afirmação valorizante, o autor atribui um poder sem limites a alguns
elementos (1: p. 176). Este obstáculo teve papel marcante na constituição das
ciências naturais: qualquer outro princípio fica obscurecido quando se pode
invocar um princípio vital (1:p.176).Vale lembrar, neste contexto, a teoria da
geração espontânea.

Finalmente, tem-se a libido, obstáculo que ocorre quando a afetividade


atrapalha o estudo do objeto. Os objetos, os seres vivos, ao serem estudados, são
acompanhados de afetividade. Como exemplo disto tem-se a experiência do
próprio Bachelard que, como professor de química, pôde constatar que, na reação
de um ácido com uma base, a quase totalidade dos alunos atribuía o papel ativo
ao ácido e o papel passivo à base. Isto significa que o ácido é masculino e a base
feminina, na mente dos alunos. O fato de o produto resultante ser um sal neutro
não deixa de ter um certo eco psicanalítico.(1: p. 179)

4 Paralelo entre Bachelard, Popper e Kuhn

A aproximação comparativa das posições de Bachelard, Popper e Kuhn


será apresentada levando-se em consideração a epistemologia, o princípio do
conhecimento científico e da verdade, e o método.

Com relação à epistemologia, os três autores defendem filosofias críticas,


polêmicas que procuram reformular conceitos científicos e filosóficos da ciência.
São filosofias anti-empiristas e racionalistas, nas quais as ciências devem produzir
suas normas de verdade.

Segundo Bachelard, a epistemologia consiste na análise da história da


ciência, como deve ser feita, visando à produção de conhecimentos lógicos e
Ideológicos.

O progresso do espírito científico se faz por meio de rupturas com o senso


comum e com as pré-noções da filosofia espontânea. A epistemologia de
Bachelard visa a descobrir os valores ideológicos que intervêm na prática
científica; procura dar à ciência a filosofia que ela merece (aberta, móvel).

Popper inspirou-se no paradigma das ciências físicas e naturais e sua


doutrina está presente na crítica ao verificacionismo e à indução. Crê na ciência
como invenção e é contra o positivismo lógico e o fenomenismo exacerbado.

Popper propõe uma conduta científica que traça uma linha de demarcação
nítida entre as verdadeiras ciências, constituídas de conjecturas ousadas
submetidas à refutação eventual dos fatos, e as falsas ciências, infalsificáveis, que
são doutrinas que, por pretenderem ter atingido a verdade, não aceitam ser um dia
falsificáveis, refutadas pela experiência (6:p.71).

Popper busca a racionalidade científica através de críticas e refutação da


comunidade científica e a definição de critérios para a escolha entre teorias rivais.
A tese de Popper é de que qualquer conhecimento verdadeiro é, ao mesmo
tempo, conjectural e refutável.

Kuhn acreditava que o progresso da ciência é contraditório e tenta


compreender os mecanismos propulsores do desenvolvimento científico,
buscando uma teoria que explicasse a dinâmica da história da ciência; critica o
positivismo e o método hipotético dedutivo de Popper, que infere conseqüências
lógicas, proposições singulares, empíricas, de axiomas, proposições teóricas de
base metafísica (3: p. 85).

Kuhn evidencia o caráter descontínuo da história das ciências da natureza


(astronomia, física, biologia). Para ele, existe a ciência normal, anotada em
manuais e livros de cursos, caracterizada por uma comunidade de pesquisadores
que trabalham num conjunto de problemas que têm entre si um ar familiar e, em
certas épocas, parecem incapazes de resolver as anomalias e os enigmas que se
apresentam.
Quanto ao princípio do conhecimento científico e da verdade, Bachelard,
Popper e Kuhn propõem filosofias que se fundamentam no princípio do
conhecimento científico que jamais atinge uma verdade final absoluta.

Para Bachelard, a verdade é retificada na história e a experiência é apenas


a retificação da ilusão comum. Assim, possui atitude anti-científica quem encontra
forma de provar sua teoria, pois o espírito científico nada vale por si só, nada é
dado, tudo é construído e a verdade só se encontra ao se descartarem erros cada
vez mais sutis.

O conhecimento científico avança através de sucessivas retificações das


teorias anteriores. Bachelard afirma, em O Novo espírito científico, que o
verdadeiro surge com a ampliação do conhecimento, com a retificação do saber.

Popper, por sua vez, afirma que a ciência nos fornece apenas
conhecimentos provisórios, pois está em constante modificação, e assim não há
verdade final toda teoria nova é valiosa, contudo, só será frutífera na medida em
que suscitar novos problemas. Além disso, uma teoria pode ser mais verdadeira
que a outra, sem que jamais se possa afirmar ter-se contemplado a verdade que
finalmente desvendou, pois a hipótese mais próxima da verdade é,
freqüentemente, a menos provável, a mais audaciosa, a menos verossímil para o
senso comum. Com Popper, a ciência volta a ser uma aventura intelectual que
coloca problemas metafísicos incessantemente novos, ao mesmo tempo que
permanece submetida ao controle da experiência.

Kuhn apresenta sua reflexão, questionando dogmas consagrados e


analisando o progresso da ciência como um processo contraditório de revoluções
científicas. A ciência se desenvolve através de paradigmas e de saltos (mudança
de paradigmas), que constituem o guia, mentor de um estudo científico para a
ciência normal, produzida por uma comunidade científica que, segundo ele, é uma
sociedade essencialmente fechada, constantemente abalada por colapsos
nervosos coletivos seguidos de restauração da harmonia mental (3: p. 143).

De acordo com Thomas Kuhn, o pesquisador é um solucionador de quebra-


cabeças. Ao surgirem questionamentos ao paradigma tradicional, este entra em
crise, a qual possibilita a aparição de um novo paradigma capaz de resolver novos
enigmas.

No que concerne ao método, Bachelard pressupõe teorias que progridem,


que são retificações das primeiras observações. O progresso do conhecimento
científico se inicia com o senso comum, com as pré-noções de nossa filosofia
espontânea, através de uma ciência intervencionista que deve atuar numa
comunidade de pesquisa e com critérios, a fim de que não seja totalitária.

Da vertente científica de Bachelard a ciência é construída, produzida,


retificada e, através da crítica, a razão chega à verdade.

Um pensamento científico não é um sistema acabado de dogmas


evidentes, mas uma incerteza generalizada, uma dúvida em
despertar, de tal forma que o cientista é necessariamente um
sujeito descentrado e dividido, ligado à sua prática mas, ao
mesmo tempo, distanciado dela (5: p. 69).

Bachelard propõe uma epistemologia cujo objetivo é o conhecimento em


movimento, onde se leva em conta sua historicidade e onde a ciência, em seu
crescimento, renuncie à pretensão de um saber universal.

Segundo Popper, as observações são interpretações de fatos observados à


luz de uma teoria. Seu método científico se fundamenta na razão e considera
impossível provar a veracidade de uma teoria. O ponto de partida da ciência é o
problema. A teoria pode solucioná-Io ou suscitar novos problemas, e em qualquer
caso, crescer neste processo.
Com Popper, a ciência se apresenta como uma aventura intelectual
colocando problemas incessantemente novos, ao mesmo tempo que permanece
submetida ao controle da experiência, via refutação: as teorias precisam sofrer
confronto com a experiência. É um método hipotético-dedutível inferindo
proposições singulares que precisam ser falseadas. A teoria que resistir ao
confronto com a experiência e superar as teorias rivais será provisoriamente
aceita.

Uma das características básicas da teoria de Kuhn é o fato de a ciência


desenvolver-se através de saltos que constituem as mudanças de paradigmas nas
diversas áreas de conhecimento, e é o que distingue as atividades científicas das
não científicas. O surgimento de um novo paradigma em qualquer área do
conhecimento é a condição básica, segundo Kuhn, para o progresso da ciência. O
novo paradigma nasce num momento de crise estabelecida da ciência, conduzida
por teorias, pesquisas e escolas. A maneira como progride a ciência pode ser
resumida no seguinte esquema:

pré-ciência - ciência normal - crise-revolução - nova ciência normal-


nova crise (4: p. 124).

A atividade que precede a formação da ciência é desorganizada, porém


estruturada quando a comunidade científica se atém a um único paradigma, que é
um conjunto de leis e suposições técnicas gerais adotadas por uma comunidade
científica que trabalha dentro dele e pratica a ciência normal.
5 Considerações Finais

Das reflexões sobre o pensamento de Bachelard, podem-se enumerar


alguns pontos de destaque:

• O objetivo de estudo é o conhecimento em seu movimento. O


Racionalismo aplicado é uma epistemologia histórica que estuda a
dinâmica da ciência através do progresso dentro de seu contexto
histórico.
• O objetivo central é a reformulação do saber científico e a reforma
das noções filosóficas; isso ocorre através da descoberta do erro, da
posterior retificação da teoria e através de rupturas com o
conhecimento anterior.
• Sua dialética é uma dialética do não. Esta negatividade é
identificada na superação de sistemas teóricos que têm a pretensão
de possuir a verdade final. Para Bachelard a verdade não é uma
qualidade que pertença a esta ou aquela opinião particular; não
existe verdade final, o progresso do espírito científico está ligado à
criação de novos métodos.
• Bachelard identifica também entraves para o desenvolvimento do
conhecimento científico: os obstáculos epistemológicos,
representados por meio de idéias, pensamentos, opiniões, que
bloqueiam o surgimento de novas idéias. Superar obstáculos é
permitir o rejuvenescimento das culturas, dos métodos de pesquisa
e do ensino, do próprio pensamento; é ampliar o conhecimento
científico.
• Bachelard, Popper e Kuhn, pelo que foi exposto neste pequeno
ensaio, apresentam filosofias racionalistas, móveis e abertas para
cada setor de conhecimento; tais filosofias estão sempre se
renovando ou através de rupturas (Bachelard), do racionalismo
crítico (Popper), ou por saltos quando da mudança de paradigmas
(Kuhn). Todos eles defendem epistemologias críticas, racionalistas,
integradas à ciência, renovadoras, desprovidas de qualquer
ortodoxia.

Não se deve concluir que esta seja apenas mais uma teoria, e sim uma
contribuição ao desenvolvimento do pensamento filosófico. Marca o seu
rompimento com as posições filosóficas dos séculos passados. Oferece nova
visão sobre o fato científico, vez que apresenta o novo caráter do espírito científico
como dialético e aberto a novidades.

6 Referências Bibliográficas

BACHELARD, Gaston. A Epistemologia, Lisboa, Edições 70, 1971.


__________________ O Novo espírito científico. São Paulo, Nova Cultural,
1988 (Os Pensadores).
BARRETO, José Anchieta Esmeraldo & MORElRA, Rui Verlaine Oliveira, Coisas
imperfeitas. Fortaleza, Coleção Alagadiço Novo, 1996, V. 61.
CHALMERS, Alan F. O que é Ciência afinal? São Paulo, Brasiliense, 1993.
JAPIASSU, Hilton Ferreira, Introdução ao pensamento epistemológico. Rio de
Janeiro, Francisco Alves, 1977.
LACOSTE, Jean. A Filosofia no século XX, Campinas, Papirus, 1992. .
MACHADO, Roberto. Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de Michael
Foucault. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1981.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia: do Romantismo aos
nossos dias. São Paulo, Paulinas, 1991, v.3.

Você também pode gostar