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FONÉTICA E FONOLOGIA DO

PORTUGUÊS
(10)

Mário Eduardo Viaro


DLCV-FFLCH-USP
2022
Os pressupostos da teoria estruturalista

Pré-sociolinguística:
• Uma língua tem um único sistema.

Pós-sociolinguística:
• Existe um conjunto de sistemas politicamente entendidos como pertencentes a uma
mesma língua (diassistemas). As diferenças entre esses sistemas são observadas em
vários níveis: no léxico, na gramática, na sintaxe e na fonologia!
Variação diatópica: uma língua é variável no espaço (diferença entre países, regiões e outras localidades)
Variação diastrática: uma língua é variável socialmente (classes sociais, escolaridade, gênero, língua escrita)
Variação diafásica: uma língua é variável no contexto comunicativa (formal, técnica, religiosa, gíria)
Variação diacrônica: uma língua varia ao longo do tempo (estágios da língua em sincronias pretéritas)
Variação ontogenética: uma língua varia conforme a idade do falante (aquisição da linguagem, ritos de passagem)
O paradoxo da estrutura subjacente
- Se há só uma estrutura subjacente para a língua portuguesa, como explicar variantes
(diatópicas/ diastráticas etc.) em que há distinções fonológicas desconhecidas de outras?
/s/:/s̺/ paço: passo
/ʃ/:/tʃ/ taxa: tacha

/B/ ≈ /b/:/v/ bala: vala


Mas: vassoura, bravo, covarde, assovio, varrer [v] ≈ [b]

/E/:/ɛ/ pretônico:
Pregar (golpear um prego) [pɾəˈɣaɾ] : pregar (fazer uma pregação) [pɾɛˈɣaɾ]
/a/:/ɐ/
Cantamos (pres ind) [kɐn ̃ ˈtɐmuʃ] : cantámos (pret perf ind) [kɐn
̃ ˈtamuʃ]
/ʃs/:/s/
descer [dəʃˈseɾ], piscina [pɨʃˈsinɐ], exceto [ɨʃˈsɛtu]

- Se há estruturas subjacentes que deveriam valer para todas as palavras de uma língua
como explicar as exceções desses “diassistemas”? O que estaria no sistema que os une?
Exceções no português europeu:
As átonas “permitidas” em português europeu seriam [ɐ], [ə], [i], [u], resultados
de /a/, /E/, /i/, /O/, mas:

Vadio [vaˈðiw] e não  [vɐˈðiw] /a/ ≈ /ɐ/ pretônico


Director [diɾɛˈtoɾ] e não  [diɾəˈtoɾ] /E/ ≈ /ɛ/ pretônico
Esquecer [ɨʃkɛˈseɾ] e não  [ɨʃkəˈseɾ] /E/ ≈ /ɛ/ pretônico
Coração [kuɾɐˈsɐw ̃ ] mas: corado [kɔˈɾaðu]: curado [kuˈɾaðu] /ɔ/:/u/ pretônico
Existir [iziʃˈtiɾ] mas: emigração x imigração /e/:/i/ pretônico
Autocarro [awtɔˈkaʀu] e não  [awtuˈkaʀu] /ɔ/ ≈ /u/ pretônico
Ave (animal) [ˈavə] mas: ave (interjeição) [ˈavɛ] /E/:/ɛ/ postônico
Grosso (adj) [ˈɡɾosu] mas: grosso (latinismo) [ˈɡɾosɔ] /O/:/ɔ/ postônico
Jure (vb) [ˈʒuɾə] mas: júri (sb) [ˈʒuɾi] /E/:/i/ postônico
O caso das átonas pretônicas
Se /a/, /E/, /i/, /O/, em português europeu, estariam em qualquer posição,
no português brasileiro, observa-se:

- /a/, /E/, /O/ nas postônicas;


- /a/, /e/, /E/, /i/, /o/, /O/, /u/ nas pretônicas.

Pesar [peˈzaɾ] ≈ [pɛˈzaɾ] : pisar [piˈzaɾ] ≈ Portugal [pəˈzaɾ]: [piˈzaɾ]


Feliz [feˈlis] ≈ [fɛˈlis] ≈ [fiˈlis] ≈ Portugal [fəˈliʃ]
Pequeno [peˈkenu] ≈ [piˈkenu] ≈ Portugal [pəˈkenu], mas: [pɛˈkenu]
Menino [miˈninu] ≈ Portugal [məˈninu], mas: [meˈninu] [mɛˈninu]
Neutralização absoluta = mudança do
sistema?
• ? /L/ = /l/:/w/ na posição de coda
Portugal: Mal [ˈmaɫ] : mau [ˈmaw]
Brasil: Mal [ˈmaw] = mau [ˈmaw] arquifonema /L/?

idem: calda : cauda

• ? /J/ = /j/:/ʎ/
Telha [ˈteʎa] : teia [ˈteja]
Telha [ˈteja] = teia [ˈteja] [j] realização de um /ʎ/?

• ? /ʁ/ = /L/:/R/
calma [ˈkawma] : karma [ˈkaɾma] par válido?
arco [ˈaɻku] = álcool [ˈaɻku] homonímia superficial?
/EdiˈfisjO/, /diˈfisiL/
Português brasileiro: [edʒiˈfisiw],[dʒiˈfisiw]

https://www.gazetaonline.com.br/noticias/brasil/2017/08/mpf-investiga-
erro-de-portugues-em-placa-de-nova-sede-na-paraiba-1014087383.html
A variação diacrônica

• Há fenômenos antigos que ficaram circunscritos a uma sincronia


pretérita;
• Há fenômenos antigos que existem até hoje, quer na norma culta,
quer em variantes diatópicas, diastráticas etc.;
• Há fenômenos antigos que existem hoje em línguas aparentadas
(como o galego ou o espanhol)
Quando houve a neutralização de /l/: /ɾ/ ?
Cf. Norma culta aceita grafias como: flecha/frecha, aluguel/aluguer, mas não “craro“

Século XVI (Jerónimo Cardoso) - Dictionarium ex lusitanico in latinum sermonem:


• <r>: corchete [35r], pintasirguo [85r];
• <pr>: apracado [17r], apracar [17r], aprainar [17r], compreisam [33v], desemprastar [45r], diciprina [48r], diciprinante
[48r], diciprinar [48r], emprastar [52r], emprasto [52r], praneta [60v, 71r, 87r], praina [87r], praines [87r], praino [87r],
pranta [87r], prantada [87r], prantar [87r], reprica [91v], repricar [91v], repubrica [91v], simprez [96r], simpreza [96r],
simprezmente [96r];
• <br>: pubricar [20v, 86v], empubrico [52r], pubrico [68v, 79v, 86v], pubricamẽte [86v], pubrica [88r];
• <fr>: aframar [8v], afrição [8v], afrigidamente [8v], afrigido [8v], afrigir [8v], Frãdes [27r] ≈ Frandes [27r, 55v, 63v],
enframaçam [53v], enframado [53v], enframar [53v], enframengo [53v], enfruir [53v], frama [63v], framenga [63v],
framengo [63v], frauta [64r], frecha [64r], frecheiro [64r], freima [64r], freimatico [64r], fror [64r], frorecer [64r], frorida
[64r], froridamente [64r];
• <cr>: acrarada [4v], acrarar [4v], crara [9r, 37v], concruir [34r], concrusam [34r], concruso [34r], cramar [37r],
encrinação [53r], encrinado [53r], encrinar [53r], encrinarse [53r], escramaçam [56v], escramar [56v], escrarecer [56v],
escrarecido [56v], incrinação [67v], incrinada [67v], incrinar [67v], malencrinado [72v], recramação [90r], recramar [90r],
recramo [90r];
• <gr>: Ingres [50v, 68r], grosa [66v], grosador [66v], grosar [66v], grotão [66v], ingraterra [68r], negrigencia [78v],
negrigente [78v], negrigentemente [78v].
https://www.stoodi.com.br/blog/dicas-de-
estudo/5-placas-que-era-melhor-voce-nao-ter-
visto/
femenino: português?
Jerónimo Cardoso (1562/1563):

Latim: femininus

Português: feminino
Galego: feminino ≈ femenino
Espanhol: femenino
Catalão: femení
Francês: feminin
Comportamento das vogais pretônicas no
português do século XVI
Jerónimo Cardoso (1562/1563)

• <a>: acupar [5r], auantal [22r], barruga [24v], dezanove [48r].


• <e>: adeuinha [7r], amenhaã [14r], embiguo [50v], femenina [61v], vezinho [103v].
• <en>: ventagem [40v, 48r], enleger [54r].
• <i>: alicrim [12r], arripiado [19v], vistidura [24r], biliscar [25v], bisouro [25v], bixigoso [25v],
piqueno [35v, 58v, 66r, 78v, 79v, 80v, 81v, 82r, 98v], cinoura [39r], milhor [40v, 42r, 75v], despidir
[47r], empidir [51v], minino [51r, 75v], ligume [61v], firir [62r], midir [75v], minina [75v], priguiça
[88r], priguiçoso [88r], sabiduria [94r], testimunha [99r], tisoura [99v].
• <in>: mintira [42r, 75v], gingibre [65v], mintir [75v], mintirosa [75v], pindurada [104r].
• <o>: somana [28r, 97r].
• <om>: somrirse [97r].
• <u>: acustumar [5r], burbulha [27v], burrifar [27v], curuja [30r, 37r], cuberta [37r], fucinhos
[59r], fugareiro [63r], fugareo [63r], sufrir [97v].
https://books.google.com/ngrams (“feminino”: espanhol?)
“Português europeu”
Mapa de: Maria Helena Santos Silva (sob
orientação de Manuel de Paiva Boléo)

https://www.geolinguistica.org/cv/textos/zrp
2015.pdf

https://edisciplinas.usp.br/mod/resource/vie
w.php?id=94853
“Português brasileiro”

Atlas de Antenor Nascentes

https://www.google.com/url?sa=i
&url=http%3A%2F%2Fwww.uel.br
%2Frevistas%2Fuel%2Findex.php%
2Fsignum%2Farticle%2Fdownload
%2F11703%2F11176&psig=AOvVa
w04vAvucrcawpEabKVzQS3p&ust=
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Dúvidas:
- É preciso conhecer oniscientemente toda a diversidade para estabelecer uma forma subjacente num sistema
acima dos diassistemas, então esse conhecimento? Se sim, é impossível...
- Qual o papel do indivíduo e de seu percurso de vida para a abstração das formas adjacentes que reconhece/
compreende? Ou essa abstração é de outra ordem? Faz sentido distinguir langue e parole, nesse caso? Se sim, o
que seria exatamente a langue saussureana?
- Sincronias pretéritas precisam ser descritas para estabelecer o ponto de partida da forma subjacente com base
diacrônica? Isso não faz sentido quando se trata de comunicação (que desconhece a história).
- Qual é o papel de fenômenos diacrônicos como conservação e da inovação para entender as regras de
transformação sincrônica? Aparentemente nenhum, mas grafia tradicional aparentemente interfere, ainda que
inconscientemente nas propostas de estruturas subjacentes, por exemplo nas afirmações sobre alçamento de
vogais pretônicas, mas o fenômeno inverso i > e foi adotado pela escrita por volta do século XVII-XVIII e o
desconhecimento desse fato aparentemente está interferindo na análise quando se diz que há alçamento /E/→[i]
em “menino” no português brasileiro... Ou, pior, existe algum tipo de interferência do julgamento normativo na
construção da forma subjacente? Formas mais prestigiadas interferem na construção de uma forma subjacente?
- Num estudo geolinguístico é possível detectar a difusão das inovações? Aparentemente sim.
- A fragmentação vem de uma forma única no passado ou é necessário pensar que sempre houve diversidade
linguística? O mito da Torre de Babel parece interferir entre os pressupostos.
O papel da história nos modelos
- Formas subjacentes e testemunhos históricos não deveriam ser idênticos. As mudanças ocorridas
da forma subjacente deveriam ser de nível cognitivo.
- Um dado diacrônico não se confunde com um dado histórico: há tempo dentro de um recorte
sincrônico!
- Conservação e inovação são conceitos diacrônicos. Tanto formas de prestígio quanto formas
desprestigiadas podem ter elementos de conservação e de inovação.
- Ciências como a Linguística Histórica e a Etimologia não têm nenhum compromisso para endossar
formas de prestígio e formas consideradas “corretas” sob uma ótica normativa.
- Testemunhos históricos são preponderantemente escritos: falar sobre sons e fonemas numa
sincronia pretérita requer um método de reconstrução.
- A fragmentação atual também vem de uma fragmentação no passado: quanto mais retrocedamos
mais a diversidade da fragmentação parece ser a situação de maior verossimilhança.
Ver: https://periodicos.ufba.br/index.php/estudos/article/view/15465/10612
O português entre as línguas iberorromânicas
• Latim vulgar
• *Dacorromânico
• *Italorromânico
• *Galorromânico
• *Iberorromânico
• *Iberromânico Oriental: catalão, valenciano
• *Iberorromânico Centro-setentrional: castelhano, aragonês, ladino (judeu-espanhol, hakitia)
• *Iberorromânico Ocidental:
• moçárabe†
• leonês†, asturiano, guadramilês, riodonorês, mirandês, sendinês
• galego, fala de Xálima, judeu-português†, português:
• Crioulo da Guiné Bissau, crioulo de Casamança, crioulo de Cabo Verde, crioulo de Ano Bom, crioulo de São
Tomé, crioulo de Príncipe, crioulo angolar, crioulos asiáticos (Goa, Cochim, Damão, Diu, Negapatão etc.),
macaísta, papiá kristang;
• Cupópia (Bairro do Cafundó em Salto do Pirapora, SP), comunidades em MG (São João da Chapada,
Patrocínio, Bom Despacho, Diamantina etc.) e GO (Luziânia, Vale do Riachão)
• Fala de Sabino (SP)
• Papiamento ?

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