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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO


História externa e interna da Língua Portuguesa — Prof. Gilson Freire — Material de apoio

CARACTERÍSTICAS DO LATIM VULGAR

A seguir serão apresentadas, em cada componente da gramática, as características do latim


vulgar do período imperial, que ensejaram posteriormente o surgimento dos romances, entre os
quais o galego-português.

1. Evolução na fonética/fonologia
a) Generalização de um acento de intensidade com posição determinada de maneira automática: em
palavra de duas sílabas, acento na primeira; em palavra de mais de duas sílabas, dependente da
duração da penúltima sílaba: septem, datum, amīcum, capīllum, arbŏrem, homĭnem.
b) Perda das oposições de quantidade das vogais e conservação das oposições de timbre: fīcum
(port. figo), sĭtim (port. sede), rēte (port. rede), tĕrra (port. tęrra), lătus (port. lado), amātum (port.
amado), pŏrta (port. pǫrta), amōrem (port. amor), bŭcca (port. boca), pūrum (port. puro).
c) Redução dos ditongos e hiatos a simples vogais: plostrum (plaustrum), orum (aurum), preda
(praeda), paretes (parietes), quetus (quietus), dodece (duodecim), cortem (cohortem), battalia
(battualia), prendere (prehendere), febrarius (februarius).
d) Transformação ou queda de alguns fonemas: justicia (iustitia), cocere (coquere), paor (pauor),
rius (riuus).
e) Obscurecimento dos sons finais: es (est), dece (decem), mecu (mecum), posuerun (posuerunt),
pos (post), ama (amat), biber (bibere).
f) Desfazimento de palavras proparoxítonas: masclus (masculus), domnus (dominus), caldus
(calidus), fricda (frigida), virdis (viridis).
g) Perda da aspiração representada no latim clássico pelo h: omo (homo), abere (habere), eres
(heres).
h) Transposição do acento tônico: cathédra (cáthedra), intégrum (íntegrum), muliéris (mulíeris).
i) Confusão entre i e e, sobretudo em hiato: famis (fames), nubis (nubes), vinia (vinea), lileum
(lilium), aria (area).
j) Confusão entre b e v: serbus (servus), vaclus (baculus), albeus (alveus).
k) Palatalização dos grupos [ce], [ci] e [ge], [gi]: centum [tš], civitatem [tš], spongia [dž].
l) Palatalização das consoantes l e n seguidas de um iode (originário de i ou e em hiato): filium [ʎ],
teneo [ŋ].
m) Desnasalação ou queda do n no grupo ns e nf: asa (ansa), costat (constat), mesa (mensa), iferi
(inferi).
n) Frequentes assimilações: isse (ipse), pessicum (persicum), dossum (dorsum), grunnio (grundio).
o) Prótese de um i nos grupos iniciais st, sp, sc: istare (stare), ispiritus (spiritus), iscribere
(scribere).

2. Evolução na morfologia
a) Redução das cinco declinações do latim clássico a três, proveniente da confusão da quinta com a
primeira e da quarta com a segunda: dia, ae (dies, ei), glacia, ae (glacies, ei), fructus, i (fructus,
us), gemitus, i (gemitus, us).
b) Redução dos casos: fusão do nominativo e do vocativo; emprego frequente do acusativo com
preposições em lugar do genitivo, dativo e ablativo: ad filios (filiis), ex litteras (ex litteris),
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Saturninus cum discentes (cum discentibus).


c) Perda do gênero neutro, transformado em masculino no singular: vinus (vinum), fatus (fatum),
templus (templum); interpretado como feminino no plural: ligna (gen. lignea); fata (gen. fatae).
d) Substituição das formas sintéticas do comparativo e superlativo pelas analíticas: plus ou magis
certus (certior), multum justus (justissimus).
e) Uso do demonstrativo ille, illa e do numeral unus, una como artigos: ille homo, illa domus,
unum templum.
f) Formação analógica de alguns infinitivos irregulares: essere (esse), potere (posse), volere (velle).
g) Substituição do futuro imperfeito do indicativo por uma perífrase, formada pelo infinitivo de um
verbo e o presente do indicativo de habere: amare habeo (amabo), debere habeo (debebo), audire
habeo (audiam);
h) Emprego de uma locução verbal constituída pelo infinitivo de um verbo e o imperfeito do
indicativo de habere (o que originou o futuro do pretérito em português): amare habebam, audire
habebam;
i) Uso de perífrases formadas pelo verbo esse (ser) e particípio passado de outro verbo em lugar das
formas passivas sintéticas: amatus sum (amor), captus sum (capior), auditus sum (audior);
j) Desuso de alguns tempos da conjugação do latim clássico: supino, futuro do imperativo, perfeito
do infinitivo, entre outros.

3. Evolução na sintaxe
a) Ocorrência de construções analíticas: Credo quod terra est rotunda. (em vez de Credo terram
rotundam esse.)
b) Emprego mais frequente de preposições em vez dos casos: Dedi ad patrem. (Dedi patri.), liber
de Petro (Petri liber).
c) Regência diferente de alguns verbos: persuadere aliquem, maledicere aliquem.
d) Consolidação da ordem direta: “Haec est autem uallis ingens et planissima, in qua filii Israhel
commorati sunt his diebus, quod sanctus Moyses ascendit in montem Domini, et fuit ibi quadraginta
diebus et quadraginta noctibus.” (Peregrinatio ad loca sancta)

4. Evolução no vocabulário
a) Preferência por palavras compostas, derivadas ou expressões perifrásticas: depost (post),
fortimente (fortiter), ovicula (ovis), sperantia (spes), vernum tempus (ver), jam magis (nunquam),
hac hora (nunc).
b) Novo sentido atribuído a vocábulos do latim clássico: comparare (= comprar em vez de
comparar), viaticum (= viagem em vez de provisões/ dinheiro para viagem), parentes (= parentes
em vez de pais), paganus (= pagão em vez de camponês, civil).
c) Emprego de termos representativos de ideias expressas de modo diverso no latim clássico:
caballus (equus), apprendere (discere), jocus (ludus), bucca (os), focus (ignis), casa (domus),
grandis (magnus), omnis (totus), campus (ager), bellus (pulcher), bibere (potare), manducare
(edere), cattus (felis).
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A EMERGÊNCIA DO GALEGO-PORTUGUÊS

Do período que vai da chegada dos povos germânicos à Península Ibérica (409) até o
surgimento dos primeiros documentos em galego-português no início do século XIII, houve a
aceleração da deriva que transformou o latim vulgar imperial em protorromance, surgindo também
certas fronteiras linguísticas, que separariam os falares ibéricos ocidentais, de onde proveio o
galego-português, dos falares do centro da Península, que originaram o leonês e o castelhano. A
partir do século IX, aparecem textos escritos num latim extremamente fora dos padrões clássicos,
conhecido tradicionalmente como latim bárbaro, o que permite vislumbrar as formas da língua
falada daquela época. Na sequência, serão apresentados os principais fenômenos de evolução
fonética que estabeleceram essas fronteiras.

1. Evolução do grupo consonantal -cl-


Em palavras como oc’lu (de ocŭlum), o c, originalmente pronunciado como [k], passa a [y]:
oc’lu > oylo. Tal fenômeno é comum em todos os falares hispânicos, mas os desdobramentos dessa
evolução são diferentes: em galego-português [-yl-] passa a [ʎ]; em castelhano, à africada [dž],
escrita com j. Veja-se o quadro abaixo:

Latim clássico Latim vulgar Galego-português Castelhano


ocŭlum oc’lu olho ojo
auricŭla orec’la orelha oreja
vetŭlum vec’lu velho viejo

2. Evolução do grupo consonantal -ct-


Em palavras como nocte, esse grupo passou a [-yt-]. Enquanto o português conservou a
pronúncia noite, o castelhano continuou a evolução, apresentando hoje a africada [tš], escrita ch:
noche. Outros exemplos:

Latim clássico Latim vulgar Galego-português Castelhano


lectu *leyto leito lecho
lacte *layte leite leche
factu *fayto feito hecho

3. Ditongação das vogais abertas [ę] e [ǫ]


Em posição tônica, o castelhano geralmente desenvolveu um ditongo com as vogais [ę] e
[ǫ], oriundas do latim clássico [ĕ] e [ŏ], enquanto o galego-português jamais apresentou essa
evolução. Exemplos:

Latim clássico Latim vulgar Galego-português Castelhano


pĕdem pęde pé pie
dĕcem dęce dez diez
lĕctum lęctu leito lecho
nŏvem nǫve nove nueve
fŏrtem fǫrte forte fuerte
nŏctem nǫcte noite noche

4. Evolução dos grupos consonantais iniciais pl-, cl-, fl- > ch [tš]
Num primeiro momento, esses grupos sofreram palatalização do l em quase toda a Península
Ibérica. Posteriormente, o castelhano perdeu a consoante inicial e conservou o l palatal, transcrito
como ll. O mesmo ocorreu na parte oriental do leonês. Já o galego-português manifestou uma
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evolução mais acentuada: a consoante inicial seguida de l palatal tornou-se africada [tš], sendo
transcrita em galego-português como ch. Essa evolução não se produziu no sul da Península, o que
torna o galego-português um falar diferenciado de todos os seus vizinhos. Vejam-se os exemplos:

Latim Galego-português Castelhano


plenu chẽo lleno
planu chão llano
plicare chegar llegar
clamare chamar llamar
flagrare cheirar (não atestada)

Deve-se acrescentar, porém, que outras palavras de origem menos popular não apresentaram
essa mesma evolução em galego-português, mas deram origem aos grupos pr-, cr- e fr-: placere >
prazer; clavu > cravo; flaccu > fraco. O mesmo se deu em blandu > brando.

5. Queda do -l- intervocálico


Esse fenômeno, que só se produziu em galego-português, contribuiu para criar no novo
romance vários grupos de vogais em hiato. Ex.: salire > sair; palatiu > paaço (hoje paço); calente
> caente (hoje quente); dolore > door (hoje dor); colubra > coobra (hoje cobra); voluntade >
voontade (hoje vontade); filu > fio; candela > candea (hoje candeia); populu > poboo (hoje povo);
periculu > perigoo (hoje perigo); diabolu > diaboo (hoje diabo).

6. Queda do -n- intervocálico


Por fim, esse fenômeno também foi peculiar ao galego-português, não ocorrendo no
castelhano, no leonês nem nos falares moçárabes. Consistia na nasalização da vogal precedente ao
n, seguida da queda deste: corona > corõna > corõa; vinu > vῖnu > vῖo; homĭnes > homẽnes >
homẽes. Por outro lado, as palavras de origem árabe conservaram o n intervocálico: azeitona,
alfenim, atafona...

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