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Contexto histórico

A Ilha de Santa Catarina, antiga Desterro e atual Florianópolis, teve em sua


formação e fundação, fator essencial seu contato com o mar, que se demonstra ponto
relevante para as povoações formadas pelo Império da Coroa Portuguesa no Brasil, agora
exponencializado por seu caráter morfológico, uma ilha. Assim, essa formação ocorre com a
chegada do bandeirante paulista Francisco Dias Velho se instalando com sua família no
território. Entretanto, essa póvoa cria bases rígidas quando elevada, em 1726, à condição
de Vila pela Coroa Portuguesa.
Na formação da Póvoa foi priorizada a parte insular do espaço disponível, devido à
facilidade de se proteger e os recursos abundantes ali presentes. Assim, em 1680 (VEIGA,
op cit, p. 30), ressalta-se a necessidade de proteção da Ilha, já que devido a formação da
cidade de Colônia de Sacramento a torna um ponto estratégico. Desse modo, o Brigadeiro
José Silva Paes é designado para a implantação de um sistema de defesa na Ilha. De tal
sorte, há um aumento populacional devido à chegada de militares à Vila.
Desterro cresce organicamente, em seu desenvolvimento transparece a influência
do arruamento e arquitetura portugues características até hoje preservadas, tendo o início
da definição de seus primeiros bairros no séc. XVIII. Dessa forma, o quadrângulo central,
centro fundacional, já tomava forma e definição, com a população de maior fragilidade
social se agrupando junto com os pescadores e os comércios ainda incipientes no entorno
da área da Igreja Matriz.
A ocupação dos morros de Desterro tem início por um açoriano, que dá o nome ao
morro, Morro do Antão. Além da ocupação, o local já existia como passagem e acesso às
freguesias ao norte, como a da Santíssima Trindade. Assim, esse espaço vai,
paulatinamente, sendo ocupado por cidadãos numa condição de maior fragilidade
econômica. O movimento de ocupação do Morro do Antão, atual Morro da Caixa,
acentua-se com a criação da Avenida do Saneamento, atual Hercílio Luz, que desapropriou
os casarios de mais baixa renda da região para realização da empreitada ( VEIGA, op. cit.,
p.214; RUCHAUD, 2019 ). Impelindo, assim, a população que sem condições de se manter
no centro urbanizado, desloca-se para uma região irregular para manter a proximidade com
a cidade.

Introdução

O desenvolvimento do Monte Serrat ocorre a partir de ocupações irregulares,


provenientes de caminhos já pré-existentes para a caixa d'água estabelecida no topo da
subida que leva à ocupação, que hoje coroa com um parque a comunidade. Transfigurado
de elemento exclusivo para elite em um espaço democrático.
A ocupação da região do Monte Serrat, pronuncia-se como uma forma da população
menos favorecida economicamente se manter próxima aos equipamentos comunitários, e
de seus empregos. Assim, a ocupação que, inicialmente, caracterizava-se na periferia do
aglomerado urbano destaca-se como uma implantação, por mais difícil seja o habitar, que
possibilita a centralidade em uma cidade tão excludente como é Florianópolis.
Assim, o maciço onipresente na paisagem urbana, muro a expansão urbana no
cenário de colônia, metamorfoseia-se na habitação dos moradores expulsos da região
central da cidade. Elemento esse que abriga em seu solo uma história de lutas e
conquistas, um símbolo de resistência e tensão aos vieses hegemônicos numa cidade
majoritariamente vendida aos interesses do capital.
Esse ponto de inflexão frente ao capital hegemônico, que com o desenvolvimento de
sua ocupação arranca as mordaças e expõe sua realidade por meio de muita luta em um
movimento de contracultura, pronuncia-se frente ao cenário de espetacularização e
banalização/alienação ao viver cidade.
Ao mesmo tempo, o espaço transcorrido domina ferramentas esquecidas pela parte
dos cidadãos em situação formal. Assim, a história e o contato com as instituições
simbólicas e com os que a viveram - moradores com legitimidade de fala - sobre esses
espaços, mantém a chama acesa instigando a nova geração com a consciência da
construção da comunidade e seus percalços. Dessa maneira, estabelece-se um vínculo
afetivo com a história e os valores da comunidade fortalecendo e perpetuando o movimento
de manutenção da comunidade frente às dificuldades impostas pelas forças hegemônicas
da Capital.
O Monte Serrat é protagonista e antagonista da história desenvolvida na Ilha,
invisibilizado cai em um espaço de sombra. Entretanto, com sua força coletiva se pronuncia
e faz ouvir sublimando toda dor e sofrimento em cultura, um contramovimento, frente ao
estipulado como fato. Assim, afirma-se e se fortalece pelos espaços disponíveis em uma
cidade enclausurada e ensimesmada em seus simulacros. Monte Serrat, torna-se uma
utopia de união, de como viver e fazer cidade em tempos de alienação ao espaço coletivo-
um novo devir, uma nova práxis.

Aproximação

Na base da subida a entrada é marcada por dois grafites, não mais os mesmos
apresentados em outros muros da cidade, agora grafites com voz política e de identificação
com quem se estabelece nesse espaço. Assim, duas mulheres negras grafitadas marcam a
passagem da Av. Mauro Ramos para o Monte Serrat, o portal quase imperceptível que
carrega memórias e histórias de um povo que algumas décadas atrás foi expulso de suas
casas na parte central da cidade de Florianópolis e enxergaram na subida tímida que levava
a caixa d’água. estabelecida em seu cume. um local para firmar novas raízes e se
reinventar.
Uma subida tortuosa e íngreme - com partes sem calçamento, que faz com que o
pedestre divida espaço com carros e motos boa parte do percurso - direciona o caminho
para acessar a comunidade, caminho esse percorrido por moradores de todas as idades e
gêneros diariamente- desafio físico que fortalece corpo e mente para a luta e descriminação
do cotidiano.

Conforme subimos a comunidade sentimos os cansaços de seus membros.


A acessibilidade não chega ao morro, e o pedestre se vê obrigado a
caminhar pela rua pela falta de recuos da calçada. Uma senhora de idade
ao nosso lado carrega as compras do mercado superando de forma sofrida
a inclinação imposta. O caminho é intenso e constrói os passos da
exaustiva jornada da população que, renegada no passado e presente, viu
em si a única forma de seguir em frente.

Assim, ao chegar ao topo dois elementos vitais da comunidade recepcionam o


transeunte - a Praça do Monte Serrat e a Igreja Nossa Senhora do Monte Serrat -, vitais
devido ao seu impacto no meio, respectivamente, sendo um uma conquista recente da
comunidade, elemento lúdico e político que reúne a população do local, e o outro motor dos
sonhos do cidadão, elemento aglutinador que sob a direção do Padre Vilson Groh -
importante figura nas conquistas dos habitantes para o bairro - capacitou, organizou e
encorajou os moradores a buscarem o sonho de um ambiente capaz de nutri-los com os
equipamentos necessários para se estabelecerem de forma digna no espaço.
Adentrando os meandros da comunidade, a tipologia encontrada em outras favelas
se fazem presente nesse aglomerado com casas apinhadas e escadarias em passagens
muitas vezes semi privadas- as quais atravessam o terreno de uma casa -, com variadas
materialidades e as vezes abaixo do nível da calçada devido ao desnível do terreno.
Entretanto, ressalta-se uma ordem no espaço, ao olhar se percebe um espaço mais fluido
do que o esperado para um aglomerado subnormal. Desse modo, nota-se uma maior
estruturação e vivacidade no espaço construído, ao invés da percepção caótica apreendida
em ambientes análogos a esse.
Pelas ruas principais, geratrizes que ordenaram o avanço da comunidade - Rua
Gen. Vieira da Rosa e Rua Gen. Nestor Passos - o desbravamento da comunidade nos
leva até outros dois potentes pilares, elementos base das dinâmicas coletivas estabelecidas
no espaço: o Colégio Lucia Mayvorne e o Parque do Morro da Cruz - protagonistas de
bases distintas, mas com profunda influência no contexto dos moradores da região, já que
ambos estendem seus braços para além da comunidade do Monte Serrat. De tal sorte,
abarcam os fluxos de outros espaços distintos aos que estão inseridos com uma atuação
chanceladora, que promove a união e o desenvolvimento de relações profícuas fomentando
o apoio entre as comunidades do Maciço do Morro da Cruz.
Dessa maneira, por meio da luta, do árduo suor derramado sobre uma terra que
para o poder hegemônico não vingava, estabelecem-se múltiplas comunidades no coração
da Ilha de Santa Catarina, dentre elas, uma das primeiras estabelecidas, o Monte Serrat,
que se representa para a dinâmica vigente uma poderosa potência em construção e
ocupação dos espaços públicos. Assim, após essa incursão determinamos nosso objeto de
estudo, o qual por mais improvável que se apresentou a ocupação, floresceu uma história
de união e esforço muitas vezes faltante na cidade formal.

Sobre os espaços de resistência

O desenvolvimento do Monte Serrat conta uma história de dedicação, afinco e


valores coletivos que guiaram a comunidade pelos percalços de uma cidade excludente e
elitista. Assim, devido aos direcionamentos estabelecidos em seu âmago como coletividade,
grande parte do desenvolvimento interno do bairro partiu dos próprios moradores do local,
lutando por direitos, constantemente, e derramando suor pelos seus iguais, já que se
encontram colocados em uma posição compulsória de autogestão. Dessa dedicação
floresceu as instituições e serviços que os atendem hodiernamente, que dão base para uma
vida digna- na medida do possível.
Demonstrações desse empenho estão explícitos aos olhos de quem perpassa o
ambiente, essas pistas desvendadas por nós- devido ao caráter peripatético da incursão -
desnudaram o espaço, possível devido a sutileza e clareza do local, que livre de amarras
expõe em seus meandros o discurso de construção da comunidade. Assim, em nossas
caminhadas pelo entorno e pela favela identificamos um ponto de venda de drogas. De tal
sorte, a partir dessa percepção fomos capazes de concatenar o fato de a Av. Mauro Ramos
ser o espaço que abarca os viciados e não a comunidade- como é o caso em outros
aglomerados subnormais tanto na cidade, quanto em outras localidades. Notamos que
todos os terrenos baldios no entorno e no local eram vedados, desse modo, contemplamos
que parte de um esforço do coletivo de manter esses indivíduos afastados, cerceando os
potenciais espaços para a perpetuação desses desejos voláteis. Desse modo, a localidade
se vê distante dessa realidade que aflige principalmente, os jovens e, paulatinamente,
instaura um cenário de caos no meio urbano.
Para além disso, o olhar com o cuidado e desenvolvimento também está presente
nas conquistas menos perceptíveis para a visão alheia que não tem o contexto da realidade
excluída. De tal sorte, que em uma conversa que tivemos durante uma de nossas idas ao
local com um taxista morador do bairro, o mesmo nos contou com orgulho da época em que
ocorreu a pavimentação coletiva financiada pelos próprios residentes do local, já que os
olhos e braços da prefeitura não alcançam as cotas mais altas da cidade. Esse evento ficou
registrado no trabalho de Guilherme Ruchaud que expõe as palavras de seu Teco, antigo
morador da comunidade:

“Eu perguntei ao Zé Gago por que é que nós não começamos a calçar de
baixo para cima. ‘Cala boca, tu só sabe beber cachaça.’ Eu achava que
tinha que ser de baixo pra cima, pra não ter que subir material. Então
começamos a calçar a rua de cima para baixo. Depois que ele veio me
dizer ‘tas vendo o que ta acontecendo? Vou te dizer por que, que quem ta
em cima só vai querer fazer o calçamento até chegar na sua casa’.”
(RUCHAUD, 2019, op. cit., p 213 ; Diário de Campo, 2015)

Por meio desses contatos e percepções o olhar estrangeiro se torna capaz de


perceber as mazelas enfrentadas além da ideologia perpetuada e disseminada, a qual cria
um simulacro como percepção da realidade da urbe - nevoeiro que impede o olhar
reparador para com seus iguais, um crime velado. Além disso, a conexão e comunicação
com o espaço nos revela os atores protagonistas desse fortalecimento gerado na
comunidade que possibilita a concretização dessa estruturação e zelo pelo espaço
habitado. Desse modo, exploraremos esses ambientes reparadores e conscientizadores,
que geram para além da narrativa instaurada pelo governo uma contra narrativa que
empodera e abarca a realidade marginalizada na cidade de Florianópolis.
A Igreja de Nossa Senhora do Monte Serrat, espaço que dá nome à comunidade, a
mesma que recebe e abarca tanto moradores, quanto visitantes na chegada ao bairro. Este
espaço simboliza o espírito e a perseverança dos habitantes, se metamorfoseando de
acordo com a necessidade de seus fiéis, já que parte do seu terreno já recebeu múltiplos
usos ao decorrer dos anos de sua existência como: o primeiro Centro de Saúde, uma sede
do Conselho Comunitário e diversos projetos sociais (RUCHAUD, 2019).
Espaço que transfigura e transforma tanto a si mesmo, quanto aos seus fiéis - forma
desenvolvida para além de se estabelecer no espaço, conseguir se perpetuar como
habitantes do local. Assim, o terreno da igreja foi cedido para sua construção em 1926,
como um marco de seu estabelecimento (RUCHAUD, 2019), como ocorreu na própria
formação da Póvoa de Desterro. Dessa maneira, além de ser um elemento simbólico do
estabelecimento da população no local desbravado, também opera como elemento
aglutinador para manutenção da sociedade como coletivo no local, estabelecendo união
entre as partes que formam o conjunto. Entretanto, a construção hoje disposta na localidade
foi realizada nos anos de 1980 (RUCHAUD, 2019), e desde 1983 tem como paroquiano o
Padre Vilson Groh. De tal sorte, assume o papel de figura chanceladora entre as
necessidades da comunidade e o poder público e outras instituições.
Esse espaço se apresenta de tal maneira que transpõe sua própria simbologia
basal, sendo além de um espaço de fé assume o papel da materialização política da
comunidade. Espaço de empoderamento, conscientização e desenvolvimento dos desejos
inerentes ao coletivo. Elemento que infla e capacita a comunidade, que gera um movimento
de compreensão de sua situação enquanto parte da sociedade, possibilitando, dessa
maneira, a luz para enxergar um caminho para fora da marginalização.
Olhando paralelamente para outro símbolo que com sua potência se torna capaz de
ser elemento aglutinador e formador da identidade do coletivo que se estabelece no Morro
da Caixa, materializa-se a Embaixada Copa Lord. Escola de samba que tem sua gênese em
1955 devido a um desacordo dos integrantes da primeira escola de samba da Ilha,
Protegidos da Princesa ( PINHEIRO, 2014). Ela resulta da decisão de um grupo da
comunidade em formar essa nova entidade - que para além de gerar um espírito de
rivalidade fomenta a identificação, sedimentando a identidade do coletivo. Assim, nasce um
instrumento de realização dos desejos pulsantes da comunidade, um meio de se expressar
culturalmente e alcançar, por meio de vozes e memórias, o ouvido e a consciência dos que
relegam sua existência no léxico cultural da cidade de Florianópolis.
Para além de um símbolo, torna-se inexorável o amor da comunidade vinculado a
esse elemento, já que a instituição se tornou uma das porta-vozes da sua realidade para o
mundo. Desse modo, transfigura-se para além de um espaço de representação em um local
de manutenção do equilíbrio social no comunal, de forma que, ampara os moradores
criando um caminho digno alternativo as desgraças como o crime - envolvendo o coletivo
com uma rede de apoio por meio da inserção em atividades que o capacitem a sonhar,
reestrutura o ideal do jovem na comunidade. Esse afeto fica claro na fala do seu Ari e da
Dona Tinha:

“Seu Ari materializa no seu cuidado a bandeira e declara emocionado


“quando eu morrer pode me enrolar nela, assim, estarei junto a Copa Lord”;
Dona Tinha complementa “a nossa Escola é a nossa Comunidade” ”
(PINHEIRO, 2014, op. cit., p. 48)

Intuitivo e sincero, adjetivos facilmente identificáveis resultantes da dinâmica de


criação da escola de samba, já que o ato de se expressar musicalmente flui como
ferramenta desde a época das lavadeiras e seus cantos que embalavam seu trabalho às
margens dos rios. De tal sorte, a cultura afrodescendente consegue permear e expandir os
horizontes dos moradores de Florianópolis, quer a elite da cidade formal, quer os mais
fragilizados. Assim, por meio de sons e emoções a identidade relegada se materializa
culturalmente enobrecendo e enriquecendo a amálgama cultural verdadeira da Ilha, que vai
além do simulacro estabelecido e propagado.
O avanço além das expectativas e chances molda o mote entoado pela comunidade
do Monte Serrat para nós. Assim, mesmo distante de um cenário acolhedor e nutritivo o
sangue derramado na terra purifica pelo esforço e vinga em um futuro salutar para os
residentes. Isso pode ser uma representação da fundação da Escola Lúcia do Livramento
Mayvorne, que tem seu nome inspirado em uma figura nascida em condições adversas e
que acaba florescendo em um ideal a ser seguido para quem parte das mesmas condições
que ela, a favela.
A escola, que tem seu embrião implantado na comunidade pela necessidade de
educação das crianças das famílias do morro, vem a vingar em 1962 com a iniciativa de
uma moradora de abrir um espaço de sua casa para a realização da educação dos jovens
da comunidade (SANTOS, 2018). De tal sorte que, um ano depois, com o aumento da
requisição das famílias do local para matricular suas crianças na escola, o governo ampara
a necessidade e executa a construção de duas novas salas de aula no terreno da caixa
d’água. Assim, de acordo com o desdobramento, a escola vai aumentando seu alcance na
comunidade, e em 1975 recebe uma nova locação onde se situa até hoje (SANTOS, 2018).
Entretanto, devido a uma concatenação de acontecimentos a escola começa a
passar por um processo de instabilidade. Devido ao aumento de criminalidade e de tráfico
de entorpecentes junto a uma gestão do governo que cortava gastos em regiões que não
tinham relevância política para a representação do espetáculo - porém, onde se identificava
a maior carência dessa sustentação. Assim a escola passou a ter risco de fechar no início
dos anos 2000 ( SANTOS, 2018). Contudo, devido aos esforços do Instituto Vilson Groh -
ONG do padre da comunidade -, junto a rede de colégios Marista a escola consegue o
apoio que se negava a vir de seus representantes políticos firmando e incrementando a
perpetuação do ensino na comunidade.
Assim, por meio do esforço comunal foi garantido o maior símbolo de ascensão
social dentro da comunidade. De tal sorte, a possibilidade de escolhas cremos ser a arma
mais poderosa para a resolução da criminalidade e ao uso de entorpecentes. Desse modo,
a manutenção da escola se torna pilar na estrutura que sustenta o bem estar e segurança
do espaço. Por meio desses elementos de empoderamento social se garante um futuro
profícuo para os jovens da favela. Além disso, a educação se apresenta como uma das
mais importantes formas de desvelamento da espetacularização - um povo sem educação
está vendado frente as artimanhas do espetáculo vigente.
Sinalizado por um dos infames camaleões do artista plástico Rizzo, abre-se um
volume verde, um respiro pra mata nativa - algo que não existe em muitos assentamentos
informais. Assim, o parque construído em 2013 à primeira vista é identificado como um
espaço comum de lazer. Entretanto, o potencial deste parque, por mais que guardado
dentro da primeira impressão, necessita de um olhar mais cauteloso para perceber suas
nuances em como opera em relação com a comunidade. Desse modo, ao colocá-lo em
seus contexto, nota-se que é uma ferramenta muito importante de vinculação da
comunidade onde está instaurado com as comunidades vizinhas a ela. De tal sorte, propicia
o enriquecimento por meio da junção e mistura de experiências vividas com realidades em
situações similares. Desse modo, o parque simboliza e ergue a bandeira da união e da
conexão entre esses assentamentos que possibilita uma frente poderosa para se enfrentar
as dificuldades contra a hegemonia presente na cidade do capital.
A Praça do Monte Serrat, o último espaço a ser trabalhado, mas também o início de
nossa jornada, já que é o primeiro espaço que nos recepciona ao chegar na comunidade.
Assim, esse espaço - caixa d’água instalada em 1910 - multifacetado que já assumiu
diversas funções dentro das necessidades da comunidade como escola, mirante e fechado
dos usufrutos da comunidade (FIORIN, 2021), viveu e estimulou a apropriação desse
coletivo naquele espaço. De tal sorte, que no hodierno a partir da parceria público-privada
entre a CASAN e a WOA Empreendimentos se metamorfoseou em um espaço multicolorido
que coroa o topo do morro. Iniciativa nobre do Instituto Vilson Groh que vislumbrou tal
possibilidade para um espaço vital, desde o princípio, para a favela.
Espaço volúvel e disforme, que contempla diversidades sejam de usos ou de
usuários. Assim, o espaço agora multicolorido se apresenta como um espaço lúdico e
intuitivo, que junto ao parque tem função de conexão. Entretanto, esse local opera em uma
dinâmica mais interna da comunidade, fazendo fluir as relações sociais dentro dele, um
ponto de encontro que não deixa de ser um local político. Desse modo, desdobra-se como
um espaço aberto e convidativo para todas as idades, gêneros e cores, potente. Em todas
as nossas visitas ao local sempre se apresentou como um espaço com vida e integrativo,
com crianças brincando e os mais velhos conversando ou jogando xadrez. De tal forma,
apreendemos o local como espaço de união do coletivo, que possibilita a fortificação dos
laços entre as individualidades.
Em meio a luta e esperança a chama da vontade se alastra pelo coração do coletivo
suprindo suas carências e necessidades, os preparando para a luta pelo sonho de uma vida
melhor. Esses espaços perpassados no texto são os estopins que ao momento em que a
chama se esmaece a faz reinflamar mais intensamente. Esses espaços são a rede de apoio
que sustenta a comunidade dando o amparo e instrução por meio da cultura, interação e
conhecimento. Além de serem espaços nutritivos, também representam as raízes criadas
no morro que solidificam a ocupação e instauram o pertencimento do coletivo ao
assentamento. Em relação a esse ponto anotamos:

Esses espaços simbólicos carregam os valores e história da comunidade


além de sua função formal, que representam fatores que unem a população
e induzem a novas experiências do espaço e de comunidade. Carregam
dentro de si forças que, voláteis e inconstantes, catalisam e implodem
novos usos e possibilidades dentro do espaço. Há uma especial
importância nesta dinâmica, que se regula conforme os desejos dos
moradores e promove novos espaços através de sua incansável
capacidade de aproveitar-se dessas potências e forças.

Para além da sensação de pertencimento ao local habitado, esses símbolos


fortificam na comunidade sua identidade. Assim, por meio dessas instituições o coletivo se
encontra em relação a ele mesmo, portanto, se identifica. Pelo viés dessa dinâmica,
extrai-se a força e a consciência para gerar sua própria história, a qual foi excluída no
cenário da urbe, de modo que, cria-se uma narrativa própria que tenciona a representação
hegemônica apresentada pelo governo. De tal sorte, forma-se uma contra-narrativa, que
confronta o simulacro estipulado pelo capital, que em seus interesses vela partes da história
para gerar um discurso de fácil consumo e esteticamente extravagante. Com base nessas
concepções e apreensões seguiremos o texto.

Sobre as narrativas

Vemos a necessidade de estratificar mais os elementos trabalhados para alcançar


um entendimento assertivo perante a situação do Monte Serrat e da cidade formal que o
cerca, Florianópolis. Para tal, abordaremos um processo por nós visto como paralelo à força
do capital instaurado na sociedade.

“O espetáculo apresenta-se ao mesmo tempo como a própria sociedade,


como uma parte da sociedade e como instrumento de unificação. Como
parte da sociedade, ele é expressamente o setor que concentra todo o
olhar e toda consciência. Pelo fato de esse setor estar separado, ele é o
lugar do olhar iludido e da falsa consciência; a unificação que realiza é tão
somente a linguagem oficial da separação generalizada”
(DEBORD, 2016, op. cit., p. 14)
A sociedade do espetáculo, assim nomeado por Guy Debord em seu livro de mesmo
nome, representa a adoração do simulacro estabelecido no meio coletivo. Assim, gerada
para compactuar com os valores do capital e o ganho pelas partes hegemônicas, que
resulta em uma maior importância da imagem em detrimento da qualidade intrínseca ao
produto gerado. De tal sorte, que essa dinâmica impregnada nas cidades fomenta um
consumo de símbolos crescente, sendo o imaginário formado ao redor do produto motivo de
deglutição do mesmo. Desse modo, o foco de produção se localiza na capacidade do artigo
poder ser consumido de forma frenética e compulsivamente. Esse processo de
transformação gera um produto descaracterizado alvo de desejo pelo máximo de pessoas
possíveis, fomentando, assim, a efemeridade e a constância na ingestão, onde o
consumidor prefere a imagem e a representação ao invés do realismo concreto e natural.
Esse processo de espetacularização vai além dos produtos resultantes do setor de
serviços, alastrando-se para a cidade e impregnando o meio urbano com projetos
incoerentes e voltados para o capital, de forma direta ou indireta. Por exemplo, Florianópolis
passou por diferentes afirmações como cidade açoriana, uma cidade turística e capital da
qualidade de vida. Essas imagens criadas não deixam de ser parte de um todo real,
entretanto, Florianópolis ao mesmo tempo que afirma esses pontos relega diversas
narrativas existentes em seu meio urbano. Assim, por meio de uma gestão planejada de
sua imagem se constrói um ideário de uma cidade ideal para o consumo, agora
homogeneizada e descaracterizada de suas multiplicidades. Por meio desse ideário, a
cidade nega muito de sua realidade, velando partes esteticamente desqualificadas, e
desvinculando outras narrativas existentes como parte integrante desse conjunto que a
cidade desenvolveu.
Desse modo, resultando no cenário urbano hodierno, que se conforma um contexto
de relações com o espaço construído de desconexão. A alienação instaurada pelos grupos
hegemônicos fratura o envolvimento popular na urbe, de maneira a enfraquecer, por
consequência, os espaços denominados públicos. Assim, sem o reconhecimento de sua
existência e da prática urbana nesses locais, os mesmos caem em uma situação de
sombra/esquecimento. Fragilizados, acabam por serem tomados pelo capital, assim,
paulatinamente, vão deixando de existir e, gradualmente, são substituídos por propostas
homogeneizantes e assépticas que se fazem aquém da cidade em que estão inseridos.
Projetados, de tal maneira, para afirmar uma imagem propagada do local, que não tem
vinculação verdadeira com a realidade vigente da cidade. Desse odo, o espaço se
metamorfoseia em um ornitorrinco, descaracterizado e sem uma identidade definida à
mercê dos Planos Estratégicos¹ e da espetacularização em prol do simulacro estipulado
pelo capital.
Em contrapartida, apresenta-se para a cidade um espaço que mesmo
desvinculado das narrativas hegemônicas se conecta com seu valor e potencialidade e
expressa para a cidade sua realidade. Por meio do esforço coletivo de rememorar e manter
viva a história, o Monte Serrat se estabelece em bases sólidas da consciência de sua
trajetória. Esse esforço não se realiza em vão, devido a esse movimento de autoconsciência
a comunidade não se envolve pela fetichização instaurada na sociedade hodierna, que
desvincula o usuário do seu meio de vida e o seduz com imagens iridescentes. De tal
maneira, os espaços construídos para a comunidade na favela perpetuam sua força pelo
meio comum se enraizando mais fundo dentro da dinâmica e prática social dos moradores
do local, e por meio deles a comunidade fortalece os laços enquanto coletivo. Um
movimento análogo ao referenciado por Careri em seu livro:
“Zonas onde a cidade tira sua máscara e se mostra nua devido àquilo que
ainda não sabe o que ela é, zonas que recusam os projetos homologantes
e que, a cada dia, acham a energia e inteligência para se autodefinir,
inventando regras para suas convivências e para suas relações espaciais ”
(CARERI, 2017, op. cit., p. 29)

Dessa maneira, o Monte Serrat protagoniza uma contranarrativa proposta devido ao


cenário excludente em que se encontra. Assim, uma comunidade formada por uma
amálgama cultural aberta ao novo e consciente de suas mazelas transfigura o histórico de
exclusão em potencial criativo e coletivo. De modo que, propõe uma cidade sem barreiras e
democrática - a utopia que floresce em meio à uma realidade distópica. Dessa forma,
tensiona os padrões estabelecidos na cidade formal por meio de interlocutores os quais
estendem seus braços para além da favela como a Copa Lord, que todo o carnaval expõe a
inventividade e capacidade aglutinadora da comunidade para a cidade formal. De tal modo,
que tocam a estrutura vigente e a transformam, mesmo que momentaneamente, de uma
prática supressiva para uma includente e reparadora.
Pela ótica dos espaços conectores da comunidade, o meio estabelecido no Monte
Serrat toma por lastro para sua pungência cultural os elementos catalisadores, como a
igreja, as escolas e os espaços públicos, para suscitar e alinhavar os desejos contidos no
âmago de cada individualidade. De tal maneira, que o esforço realizado para conquista se
faz presente e se reafirma enquanto condição presente no cotidiano dos residentes. Esses
espaços, os quais carregam a narrativa do local, fortalecem o indivíduo o tornando coletivo,
que possibilita a formação de uma narrativa própria, que não surgem a partir dos espaços
construídos, mas são canalizadas e fortificadas nestes elementos por meio da troca e da
integração. Dessa maneira, o discurso se fortalece o suficiente para alcançar parcelas
diferentes da sociedade em que está integrado pelo meio urbano- mesmo sem propagandas
e slogans a comunidade se movimenta para ser reparada.
Para além disso, por meio desses espaços mediadores a favela tem um canal de
conexão com a cidade formal, um meio de representar e comunicar suas necessidades e
capacidades. Assim, nota-se a importância desses espaços construídos na comunidade
para manutenção da voz, mesmo que fraca, da cidade informal em relação a formal e de
sua influência na formação cultural do município - a possibilidade de dar voz à narrativa
entoada em território desconhecido pela formalidade. Frente a essa miríade de dificuldades,
o Monte Serrat se pronuncia como meio conciliador protagonizando uma alternativa em
como praticar e viver a cidade,longe do espetáculo e próximo a história e valor de seu
coletivo. Representa, dessa maneira, a potência da urbe como elemento agregador de
individualidades. Assim, mostra como a força resultante dessa união pode ressimbolizar a
forma como nos relacionamos com os outros e com o meio em que vivemos.

Conclusão

Envolvidos na errância nos relacionamos com o espaço destoante a nossa realidade


cotidiana, e por meio de uma aproximação atenta e reparadora atravessamos o território
como estrangeiros. Entretanto, a partir do mergulho na narrativa e meio histórico do espaço
emergimos resistentes, identificados com a luta que envolve a favela.
Retumbante e ritmada as contra narrativas entoadas pela comunidade além de
fortalecê-la revelam um caminho distinto ao percorrido pela sociedade pós-moderna. Esse
caminho representa uma volta à vinculação com valores emudecidos pelo processo de
globalização e sua consequente homogeneização, que negam as idiossincrasias que
envolvem a formação de uma cidade destituindo, de tal maneira, a identidade de um
coletivo. Assim, formando um território fértil para o florescimento das práticas do capital e
incitando a pulverização dos laços vinculativos com o espaço e indivíduos presentes no
meio, isolando e conquistando ambos.
Por fim, colocamos esse texto como forma de reestruturação tanto de laços quanto
de consciência frente a cultura insípida apresentada pelos meios de massificação. Um
retorno a essência e as poéticas que envolvem a convivência enquanto coletividade,
apresentadas tanto em raciocínio, quanto na produção das imagens expostas no texto, um
meio de reconexão e reavaliação dos valores que nos aproximam e distanciam,
ambivalência essencial para a vida em sociedade.
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