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CAPÍTULO 7

Notas sobre a história do metrô

RIO DE JANEIRO: EXPANSÃO URBANA E TRANSPORTE COLETIVO

Para compreendermos o processo de planejamento e implantação do metrô, além


de aspectos de seu presente, é interessante conhecer algumas circunstâncias do
desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro. Exploremos, portanto, brevemente,
algumas características da ocupação espacial e da expansão dos transportes na
cidade do Rio de Janeiro e na Região Metropolitana.'
Caracteriza a ocupação da cidade e, mais amplamente, da RMRJ, a tendência
de concentrar os recursos urbanos num núcleo privilegiado, enquanto as perife-
rias vão se formando com extrema escassez de infraestrutura urbana e serviços.
Desenvolve-se uma configuração fortemente estratificada em que a ocupação das
regiões por classes sociais se estabelece desde o início e vai se acentuando.
Maurício Abreu (1997) mostra como a partir do século XIX, quando a cidade
começa a se expandir, esse modelo de estratificação espacial já se estabelece. O
núcleo urbano, desde o início, circunscreve a Zona Sul e a região central, assim
como alguns bairros da Zona Norte (como Tijuca e Vila Isabel) que constituem
uma periferia imediata em relação ao sul. Em seguida, os subúrbios mais próxi-
mos, como Ramos e Irajá, os mais longíquos, como Santa Cruz e Anchieta - e,
considerando-se a RMRJ, chega-se a Duque de Caxias e São Gonçalo, entre outros
subúrbios mais periféricos. A ocupação de todas essas periferias vai se fazendo sem
os benefícios da urbanização, que tendem a concentrar-se nos bairros centrais.
A tendência perdura e é perceptível hoje. Acentua-se, inclusive, desde o Pós-
Guerra, privilegiando ainda mais uma espécie de núcleo do núcleo, que são os
bairros da Zona Sul da cidade. Assistimos a uma periferização mais marcada

A atual composição da Região Metropolitana do Rio de Janeiro foi estabelecida pela Lei Comple-
mentar nO 133, de 15 de dezembro de 2009, em seu artigo 1°: "Fica instituída a Região Metropoli-
tana do Rio de Janeiro, composta pelos Municípios do Rio de Janeiro, Belford Roxo, Duque de
Caxias, Guapimirim, Itaboraí, Iaperi, Magé, Maricá, Mesquita, Nilópolis, Niterói, Nova Iguaçu,
Paracambi, Queimados, São Gonçalo, São João de Meriti, Seropédica, Tanguá e Itaguaí, com
vistas à organização, ao planejamento e a execução de funções públicas e serviços de interesse
metropolitano ou comum" (Cf. http://aIerjlm.alerj.rj.gov.br).

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ainda, com a degradação das diversas camadas, inclusive das periferias imediatas Rio. Logo em seguida, inauguraram-se as estações de Cascadura, Engenho Novo
que se colocam mais próximas do centro e do sul. Houve algumas iniciativas de e Deodoro e, ao longo da segunda metade do século, outras foram abertas, tendo
"revitalização" que, contudo, além de pontuais, trazem consigo toda uma carga de o serviço regular se consolidade em 1861 (Barat, 1975: 107-108).
ambiguidade. O bonde, embora não tivesse o alcance do trem, também integrava a periferia
Por exemplo, o bairro central da Lapa - de longa tradição na cidade, com sua ao Centro, dessegregando em alguma medida. Servia tanto freguesias ricas da
cultura de rua, vida noturna e ocupação bem popular - foi recentemente modi- Zona Sul e Norte, quanto bairros proletários como Santo Cristo, Gamboa, Saúde
ficado pela instalação de bares, restaurantes e clubes noturnos que atendem a e Catumbi, na Zona Norte (Abreu, 1997: 45).
uma faixa de renda bem mais alta, sendo alguns extremamente elitizados. É certo Por outro lado, o modelo concentracionário de ocupação predominava. Abreu
que a iniciativa trouxe uma ocupação muito vivaz - embora, de resto, a região já (1997) e Silva (1993) assinalam que as diversas administrações realizaram obras
fosse bastante frequentada antes dessa intervenção. A ambiguidade vem de que os públicas que beneficiavam principalmente o centro e o sul: desde o final do século
novos benefícios parecem atender, em grande parte, a um certo tipo de vida e de XIX com o governo de Pereira Passsos e ao longo das primeiras décadas do século
consumo, o dos mais ricos. XX com Paulo de Frontin e Carlos Sampaio.
É interessante que pessoas de todos os tipos e faixas de renda se misturem Abreu mostra como o bairro de São Cristóvão, que abrigara a família imperial
numa cidade. O que faz pensar é a interpretação de "vida" que tantas tentativas e se tornara um bairro residencial de classes abastadas, perde esse status na última
de "revitalização" trazem. Nesse tipo de tentativa, há o risco de se prepararem as década do século XIX. São Cristóvão era um bairro organizado, com infraestru-
regiões ditas "degradadas" no feitio do consumo e do negócio e afugentar não só tura de água e esgoto - mais bem servido do que Botafogo, que na época da des-
os locais - seja porque têm que se mudar com a valorização do solo urbano, seja valorização de São Cristóvão se torna o bairro mais procurado pela aristocracia.
porque têm que ceder muito espaço para a nova ocupação - mas também aqueles A população de alta renda deixa São Cristóvão, o que ocasiona uma "mudança de
visitantes movidos por outros desejos. A cidade perde em variedade e em inten- aparência e conteúdo do bairro" (Abreu, 1997: 47). Abreu indica que um dos fato-
sidade quando suas regiões, para merecerem alguma atenção do poder público, res que contribuíram para esse abandono foi a instalação de indústrias no bairro,
precisam ser uniformizadas segundo um padrão que acaba servindo apenas aos atraídas pela proximidade do eixo ferroviário e do porto. O fator mais importante,
que já foram desde há muito contemplados. Revitalizar seria muito mais contra- contudo, teria sido, segundo o autor, a valorização da residência à beira-mar. A
riar a tendência que descrevemos acima. difusão dessa "ideologia" como denomina Abreu, produziu efeitos "não apenas
Como costuma acontecer, o transporte coletivo ajudou a ocupar a cidade em São Cristóvão, mas sobre toda a cidade" (Abreu, 1997: 7). São Cristóvão foi se
levando desenvolvimento urbano ou consolidando-o onde ele já se iniciara. Onde tornando um bairro pobre.
chega, o tranporte coletivo não só atende a uma demanda já detectada pelos pla- Esse episódio mostra bem o que frequentemente ocorre nas cidades e ocorreu
nejadores, mas pode produzir ele próprio demanda, construindo o desejo de cir- no Rio de Janeiro ao longo de sua história. Tipicamente, com a saída do contin-
cular pela cidade, de ocupar os lugares. O transporte sobre trilhos é, de início, o gente de alta renda, a região passa a merecer menos os benefícios da urbanização
grande agente desse processo na cidade do Rio de Janeiro. e mesmo o que já havia se degrada. Também já se divisa o contraste que se tornou
Barat (1975) relata que a primeira linha de bonde foi implantanda em 1859, emblemático na cidade - entre estar próximo ou longe do mar, perto da praia ou
ainda com tração animal, ligando a Praça Tiradentes com o alto da Tijuca. Em ao longo da linha do trem (ou, mais tarde, nos lugares em que se chega de ônibus,
1892, a Cia. Ferro-Carril do Jardim Botânico fez circular o primeiro bonde de tra- em mais ou menos longas, mas sempre duras viagens).
ção elétrica da América do Sul, que pecorria a Praia do Flamengo até a Rua 2 de A partir de 1930, mas sobretudo no Pós-Guerra, o transporte sobre trilhos
Dezembro. No início do século xx, todas as linhas de bonde da cidade já estavam é substituído pelo ônibus e pelo automóvel. Em 1930, bairros da Zona Sul que
eletrificadas. foram inicialmente urbanizados (chamados "Antiga Zona Sul"), como Glória e
Enquanto os bondes circulavam nas regiões já em parte urbanizadas, o trem Catete, já perderam o seu status e são ocupados pelas classes médias, enquanto as
levava para a periferia urbana ou rural. O primeiro trecho da Estrada de Ferro D. classes altas se instalam no que se denominou "Nova Zona Sul': Ipanema, Leblon
Pedro II (atual Central do Brasil) foi inaugurado em 1865, ligando a estação Cen- e Copacabana. Entre 1930 e 1950, há uma estagnação relativa da região central,
tral, na atual Praça Cristiano Ottoni, até a localidade de Queimados, no Estado do os bairros da antiga Zona Sul se transformam pouco, mas o Catete passa a fazer

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parte do cinturão degradado que envolvia o Centro. As fábricas que se localizavam o autor, uma ocupação mais racional do solo urbano na cidade do Rio de Janeiro
na Zona Sul foram pressionadas a deixar a região devido à valorização do solo, e na RMRJ, assim com em outras capitais brasileiras.
enquanto as da Zona Norte permaneceram. O período foi de grandes investi- Essa situação de equilíbrio, contudo, não perdurou. Cada vez menos se inves-
mentos na "Nova Zona Sul", ocasionando um boom imobiliário. A Zona Sul se tia no transporte sobre trilhos. Os ônibus, por outro lado, se apresentavam mais
transforma em grande centro de emprego no setor terciário e novas favelas são atraentes e a demanda crescia. O crescimento da demanda chamava mais investi-
mentos e, num círculo vicioso, os bondes e os trens eram ainda menos atendidos.
ali construí das. 2
Nos anos 1950, Copacabana se torna um bairro bem mais popular. Antes ocu- O desenvolvimento da indústria automobilística nos anos 1950 e 1960 tornava o
pado pelas classes de alta renda, em seguida pela classe média e pelas favelas, será automóvel privado o melhor aliado dos ônibus porque, inclusive mais do que estes
ocupado também e em grande número pela classe média baixa. As classes abas- últimos (que possuem muito maior capacidade de carregamento), requeria inves-
tadas então se mudam para áreas mais protegidas da mistura urbana, tipicamente timentos crescentes no espaço viário. Era preciso, como até hoje se dá, preparar o
inacessíveis por transporte coletivo, como a Lagoa e o oeste do Leblon. Abreu espaço viário para o automóvel privado, construindo viadutos e vias amplas para
descongestionar o trânsito e oferecendo o espaço público para estacionamento. A
explica o processo citando Bernardes:
estratificação espacial da cidade, que descrevemos acima e que vivemos até hoje,
E agora essas classes mais abastadas (passaram a dar) preferência à montanha, para
já se consolidara e contribuía para impor a solução do transporte privado e do
construção de suas moradias. O elevado preço dos Ioteamentos, em encostas por vezes
excessivamente Íngremes, as dificuldades da própria construção e a dificuldade de rodoviarismo.
acesso, pois só em automóveis se (poderia) chegar a esses novos bairros, tudo isso (fez) Tem lugar, então, como explica Barat (1975: 119 e 155), "a substituição desor-
deles um privilégio de gente rica, em contraste com os bairros da planície e dos vales, denada dos serviços em prejuízo da complementaridade e comprometendo, com
onde a heterogeneidade social (era) quase sempre a norma (Bernardes apud Abreu,
isso, a própia estruturação do espaço metropolitano': Linhas de ônibus começam
1997: 129).3
a ser concedidas "sem nenhum critério de complementaridade intermodal (com
Aos poucos, desde as primeiras décadas do século, o transporte sobre trilhos os bondes, principalmente)': Referindo-se tanto à RMRJ quanto às cidades brasi-
já vinha cedendo lugar aos ônibus. A partir de 1930, e sobretudo nos anos 1950 e leiras em geral, o autor indica que os anos 1960 são marcados pelo incremento na
1960 - quando se consolida a estratificação espacial da cidade, como vimos acima frota de automóveis privados e pelo desestímulo ao transporte coletivo de massa.
_ a opção rodoviária se impõe, não só ou prioritariamente em nome do transporte Estabelece-se nessa época o padrão que daí em diante vigoraria. O transporte por
coletivo por ônibus, mas antes de tudo para beneficiar o automóvel privado, evi- ônibus constitui-se no principal meio de transporte da cidade e da Região Metro-
dentemente a opção de transporte da população de alta renda. As políticas públi- politana e o transporte sobre trilhos se torna complementar - o inverso do desejá-
cas passam a investir em preparar o espaço viário para o transporte sobre pneus. vel e do que ocorre nos países mais desenvolvidos. O padrão também determinou
Os trens se degradam muito e o bonde desaparece na década de 1960. a prioridade do automóvel privado, causa principal dos congestionamentos no
Barat (1975: 119) assinala que na década de 1930 chegou a haver complementa- trânsito e da poluição nas cidades.
ridade e integração dos bondes e trens, que ainda eram os sistemas principais de Devemos comprender a implementação do transporte metroviário na cidade
transporte de massa, com sistemas secundários e terciários de distribuição local considerando esse contexto. A opção pelo transporte rodoviário, determinada,
através dos ônibus e de algumas linhas de bonde. Houve, nesse período, segundo em grande parte, pela prioridade concedida ao automóvel privado, e que também
privilegiou o ônibus, constituiu um a priori que se mostrava e se mostra constan-
2 A expansão da cidade do Rio de Janeiro, que ocorreu provocando segregação e desigualdade na
temente no longo processo das tentativas de implementação e de expansão do
distribuição dos bens urbanos, foi marcada também pelo estabelecimento das favelas. Segmentos
da população pobre foram ocupando, por sua conta, terrenos da cidade e constituindo regiões metrô. A estratificação espacial apoiada no privilégio sobretudo dos bairros da
inteiras de habitação popular e improvisada, algumas de grande extensão, em geral ao longo dos Zona Sul também é um componente que pode ser evocado quando consideramos
muitos morros que constituem a topografia da cidade. Muitas dessas favelas se instalaram em
morros nas regiões mais ricas, forçando uma partilha. Com esse expediente, parte da população
o contraste entre as duas linhas do sistema - ponto trazido antes de tudo pelos
mais pobre consegue morar próximo aos postos de trabalho, evitando a periferia longínqua. É o próprios usuários e que discutimos em capítulos posteriores.
caso das favelas que surgem na Zona Sul da cidade. Outra questão ainda a lembrar consiste em que o quadro traçado acima - o
3 Bernardes, Lysia Maria Cavalcanti. "A expansão do espaço urbano do Rio de Janeiro". Revista
estímulo ao automóvel privado e a ênfase no transporte por ônibus em detrimento
Brasileira de Geografia. 23 (3), 1961. p. SlO-S11.
do transporte sobre trilhos, ao lado do modelo de segregação espacial em que se O plano Agache nunca foi implementado, apenas algumas de suas medidas, e
tende a reservar os bens urbanos para os mais ricos - não predominou a ponto entre estas não estava a construção do metrô. Por outro lado, o metrô começou a
de invabilizar a cidade como espaço de convivência coletiva e experiência da dife- ser discutido, já nessa década, na Câmara Municipal e nos meios técnicos, sobre-
rença. Em contraste com muitas cidades e mesmo capitais brasileiras, o Rio de tudo no Clube de Engenharia.
Janeiro (cidade e região metropolitana) mantém um sistema razoável de trans- Quando, em novembro de 1947, a Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro
porte coletivo - mesmo que precarizado, com inversão de ênfases e dobrando-se (então Distrito Federal)" autoriza a prefeitura a promover estudos que viabilizas-
aos imperativos da divisão injusta do espaço. Não houve entre nós, tampouco, o sem em 120 dias o anteprojeto do traçado do metrô, havia dois projetos em dis-
fenômeno do abandono das cidades na direção de áreas residenciais segregadas e cussão na imprensa, na prefeitura e nas associações profissionais. O projeto dos
orientadas para o carro, como ocorreu nos Estados Unidos com a formação dos engenheiros Francisco Ebling e Mauríco Ioppert da Silva propunha um metrô
subúrbios a partir da década de 1920 e sobretudo no Pós-Guerra (Caiafa, 2007). na Zona Norte que acompanhasse e se integrasse à Estrada de Ferro Central do
No Rio de Janeiro, as pessoas, apesar das dificuldades, ocuparam e ocupam Brasil. O outro era de autoria de profissionais franceses do metropolitano de Paris
a cidade, aproveitando, parece, todas as chances que a experiência de sair à rua e e desenvolvia um traçado ligando o Centro à Zona Sul. É interessante observar
viajar com outros nos veículos coletivos oferece. É o que já constatei fortemente como a tensão entre Zona Sul e Zona Norte/subúrbios aparece desde o início na
em pesquisa anterior sobre as viagens de ônibus (Caiafa, 2002) e também agora história do metrô, constituindo uma das formas das disputas no processo. Em
com a pesquisa sobre o metrô. O metrô, embora sua participação seja menor no alguma medida, essa questão se reatualiza no presente do metrô. Na época, eram
cenário qa cidade, tem o seu papel nesse aproveitamento da experiência urbana - duas interpretações das necessidades da cidade e do papel do transporte coletivo
que nos coloca à mercê de riscos mas que traz também a intensidade criadora da de massa que se confrontavam - como de resto agora também. Algumas críticas
exposição à diferença - como temos visto neste livro. à solução que privilegiava a região servida pela ferrovia traziam um problema de
controle político do sistema que, nesse caso, ficaria nas mãos do governo federal
DEBATES, DECISÕES E A CONSTRUÇÃO DO METRÔ em detrimento da municipalidade. Em qualquer caso, o projeto que acabou preva-
lecendo foi o francês, da Societé Générale de Traction et Exploitations de Paris.
Uma das primeiras referências à necessidade da construção de um metrô aparece
Ainda não era, contudo, o início do metrô. Embora o prefeito João Carlos
já na década de 1930.4 Assumindo a prefeitura em 1926, Antônio Prado Iúnior
Vital tenha proposto a criação da Superintendência do Metropolitano do Rio de
contrata o urbanista francês Alfred Agache para estudar os problemas da cidade
Janeiro, o projeto do metrô ainda sofreria muita oposição. A UDN, organização
e elaborar um plano de desenvolvimento. Agache e sua equipe vêm para o Rio de
partidária de direita, por exemplo, trabalhou ativamente para bloquear a proposta
Janeiro e, entre 1927 e 1928, trabalham no plano que visava orientar o crescimento
de criação da Superintendência na Câmara Municipal. Finalmente, o prefeito
da cidade e propor um sistema integrado de transportes que envolvia a constru-
cedeu às pressões e o projeto foi definitavamente retirado (Silva, 1992).
ção do metrô. De fato, o metrô era apenas um dos pontos num programa que se
Como vimos acima, na década de 1950 houve grande expansão da estrutura
preocupava, antes de tudo, com a construção de avenidas e a supressão dos bondes
viária para atender às necessidades do transporte individual. Era também o ocaso
no sentido de abrir espaço para o transporte individual. Ao mesmo tempo, havia
dos bondes e a consolidação do modelo de estratificação espacial. No plano fede-
os interesses dos grupos privados que já naquela época monopolizavam os meios
ral, em nome do desenvolvimento nacional e da consolidação do processo de
de transporte. A Light & Power, que detinha a maior parte das linhas de bonde,
industrialização, grande incentivo foi dado à indústria automobilística.
diante da ameaça que essas medidas representariam para seu negócio, entrega um
Por outro lado, a cidade havia crescido muito e problemas concretos se impu-
memorial à prefeitura, procurando interferir no processo. O memorial propunha
nham cada vez mais. A concentração de recursos urbanos, a estratificação espacial
uma reorganização das linhas de bonde, e não a sua supressão e previa a constru-
ção de linhas de transporte rápido por metrô.' 6 A cidade do Rio de Janeiro permaneceu Distrito Federal até 1960, quando a capital do país foi
transferida para Brasília. Criou-se o Estado da Guanabara e a cidade se tornou sua capital. Em
4 Nunes menciona uma ocorrência ainda mais antiga, na proposta do Engenheiro Gustavo Eugênio 1975, realizou-se a chamada "fusão'; em que o Estado da Guanabara e o estado vizinho, Rio de
Leopoldo Estienne, "A cidade do Rio de Janeiro: o que falta fazer'; de 1922. Para wna relação de Janeiro, foram integrados num só. O que era Estado da Guanabara se transformou em município
estudos que continham propostas de implantação do metrô no Rio de Janeiro, cf. Nunes (1989: 72). do Rio de Janeiro e passou a fazer parte do novo estado. A cidade do Rio de Janeiro continuou
Para estes pontos e vários dos seguintes, cf. Silva (1992). sendo a capital.
e a opção rodoviária - que continuavam fortemente contemplados pelas decisões Ficou demonstrado no estudo que nem a modernização das estradas de ferro, em
conjunto com o intenso tráfego de ônibus na rede de vias públicas em 1990, será
oficiais - estavam gerando uma cidade caótica e mesmo os mais ricos começavam
~ufici~nte para aten~er ao tráfego previsto na hora do rush. Se não for dado ao tráfego
a sofrer com a falta de compreensão da especificidade dos processos urbanos. [ndividual, com efeito, outra alternativa, a rede de vias públicas será mais sobrecar-
Além disso, outros planos para a implementação do metropolitano continuavam regada ainda do que já é pelo número consideravelmente aumentado de carros par-
a ser discutidos nos meios técnicos, particularmente no Clube de Engenharia, ticulares (Barat, 1975: 230).

que desde há muito e até hoje vem tendo um papel importante nos debates dos
O Estudo apontava, portanto, a partir de averiguações detalhadas e projeções
problemas e projetos da cidade.
embasadas, que a construção do metropolitano era, indubitavelmente, necessária
Assim, é autorizada, em 1955, a criação da Companhia do Metropolitano do
para a região metropolitana.
Rio de Janeiro e, em 1962, o Clube de Engenharia realiza um simpósio com o
No mesmo ano de 1968 foi constituída a Companhia do Metropolitano do Rio
objetivo de fazer uma revisão das propostas até então apresentadas e chegar a um
de Janeiro sob a forma de sociedade de economia mista vinculada à Secretaria de
consenso sobre o "melhor metrô" para a cidade (Silva, 1992: 93). O relatório final
Serviços Públicos do Estado da Guanabara (Sousa, 1994: 34 e Silva, 1992: 100).
propõe um primeiro trecho que iria do Centro ao Maracanã.
Observemos que o país já se encontrava em plena vigência do governo autori-
Ainda outros fracassos sobreviriam nesse complicado processo cheio de adia-
tário, desde o golpe militar de 1964. No final da década de 1960, o ímpeto desen-
mentos e disputas. Finalmente, em 22 de agosto de 1967, o Estudo de Viabilidade
volvimentista que mobilizava o governo federal foi um dos fatores que contribuiu
Técnica e Econômica do Metropolitano do Rio de Janeiro é contratado. Foi o
para o apoio federal à construção do metropolitano do Rio de Janeiro (Nunes,
know-how alemão que ganhou a concorrência e o estudo ficou sob responsabili-
1989: 69). De fato, a construção de um metrô envolve investimentos vultuosíssi-
dade do consórcio Hotchtief, Deconsult, Cia Construtora Nacional (Barat, 1975).
mos e, no Brasil ao menos, os estados dependem do governo central para viabili-
No relatório preliminar de 1968 propunha-se como "linha prioritária" o trecho
zar seus projetos. A participação do governo federal na decisão final da construção
que ia de Ipanema a Tijuca (Silva, 1992).
do metrô do Rio de Janeiro parece ter sido decisiva.
Barat (1975) relata os aspectos que foram analisados pelo Estudo de Viabilidade
Comparando as condições de implantação e operação dos metrôs do Rio de
e a sua metodologia. Fica claro que se tratou de trabalho extremamente cuidadoso
Janeiro e de São Paulo, Sousa (1994: 81-82) assinala que, no Rio de Janeiro, a deci-
e detalhado. O estudo considerou e reavaliou trabalhos anteriores. Foram realiza-
são a favor da implantação teria sido tomada, em última instância, pelo governo
das pesquisas de tráfego através de questionários e entrevistas a fim de medir "a
federal. Em contraste, em São Paulo, o processo de decisão teve início na esfera
origem e o destino dos passageiros, os desejos de viagem e os lugares oferecidos"
municipal, depois passando à estadual. Assim, teria ficado caracterizado "o anseio
na RMRJ. O estudo levantou o número de passageiros e a frequência dos diferen-
da própria administração local, que está muito mais ligada às necessidades da
tes tipos de veículos em tráfego de cada modal de transporte, além de estimar a
população da região': O autor acredita que, no Rio de Janeiro, essa característica
relação automóvel/habitante. Muito importante também foi o estabelecimento da
de "presente imposto" do metrô foi repercutindo mais adiante, e construindo uma
relação entre a capacidade de absorção das pistas de rolamento já existentes ou
sensação de que, afinal, "o projeto não merecia tanta atenção':
projetadas e o desempenho máximo que poderia ser exigido dos veículos. A partir
Vimos acima como todo um conjunto de avanços e demoras, num percurso
destas e de outras avaliações, foi feita uma projeção do tráfego para 20 anos. Foi
muito acidentado, marcou os debates e as decisões em torno do metrô carioca.
determinado o volume futuro de tráfego e de sua repartição entre tráfego coletivo
Constatamos igualmente que setores bem embasados - engenheiros, individual-
e individual. Foi feito o cálculo da capacidade de vazão tanto das redes de vias
mente, e organizações profissionais - contribuíram muito com seu conhecimento
pública, quanto da rede ferroviária até 1990, além de se avaliar a capacidade de
e Sua ação para construir o projeto do metrô. Esse esforço, acredito, não foi em vão
desempenho dos meios de transporte existentes.
e com certeza esteve presente inclusive nos momentos finais de tomada de decisão.
O estudo constatou que a capacidade de desempenho das estradas de ferro
O ponto que Sousa assinala, contudo, merece ser considerado. É difícil afirmar
podia ser consideravelmente ampliada. Indicou também que havia numero-
com segurança, mas o sentimento difuso de que uma decisão de fora havia final-
sos projetos para a expansão da rede de vias públicas. O que ficou finalmente
mente empurrado aquele projeto tão cultivado e tão adiado pode ter contribuído
demonstrado foi, contudo, que essas expansões não dariam conta do tráfego
para os novos tropeços que o metrô enfrentaria na sua construção e expansão.
futuro. Escreve Barat:

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Silva (1992: 100) também aponta que, na época da decisão de construção do os autores do Estudo não hesitaram em determinar que a linha prioritária seria
metrô, a falta de autonomia no contexto da ditadura caracterizou as negociações.: basicamente aquela que conhecemos hoje como Linha 1.

"[o estado] não negocia diretamente os seus empréstimos [...], mas necessita bus- A segunda linha construída, em contraste, viria "ocupar um vazio" deixado
car o apoio e o interesse do poder federal': pela desativação de uma ferrovia, a Estrada de Ferro Rio D'Ouro. Abreu (1997:
O metrô começa a ser construído em junho de 1970 com os trabalhos na Esta- 52-53) relata que essa ferrovia foi inaugurada em 1883 e que ligava a Quinta Impe-
ção Glória e, em seguida, em setembro do mesmo ano, na Estação Central (Sousa, rial do Caju à represa do Rio D'Ouro, na Baixada Fluminense. Atravessava as fre-
1992: 31). Pude conversar com engenheiros que participaram tanto da elaboração guesias de São Cristóvão, Engenho Novo, Inhaúma e Irajá e foi construída para
do Estudo de Viabilidade, quanto dos grupos de estudos para a construção do transporte de material para as obras de construção da nova rede de abastecimento
metrô e, através deles, conheci um pouco mais sobre esse processo também aci- de água da cidade. Em seguida, por acompanhar os encanamentos que traziam a
dentado da concretização do projeto. água do Rio D'Ouro, foi usada para os trabalhos de manutenção do sistema. Só
Até 1975, a construção do metrô ficou basicamente estagnada - "abria um posteriormente passou a ter um serviço regular de passageiros, mas nunca teve o
buraco num lugar e outro ali na Glórià', como me disseram. Foi em 1975, no con- papel de indutor de crescimento como a D. Pedro Il, que já mencionamos acima,
texto da fusão do Estado da Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro, que, tam- já que seu ponto terminal ficava longe do Centro. Mesmo assim, pequenos núcleos
bém por inciativa do governo federal, o metrô de fato tomou impulso. O Estado urbanos se desenvolveram ao longo de sua linha. Entre eles, estão justamente os
da Guanabara estava se juntando a outro estado mais pobre e não havia recursos bairros hoje servidos pela Linha 2 do metrô: Inhaúma, Vicente de Carvalho, Irajá,
- e talvez sequer muito ânimo - para assumir projeto de tal envergadura. Foi com Colégio, Pavuna, etc.
recursos federais que o metrô começou, nessa época, de fato a ser construído. Foi Assim, como me explicaram os profissionais envolvidos, a primeira linha, a
quase uma troca, como me apontou um desses profissionais da área de transporte, prioritária, satisfazia a demanda e a segunda, vinha ocupar um vazio. A segunda
diante da nova situação que a cidade agora enfrentava. linha induziria crescimento, portanto. Nunes (1989: 89) assinala que o Estudo de
Silva (1992: 101-102) também localiza nessa época da fusão tanto o grande Viabilidade previa a implantação linha prioritária até 1975 e que a implantação do
impulso de construção do metrô através da injeção de recursos federais, quanto a que se denominou "rede" (o segundo trecho ao longo dos bairros da Zona Norte
consolidação do controle do poder central sobre o processo de implementação do e que chegaria até Niterói) estava prevista para 1990.
metrô. Ela assinala igualmente que, a essa altura, na década de 1970, ocorria uma Na época da fusão, a partir dos novos estudos realizados, decidiu-se antecipar
"democratização dos congestionamentos'; que já não podiam ser socorridos por a construção de um trecho Linha 2, de Estácio a Maria da Graça (Silva, 1992: 102).
medidas como a construção de viadutos - atingindo mesmo os proprietários de Criou-se então o conceito de "Rede prioritária básica" constituída por uma parte
automóveis, segmento com maior poder de pressão sobre o poder público. da linha prioritária e pela Linha 2. Por enquanto, a linha prioritária ou Linha 1, não
Outra discussão interessante diz respeito ao estabelecimento, já no Estudo de chegaria até Ipanema, indo apenas até Botagogo, transformada em estação termi-
Viabilidade, de uma "linha prioritária" que iria de Saens Pena, na Tijuca, a Nossa nal. Ao mesmo tempo, a construção da Linha 2 seria antecipada (Nunes, 1989: 91).
Senhora da Paz, em Ipanema, ou seja, que atravessaria sobretudo bairros da Zona Segundo Silva (1992), as justificativas apresentadas foram a ampliação de contatos
Sul, abrangendo alguns da Zona Norte e passando pelo Centro. Silva (1992) assi- e integração com a ferrovia - questão que surgira desde as primeiras discussões e
nala que, na época, críticos apontavam uma incongruência no fato de que um que embasou críticas à escolha da linha prioritária - e com os ônibus.
transporte de massa não fosse previsto para beneficiar a maioria da população, Uma outra decisão tomada nessa época que alterava os planos originais foi a
mas para diminuir o volume de tráfego no Centro e na Zona Sul. construção do pré-metrô no trecho que vai de Maria da Graça a Pavuna, ou seja,
Um engenheiro envolvido com o processo na época me explicou que os auto- no restante do traçado da Linha 2. O pré-metrô consistia num sistema de trans-
res do Estudo de Viabilidade procuraram definir - como se costuma fazer nos porte superficial em faixa exclusiva percorrida por um veículo mais simples que
projetos metroviários em todo o mundo, segundo indicou - o trecho em que a o trem metropolitano. Criou-se, na época, um Veículo Leve sobre Trilhos (V.L.T.)
demanda era maior. Esse trecho, me contou ele, em geral coincide com a área de especialmente para esse fim. Voltaremos à questão do início da Linha 2 como
concentração de empregos e áreas de bairro de classe média. Assim, parece que linha de metrô e pré- metrô mais adiante no livro.

188
Assim, novas escolhas redirecionavam os caminhos do metrô e pareciam embora os intervalos entre os trens fosse grande, os trens circulavam seguros e
interferir na balança de poder, beneficiando, surpreendentemente, os mais pobres. limpos. A competência dos metroviários compensava a falta de investimento do
Adiava-se o prosseguimento da Linha 1 para Copacabana e Ipanema e dava-se governo no metrô.
prioridade aos bairros da Zona Norte. A partir de 1996 a situação melhorou e o metrô retomou as obras que permiti-
Sem dúvida novas vozes foram nessa época ouvidas nos meios técnicos e polí- riam a expansão da Linha 1 para Copacabana e que haviam sido paralisadas no iní-
ticos. Conheci vários desses profissionais comprometidos com o papel social dos cio da década. Retomou também a expansão da Linha 2 para Pavuna, tendo sindo
transportes durante a pesquisa. Silva (1~92: 102) menciona este ponto quando se inauguradas em setembro as estações Tomás Coelho e Vicente de Carvalho.
refere a "uma nova formulação do discurso oficial" na decisão de construir o pré- Em 19 de dezembro de 1997 os serviços de operação e manutenção do metrô
metrô até a distante Pavuna. A autora relaciona a mudança, por outro lado, a foram concedidos ao consórcio Opportrans. Retomaremos este ponto mais abaixo.
três conjuntos de questões. Haveria considerações de ordem técnicas referentes A expansão do sistema continuou a cargo da Companhia do Metropolitano e, em
à definição das estações de transferência ferrovia-metrô que seriam resolvidas 1998, foram inauguradas Cardeal Arcoverde (primeira estação de Copacabana, na
pela construção do trecho Estácio-Pavuna. Menciona também os quebra-quebras Linha 1) e, na Linha 2, Pavuna, Irajá, Acari-Fazenda Botafogo, Engenheiro Rubens
que ocorreram em 1975 na rede ferroviária e que teriam levado o governo "a pelo Paiva, Coelho Neto e Colégio. Em 2003 foi inaugurada a Estação Siqueira Campos,
menos voltar os olhos para o transporte de massa': Haveria ainda a questão do des- mais uma estação da Linha 1, também em Copacabana.
gaste político do governo estadual no momento da posse de um novo governador Foi com esta configuração que a pesquisa encontrou o metrô. Durante a sua
(Almirante Faria Lima) e o objetivo de melhorar sua imagem frente à população. realização, vimos surgir duas novas estações: Cantagalo (inaugurada em fevereiro
A partir do impulso em meados de 1970, o metrô é inaugurado para operação de 2007) e Ipanema-General Osório (inaugurada em dezembro de 2009). Refi-
comercial em março de 1979, cobrindo um trecho de 4.290 metros da linha priori- ro-me mais adiante no livro à ocasião da abertura desta última.
tária ou Linha 1e abrangendo 5 estações: Praça Onze, Central, Presidente Vargas,
Cinelândia e Glória.' OPERAÇÃO DO METRÔ: NO INÍCIO

Durante os primeiros anos da década de 1980 foram abertas ao público algu-


Desde a inauguração do metrô, em 1979, até 1998, a operação do sistema ficou
mas estações da Linha 1: Uruguaiana, Estácio, Carioca, Catete, Morro Azul (atual
a cargo da própria Companhia do Metropolitano. Em abril de 1998, a empresa
Flamengo), Botafogo e Largo do Machado. Foram também inauguradas, em 1981,
Opportrans - consórcio das empresas Cometrans, Banco Opportunity e Valia -
as três primeiras estações da Linha 2, Estácio (estação de transferência entre as
assumiu, em regime de concessão, a operação e a manutenção do sistema por 20
duas linhas), São Cristóvão e Maracanã. Em 1983 foram inauguradas as estações
anos." Em 2001 a Companhia do Metropolitano entrou em processo de liquidação
Maria da Graça, DeI Castilho, Inhaúma e Irajá, todas na Linha 2. O trecho a partir
e foi criada a Riotrilhos (Companhia de Transportes Sobre Trilhos do Estado do
de Maria da Graça funcionava na modalidade pré-metrô.
Rio de Janeiro) que, como sua antecessora, é vinculada à Secretaria de Estado de
Entre 1985 e 1987 o metrô teve vários problemas. Em 1985 o sistema de pré-
Transportes (SESTRAN). A Riotrilhos ficou encarregada da expansão do sistema
metrô teve que ser desativado devido a um acidente na tubulação da CEDAE
metroviário e passou também a prestar assistência técnica à agência reguladora no
(Companhia de Águas e Esgoto) na altura da então futura Estação Engenho da
trabalho de fiscalização do desempenho da concessionária.
Rainha. Falta de investimentos, sobretudo, levaram ao fechamento de estações
Foi criada a ASEP (Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos do
e, em 1987, a Linha 2 só chegava até Inhaúma. Em 1991 foi inaugurada a Estação
Estado do Rio de Janeiro) em 13 de fevereiro de 1997, para que acompanhasse e
Engenho da Rainha.
fiscalizasse os serviços concedidos do estado. A ASEP foi extinta em 25 de junho
Em 1994 a Linha 2 foi paralisada por sete meses por falta de material rodante.
de 2005 pela mesma lei que criou sua substituta, a AGETRANSP (Agência Regula-
A falta de investimentos comprometera a manutenção dos trens. Castro (2007)
observa que, contudo, o fato de que a Companhia do Metropolitano contava com
8 "A concessionária vencedora do Leilão foi a OPPORTRANS CONCESSÃO METROVIÁRIA S/A,
excelentes profissionais garantia algumas características dos serviço. Assinala que, consórcio composto por: SOROCABA - empresa do Grupo Opportunity (51%), COMETRANS-
empresa de capital argentino que opera na área de transportes em Buenos Aires (40%) e VALIA
7 Para todos os pontos concernentes à expansão do sistema aqui mencionados, cf. Castro (2007) e - Fundo da Vale do Rio Doce de Seguridade Social (9%):' Disponível em: http://www.rj.gov.br/
Sousa (1994). web/setrans lexibeconteudo?article-id=157519. Acesso em 8 de outubro de 2011.

191
dora de Serviços Públicos Concedidos de Transportes Aquaviários, Ferroviários do sistema. Ressoa também a indicação de Castro (2007) mais acima. Ao relatar o
e Metroviários e de Rodovias do Estado do Rio de Janeiro), que passou a realizar sério problema de redução da frota devido à falta de recursos para manutenção, o
o trabalho regulatório dos serviços de transporte, inclusive da concessão metro- autor assinala que os trens que podiam circular seguiam limpos e em segurança.
viária," Em dezembro de 2007, com antecipação de 10 anos, o contrato de conces- Sousa assinala que a falta de investimentos do governo no metrô levou, na
são foi renovado por um período de mais 20 anos a contar do final do primeiro época, a uma degradação física que comprometia todo o sistema. Isso afetava o pla-
período, ou seja, até 2038. A Opportrans Concessão Metroviária S.A., que opera nejamento operacional porque o mau funcionamento dos equipamentos tornava
com o nome Metrô Rio, faz parte, desde 2009, do Grupo Invepar - Investimentos o planejamento dependente das situações que a cada momento se apresentavam:
e Participações em Infra-Estrutura S.A.lO "muitas vezes, as decisões (que têm que ser tomadas em tempo real) são baseadas
Como vimos acima, a Companhia do Metropolitano enfrentou muitas dificul- no 'senso comum' ou conforme as possibilidades disponíveis" (Sousa, 1994: 43).
dades durante o período em que operava o metrô, sobretudo em virtude da falta No que diz respeito aos trens, não havia dinheiro para consertar peças, dando
de recursos. Nos anos que antecederam a concessão, contudo, o metrô recebeu origem ao que se denomina "canibalização" a transferência de peças de um trem
mais atenção do governo, mas já se avizinhava o novo momento em que se muda- para outro a fim de se garantir que os menos avariados possam circular. O termo
ria o modo de gestão desse equipamento coletivo. é preciso - indicando uma devoração contínua no interior da frota - e expressa
Sousa (1994) realizou uma análise crítica do trabalho de planejamento desen- bem a situação de penúria em que o metrô se viu arremessado.
volvido no âmbito da Companhia do Metropolitano durante os anos 1990, quando Nunes, em trabalho de 1989, já notava o problema, assinalando "a queda no
a empresa se encontrava, como coloca o autor, "em contínuo processo de degrada- nível de serviço provocada principalmente por falta de recursos para manutenção"
ção': Encontrou um conjunto de deficiências e obstáculos. Segundo o autor, o pro- (Nunes, 1989: 69). Aponta também, como Sousa, que foi preciso recorrer à cani-
cesso de planejamento estava comprometido, de um lado, pela fraca definição de balização. Observa que no ano de 1985 houve uma queda acentuada da oferta de
objetivos e, de outro, pela ausência de processo formal de avaliação de resultados serviço, chegando-se a fechar algumas estações "por absoluta falta de trens': Essa
em geral, que era efetuado somente no levantamento dos indicadores de desem- retração da oferta foi causada pela falta de investimentos no metrô, tendo havido
penho operacional (Sousa, 1994: 41). As dificuldades organizacionais da empresa "zero de investimento em 1985" (Nunes, 1989: 96).
se explicavam, como aponta Sousa, em grande parte, pela presença de um outro Examinando o sistema orçamentário da Companhia do Metropolitano, Sousa
problema: a crônica falta de recursos (Sousa, 1994: 42). (1994: 76) aponta que, embora o orçamento fosse projetado internamente,
atendia
Durante as conversas com profissionais que trabalharam na Companhia, ouvi apenas em parte às necessidades da empresa, uma vez que tinha que ser "consi-
muitas vezes referências a essa situação em que não se dispunha de verba para as deravelmente modificado e adaptado para atender às exigências externas prove-
providências mais essenciais. O maior problema parece ter sido o comprometi- nientes das decisões estaduais': O planejamento e a execução das metas da Com-
mento da frota. O compromisso com a eficiência da operação, por outro lado, nem panhia ficavam, portanto, à mercê dessas exigências. O autor enfatiza esse aspecto
por isso foi abandonado. Como vimos acima a partir do texto de Sousa, embora a da dependência do governo estadual que o metrô do Rio de Janeiro enfrentava
análise tenha revelado deficiências organizacionais - que inclusive poderiam não se através da comparação com a situação em São Paulo. O metrô de São Paulo - até
explicar totalmente pela falta de recursos - constatou-se que a avaliação dos indica- hoje operado pelo setor público - não tinha seu planejamento comprometido por
dores de desempenho operacional era realizada. A observação do autor confirma limites orçamentários, relata Sousa, e não sofria do problema do controle externo
o que ouvi diretamente desses profissionais que haviam enfrentado pessoalmente pelo governo, gozando de suficiente autonomia: "a companhia trabalha com o
tais dificuldades. Eles me disseram que se esforçavam para preservar a operação governo de forma sincronizada" (Sousa, 1994: 79).
Em contraste com o que o autor constatou na Companhia Metropolitana do
9 Cf. Site da Cia. Estadual de Engenharia de Transportes e Logística - CENTRAL, http://www.
central. rj.gov.br/ozoj.htm. Acesso em 8 de outubro de 2011. Rio de Janeiro, no metrô de São Paulo era possível acessar de forma mais clara e
10 "O fundo de investimentos lnvepar, integrado pela construtora OAS e pelos fundos de pensão realista as necessidades do sistema, "visto que a tomada de decisão é efetuada por
dos funcionários do Banco do Brasil (Previ), da Caixa Econômica Federal (Funcef) e da Petrobras quem está mais próximo da informação" (Sousa, 1994: 80).
(Petros), anunciou neste domingo a aquisição do controle do Metrô Rio por quase R$ 1 bilhão:'
lnvepar assume controle do Metrô Rio, OS/O1ho09. Transporte ldeias e Notícias. http://www. trans- No metrô do Rio de Janeiro, o problema severo de falta de autonomia em
porteideias.com. br. Cf. também http://www.metrorio.com.br/aEmpresa.htm#sobre_o_metro. relação ao governo estadual levava também a que não se pudesse estabelecer con-

192
193
tinuidade nos objetivos. A cada novo governo novas diretrizes eram estabeleci das de Carvalho e Pavuna (estações "Irajá, Colégio, Coelho Neto, Fazenda Botafogo,
sem considerar as anteriores. Em São Paulo, traçava-se o planejamento com um Acari e Pavuna") até 30 de julho de 1998."
horizonte superior a cinco anos. Se esses projetos de investimentos não fossem concluídos nas datas previs-
Centralização das decisões e falta de recursos eram as duas figuras básicas da tas, o pagamento da primeira das parcelas que a concessionária assumia pagar ao
falta de autonomia da Companhia do Metropolitano do Rio de Janeiro. Escreve Estado pela concessão seria transferido "para o 1° dia útil do mês subsequente à
o autor: data efetiva da conclusão do referido projeto de investimentos': Em suma, deter-
mina-se que, sem a conclusão desses trechos pelo Estado, não haveria pagamento.
No Rio de Janeiro, em função das diretrizes traçadas pelo governo do estado para a
região é que se decide pela quantidade de re~ursos a sere~ destinados à compan~ia, e No mesmo parágrafo se estabelece que a concessionária ficaria "desobrígada do
não o quanto ela realmente necessita. Isto cna um forte hiato entre os recursos ~ISP~- pagamento das parcelas referentes aos meses em atraso, independente do dia do
níveis e o realmente necessário, conduzindo, consequenternente, a empresa na direção mês em que ocorreu a efetiva conclusão do Investimento":'
de um processo degradativo (Sousa, 1994: 81).
Em artigo publicado pouco tempo depois da concessão, Arnaldo Mour-
É interessante a comparação com o metrô de São Paulo - que, excetuando-se thé (1999: 59) observa que um conflito havia surgido em torno do pagamento
da primeira parcela pela concessionária. Esta "imputou ao Estado a condição de
a operação da Linha 4 Amarela, se manteve público até hoje. A mudança que
inadimplência e impetrou ação judicial': Se consultarmos as datas de inaugura-
era preciso advir no caso do metropolitano do Rio de Janeiro - e que, parece, se
ção das estações do metrô, veremos que, a essa época, o trecho da Linha 2 estava
fazia mesmo imperiosa - poderia ter sido a viabilização da gestão pública, que
concluído, mas não o da Linha 1 (Castro, 2007: 6). Havia igualmente a obrigação
se encontrava obstada por problemas circunstanciais. É certo que a necessidade
de entrega de material rodante, o que também não se deu. De toda forma, o paga-
dessa mudança nos leva igualmente a constatar que a concessão, de certa forma,
mento da outorga (termo sinônimo de concessão) foi depositado em juízo, fora do
permitiu que o metrô funcionasse. Por outro lado, vemos que as circunstâncias que
alcance do Estado, e uma situação de confronto se estabeleceu.
obstavam um melhor desempenho da gestão pública eram, ao menos em grande
Durante os primeiros anos da pesquisa, pude verificar, conversando com ambas
parte, impostas de fora e que funcionaram - perversamente, como tantas vezes se
as partes, que a relação entre Estado e concessionária era, em grande medida, mar-
dá em processos de privatização - como a melhor antessala para a mudança de
cada por desavenças. Esse início tempestuoso se prolongou, transformando-se
regime de gestão. A solução privada era uma das soluções possíveis - tanto que
num modo ou num estilo que essa relação assumiu. Já vimos como esse estilo
foi a escolhida - mas não deve ficar no impensado que era apenas uma delas. Se
confrontacional se evidenciou, por exemplo, no problema das gratuidades não
atentamos aos aspectos objetivos da situação e nos forçamos a pensar para além asseguradas.
do que é geralmente aceito em nossa época, é inevitável desafiar a inelutabilidade
Alguns profissionais do setor que trabalhavam no metrô na época da concessão
da solução encontrada, lançando-a, antes de tudo, num campo problemático bas-
observaram, em conversa comigo, que o contrato determinara certas exigências
tante complexo.
que - podia-se, em alguma medida, prever - não poderiam ser cumpridas. Esta-
belecido um calendário apertado, corria-se o risco de não cumpri-lo. Poder-se-ia
UMA MUDANÇA
dizer, portanto, que as exigências, por sua própria severidade, criavam brechas,
O contrato de concessão, assinado em 27 de janeiro de 1998, entrega a operação rachaduras que poderiam levar à quebra do contrato.
das Linhas 1e 2 à Opportrans Concessão Metroviária S.A. Prevê, entre outras coi- Mourthé (1999: 59) refere-se, justamente, a este problema, quando observa:
sas, obrigações e direitos tanto da concessionária quanto do Estado. Determina,
A questão central é que o governo de então, no afã de realizar a concessão dentro do
por exemplo, que alguns projetos deveriam ser realizados pelo Estado e ent~egues seu mandato, promoveu a licitação antes de terminar as obras e fabricar o material
em tempo hábil à concessionária: "O Estado obriga-se a concluir e entregar a co~- rodante constantes do programa de expansão, gerando obrigações de prazos para o
cessionária em condições de operação" o trecho da Linha 1 a partir da Estaçao
Cardeal Arcoverde e General Osório (compreendendo as estações "Siqueira Cam- li Contrato de Concessão para Exploração dos Serviços Públicos de Transporte Metroviário de
Passageiros. Cláusula Primeira (Objeto do Contrato), parágrafos 4° e 5°; alíneas b) do parágrafo
pos, Cantagalo e General Osório") até 30 de maio de 1998. E, ainda, ~'da~esm: 3° e c) do parágrafo 20.
formá: obriga-se o Estado a entregar o trecho da Linha 2 entre as estaçoes Vicent 12 Contrato de Concessão. Cláusula Nona (Preço da Concessão), parágrafo 20.

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Estado. O correto seria executar até o. final o programa de investimentos e só então
penho que serão utilizados, abrangendo os indicadores operacionais (como, por
realizar a licitação de concessão, se conveniente.
exemplo, o "índice de regularidade entre trens") e o 1QS, "indicador de qualidade
Em conexão com este ponto, o autor assinala que o governo teria sido alertado de serviços': obtido a partir de pesquisa de opinião com usuários. Há vários parâ-
da "inoportunidade da concessão': que residiria particularmente no ,;ato de qu~, metros considerados, entre eles, a limpeza das estações e dos trens, atendimento
na época, não existia um planejamento consistente dos transporte que perrm- dos empregados, tempo de viagem, tempo de espera nas estações, conforto, sono-
tisse definir com precisão o papel da concessionária na exploração do transporte rização dos trens e outros. Desde então a concessionária encomenda ao Ibope
metropolitano" (Mourthé, 1999: 58). , _ uma pesquisa mensal de avaliação do 1QS. O 6° aditivo, firmado em final de 2007,
As várias questões com que me defrontei na pesquisa concernentes a gestao não alterou os parâmetros estabelecidos no contrato de concessão.
do metrô - e que tenho apresentado ao longo do livro, já que interferem direta- Analisando a definição do 1QS adotada, Mourthé (1999: 60) aponta a ausência
mente na produção das viagens e na experiência dos usuários - evocavam para de dois parâmetros: a lotação dos trens e o preço da passagem. Observa que essa
mim justamente este problema, que parece desde o início ter marcado o ~roces.so ausência afeta os resultados e acrescenta que "esses dois fatores são os que mais
de decidir pela concessão e realizá-Ia. Como se a desestatização tivesse sido feita sacrificam os usuários': A taxa de ocupação dos trens já estava, àquela época, ele-
muito rápido, sem que previamente se estabelecessem com segurança suas regras. vada. "Quanto ao preço da passagem, - escreve o autor - as razões são óbvias:'
Não parecia, de fato, estar muito claro o papel de uma concessionár~a e, sime- De fato, tanto o problema da superlotação quanto o da tarifa elevada foram os
tricamente, aquele do Estado na concessão. Que se tenham estabelecido prazos mais mencionados pelos usuários durante esta pesquisa, como mostro de várias
apertados para o cumprimento dos compromissos do Estado ~o co~trato revela maneiras aqui. A superlotação é o maior problema, tendo aparecido desde os pri-
provavelmente pressa e desaviso, e me parece parte da mesma situação. ., meiros momentos das conversas. Quanto à tarifa, como já mostrei ao leitor, o
usuário a considera alta em geral, mesmo que eventualmente nuances e ressalvas
O problema da tarifa, que já apresentamos anteriormente, com todos os lití-
possam ser lembradas. Esta pesquisa mostra que a exclusão desses dois itens sub-
gios em torno das decisões e seus recuos, mostra-o bem. A primeira vítima des.sa
trai aos usuários uma ocasião de trazerem os problemas que mais os aborrecem.
guerra tem sido a mo di cidade, direito do usuário estabelecido clara~e~te na le~I~-
É interessante notar, por outro lado, que esses dois parâmetros não refletem
lação. Também, acredito, a questão do sobreinvestimento nos anuncios publici-
apenas o desempenho da concessionária, mas também o do Estado. Para o pro-
tários, de que já tratamos, mostra um pouco essa falta de clareza sobre papéis
blema da superlotação contribui muito, como a concessionária já apontou na
e objetivos. Da mesma forma, algumas consequências do que se estabele~eu no
imprensa, o fato de o Estado não ter comprado novos trens, como era sua respon-
aditivo que renovou, em 2008, o contrato de concessão - abordadas no capítulo 9
sabilidade. É, evidentemente, ao mesmo tempo resultado de decisões operacio-
- me parecem igualmente figuras dessa compreensão precária dos papéis de ca.da
nais. Mostra-o a situação de agravamento que adveio com reconfiguração recente
parte, dessa insipiência que encontramos na origem do processo de con~essao.
do sistema. Quanto à tarifa, cabe ao Estado garantir sua modicidade _ contra, se
Parece faltar um conhecimento mais profundo da seriedade, do peso e da Impor-
for necessário, as esperáveis exigências do negócio privado - já que o metrô é um
tância de um metrô - com seus investimento vultuosos, financeiros e humanos,
transporte de massa e posto que na concessão de um serviço público o Estado
seu caráter de transporte de massa e de serviço oferecido à população. Uma per-
continua responsável por seu fornecimento.
cepção inteligente e informada dessas questões tão cruciais poderia ter levado a
A desestatização da operação do metrô carioca realizou-se num contexto de
. rea 1"iza- 1a -)a. , que, como
realizar a concessão de uma outra forma, ou talvez a nao
desavenças em parte porque, como vimos, questões importantes não parecem ter
já assinalei ao leitor, seria preciso colocar esta última possibilidade no horizonte,
sido consideradas na origem do processo. A precipitação parece ter conduzido a
contrariamente ao que nosso presente nos impõe.
esse caminho acidentado. Por outro lado, talvez um outro componente que possa
Na cláusula décima do contrato, "Obrigações da Concessionária', determina -~e
explicar os embates que se seguiram sejam as resistências que, no contexto bra-
que esta deve fornecer mensalmente à agência regula d ora "as inrormaçoes
. r • de cara-
sileiro, se apresentam frequentemente em muitos casos de privatização. Vimos,
. "0
ter estatístico relativas ao seu desempenho, qualidade e segurança dos serV1ç~s',
por exemplo, no capítulo 5, como interferências de outras instâncias (ações do
anexo I do Contrato de Concessão trata da questão dos indicadores de avalIaçao
Ministério Público, decisões de magistrados) trabalharam em alguns momentos
de qualidade e segurança do serviço. Nomeia e define os indicadores de desem-
em prol da modicidade da tarifa. O Clube de Engenharia continua ativo, como

197
tantas vezes foi, em argumentar a favor do caráter de serviço do metrô, opinando
Assumem funções do Executivo, tais como "a concessão e fiscalização de atividades
sobre a sua expansão e a sua operação. Há também a ação da Riotrilhos - por
e direitos econômicos'; mas também do Legislativo, já que podem criar normas,
exemplo, no trabalho de fiscalização da concessionária que realiza para a agên- regras e procedimentos, e, ainda, funções judiciárias, "ao julgar, impor penalida-
cia reguladora que, não importando com que lado se concorde, traz aspectos do des, interpretar contratos e obrigações': Há uma redefinição do papel do Estado e
universo da gestão pública de um serviço, estranhos ao contexto do negócio e da cria-se, com essas chamadas autarquias especiais, "um novo poder entre os poderes':
regulação. Essas resistências criam conflitos por vezes. O autor aponta que, desde a sua criação, as agências foram se multiplicando
O regime de apropriação dos equipamentos de serviço que prevaleceu a partir e cada vez mais se apresentam em grande número nos três níveis de governo. No
da febre de privatizações nos anos 1980 em nível internacional e, no Brasil, sobre- contexto de um modelo ainda impreciso, essa multiplicação representa um verda-
tudo durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, salvaguarda outros parâ- deiro "modismo administrativo" (Nunes, 2003: 166 e 168).
metros que não o direito de uso do serviço público. Esse regime, apoiando-se no Não é meu objetivo neste livro desenvolver a complexa discussão sobre o regime
binômio gestão privada e regime regulatório, quando se preocupa em garantir a efi- regulatório no Brasil e nem explorar com detalhe o papel da Agetransp - o leitor
ciência e a qualidade do trabalho realizado - através sobretudo do monitoramento verá o problema da regulação surgir aqui e ali durante o relato e poderá talvez ten-
de indicadores - objetiva antes de tudo a "manutenção do ambiente competitivo, tar sua própria análise à luz destas breves observações que faço aqui. Acrescento
além da solução de conflitos" (Brasileiro e Aragão, 2001: 103). O clima muitas então, ainda, um outro ponto. Esse novo jogo político apoiado no binômio gestão
vezes tempestuoso que observamos no caso metrô do Rio de Janeiro é produzido, privada/regime regulatório tende a gerar, como vimos, uma instância que funciona
em parte, pela ação de resistências a esse regime privado de apropriação dos equi- como um quarto poder. No caso brasileiro, o modelo ainda incipiente e de contor-
pamentos coletivos, que procede atualizando tipicamente as diretrizes das políticas nos imprecisos pode contribuir para distorções no contexto desse jogo e de seus
neoliberais." Ao mesmo tempo, outros vetores também podem resultar em tem- riscos. Edson Nunes (2003: 166) aponta uma preocupação daí decorrente que diz
pestade: a precipitação dos governos desde o início do processo, a falta de conhe- respeito ao lugar do usuário desses serviços privatizados ou, em seus termos, do
cimento acerca o próprio processo que se quis deflagrar e por vezes a dificuldade eleitor. Assinala que, em última instância, é o eleitor o "soberano delegante', já
em fiscalizar para garantir mesmo essa eficiência de inspiração empresarial. que foi ele quem elegeu, como seus representantes, aqueles que procederam às
O regime regulatório que se instaurou no Brasil com as privatizações - acom- privatizações. Dadas as características do modelo brasileiro, o que se observa é que
panhando experiências internacionais - trouxe consigo um campo de problemas e justamente esse lugar se encontra ameaçado, já que não se reservou "ao mandante
tem gerado vasta literatura crítica." Edson Nunes (2003: 64-65) observa que entre último, o eleitor, poder sobre aqueles que regularão áreas cruciais de sua vida" Esta
nós as agências reguladoras tendem a acumular funções de diferentes ordens. me parece ser uma questão fundamental e que não poderia estar ausente quando
buscamos construir uma posição ativa frente à nova situação estratégica que se
13 O neoliberalismo é uma doutrina político-econômica que, a partir do Pós-Guerra, tenta reabi-
litar o capitalismo encampando, de forma própria, ideias liberais do século XVIII. Tipicamente
nos impõe no contexto dessas recentes mutações do capitalismo.
coloca-se contra a intervenção do Estado nas atividades políticas e econômicas e aposta nas leis
do mercado como reguladoras dessas atividades e garantidoras de liberdade e eficiência (Cf. UM OUTRO MOMENTO AINDA
Châtelet e Pisier Kouchner, 1983: 169). Foucault (2008: 45) identifica o liberalismo como uma
"arte de governar" que toma o mercado como "um lugar de veridiçâo" ou de "verificabilidade/ O Sexto Termo Aditivo ao contrato de concessão, assinado em 27 de dezembro de
falsificabilidade para a prática governamental" O autor mostra como, a rigor, o neoliberalismo 2007, veio selar um novo momento no processo de delegação dos serviços públicos
atual não consiste numa simples retomada das teses do liberalismo dos séculos XVIII e XIX. No
século XVIII estipulava -se que o mercado deveria prevalecer sobre a intervenção do Estado no metroviários ao setor privado. Em primeiro lugar, parece ter havido uma busca de
que dizia respeito a certas questões e "a partir das fronteiras de certo domínio': No neoliberalismo apaziguar as desavenças. Essa disposição, que é aparente no texto do aditivo, se fez
em que estamos inseridos até hoje não se pede à economia de mercado que seja o princípio de
acompanhar, segundo minha observação, de uma dissipação de fato do clima tem-
limitação do Estado, "mas o princípio interno de regulação do Estado, de ponta a ponta de sua
existência e de sua ação': No neoliberalismo atual, a questão é "saber se, efetivamente, uma eco- pestuoso que marcara frequentemente as relações entre Estado e concessionária.
nomia de mercado pode servir de princípio, de forma e de modelo para um Estado" (Foucault, Assinale-se que, nesse ínterim entre o contrato de 1997 e a renovação pelo Sexto
2008: 158-159, grifos meus). O neoliberalismo, portanto, ao encampar a fórmula do liberalismo, Aditivo, os governantes já eram outros."
o faz invertendo-a, de fato, e radicalizando-a.
14 Cf., por exemplo, Brasileiro e Aragão (2001), Nunes (2003), Perez (2006) e os artigos do livro
15 As gestões que se sucederam nos governos estaduais foram as de Anthony Garotinho, Benedita
organizado por Ramalho (2009).
da Silva, Rosinha Garotinho e, a partir de 2007, Sérgio Cabral Filho.

199
Sob essa nova disposição, se estabelece, no parágrafo 7° da cláusula 6", "Tari- São despesas assumidas e, ao mesmo tempo, um ganho importante. A con-
fas'; que se tornam extintos os contenciosos em que a concessionária exigia ressar- cessionária se coloca agora ao lado do Estado, sua posição adquire maior cen-
cimento pelo Estado da gratuidade estudantil. Lembre-se o leitor de que já men- tralidade.
cionamos este problema em capítulo anterior. A cláusula vigésima quinta também O Estado, contudo, de sua parte, continua investindo. Caberá à concessionária
celebra extinção de contenciosos entre o Estado, a concessionária e a Riotrilhos. construir o trecho IA e a Estação Uruguai, na Linha 1. O Estado construiria as
Na cláusula sétima, "Reajuste e Revisão das Tarifas'; após uma série de estipula- estações que viriam em seguida (Praça Sachet, Grajaú, Barão do Bom Retiro e
ções e precauções, afirma-se, no parágrafo 18, que as partes reconhecem que as Méier), mas sem obrigação de entregá-Ias durante a vigência do contrato. Cabe-
tarifas vigentes "em conjunto com as regras de ajuste e revisão" previstas - "e desde lhe entregar à concessionária para operação a Estação General Osório, o que efe-
que cumpridas as obrigações do Estado", também previstas - são suficientes para tivamente fez.
garantir adequada prestação de serviços "e a manutenção do equilíbrio econô- Se o Estado finalmente construir essas estações que se seguem a Uruguai ou
mico-financeiro" do contrato e do aditivo." As tarifas são satisfatórias, portanto, quaisquer outros prolongamentos das Linhas 1 e 2, obriga-se a mostrar os proje-
para assegurar o sucesso do negócio, compensando o capital investido. Com esse tos de expansão à concessionária "para sua ciência e manifestação", estabelecendo
reconhecimento - cercado de precauções e ressalvas - declaram-se extintos os previamente as condições de operação "de forma a não prejudicar o equilíbrio
processos administrativos e judiciais que se referiam ao problema de desequilíbrio econômico-financeiro do contrato" (Cláusula Ia, "Objetivo do Aditivo", parágrafo
econômico-financeiro que teria atingido a empresa. I? 8°). O Estado, portanto, deve consultar a concessionária e obter sua aprovação. O
Parece que se busca uma conciliação entre as partes. Essa aproximação entre inverso, em algum grau, também se daria. A concessionária fica obrigada a apre-
o agente privado e o poder público se expressa numa redefinição dos papéis dos sentar ao Estado "os projetos básicos de expansão" (parágrafo 10). O Estado pode
dois que o Sexto Aditivo estabelece e que envolve uma presença mais marcante "analisar e propor eventuais modificações" dentro de um certo prazo (noventa
da empresa no transporte metroviário e o reconhecimento desse novo estatuto dias). Assinala-se, contudo, que, na eventualidade de proposta de alteração em
da empresa pelo Estado. A concessionária, que antes apenas operava o sistema seu projeto, deve ser assegurada à concessionária "a manutenção do equilíbrio
e cuidava da manutenção, passaria, daí em diante, a investir e a construir. Seu financeiro" (ibid.).
papel cresce, ela é autorizada a cuidar diretamente da expansão do sistema ao Os investimentos da concessionária são levados em conta para o pagamento
lado do Estado. da outorga (cláusula 9", "Preço da concessão"). São fornecidos valores para expres-
Não é nestes termos, contudo, que a questão se coloca no texto. Diz o Adi- sar quanto custaria a concessão (embora não se apresente o cálculo que os teria
tivo que a concessionária aceita fazer os investimentos que o Estado lhe solicitou: originado) e se determina que o valor que corresponde ao período que vai da
"sendo tal proposta por ela aceita'; diz-se ainda no preâmbulo, antes da primeira assinatura do contrato até 27 de janeiro de 2018 será pago pela concessionária em
cláusula. Afirma-se que o Estado não poderia fazê-los por falta de recursos. A parcelas mensais, "em dação" pela aquisição de material rodante e "com a com-
empresa teria aceitado a proposta obtendo em contrapartida a extensão do termo pensação do crédito da concessionária referente ao ressarcimento pela gratuidade
do contrato. Assumiria, ademais, as obrigações a ela imputadas "desde que forem estudantil': Uma parte, ainda, fica compensada pelas despesas da concessioná-
realizados ajustes no contrato com vistas a assegurar à concessionária a manuten- ria com as obrigações judiciais da Riotrilhos e da Companhia do Metropolitano
ção do equilíbrio econômico-financeiro': (cláusula 22", "Sucessão", parágrafo 14°). A partir daí até 2038, a outorga será paga
"em dação" pela realização de investimentos."
16 Sexto Termo Aditivo ao Contrato de Concessão para Exploração dos Serviços Públicos de Trans-
porte Metroviário de Passageiros. Rio de Janeiro, 27 de dezembro de 2007. http://www.agetransp. O contrato estabelece obrigações e direitos para ambas as partes, mas o que
rj.gov.br. Acesso em 7 de dezembro de 2008. traz de novo e particular é a maior centralidade da empresa privada que, ao
17 É interessante notar que o equilíbrio econômico- financeiro é atribuído ao contrato, ao aditivo ou
à concessão, e não à empresa privada. É uma figura jurídica que se supõe prejudicada nesse caso.
O equilíbrio econômico-financeiro apresenta -se como uma característica inerente à concessão. 18 Dação em pagamento consiste em "modalidade de extinção de uma obrigação em que o credor
Seriam os interesses da concessão - essa situação que os dois lados concordaram em estabelecer pod.e c~nsentir em receb.er coisa que não seja dinheiro, em substituição da prestação que lhe era
- que estariam sendo preservados quando se defende a boa relação entre custo e benefício que devida" Cf. http://www.Jusbrasd.com.br/topicosh91171/dacao-em-pagamento.Cf. também Lei
caracteriza um negócio. A figura da concessão aproxima Estado e empresa de tal forma que o 2.40412002 - Código civil brasileiro, Título I1I, Capítulo V, Artigo 356, disponível em http://www.
imperativo do lucro fica obscurecido e aparece sob a capa da justiça contratual. cosíf.com.br/ mostra. asp?arquivo=codcivilo indicehesp.

200 201
mesmo tempo que assume despesas (compensadas, como vimos acima, com .a vidades econômicas e sociais que o transporte facilita e mesmo torna possíveL
isenção parcial da outorga por 10 anos e integral nos 20 restantes) ga~~a. mais É assim que ele planeja a expansão de um sistema de transporte, imbuído desse
poder de decisão. Na cláusula 25, "O planejame~:~ do sistema metrovlar,lo e o pensamento de longo alcance, que renuncia ao imediato (inclusive na figura do
plano de metas", estipula-se, no parágrafo 1°, que _efacult~do aO"Estado ~ a co~- equilíbrio econômico- financeiro) e aposta na duração. É quando o vínculo comer-
cessionária executar, a qualquer tempo, as expansoes do Sistema. Nos dois para- cial, que caracteriza o empreendimento privado, não predomina, que o Estado
grafos seguintes, se afirma que, a certa altura, a concessionári~ ~everá pr~~or pode tentar fazer essa aposta, afastando-se de interesses pontuais e momentâneos
novos investimentos não previstos ou considerados não obrigatonos no Aditivo, e referenciando-se à sociedade e à história.
mas que essa obrigação fica "condicionada e subordinada ao equilíb~io econ~~.i- A convergência entre os papéis das duas instâncias se revela incongruente,
co-financeiro do contrato e a comprovada elevação estatística do numero diário portanto, a menos que a empresa privada abdique desse seu interesse primordial
(situação inimaginável) ou que o Estado abdique do seu (situação imaginável nos
de usuários pagantes".
Está para além dos limites deste livro discutir com profundidade ess~ doc~- quadros do pensamento e das práticas da governança neoliberal). A convergência
mento e também não pretendemos discutir valores e fazer contas. O que e POSSI- entre Estado e empresa no contexto da gestão de um equipamento coletivo de
vel e importante apontar é o passo qualitativo. A empresa e o Estad~ estã~ mais serviço não poderia se efetuar sem renúncias ou perdas. Doravante resta observar
próximos, estão mesmo partilhando o direito e a obrigação de planejar o sistema e conservar conosco esta inquietude.
metroviário e determinar metas. É um passo à frente para a empresa e, por sua
DESENLACES
vez, o Estado lhe dá passagem - e não o faz sem abdicar de prerrogativas que são,
ao mesmo tempo, obrigações suas. Vai decidir, em parte, junto com a empresa, Vimos que a Companhia do Metropolitano enfrentou dificuldades em várias oca-
questões fundamentais do transporte metroviário. . siões. A mais presente e determinante foi a falta de recursos, já que o governo,
Os dois lados se tornam quase equivalentes, parecem trabalhar Juntos e ter durante quase todo o período em que durou a gestão pública, não investiu no
interesses coincidentes. O Estado aparece menos como a instância que zelaria pelo metrô. Vimos, ao mesmo tempo, que Sousa (1994) menciona problemas que
serviço público fornecido ao usuário e se integra mais ao, c~ntra~o, :de~indo à dizem respeito à eficiência do trabalho da Companhia.
sua superfície. Embora faça suas exigências, torna-se, em ultima instância e em Em conversas com profissionais que trabalharam no metrô nessa época, a
alguma medida, uma figura da concessão. falta de recursos era constantemente mencionada como o maior obstáculo.
Vimos como, nos idos de 1998, quando da assinatura do contrato de conces- Alguns apontaram também dificuldades internas no trabalho de gestão, res-
são, parecia incipiente o conhecimento dos papéis dos agentes ~.nvolvidos nesse soando as observações de Sousa. Havia uma intransigência que impedia por
movimento de tanta gravidade. A tentativa de precisar esses papels neste segundo vezes que o trabalho fluísse. Um profissional da manutenção me contou que a
momento, porém, apesar de clarificá-los, parece, por sua vez, colocar novos .pro~ equipe encarregada da operação era extremamente exigente com a integridade
blemas. A legislação brasileira determina que, mesmo concedendo um servlç~ a do material rodante a ponto de não liberar um trem que apresentasse um mínimo
iniciativa privada, o Estado continua responsável pelo fornecimento do serviço defeito e que a manutenção aprovara. Havia também, a certa altura, um interdito
público concedido. A aproximação quase convergente entre Estado e empresa ao anúncio publicitário que, funcionando como princípio, não permitia que se
arece ignorar esta determinação ou, ao menos, obscurecê-Ia. . ponderasse o caso e a ocasião. Havia pouca preocupação com custos, o que era
P . . deixar
Para verificar os erros e acertos desse novo movimento, sena preciso prejudicial muitas vezes. Faziam-se licitações regulares e comprava-se segundo o
passar o tempo e observar. Por outro lado, é imprescindível não dispensar, neste melhor preço, como é devido, mas podia-se, por exemplo, comprar peças extras
momento, uma preocupação fundamentaL Mesmo uma empresa eficiente e bem para garantir a reposição.
intencionada tem que se haver com o imperativo da melhor relação entre custos São atitudes que se colocam em contraste com a a gestão privada, que tende a
e benefícios - do contrário, o negócio não é mais compensador. O Estado, ~or professar justamente o outro extremo: extrair o máximo do capital constante (os
sua vez, tem a obrigação de ter uma visada mais ampla, ~e for~a q~e mu~ta~ recursos materiais como, por exemplo, as máquinas) para manter a melhor relação
r custo/benefício e explorar o espaço do equipamento coletivo como suporte para
vezes arca com prejuízo financeiro em nome de ganhos muito maiores: mduZl .
. 1 . bili ati publicidade a fim de maximizar a arrecadação. A atitude oposta que caracterizou
desenvolvimento urbano, promover harmonia e bem-estar socia , via Ilzar -

2°3
202
a gestão pública nesse caso, apesar de trabalhar a favor do serviço, levada a níveis sado e seu presente de investimentos financeiros vultuosos, numerosos ativos e
extremos construía obstáculos. Sobrevinha por vezes uma lentidão e um peso, muita experiência acumulada em intenso trabalho humano. Para que se viabilize
como esses profissionais mesmos apontaram, que prejudicavam o trabalho. Estas a tarefa das empresas que assumem a gestão de um serviço público - sobretudo se
duas expressões são muitas vezes usadas para referência às administrações públicas este envolve trabalho extremamente especializado e é empreendimento de grande
e fornecem a melhor munição para quem quer combatê-Ias - situação em que estes vulto, como no caso de um metrô - é preciso que ocorra, junto com a apropria-
aspectos são tomados de forma absoluta como obstáculos estruturais e inarredá- ção político-econômica, a absorção, mesmo que parcial, dessa experiência. O
veis dessas adiminstrações. Parece, segundo me relataram esses profissionais, que acesso da empresa privada ao conhecimento acumulado envolve, por exemplo,
as expressões cabem em algum grau e em alguns momentos no caso do metrô.
aproveitar ao menos alguns profissionais de formação pública que trabalharam no
Se há dificuldades na administração privada de um serviço público, a adminis-
regime anterior. Assim foi com o metrô carioca. A concessionária admitiu alguns
tração pública também pode enfrentar as suas. É interessante observar, por outro
metroviários experientes. Outros que haviam trabalhado na antiga Companhia do
lado, que, no caso do metrô carioca, apesar de todos esses problemas - e da quase
Metropolitano entraram num programa de demissão voluntária e outros, ainda,
total falta de recursos e de autonomia nas decisões mais importantes, como vimos
permaneceram na recém-criada Riotrilhos.
- a equipe da Companhia do Metropolitano conseguiu em grande parte manter a
Durante a pesquisa, conheci alguns dos profissionais de formação pública
integridade do serviço. Manteve-se a segurança e a limpeza dos trens e das esta-
que passaram a trabalhar na concessionária e vários que continuaram no setor
ções (Castro, 2007) - e mesmo a confiabilidade, já que o metrô não parou apesar
público. Embora a Riotrilhos se encontre, em alguma medida e apesar de tudo,
de eventual fechamento de estações. E, ainda, praticou-se uma tarifa módica que
ativa, a sensação que me tomava muitas vezes era de que muita coisa se havia
contemplava a função social de um transporte de massa.
perdido. Aliás, era isso também o que alguns desses profissionais relatavam. Pude
Lembremos também que desde essa época - os primeiros tempos do metrô
observar igualmente o agravamento desse vazio ao longo dos anos em que durou
sob a gestão púbilica - o metrô consolidou-se não só como um meio de transporte
confiável, em contraste com os outros na cidade, mas como um lugar limpo e a pesquisa. A renovação do contrato de concessão, com suas novas disposições, se

ordeiro, diferente do caos que prevalece em torno. A gestão privada, por sua vez, deu, creio, no bojo desse agravamento, ao mesmo tempo como causa e consequên-
bem soube preservar esse aspecto do metrô - que temos chamado neste livro de cia. A certa altura, a Riotrilhos estava ainda mais desinvestida de suas atribuições.
heterotopia - apesar dos problemas advindos com a reconfiguração do sistema Mais ainda parecia ter sido subtraído aos profissionais dessa sucessora da Com-
após a renovação do contrato de concessão. Ele começou, contudo, a ser cultivado panhia do Metropolitano - que planejou e implementou o metrô. Conhecimento
e se estabeleceu na gestão da Companhia do Metropolitano. ~cumulado e cultivado por anos era, de certa forma, alienado para dar passagem
Visitar um setor da administração pública depois que sobreveio a privatização as decisões cuja lógica e origem eram pouco claras mesmo para os profissionais
é observar uma situação de esvaziamento. Hoje a Riotrilhos, sucessora da Compa- a~ingidos por elas, e muito menos eram apresentadas ou esclarecidas para o usuá-
nhia do Metropolitano, concentra ainda algumas funções. Continua encarregada no e o público em geral. Aliás, o público desconhecia esse esvaziamento silencioso
de ' . - .
da expansão do sistema - embora não tenha assumido totalmente as obras das agencia tao Importante no setor do transportes e era preciso pesquisar e per-
duas novas linhas e já divida em parte com a concessionária essa função. Mantém guntar para descobrir e tentar compreender.
um convênio de assistência técnica com a agência reguladora para a supervisão No caso do metrô do Rio de Janeiro, a privatização como desenlace assume
e fiscalização do trabalho da concessionária. É, contudo, palpável o esvaziamento tonalidades particulares. A ideia de um metropolitano para a cidade se construiu,
com '. .
que os atingiu e que ficou ainda mais pronunciado, me pareceu, após a renovação o VImos, com muito esforço e, em seguida, a Companhia do Metropolitano
do contrato de concessão. traba~hou num contexto de muita adversidade. Quando, finalmente, algum alento
A implementação de um transporte de massa como o metrô é um empreen- pare~la. c~egar, já se preparava a concessão e foi preciso renunciar às conquistas
dimento grandioso. Foi isso que senti no convívio com o pessoal da Riotrilhos e que InSIstIram apesar dos obstáculos, passando-as adiante.
também quando pude dialogar com profissionais da concessionária Metrô Rio, Sousa (1994: 86-90), ao examinar a situação da Companhia do Metropolitiano
que haviam sucedido os primeiros no trabalho complexo da operação do metrô. em trabalho a que já nos referimos aqui, faz algumas recomendações à Companhia
Na ocasião da transferência para o domínio privado, o metrô carregava seu pas- e ao governo. Sugere uma série de medidas à Companhia do Metropolitano que

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2°5
truído em meados da década de 1970 na Zona Oeste, numa periferia bastante
possibilitassem uma completa reformulação estrutural - combatendo assim uma
distante do núcleo urbano. Nessa época, a especulação imobiliária, como escreve
atitude de acomodação que ele acredita decorrente "da forte atuação do governo"
Abreu (1997: 135), "determinou a expansão da parte rica da cidade em direção
que agira "ditando toda a estratégia a ser seguida, sem dar margem a qualquer
a São Conrado e Barra da Tijuca, contando, para isso, com a ajuda decisiva do
discussão': Ao governo, recomenda "proceder a um minucioso processo de pla-
Estado': Já em fins da década de 1960 foi construída a Auto-Estrada Lagoa-Barra,
nejamento': Deveria ser estabelecido um cronograma de trabalho e investimentos
investimento vultuoso que envolvia perfuração de vários túneis e construção de
em que primeiro se objetivasse a consolidação do sistema já construído para só
pistas encravadas na rocha. Continuou-se investindo, em seguida, em abertura de
depois expandi-lo. Apontou ser fundamental "uma modernização gerencial" em
novas vias, pavimentação e toda a infraestrutura urbana para preparar a ocupação
que o governo agisse "delegando maior autonomia" à Companhia em vários níveis
da região. Hoje trata-se de bairro consolidado, com equipamentos de trabalho e
de decisão. Era assim que acreditava que se poderia remover os obstáculos que se
lazer localizados sobretudo em shoppings e uma população de nível alto e médio
impunham à Companhia do Metropolitano, introduzindo melhorias na gestão
de renda que vive sobretudo em condomínios fechados. Há igualmente uma ocu-
pública do metrô. Seria um outro desenlace.
pação um pouco diferente, mais modesta, nas franjas dos bairro, mas que não
representa o padrão que se instaurou.
PRESENTE E FUTURO
A construção da Barra da Tijuca nos anos 1970 se encaixava no modelo de
Hoje o metrô tem um sistema amplo e criativo de integração com ônibus e ferro- ocupação do solo urbano e partilha da cidade descrito mais acima, que se estabe-
via, implementado pela concessionária. Os usuários, em conversa comigo, mos- leceu cedo na história da cidade. É interessante notar também que o tipo de ocu-
traram apreciar esse recurso, como já mostrei ao leitor. É uma forma de expandir pação periférica que se estipula nesse caso assemelha-se ao processo de criação
o alcance do metrô, embora o desejável seria que as forças se invertessem - que dos subúrbios americanos nos anos 1950, áreas residenciais segregadas, distantes
as linhas do metrô fossem muito mais numerosas e as de ônibus viessem apenas da cidade e dependentes do automóvel. 20Os nomes de localidades americanas que
a complementá-las. A integração é, contudo, uma característica bem-vinda nos aparecem em condomínios e shoppings apontam para essa ambição. A distância
transportes coletivos. demarcada em relação à cidade deveria ser varada, ao longo das vias preparadas
No momento há duas novas linhas cuja implantação está aprovada, a Linha 3 e para os novos bairros, no automóvel privado.
a Linha 4, sendo que esta última já está sendo construída. A Linha 3 ligará a cidade O modo de vida que se produziu com esse tipo de ocupação não dispen-
do Rio de Janeiro a São Gonçalo passando por Niterói. Essa linha, portanto, levará so~ totalmente, contudo, a presença do transporte coletivo, sobretudo porque o
o metrô para outros municípios da Região Metropolitana. O primeiro trecho será bairro se tornou um centro de empregos e gerou-se demanda. Há linhas de ônibus
em túnel subaquático sob a Baía de Guanabara, partindo do Rio de Janeiro até a que servem o bairro, mas, sem dúvida, chegar à Barra da Tijuca de ônibus é um
futura Estação Arariboia em Niterói. Esse percurso hoje é feito através de barcas em~reendimento.21 Isso porque todo o desenho do bairro o faz inóspito à ocu-
ou sobre pneus ao longo do Ponte Rio- Niterói. O segundo trecho vai de Niterói paçao coletiva. Os ônibus se amontoam em terminais e não se detêm frequente-
a Guaxindiba e o terceiro trecho vai ligar Guaxindiba a Itaboraí." Seriam estes os mente ao longo das vias desertas nas regiões de baixa densidade demográfica onde
planos e a situação em final de 2011 é a seguinte. O primeiro trecho, devido aos os moradores utilizam apenas seus automóveis - situação que, inclusive, torna
altos custos, foi remetido a um futuro, embora continue constando no projeto. custosa a oferta desse transporte. As vias de alta velocidade não recebem bem os
O terceiro não tem contrato ainda, embora exista intenção política de construí-lo. transeuntes. Projetadas para serem ocupadas por automóveis e miradas de sua
O trecho que já está licitado e que está sendo discutido agora é o segundo, que liga perspectiva, são quase impossíveis de se cruzar a pé.
Niterói a São Gonçalo. A Linha 3 vai servir áreas ocupadas por população de baixa Como me explicaram profissionais do setor, o ônibus é um modal inadequado
renda em São Gonçalo e no norte de Niterói. para urna reglao
.- com essas caracterísicas e a chegada do metrô seria a melhor
A Linha 4, em contraste, chegará a uma região ocupada sobretudo por uma soluçãao para .íntegra-, 1a por transporte coletivo a outros bairros da cidade. Ade-
população de alta classe média, a Barra da Tijuca. Trata-se de um bairro cons-
20 Para uma discussão do fenômeno da suburbanização nos Estados Unidos, cf. Caiafa (1991 2007)
Low (2003) e Smerk (1991). ' ,
19 Cf. Projeto 1: Linha 3 - Ligação Rio de janeiro-Niterói-São Gonçalo. Projetos e Ações para Con-
21 Veja o leitor o relato da aventura de uma viagem de ônibus à Barra da Tijuca no capítulo 5.
solidação e Expansão do Sistema Metroviário. Riotrilhos, julho de 2006.

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206
mais, os congestionamentos são cada vez mais sérios, mostrando que a rede rodo- é o resultado final de um longo trabalho realizado pelo Clube nos últimos meses
viária se encontra saturada. Como indica a revista da Riotrilhos, já citada, esses durante os quais promoveu debates e recebeu especialistas e autoridades tais corno
congestionamentos atingem toda a Zona Sul." J~lio Lo~es,.secretár,io estad,ual.de Transportes e Bento José Lima, diretor de engenha-
na da RlOtnlhos: ale~ de técnicos e representantes de diversas associações de mora-
Até final de 2011 o traçado da Linha 4 não estava decidido. Uma possibilidade
dor~~, buscando ,lde~tIficar os ~ontos comuns entre linhas de pensamento divergentes,
seria que partisse da futura Estação Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, com- equilibrando o técnico e as aspirações da população.
prendendo as estações Jardim de Alah e Antero de Quental, no Leblon, e ainda
Gávea, São Conrado e Jardim Oceânico, esta última na Barra da Tijuca e, apesar Seria preciso acompanhar os desdobramentos nos próximos anos para saber
da presente indefiníção, já em obras." A passagem pela Gávea, contudo, não está que rumo tomará a Linha 4. O fato de o Clube de Engenharia solicitar o acesso
garantida, ao menos não prioritariamente - já que se considera, como me foi rela- aos estudos que teriam fundamentado a mudança de traçado revela que não foram
tado, adiar a sua construção, levando a linha direto de São Conrado ao Leblon. divulgados. Confirmei este ponto com profissionais da Riotrilhos, que me dis-
Não se tem igualmente certeza se seriam estas as estações em Ipanema e Leblon, seram também desconhecer esses estudos. Assim, até agora, nesse contexto de
embora se saiba que o traçado passaria por esses dois bairros. As duas estações índefiníção, um argumento que pesa a favor do traçado original é precisamente
definitivamente confirmadas são Jardim Oceânico e São Conrado. que a existência dos estudos que o fundamentam é indubitável, já que vieram a
O traçado original da Linha 4, contudo, era diferente. A linha partiria de Jar- público há algum tempo. Em qualquer caso, é interessante notar que, apesar das
dim Oceânico e passaria por São Conrado, Gávea, Jardim Botânico e Humaitá incertezas, as perfurações já foram iniciadas.
e chegaria à futura Estação Morro de São João, em Botafogo." Em seguida, esse A implementação das Linhas 3 e 4 está, no momento, apenas parcialmente
traçado foi questionado pela própria equipe da Riotrilhos, segundo me relatou um a cargo da Riotrilhos. Basicamente, em grande parte a Linha 3 saiu da alçada da
profissional envolvido nos debates sobre a concepção da linha, e foi proposta uma Secretaria de Transportes, conforme me relataram. A Linha 4 é parcialmente res-
alternativa: o traçado sairia de Humaitá e passaria por Laranjeiras, chegando até ponsabilidade da Casa Civil, sendo que a Secretaria de Transportes está realizando
Carioca, no Centro da Cidade. uma fiscalização das obras com alguma participação da Riotrilhos. Em geral,
Em 8 de agosto de 2011, o Clube de Engenharia entregou uma carta ao gover- vemos outras instâncias do Estado fora da Secretaria de Transportes assumirem
nador do estado, Sergio Cabral Filho, em que solicitava que o traçado original da parcialmente o processo de expansão do metrô neste momento. Dentro da Secre-
Linha 4 fosse mantido. Admitia também a construção futura do trecho Gávea- taria de Transportes, a Riotrilhos, sucessora da Companhia do Metropolitano, vai
Carioca. Assinalava seu apoio à realização de estudos para a implantação futura perdendo consistência, seus contornos cada vez mais difusos.
de um trecho que expandiria a Linha 4, indo de Jardim Oceânico a Alvorada." O Uma outra solicitação do Clube de Engenharia deve ser destacada:
Clube de Engenharia é uma associação profissional que, como já vimos, tem tido C~ncluir a .liga~ão.Estácio-Carioca- Barcas, a qual permitirá à Linha 1 transportar 900
um papel importante nos debates sobre os transportes ao longo da história da mil pass.zdía e, a Lmha 2: transportar 500 mil pass./dia. Tal ligação, prioritária desde os
cidade, sendo uma referência no setor. e~tu~os imciais ~o Metro- ~io, colocará o passageiro da Linha 2, sem qualquer interfe-
rencia ou reduçao da capacidade da Linha I, diretamente ao Centro da Cidade do Rio
Na carta, o Clube solicita acesso à pesquisa de origem-destino para a Linha e em conexão com o sistema de Transporte das Barcas.
4 em que o estado teria baseado sua decisão de mudar o traçado da linha. Pede
igualmente acesso "a todas as informações, dados e projetos em curso relativos à Trata-se da ligação entre a Estação Carioca e a Estação Estácio na Linha 2
expansão do sistema metroviário do Rio de Janeiro': que originalmente chegaria até as barcas que partem para Niterói e para a ilha de
Assinala-se que o documento apresentado ao governo do estado: P~quetá. Numa das versões do projeto, Carioca se tornaria a estação terminal da
Lmha 2, em vez de Estácio, e a transferência para a Linha 1 poderia ser feita ali
22 Na mesma publicação indica-se que 80% da população do bairro é motorizada. também. Em dezembro de 2009, foi inaugurada a Linha IA, trecho que possibilita
23 Mais de 100 pessoas visitam obras da Linha 4 neste domingo. http://www.rj.gov.br/web/imprensa. a pas~agem direta de São Cristóvão (Linha 2) a Central (Linha 1), mudando a
Acesso em 25 de setembro de 2011. .
estrategia de transferência. Esta foi uma ocasião em que mais uma vez se adiaria
24 Projeto 2: Linha 4 - Ligação Barra da Tijuca-Morro Azul (Botafogo). Projetos e Ações para Con-
solidação e Expansão do Sistema Metroviário. Riotrilhos, julho de 2006. a concretização do projeto original. Este a princípio incluía o trajeto até as barcas,
25 Cf. http://clubedeengenharia.org.br. Acesso em 25 de setembro de 2011. mas o que acabou se confirmando como imprescindível foi a construção do trecho

208
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Estácio-Carioca. o novo e diferente passo que se deu com a construção da Linha rar para o automóvel privado. Estes pontos não devem ter sido sem consequências
IA envolveu uma reconfiguração de todo o sistema e, como veremos mais adiante, para o empreendimento do metrô.
provocou uma interferência expressiva no quotidiano das viagens. Este aconteci- Além disso, como vimos, Sousa (1994) acredita que o fato de que a decisão
mento - cujos efeitos ainda se fazem sentir, em alguma medida, até agora - cons- para a construção do metrô tenha vindo finalmente de cima, ao tirar o foco das
truiu um novo desvio no percurso já acidentado do metrô desde os seus inícios. discussões em nível de estado e cidade, teria tornado o projeto, de alguma forma,
Uma novidade apareceu e se substituiu ou se antecipou aos antigos planos. menos interessante. Em seguida, já inaugurado, o metrô tem que enfrentar a indi-
Em minhas conversas com profissionais tanto da Riotrilhos quanto da conces- ferença dos governos que se sucedem e impõem uma situação de penúria à gestão
sionária, desde o início da pesquisa, a construção do trecho Estácio-Carioca da pela Companhia do Metropolitano.
Linha 2 era uma reivindicação que aparecia frequentemente: "terminar a Linha 2': A concessão da operação das Linhas 1e 2 veio, por sua vez e a certa altura, via-
como se expressou um engenheiro da Riotrilhos. A Linha 2 não estaria, a rigor, bilizar o metrô, já que a empresa pública enfrentava grande dificuldades. E obteve,
terminada. Teremos ocasião de discutir este ponto mais adiante. Guarde o leitor, de fato, algum sucesso. Por outro lado, esse novo regime de apropriação coloca
contudo, esta primeira indicação. Faz lembrar também o alerta de Sousa, (1994) novos problemas. Imperativos do negócio não poderiam deixar, por princípio, de
que mencionamos acima: seria aconselhável consolidar antes de expandir. E maté- se opor ao aspecto de serviço que está no coração do empreendimento do metrô.
ria para pensar. Contra o que estabelecem os princípios neoliberais em que até hoje estamos imer-
sos, os interesses privados não constituem fator decisivo de equilíbrio nos equipa-
,.. mentos de serviço, mas os desequilibram à sua maneira.
A expansão do metrô desloca e modifica o mapa da superfície. O metrô bem
A história do metrô do Rio de Janeiro é repleta de acidentes e adiamentos. Um sucedido, ou seja, aquele que segue, fluente, o ritmo de uma expansão inteligente
conjunto de circunstâncias parece ter determinado que transcorresse assim. De e tanto quanto possível livre dos interesses de negócios e de políticos, transforma
fato, desde os seus inícios, como vimos neste capítulo, o metrô do Rio de Janeiro a cidade. O transporte por ônibus se torna complementar ao metrô que, embora
se viu colhido num emaranhado de conflitos e imposições políticas que muitas envolva investimentos vultuosos no início, no transcorrer das décadas e dos sécu-
vezes os meios técnicos não tiveram como enfrentar. Uma dessas imposições foi los, tem condição de funcionar como verdadeiro transporte de massa. Com o
o rodoviarismo. Como vimos neste capítulo, a ênfase no transporte sobre pneus - sucesso do metrô, o foco se afasta também do investimento do espaço viário para
privilegiando o ônibus e o automóvel privado, este último grande agente da segre- uso privado - que envolve construir vias de escoamento para os congestionamen-
gação espacial e da partilha desigual da cidade - é uma característica nacional e tos causados pelo excesso de carros e usar a via pública para estacionamentos
claramente presente na RMRJ. Interesses políticos foram preterindo a ferrovia e o supostamente gratuitos e que são de fato pagos pela sociedade. A realização do
metrô - além do bonde, a certa altura extinto. metrô força, necessariamente, essa partilha da cidade.
Essa ênfase não é coisa do passado, mas tem tido longa sobrevida. Um enge- Se o metrô funciona a favor da população, eficientemente e com tarifas módi-
nheiro com quem conversei durante a pesquisa ponderou comigo sobre a razão cas, ele contraria interesses privados de diversos tipos e realiza, em algum grau,
pela qual a implantação do metrô não teria se dado de forma mais ágil a partir uma dessegregação na cidade.
daquele momento tão favorável, em meados de 1970, quando recebeu o impulso Apesar de todos os acidentes e do sistema limitado de duas linhas que conse-
decisivo para sua construção. Vimos acima que o governo federal forneceu os guiu vingar até agora - ao longo dos quarenta anos e no emaranhado de acidentes
recursos. Havia afinidade entre o governo do estado e o governo central. As neces- e interesses desde o início da construção - o metrô do Rio de Janeiro tem um papel
sidades da cidade poderiam agora não ser obstadas pelos interesses políticos, já importante entre nós. Ele se compara a outros modais para sua vantagem e ainda
que, incidentalmente, o momento estava a seu favor. Esse meu interlocutor acre- é um lugar com características singulares no contexto da cidade. Este livro tem
dita que o rodoviarismo teve um papel importante em impedir que o metrô apro- procurado apresentar estas singularidades do metrô. Os dados mostram como as
veitasse todos os benefícios daquela virada da sorte. O transporte por ônibus se pessoas sabem de fato aproveitar o que lhes é oferecido, mesmo que não seja tanto.
realizou desde o início nos limites de um modelo privado e concentracionário Além disso, a própria ocupação do metrô pelos seus frequentadores produz essas
(Caiafa, 2002 e Pereira, 1987). A rodovia é igualmente o chão que é preciso prepa- características que o fazem, apesar de tudo, um lugar especial.

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