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GEOGRAFIA URBANA

Aline Carneiro Silverol


A urbanização
latino-americana
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Descrever os mecanismos de crescimento urbano da América Latina.


 Explicar a organização espacial da América Latina.
 Identificar alguns aspectos da crise urbana da América Latina.

Introdução
As cidades latino-americanas se desenvolveram em função da ex-
ploração colonial. Para que os produtos fossem exportados para as
metrópoles europeias, era necessário que fossem centralizados em
algum lugar, geralmente em cidades próximas ao litoral. A localização
das cidades e seu posterior desenvolvimento foram fatores cruciais
para a forma como elas se organizaram no decorrer das décadas.
Todos os fluxos econômicos foram responsáveis pela organização
da rede urbana, cujos reflexos são observáveis até os dias atuais. Os
grandes problemas urbanos, envolvendo falta de moradia adequada,
problemas de mobilidade, a presença de favelas e as desigualdades
sociais, são algumas das consequências da maneira como as cidades
latino-americanas foram sendo concebidas e expandidas ao longo
do tempo.
Neste capítulo, você vai aprender sobre os acontecimentos e os
processos que conduziram, no decorrer dos séculos, à urbanização da
América Latina.
2 A urbanização latino-americana

1 Crescimento urbano da América Latina


Para compreender o processo de urbanização da América Latina, precisamos
realizar um pequeno resgate histórico para entender como os acontecimentos
resultaram na configuração das cidades atuais, na sua forma de organização
espacial e nos problemas urbanos.
A história da América Latina e a formação dos seus territórios foi iniciada
a partir de sua descoberta e posterior ocupação pelos seus colonizadores, com
o objetivo de exploração. Durante mais de três séculos, predominou a chamada
cidade colonial, que tinha por objetivo ser um núcleo que intermediaria todos
os negócios e a vida colonial (Figura 1) (SANTOS, 2010).

Figura 1. Os colonizadores, ao chegarem à América Latina, escravizaram os povos locais,


obrigando-os a trabalhar e a extrair as riquezas de seu território para serem comercializadas
nas cidades europeias.
Fonte: Everett Historical/Shutterstock.com.

As principais funções das cidades-coloniais eram de organizar e expedir


os excedentes produzidos pela colônia para as metrópoles colonizadoras, além
de abrigar algumas instâncias administrativas e militares. Essas cidades-
-coloniais existiram em vários pontos dos territórios latino-americanos, e
foram as precursoras dos primeiros centros urbanos, justamente por serem
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uma espécie de mercado onde as mercadorias destinadas à exportação eram


levadas e embarcadas.
Enquanto os primeiros núcleos urbanos com funções exportadoras e ad-
ministrativas surgiam nos territórios latino-americanos, as cidades europeias,
receptoras dos produtos extraídos das colônias, comercializavam esses produtos
por toda a Europa.
Aos poucos, os núcleos latino-americanos também se transformaram em
cidades comerciais, mas com um grau de desenvolvimento muito menor que
o das cidades comerciais europeias. Estas, por sua vez, com o capital acumu-
lado em decorrência da comercialização dos produtos obtidos nas colônias de
exploração, avançaram e se tornaram cidades industriais (SANTOS, 2010).

A Inglaterra foi considerada a primeira metrópole do mundo. A industrialização do país


contribuiu para a rápida urbanização e a aglomeração de núcleos urbanos periféricos
na área de influência do centro principal. O comércio de produtos coloniais e a venda
de mercadorias manufaturadas para as colônias promoveram um grande acúmulo de
capital, o que facilitou uma intensa e rápida urbanização.

À medida em que as colônias foram conquistando sua independência,


a partir do século XIX até o início do século XX, num contexto de crises
econômicas e movimentos sociais, as cidades latino-americanas passaram a
desfrutar de uma certa autonomia. As redes urbanas passaram a desenvolver
alguma especialização, com os centros comerciais exercendo certa influência
nos demais núcleos populacionais, mas sem muita expressividade.

É importante observar que a urbanização, que já estava a pleno vapor nos países
europeus, só foi estendida ao mundo colonial devido à necessidade de ampliação
dos espaços sob o domínio do capital comercial. Havia uma grande necessidade de
ampliação dos mercados, e para isso o status de colônia deveria ser superado.
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Até o início da década de 1930, os países da América Latina apresentavam-


-se como economias primário-exportadoras, ou seja, exportavam produtos
primários, especialmente de origem agrícola e mineral, e importavam os
produtos industrializados. Nesse período, os grandes proprietários rurais ou
a chamada oligarquia agrária acumularam uma grande quantidade de capital.
O fato de possuírem relações comerciais com o exterior promoveu o contato
com os diversos avanços tecnológicos da época, que aumentou a produção
agrícola e, por conseguinte, a quantidade de produtos exportados.
Entretanto, com as sucessivas crises no comércio exterior, sobretudo a partir
de 1929, o modelo de desenvolvimento econômico baseado na exportação de
produtos primários entrou em colapso. A partir da década de 1930, iniciou-se
nos países latino-americanos um processo de industrialização por substituição
de importações, como resposta à queda da capacidade de importar provocada
pela crise do comércio internacional (SANTOS, 2010).
A industrialização latino-americana e a substituição das importações foram
possíveis graças ao capital acumulado pela oligarquia agrária. O domínio da
classe proprietária de terras ou ligada a produção primária, iniciada no perí-
odo colonial e que se perpetuou até o início da industrialização, influenciou
no processo de urbanização. As propriedades voltadas à produção para a
exportação eram grandes latifúndios monocultores, o que promoveu a con-
centração industrial e urbana em espaços menores, refletindo-se no padrão
ocupacional urbano.
Com a industrialização e a urbanização, surge uma nova rede urbana,
cuja área de influência passa a ser a cidade industrial, e uma nova divisão do
trabalho, com o aparecimento da classe operária. A acumulação de capital
através da indústria e do comércio foi conferindo complexidade à urbaniza-
ção, ao mesmo tempo em que promoveu o aparecimento de novas formas de
acumulação, como a imobiliária e a financeira.

No século XIX, a cidade passou por uma grande metamorfose urbana, a partir do
momento em que passou a ser produzida e encarada como uma mercadoria. A partir
desse momento, ela se modernizou, e suas terras são fragmentadas em propriedades
e comercializadas em lotes com preços maiores ou menores, conforme os valores de
cada local.
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Dessa maneira, até a década de 1960 e 1970 as cidades latino-americanas


foram caracterizadas por uma macrocefalia urbana, devido à concentração
produtiva em determinados espaços geográficos, graças à consolidação da
industrialização. A expansão da industrialização em áreas concentradas e o
aquecimento do setor de serviços nas cidades — associada à mecanização do
campo, que expulsou muitos trabalhadores rurais, obrigando-os a migrarem
para as cidades — geraram um aumento populacional expressivo nesses
espaços, representando uma grande explosão demográfica.
A produção e o consumo de bens duráveis, associados ao processo de con-
centração de renda das classes sociais já existentes e à migração da população
rural para as cidades e entre cidades, resultaram em uma complexa estrutura
de classes nas cidades latino-americanas, reforçando a desigualdade social,
que também se refletiu na organização urbana.
A partir da década de 1980, começaram a ser trilhados os primeiros cami-
nhos rumo à metropolização dos grandes centros urbanos latino-americanos,
que em sua maioria estavam localizados nas áreas litorâneas. A expansão
urbana foi estimulada para o interior, o que promoveu o aumento da rede
urbana e a expansão das pequenas cidades, conferindo-lhes importância ao
longo do tempo (SANTOS, 2008).
O crescimento urbano da América Latina foi condicionado pelas neces-
sidades do capital, sendo iniciado pelas colônias de exploração. O estabele-
cimento das indústrias representou uma segunda etapa de urbanização, pois
além de conferir um dinamismo à economia, também atraiu diversos fluxos
populacionais para os centros urbanos.
O aumento da população nos centros urbanos, provocado pela atração da
indústria e associado à especulação imobiliária, promoveu o crescimento das
cidades para a periferia dos centros urbanos, conferindo uma organização
espacial característica da urbanização latino-americana.

2 Organização espacial da América Latina


A América Latina nasceu devido à expansão das políticas mercantilistas dos
países europeus, que, em busca de novos territórios, lançaram a exploração
marítima. Apesar de ser um processo quase único, a colonização dos países
latino-americanos apresenta uma série de peculiaridades e variáveis, que se
refletiram na forma como o espaço geográfico foi ocupado.
Apesar das características que distinguem a forma de ocupação do espaço, a
urbanização latino-americana apresenta diversas similaridades, especialmente
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com relação à concentração espacial, às desigualdades sociais, à segregação


socioespacial e à polarização regional.
A organização das cidades latino-americanas foi condicionada, inicial-
mente, pelo próprio estabelecimento das colônias de exploração. Os coloniza-
dores instalaram as primeiras cidades coloniais no litoral, com o objetivo de
ocupação da costa para proteção e também para a concentração e exportação
dos produtos obtidos. Podemos dizer, portanto, que o modelo inicial de ur-
banização implantando na América Latina, a partir do século XV, foi o de
cidade-suporte, para o desenvolvimento de centros polarizadores e receptores
de mercadorias do interior das colônias (SANTOS, 2008).

Para se aprofundar mais no colonialismo da América Latina, assista à entrevista dis-


ponível no link a seguir, produzida pelo Instituto de Estudos Latino-Americano da
Universidade Federal de Santa Catarina, e amplie os seus conhecimentos.

https://qrgo.page.link/uJX8b

A urbanização das metrópoles colonizadoras e o avanço da industrializa-


ção europeia trouxe a necessidade de obtenção de mais produtos primários e
também de expansão do mercado consumidor dos produtos manufaturados.
Com isso, houve a extensão da urbanização às colônias latino-americanas,
com a ampliação da ocupação das periferias dos centros coloniais.
A crise nos mercados internacionais em 1929 obrigou os países latino-
-americanos a iniciarem a industrialização e a transformação das cidades
coloniais em cidades industriais. Como a crise atingiu os setores agrícolas,
muitas pessoas que trabalhavam nas áreas rurais migraram para as cidades
em busca de empregos nas indústrias, aumentando a população urbana e
expandindo os limites das cidades.
A partir da década de 1930, as cidades industriais passaram a comandar os
processos de urbanização tanto na cidade quanto no seu entorno. Por se tratar
de um polo centralizador de bens e serviços, os núcleos urbanos localizados
nos limites das cidades industriais também começaram a se expandir.
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A organização das cidades latino-americanas em metrópoles pode ser


observada a partir da década de 1970. Com a expansão da indústria e dos
centros polarizadores, a urbanização pode se dispersar pelo território e pelas
regiões em torno dos centros, originando outras aglomerações urbanas, que
com o tempo se unificaram em um grande centro, a chamada metrópole
(SANTOS, 2009).
As metrópoles latino-americanas acompanharam a urbanização dos tempos
coloniais, isto é, os principais espaços metropolitanos permaneceram no litoral.
A localização no litoral foi de grande importância para o desenvolvimento
das cidades, pois toda rede de transporte de mercadorias convergia para esses
centros, aumentando sua relevância e influenciando na hierarquia urbana.

A importância da localização no litoral e o modo como a dinâmica imposta no período


colonial confere relevância à hierarquia urbana podem ser exemplificados pela cidade
de Guayaquil, no Equador (Figura 2). Devido a essas variáveis, tal cidade, localizada
em uma zona portuária, possui uma população urbana e metropolitana maior do que
a cidade de Quito, capital do Equador. Da mesma forma, as cidades de São Paulo e
Rio de Janeiro apresentam um maior grau de influência do que a cidade de Brasília,
capital do Brasil.

Figura 2. A cidade de Guayaquil, no Equador, que vivenciou um importante processo de


urbanização em decorrência da sua localização no litoral, sendo um polo centralizador na
época colonial.
Fonte: Jess Kraft/Shutterstock.com.
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Toda a organização territorial das cidades latino-americanas, apesar da


desorganização e da desigualdade das formas de uso do espaço geográfico,
não foi concebida de forma aleatória, sendo elaborada a partir de interesses
econômicos e políticos. A concentração metropolitana e a expansão dos centros
metropolitanos na América Latina favoreceram a circulação, de forma mais
simples e ampliada, dos capitais gerados pela iniciativa privada. Além disso,
a forma como as metrópoles foram organizadas permite uma rápida ativação
de novos mercados.
O crescimento das cidades promoveu uma diminuição das barreiras físicas,
reduzindo os custos operacionais da distribuição de bens e serviços, além de
acelerar os processos produtivos, aumentando a produtividade.

O crescimento das metrópoles latino-americanas em um padrão macroencefálico criou


as chamadas economias de aglomeração. Devido a essas características, tais cidades
eram responsáveis por determinar a localização das empresas em áreas densamente
povoadas, estimulando ainda mais o crescimento econômico.

As grandes aglomerações urbanas seguiram e ainda seguem como núcleos


urbanos centrais de grande relevância para o crescimento econômico dos países
latino-americanos. Entretanto, a organização espacial da América Latina tem
sofrido grandes modificações nas últimas décadas, especialmente no grau de
importância econômica de grandes cidades.
As grandes cidades tem deixado de ser competitivas, especialmente com
relação a algumas vantagens que as tornaram atrativas, como a mobilidade,
os custos de mão-de-obra, de infraestrutura, entre outros. Dessa forma, as
grandes metrópoles tem apresentado uma diminuição na produção de riquezas.
Contudo, é importante salientar que, apesar da diminuição da participação
na produção de riquezas observada nas grandes metrópoles, essas cidades não
perderam sua relevância e sua relação de poder com os outros centros urbanos,
exercendo ainda o seu papel central dentro de suas redes urbanas.
Por outro lado, as cidades médias e os novos polos econômicos urbanos
passaram a apresentar uma participação destacada na produção de riquezas e no
dinamismo econômico das cidades latino-americanas. Além disso, essas cidades
se tornaram novos polos de atração demográfica e de investimentos diversos.
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O fenômeno das cidades médias também pode ser considerado uma con-
sequência da metropolização, pois essas cidades são aglomerações urbanas
que surgiram em decorrência da expansão das metrópoles. Mediante a oferta
de serviços para as metrópoles, as cidades médias ganharam importância e
relevância, alterando a organização espacial e também a hierarquia urbana
(SANTOS, 2008).

Para entender o fenômeno das cidades médias, assista à entrevista disponível no link
a seguir, com o professor Oswaldo Bueno Amorim-Filho, da PUCMINAS.

https://qrgo.page.link/8EPSk

A nova organização espacial das cidades também modificou as formas de


ocupação do espaço geográfico pelas atividades econômicas. Durante décadas,
as indústrias se instalaram no núcleo dos centros urbanos. Nos dias atuais, as
indústrias têm se instalado nas bordas das metrópoles, em distritos industriais,
que são áreas do espaço geográfico que passaram a ser especializadas.
Apesar da instalação das indústrias ter promovido um importante desen-
volvimento urbano, as taxas de industrialização das cidades latino-americanas
são baixas quando comparadas às taxas europeias e americanas. Além disso, as
cidades latino-americanas caracterizam-se por apresentar, em suas periferias,
as favelas, que são o reflexo das desigualdades sociais.
O modo como as cidades latino-americanas foram concebidas e construídas
trouxe, no decorrer das décadas, uma série de problemas e consequências
que passaram a atingir as diversas classes sociais que compunham os centros
urbanos.

3 Crise urbana da América Latina


O processo de urbanização da América Latina foi marcado por diversos de-
sequilíbrios, que tiveram como mola propulsora o próprio sistema econômico
aqui implantado, bem como todo o processo iniciado na época colonial, quando
os diversos países latino-americanos eram colônias de exploração.
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A industrialização tardia dos países latino-americanos, impulsionada pela


crise de 1929 e pela substituição de importações, foi consolidada por volta da
década de 1970. Apesar da consolidação, a condição de países subdesenvolvidos
não foi superada, mesmo com o dinamismo econômico e o estabelecimento
de redes urbanas (SANTOS, 2010).

No resumo de congresso disponível no link a seguir, é discutida a industrialização


tardia do México, que pode ajudá-lo a entender as fases desse período na América
Latina.

https://qrgo.page.link/w4zAW

A própria escolha pela substituição de importações, com a implantação


de fábricas de bens de consumo duráveis, contribuiu para a criação de uma
complexa estrutura de classes sociais. O estilo de crescimento econômico
baseado em bens duráveis exigiu que a concentração de renda e o estímulo
ao consumo se voltassem para as classes sociais mais altas, notadamente
A e B. Isso provocou um grande abismo social entre as camadas mais altas e
mais baixas da estrutura social.
A distância de renda entre as classes promoveu uma acentuação das hete-
rogeneidades regionais, notadamente entre centro e periferia. As diferenças
entre centro e periferia decorrem da concentração do processo de acumulação
nos centros urbanos, que passam a acontecer em níveis cada vez mais altos e
complexos, como o financeiro, industrial e comercial, exigindo menos mão-
-de-obra e trabalhadores cada vez mais qualificados.
Hoje em dia, é notável a maneira como a acumulação de capitais, os custos
elevados e o nível exigido para permanecer nos grandes centros urbanos,
além da consolidação da sociedade de consumo nesses locais, promoveu uma
segregação espacial urbana (Figura 3).
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Figura 3. A segregação especial da cidade do Rio de Janeiro, onde é possível notar a favela
à margem do centro urbano principal.
Fonte: Donatas Dabravolskas/Shutterstock.com.

Todo o funcionamento das cidades latino-americanas, especialmente os


grandes centros, é favorecido pelo acesso que as pessoas têm aos bens de
consumo e aos bens de produção. Dessa forma, a cidade passou a privilegiar os
indivíduos que tinham condições de adquirir esses bens, colocando à margem
do centro urbano aqueles que não tinham tal acesso.

A concepção dos centros urbanos privilegia o deslocamento com veículos próprios em


detrimento do transporte coletivo, incentivando o consumo por aqueles que podem
pagar pelo bem de um objeto durável. Os demais, devido à baixa qualidade do serviço
de transporte público, optam por não trabalhar ou se deslocar para os grandes centros
urbanos, ficando estes locais disponíveis para a utilização por quem pode pagar.
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Dessa forma, os meios de transporte público, assim como a habitação,


expressam as contradições do sistema capitalista, já que são tratados como
bens de consumo, tendo seu acesso garantido, na maioria das vezes, pelas vias
de mercado e não pelos direitos sociais. E é justamente a não observância dos
direitos sociais, desde os tempos coloniais, que promoveu e ainda promove a
crise urbana vivenciada pela América Latina nas últimas décadas.
As questões relacionadas à crise urbana estão associadas ao direito à cidade.
O crescimento das metrópoles e a formação da sociedade de consumo estão
baseados no consumo dos bens produzidos em massa por uma classe social
que não tem condições de usufruir dos bens produzidos. As infraestruturas são
construídas para serem consumidas pela sociedade de consumo, e as outras
classes sociais que não fazem parte dessa sociedade são relegadas à periferia
do sistema urbano, às margens dos grandes centros urbanos.
Nesse sentido, percebemos que os indivíduos que vivem na periferia das
cidades não sentem os benefícios da modernização e da expansão urbana dos
grandes centros, bem como de toda a infraestrutura construída e disponibi-
lizada para determinados grupos.
Muitos dos problemas relacionados à habitação urbana e à ocupação da
periferia de forma precária estão associados à explosão demográfica promovida
pela industrialização. No início do processo de urbanização, as cidades neces-
sitavam de trabalhadores para os parques industriais que estavam iniciando
suas atividades, bem como para atividades comerciais associadas. Entretanto,
a quantidade de pessoas que foram para as cidades em busca de oportunidades
foi muito maior do que a capacidade de suporte da indústria e do comércio
em oferecer emprego.
Como consequência, muitíssimas pessoas que não conseguiam sobreviver
de forma digna nas cidades foram obrigadas a ocuparem espaços de maneira
irregular e muitas vezes perigosos, como morros e encostas, na busca por
moradias mais baratas. Ao mesmo tempo, viver nas periferias das grandes
cidades garantiria a proximidade dos centros urbanos e a continuidade da luta
por melhores condições de vida.
A urbanização crescente não afeta somente os números populacionais, mas
também a organização e a função das cidades. As grandes cidades, especial-
mente as mais próximas da hierarquia urbana, como as metrópoles nacionais e
as cidades globais, são as mais afetadas, pois a quantidade e a complexidade dos
problemas sociais causados pelas desigualdades socioeconômicas aumentam
consideravelmente. De todo modo, a crise urbana também está relacionada
à falta de planejamento urbano e de políticas públicas por parte do Estado,
tanto para as áreas urbanas quanto para as áreas rurais.
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Com o declínio de muitas atividades agrícolas em pequenas propriedades, além da


mecanização das grandes propriedades rurais, houve um grande desemprego no
campo. Devido à falta de políticas públicas adequadas, os trabalhadores do campo
acabaram migrando para as cidades, no chamado êxodo rural, e com isso os problemas
urbanos foram potencializados.

Problemas associados a crise urbana


Os principais problemas associados à crise urbana são especulação imobiliária,
desemprego e subemprego, saneamento básico, mobilidade urbana e impactos
ambientais.

Especulação imobiliária

A especulação imobiliária consiste na compra ou na aquisição de imóveis


com finalidade de investimento, pela venda ou pelo aluguel, aguardando a
movimentação do mercado. A especulação imobiliária é considerada uma
forma negativa de atuação no espaço urbano, pois o comprador não irá utili-
zar o imóvel para morar. Quando ele é comprado por um investidor, ele não
permite que outras pessoas possam fazer a compra com o objetivo de moradia.
Em locais onde há grande procura por imóveis e pouca oferta, os preços
são elevados, conduzindo as pessoas com menor poder aquisitivo a buscar
outros locais para moradia. Essas pessoas são obrigadas a procurar moradia
em áreas menos valorizadas, mais distantes do centro e sem infraestrutura,
localizadas nas periferias. Esse processo é chamado de favelização.

Desemprego e subemprego

O desemprego é uma das causas mais graves dos problemas sociais, pois está
diretamente relacionado ao dinheiro, ou seja, interfere diretamente no padrão de
vida da população. O crescimento da população urbana não foi acompanhado
pela quantidade de vagas de trabalho disponibilizadas pelas indústrias e pelo
comércio. Além disso, a situação do desemprego tem piorado a cada ano, em
decorrência da informatização dos diversos setores da economia, extinguindo
muitas funções e, por conseguinte, vagas de trabalho.
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Além disso, há também as crises econômicas que diversas cidades latino-


-americanas tem atravessado nas últimas décadas, potencializando ainda mais
os efeitos da crise e do desemprego. Sem alternativa para o desempenho de
um trabalho formal, o subemprego tem crescido consideravelmente.
O subemprego é a prestação de serviços temporários e com salários ou
pagamentos mais baixos, constituindo-se uma forma de garantir a subsistência
de diversas famílias por meio de um trabalho informal, que pode ser prestado
para terceiros ou quando a pessoa desenvolve seu “próprio negócio”.

Saneamento básico

O saneamento básico é uma das infraestruturas urbanas mais importantes, e con-


siste em um conjunto de medidas básicas que visa a melhoria do ambiente urbano
e rural com a finalidade de prevenir doenças e melhorar a saúde da população.
As medidas relacionadas ao saneamento básico são abastecimento de
água potável, tratamento do esgoto urbano (doméstico e industrial) (Figura
4) e coleta e descarte adequado do lixo. Outras ações pertencentes ao campo
do saneamento básico são o controle de animais e insetos, o saneamento de
alimentos, de escolas e de áreas de lazer.

Figura 4. A falta de saneamento básico é um dos graves problemas relacionados à


urbanização.
Fonte: Ronaldo Almeida/Shutterstock.com.
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Violência urbana

A falta de oportunidades no mercado de trabalho, a ausência de infraestrutura


básica por parte do poder público, além da falta de políticas públicas para
as populações em situação de risco social, têm intensificado o problema da
violência urbana.
Muitas vezes, a criminalidade está associada a situações extremas como
fome, miséria e desemprego, especialmente em países subdesenvolvidos.
No caso da América Latina, a violência urbana é consequência de políticas
públicas ineficientes, que não conseguem resolver as situações de risco e os
problemas associados ao desenvolvimento socioeconômico dos cidadãos mais
pobres, além do acesso à direitos fundamentais e o direito à cidade.

Mobilidade urbana

A mobilidade urbana refere-se à facilidade de deslocamento das pessoas e


serviços com o objetivo de desenvolver as atividades socioeconômicas no
perímetro urbano de cidades, centros urbanos e regiões metropolitanas.
A ausência de planejamento urbano e de políticas públicas na concepção e
no crescimento das cidades ocasionou os problemas relacionados à mobilidade
urbana, que nos dias atuais vem se constituindo como um grande desafio para
as cidades de grande e médio portes.
As políticas relacionadas ao deslocamento urbano não priorizaram o
transporte público, incentivando a sociedade de consumo a adquirir meios
de transporte individuais, aumentando a quantidade de veículos na cidades e
prejudicando a eficiência da mobilidade urbana.

Impactos ambientais

O desenvolvimento urbano na América Latina, muitas vezes é responsável por


diversos problemas ambientais urbanos. Os problemas ambientais urbanos,
assim como os problemas urbanos, estão diretamente associados à falta de
políticas públicas que visem a preservação do meio ambiente, bem como de
fiscalização por parte de entidades públicas e privadas no que concerne à
natureza.
Os principais problemas urbanos que causam impactos ambientais são as
ocupações irregulares ou a favelização. A ocupação dessas áreas irregulares
ocasiona, em um primeiro momento, o desmatamento e a remoção de solo.
No momento da construção das casas, são realizadas intervenções, como a
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impermeabilização do solo. Quando chove, a água não tem como infiltrar no


solo, ganhando velocidade e escoando pela superfície, ocasionando proces-
sos erosivos. Esses processos podem desestabilizar as encostas e provocar
deslizamentos de terra.
A mesma situação acontece na ocupação de áreas próximas aos rios. No
período de estiagem, as casas são construídas em locais que fazem parte
do leito dos rios. Na época das cheias, as águas chegam até esses pontos e
inundam essas áreas.
A origem das enchentes também pode ser associada à poluição urbana e
às interseções urbanas, como a impermeabilização dos solos por meio das
construções e do asfalto. A água, que poderia infiltrar no solo, acaba escoando
e desaguando nos rios, acumulando mais água do que a calha dos rios poderia
suportar, ocorrendo o transbordamento e as enchentes.
Outros problemas associados à urbanização não planejada estão relacio-
nados ao clima local e regional, como as ilhas de calor. As ilhas de calor são
ocasionadas pela verticalização das cidades, que impede a circulação do ar
e, somada à remoção da vegetação, contribui para a concentração do calor.
Além das ilhas de calor, também há o fenômeno da inversão térmica, que
dificulta a dispersão dos poluentes emitidos pela ação humana. Em virtude
disso, os gases oriundos das atividades humanas permanecem sobre a superfície
das cidades, provocando doenças respiratórias e aumento das temperaturas.

SANTOS, M. Ensaios sobre a urbanização Latino-americana. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2010.
SANTOS, M. Manual de geografia urbana. 3. ed. São Paulo: Edusp, 2008.
SANTOS, M. Urbanização brasileira. São Paulo: Edusp, 2009.

Leituras recomendadas
CARLOS, A. F. A.; SANTOS, C. S.; ALVAREZ, I. P. (org.). Geografia urbana crítica: teoria e
método. São Paulo: Editora Contexto, 2018.
LEFEBVRE, H. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora Ufmg, 1999.
LEITE, C. Cidades sustentáveis, cidades inteligentes: desenvolvimento sustentável num
planeta urbano. Porto Alegre: Bookman, 2012.
A urbanização latino-americana 17

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