Você está na página 1de 16

Manaus da Bélle Époque: tensões entre culturas, ideais e espaços sociais.

PAULO MARREIRO DOS SANTOS JÚNIOR*.


A virada do século XIX para o XX apresentou-se para Manaus, capital do Amazonas, com
vigor, poder e espírito expansionista sem precedentes na história da cidade. A economia
gomífera semeou possibilidades de reconfigurações que deixaram suas marcas como signos
de um período. Signos esses filtrados pelas elites e idealizadores para a reestruturação da
cidade sob referenciais, em boa medida, europeus.
O período de remodelação de Manaus trouxe novos olhares sobre a cidade, uma redefinição
da identidade e representações diferenciadas dos outros espaços por parte de seus próprios
habitantes, especialmente suas autoridades e elites. A Belle Époque manauara passou a ser
representada por segmentos da sociedade local como a Manaus “moderna e civilizada”.
Mas, até que ponto os ideais em questão – como outros – influenciaram, foram influenciados
e reelaborados no cotidiano da cidade? Em que medidas segmentos sociais – especialmente
populares – vivenciaram esse processo sendo eles vistos como contrastantes do ufanismo de
uma cidade que se considerava moderna e civilizada, e quais os significados e efeitos de
normatizações que buscavam incutir ideais, como: modernidade e civilização, aos pobres
urbanos quando esses exteriorizavam práticas culturais diferenciadas das estabelecidas?
Para tanto, torna-se significativo iluminar o período áureo da borracha visto que foi a partir
desse momento que ideais como modernidade e civilidade passam a se tornar mais presentes
no vocabulário de autoridades, no senso das elites e autoridades locais e na percepção de seus
citadinos. Como também foi nesse mesmo período que hábitos e costumes populares
tornaram-se alvos mais intensos das desqualificações dessas elites e autoridades locais.
Foi na última década do século XIX, que grandes obras públicas foram erigidas, com a
implantação de medidas que eram consideradas civilizadoras e modernizantes. Nesse

*
Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas, Campus Presidente
Figueiredo. Doutor em História Social pela PUC/SP.
momento a sociedade local, ou as elites, projetam sobre a cidade uma representação da Belle
Époque, enaltecendo a cidade de forma ufanística, ficando conhecida como a “Paris das
Selvas” (DAOU, 1998: 173) e objetivando suas sincronias com o que era avaliado como
moderno e civilizado.
A capital crescia na virada dos séculos XIX e XX. A população de cerca de 29.000 habitantes
em 1872 passou para 61.000 em 1900. A agitação ligada à circulação de passageiros e de
mercadorias no porto evidenciava o seu dinamismo. Com a reestruturação urbana e com a
pujança da economia gomífera passaram a viver na capital não só as elites agro-exportadoras,
como também grandes negociantes, técnicos, profissionais diversos e uma gama de
trabalhadores que exerciam suas atividades na cidade que se expandia.
As transformações empreendidas no final do século XIX em Manaus objetivavam, além da
remodelação e ampliação dos espaços públicos e implantação de inovações na dinâmica do
espaço urbano, a consolidação de um outro tipo de sociabilidade, que estava identificada com
o padrão que estabelecia a “vida moderna” e cosmopolita, ou seja, o perfil dos habitantes da
cidade deveria estar condizente com uma nova urbanística da Bélle Époque.
Foi sob a ótica da construção de ideais que se buscou compreender o grau de relevância de
alguns signos da modernidade e civilidade manauaras e as tensas relações de sociabilidade na
permanência de hábitos e costumes populares nesses espaços.
Como signo de espaço moderno foi eleita a Avenida Eduardo Ribeiro, considerada “a coluna
dorsal da cidade moderna” (DAOU, 1998: 200). No inicio da República, Manaus não tinha
avenidas com a “monumentalidade” que exigia o modelo das ditas cidades modernas. Pelo
contrário, a maioria das ruas da cidade era irregular. As ruas principais eram estreitas,
onduladas e cortadas por igarapés. A avenida Eduardo Ribeiro foi erigida buscando a
concepção haussmanniana de cidade: largas avenidas, praças e serviços urbanos
(MESQUITA, 1999: 296). Pelo menos era a intenção que se predispunha o projeto.

IMAGEM I

Avenida Eduardo Ribeiro (Anuário de Manaós, 1910, Museu Amazônico)


A imagem da Av. Eduardo Ribeiro revela sua constituição larga, possibilitando a passagem de
trilhos de bondes. Nessa Avenida, estabeleceram-se vários estabelecimentos comerciais com o
que era considerado mais inovador e sofisticado. Foram estabelecidas também confeitarias,
lojas de vestuários da moda, restaurantes, bares direcionados às elites, Armazéns e Ferragens,
ateliês de modistas e de alfaiates, inúmeros hotéis e restaurantes “dos quais eram muito
espaçosos e montados com luxo verdadeiramente europeu” (MESQUITA, 1999: 298).
O largo calçamento era destinado não somente a ida e vinda de transeuntes, mas também para
passeios regulares, os bancos dispostos no calçamento e voltados para a Avenida exerciam a
função de contemplação do seu interior, a arborização do calçamento sugere uma tentativa de
adaptação do jardinamento da Avenida Liberdade em Lisboa, como indica o jornal A
Federação, em 17 de fevereiro de 1900. Esse jornal ressalta o embelezamento da cidade e os
melhoramentos feitos à Avenida com o ajardinamento, tornando-a a “rua mais pitoresca e
aprazível de todas as cidades do Brazil” (Jornal A Federação: 17/02/1900).
No espaço da Avenida, considerado moderno, territorialidades eram edificadas por segmentos
endinheirados pela economia gomífera. Os largos calçamentos eram passarelas para a
exteriorização de hábitos próprios das elites, práticas de um período em que estavam em
efervescência costumes afrancesados ou/e para “inglês ver”. Eram ambientes para encenações
da vida sob a égide da Avenida como cenário.
No entanto, o mesmo espaço de circulação e convivência das elites era também o de
movimento de populares, muitas vezes prestando serviços, trabalhando e morando
ocultamente ou de improviso (COSTA, 1997, p. 126), locus de tensões entre segmentos
sociais populares, elites e autoridades:
Na avenida Eduardo Ribeiro, hontem, às 6 horas da tarde, dois valientes fizeram
diabruras. Eram os incorregiveis José Domingos e Manoel Cerqueira de Carvalho
que foram por um agente conduzidos ao palácio de grades da rua Joaquim
Sarmento ( Jornal do Comércio do Amazonas: 29 de outubro de 1909).
A Av. Eduardo Ribeiro era também o espaço de lazer popular (em ambientes incrustados nos
meandros da Avenida) e não só das elites, mas também da mesma forma era área de passagem
de migrantes – nem sempre vistos com bons olhos – que entravam e saiam da capital, pois ela
era a ligação principal entre o centro da cidade e seu outro ícone de uma pretensa
modernidade: seu porto flutuante.
O porto de Manaus tinha importância significativa para a cidade, tornando-se um de seus
ícones. Do interior e de outros estados, os visitantes chegavam à cidade através do porto.
Também era o espaço do comércio regional gomífero, ficando conhecido como entreposto
comercial e primeira conexão de Manaus com o mundo. Foi objetivando atender a tais
funções e suas necessidades de expansão da economia da borracha que se fez necessário
incrementar a cidade com uma base portuária.
Além de um espaço funcional de carga e descarga, o porto passou a ser visto como símbolo
da concretização da modernidade e civilização, abrindo-se para o mundo.
Logo, Manaus exaltava-se pela sua trajetória rumo ao progresso, pois
(...) a magnitude das obras previstas para o porto de Manaus, constituía um
empreendimento extremamente caro e arrojado para os padrões da época. Seus dois
cais flutuantes – cuja tecnologia inglesa posta em prática anteriormente em Sidney
(Austrália) – domavam o grande rio, superando a dificuldade de ancoragem de
navios de grande calado, principalmente na época da vazante. Esta possibilidade de
tornar irrelevante para a atracação de grandes navios a variação anual das águas
do rio Negro, que em média ultrapassa a marca de 15 metros, foi sempre exaltada
como um grande feito tecnológico, emblema de um estado de progresso, onde a
civilização amesquinhava e anulava a força da natureza ( PINHEIRO, 1999: 41).
Ao chegar ao porto, o viajante percebia a ocidentalidade. As construções oferecidas, à
primeira vista, simbolizavam a civilização em meio a selva. A igreja da Matriz se destaca no
alto de uma colina, dominando a paisagem, um edifício de porte avantajado para a cidade.
IMAGEM II

Visão do Porto a partir de embarcação (PINHEIRO, 1999: 43).


Principalmente as elites e autoridades, enalteciam-se pela nova configuração da cidade e pela
vivência de um estilo de vida tido como refinado. Mas, em maior medida, orgulhavam-se de
seu porto, considerado moderno para os padrões portuários da época (PINHEIRO, 1999: 43), e
tendo no seu ancoradouro – de forma regular – navios estrangeiros com suas linhas para Nova
Iorque, Manchester, Havre ou Liverpool.
Assim, o porto passou a ser um dos espaços privilegiados da cidade no processo de
metamorfoseamento, servindo de ambiente para passeios dominicais das elites, como para
atender às necessidades práticas da cidade e do comércio gomífero.
Como um palco ornado para os espetáculos de novidades trazidas pela modernidade, o porto
atraiu visitação pública que ia contemplar vapores que chegavam do estrangeiro, sendo visto
como a porta de entrada de tudo que significava moderno, o desembarque dos vapores
representava a chegada de novas modas, hábitos, costumes, notícias, era a ponte de ligação
com o ocidente e com a europeização.
Porém, neste mesmo porto, havia a presença de segmentos que, para as elites e autoridades,
deveriam estar passíveis de normatização, principalmente em relação aos seus hábitos e
costumes considerados “rústicos e primitivos”. O porto foi o espaço não só do trânsito de
produtos, mas também de pessoas, ambiente que abrangia a dicotomia ordem/desordem, lugar
de presença popular, às vezes, vista como inoportuna ou mesmo perigosa.
O cosinheiro Manoel Severo Bomfim, numa irrefreável expansão da cachaça, que
havia ingerido, tentou hontem espancar a quantos transitavam pelo roadway da
Manáos harbour. Em tempo, porém, foi esse ferrabraz socorrido pelo agente
Medeiros, que por ali passava, e que o levou para a primeira delegacia, onde o
melro ficou detido. Outros dois de igual jaez do precedente também foram lhe fazer
companhia no xadrez da primeira, são elles os italianos Raphael Montezan e
Vicente Massaferro, desordeiros de marca (Jornal do Comércio do Amazonas: 27 de
agosto de 1908 ).

IMAGEM III

O Porto como espaço de lazer, 1920 (PINHEIRO, 1999: 47).

O comportamento dos “ferrabrazes”, apontado na crônica policial, destoava das posturas


exigidas em uma Manaus que pretendia estar na órbita das cidades modernas e civilizadas.
Qual o grau de desordem empreendido pelos acusados para que recebessem o estereotipo de
“desordeiros”? Práticas populares de sociabilidade que estavam fora dos padrões
estabelecidos de comportamento e relacionamento geravam representações e leituras
estereotipadas, sujeitando tais ações populares a penas ou sanções.
As praças remodeladas da cidade eram outros espaços que representavam, para segmentos
específicos, o pitoresco da vida moderna e civilizada na convivência das áreas centrais da
Manaus da Borracha. Tendo, nesses locais aprazíveis, o ambiente de encontro de famílias e
cidadãos que apreciavam “aos domingos, quintas-feiras e dias feriados, uma das magníficas
bandas do Regimento Militar do Estado executa, das 6 às 9 horas da noite, (...) escolhido
programa, que chama ao pequeno mas elegante jardinzinho grande concorrência de público”
(Jornal Álbum do Amazonas, 1902:57).
Porém, nem todos na cidade possuíam hábitos e satisfações semelhantes pelo viés
unilateralista das elites e autoridades. A Manaus da Borracha, como qualquer outra cidade, foi
um cenário de ações, que atingiam e modelavam o cotidiano. Os espaços da Manaus da
Borracha caracterizavam-se como um império fervilhante de signos e linguagens. Cada
ambiente possuía sua representação, visto de forma diferenciada por múltiplas culturas.
As praças, que para uns eram o ambiente propício para a apresentação e contemplação das
“magníficas bandas do Regimento Militar do Estado”, para outros eram espaços para
usufrutos diferenciados. Eram representações subjetivas gerando funcionalidades diversas:
O foguista Virgilio Gomes de Mattos, hontem as primeiras horas da noite, sendo
encontrado a dar escândalos com a mucama Adelaide Roza, n’um recanto das
proximidades da praça Tamandaré, foi ahi nesse idylio agarrado e conduzido com a
sua Eva para o xadrez da 1º delegacia onde ficaram detidos pelo inspector
Guaycurus ( Jornal do Comércio do Amazonas: 11 de agosto de 1908).
Para Virgilio e Adelaide Roza, a praça Tamandaré, ou pelo menos “n’um recanto das
proximidades da praça”, possuía uma função que não era compartilhada pelas autoridades.
As normas de sociabilidade criminalizavam práticas que eram plenamente corriqueiras para
maioria da população. No entanto, eram atitudes vistas como ofensa ao alheio, agressão à
moral e causando desconforto a grupos encastelados, detentores do poder de mando e de
sanção. Por isso, hábitos populares desqualificados como primitivos e rústicos.
Convencionou-se pelas elites que as praças centrais tinham funções de serem palcos para
elegantes passeios de final de tarde, apresentações nos coretos, lazer harmônico das famílias,
tudo em simetria comportamental com o espaço remodelado e “civilizado”.
Contudo, as praças centrais também eram utilizadas para outros fins. Sob preceitos populares,
praças eram também espaços para o ócio ou local de descanso no intervalo do trabalho. Eram
recorrentes as prisões por vadiagem, tendo como espaço de flagrante delito as praças.
Deve-se ressaltar que casos como vadiagem, desordem, ofensas à moral (por necessidades
fisiológicas) (Jornal do Comércio: 27 de maio de 1917 ) detinham mais prisões nas praças do
Comércio, dos Remédios, República, Tamandaré e Mercado, localizadas no centro de
Manaus. Essas praças eram próximas a postos de trabalho de carregadores, embarcadiços,
vendedores ambulantes, trabalhadores do mercado, do porto, em fim, concentrações de
segmentos populares.
Logo, as praças da Manaus da Borracha e seus usos, como outros espaços públicos, deveriam
estar em sincronia com o projeto normatizador de uma pretensa modernidade e civilidade.
O discurso higiênico-sanitarista foi um outro elemento que provocou choques entre as
culturas populares e os padrões de sociabilidade impostos pelas elites. A higienização do
espaço urbano esbarrou em alguns problemas relativos ao funcionamento da cidade. Manaus,
apesar de tentar recriar uma atmosfera europeizada, a estrutura de transporte de carga e de
passageiros era, em quase sua totalidade, de tipo carroçável, sustentado por tração animal.
Dessa forma, o acúmulo de dejetos de animais nas ruas associado ao mau cheiro peculiar e à
proliferação de insetos era algo dissonante com os ideais de modernidade e civilidade. Para
resolver essa questão, como também para o estabelecimento de transporte rápido entre os
espaços centrais e os arrabaldes, foi implantada em Manaus o serviço de viação urbana e
suburbana, os bondes elétricos da Manáos Railway Company (DIAS, 1988: 79-80 ).
Mesmo os bondes sendo outro símbolo da Bélle Époque manauara, na sua funcionalidade
cotidiana havia tensão, consequência também do agrupamento de categorias sociais e
culturais diversas.
Em 1894, os bondes foram instalados em Manaus. Ícone de “sofisticação”, os bondes serviam
às elites no trânsito ao Teatro Amazonas, ou em passeios dominicais até a igreja da Matriz
(DAOU, 1998: 202-203 ).
No entanto, os bondes não possuíam funções meramente diletantes, conduziam idas e vindas
para o trabalho, com a presença não só das elites, mas também de segmentos populares.
Como em outras figuras alegóricas da modernidade manauara, nos bondes havia padrões de
comportamento social, posturas, provocando contrariedades entre segmentos sociais.
A autoridade de permanência na 2º delegacia teve conhecimento do seguinte facto,
occorrido hontem, ás 5 horas da tarde: Viajava no bond n. 27 da linha de Flores o
individuo Jose de Lima que, embriagado dirigia palavras obscenas, não obstante
viajarem no mesmo carro diversas senhoras. O desabusado individuo, como fosse
reprehendido, dirigiu-se em phrases injuriosas aos conductores de chapas 11 e 29,
sendo necessário que estes usassem da força physica para fazer callar a Jose de
Lima que, para livrar-se do ensino que lhes dava os conductores, saltou do carro
com este em movimento, vindo a fazer um ligeiro ferimento na cabeça. Levado á
presença da autoridade na mesma delegacia, foi mandado recolher a Santa Casa de
Misericórdia, com a competente guia de indigência. Os conductores que se chamam
Francisco Ignácio e Manoel Rabello foram detidos para averiguações, sendo depois
postos em liberdade (Jornal do Comércio do Amazonas: 2 de maio de 1909 ).
A linha de Flores – equivalente à nota acima – era eminentemente popular, Flores era o mais
distante arrabalde da cidade. Essa linha tinha como característica ser formada por bondes de
carga, para deslocamento de mercadorias. Mas, também usado para transporte de passageiros.
Logo, pressupõe-se que tanto o acusado quanto a maioria dos demais usuários eram
populares, segmentos que talvez tinham nas “palavras obscenas” verbalizações com
diferentes concepções de moral.
Pressupõe-se que as “palavras obscenas” de José de Lima poderiam ser pouco ofensivas, ou
entendidas como agressão à moral, ou até mesmo representariam cenas corriqueiras. De
qualquer forma, provocaram tensões na ordem social imposta pelas autoridades.
O sanitarismo foi outro símbolo da Bélle Époque que provocou choques entre normatizações e
culturas populares. Normas que objetivavam a saúde pública. Mas, que resultaram na piora do
bem-estar de parte dos segmentos pobres da cidade.
A fiscalização denunciava e multava criatórios destinados à subsistência familiar em vários
pontos centrais da cidade, proibindo vacarias, chiqueiros e hortas no perímetro urbano. Com
tais proibições “em nome da saúde pública” os populares que outrora eram criadores e
detentores de todo processo de produção de alguns de seus alimentos mais elementares,
passaram a ter que comprá-los no Mercado Municipal, arriscando-se a toda sorte de
infestações microbianas.
Havia reclamações constantes da qualidade do peixe e da carne vendidos, como também das
hortaliças de má qualidade e infectadas pelo manuseio constante. Havia denúncias de má
conservação dos produtos, com riscos de doenças por contaminação. A imprensa e o Código
de Posturas de Manáos de 1910 (Art. 268, 275 ) exigiam qualidade dos produtos
comercializados, às vezes “com grande perigo para a saúde dos consumidores”.
Outro fator das culturas populares que passou a ser criminalizado em nome da moralidade
eram os banhos de rios. Como noticiado pelo jornal O Norte: Diário Matutino Independente,
denunciando a “prática que ofende a moral: homens e mulheres que tomam banho na Usina
Elétrica em franca promiscuidade com a reviverem toda a primitividade dos costumes
passados (...) de um certo tempo passou a ser visto como nocivo à moral vigente” (Jornal O
Norte: 4/11/1912).
Os banhos de rios faziam parte dos hábitos milenares das populações tradicionais amazônicas
e colaborava com a assepsia cotidiana de populares dos arrabaldes. Na proibição de alguns
hábitos populares, como os banhos de rio, houve uma queda no padrão sanitário de parte da
população local. Tudo em nome do progresso, da moral e dos bons costumes modernos.
O ideal proveniente da sociedade “moderna”, como se via a manauara, sugere a consolidação
de regras que eram dirigidas a toda a sociedade, simbolizando a força de um modo de vida. A
modernidade para a Manaus da Borracha emergiu com a pretensão de cisão com tudo que era
considerado desconecto das posturas e práticas eleitas como civilidade. Foi a procura pela
consistência de um discurso que objetivou projetar sobre a sociedade – principalmente
populares – o lapso com práticas de vida cotidiana consideradas pelas elites e autoridade
como incivilizadas, ao mesmo tempo “um questionamento contínuo das condições da
existência, tornando problemático seu próprio discurso não apenas ‘como ideias’, mas como
posição e status do lócus do enunciado social” (DAOU, 1998: 202-203 ).
Torna-se perceptível a reflexão posta acima quando se analisa Manaus através do Código de
Posturas do Município de 1910, no qual ficava proibido cobrir casas com palhas, por ser
“insalubre e feio” (DIAS, 1988: 67). Habitar em casas, nos moldes arquitetônicos modernos,
com separação de cômodos, obedecendo ao sanitarismo na periferia da cidade já era uma
imposição da vida moderna, onde antes existiam predominantemente taperas ou ocas.
O uso de roupas europeias ou “afrancesadas” era outra exigência da Bélle Époque, mostrando
o requinte de quem as usava. Roupas consideradas comuns ou de estética popular
comprovavam a “rudeza” e o “primitivismo” dos usuários, como talvez atestasse Albert
Frisch, com a foto de uma família tapuia moradora dos arrabaldes de Manaus em 1865.
A vestimenta representava uma das forças da modernidade sobre o hábito milenar do nu
ameríndio. A família fotografada estava ornada com roupas densas para o clima local,
significando ou uma adaptação a um costume historicamente construído, ou uma certa
aceitação da ocidentalidade por esta significar progresso, pois até as crianças se encontravam
vestidas com calças e blusas mangas longas. Alguns utensílios domésticos também
representavam ocidentalidade, como a cadeira e o tapete nos quais as mulheres estavam
sentadas. O formato em caixote da casa de taipa também era uma adaptação, contrariando o
formato circular das ocas. Porém, certamente, a foto de Frisch não desejava retratar a
ocidentalização, a modernidade ou o “progresso” material de habitantes de origem ameríndia.
IMAGEM IV

Família Tapuia à porta de sua casa numa rua de Manaus. Foto de Albert Frisch, 1864.
Fonte: MASCARENHAS, 1988.

Mas, a rusticidade da moradia, dos usos e costumes dos moradores dos arrabaldes de Manaus.
Até mesmo prisões de populares eram ocasionadas pelo uso de trajes considerados
inadequados pela perspectiva da moral, bons costumes e modernidade. Por estar
possivelmente despido da cintura para cima, prática necessária e utilizada por trabalhadores e
carregadores das feiras e mercados, foi o personagem abaixo recambiado à cadeia: “A
temperatura abafadiça de hontem, á tarde, actuou de tal maneira em Chrispim José do
Nascimento, que, á plena luz meridiana, na feira da Cachoeirinha, quis por em acção o velho
trajar do paraízo. Foi-lhe a fita estragada por um guarda, que o recambiou para o xadrez do
primeiro districto” (Jornal do Comércio: 20 de Outubro de 1917 ).
Nos demais espaços públicos, como: avenidas, ruas e praças, as categorias populares eram
passíveis de convenções sociais estabelecidas pelo poder. Por isso, práticas de futebol em
plena rua eram reprimidas, com risco de prisão:
(...) Pinheiro encontrou um velho amigo, que há tempos não via. Depois dos
amplexos do estylo, veio o indefectível convite para a bola. Annuencia da parte do
convidado e ell-o, horas depois do brodio, a querer fazer de athleta de feira pelas
ruas afora. Abecado por um guarda-civil, foi dormir no salão das muquiranas.
(Jornal do Comércio: 29 de julho de 1917 ).
Outros segmentos também utilizavam ruas e avenidas para a prática de danças em cordões,
para “partir lenha, cozinhar, assoalhar peixe, estender couros, lavar e corar roupa, ferrar
animaes” (proibições do Código de posturas do município de Manaus, 1910: Art. 144), sendo
muito recorrente ainda o trânsito de gado nas principais avenidas da cidade. Práticas como
essas eram condenadas pelo Código de Posturas, mas faziam parte das convenções populares,
atribuindo às ruas funções divergentes às convencionadas pelas autoridades e elites.
Outras práticas, como colher frutos das árvores das praças (Jornal do Comércio: 28 de
setembro de 1917), flertar, namorar, reunir-se em grupos eram tão condenadas quanto às já
citadas. As autoridades buscavam proteger as “boas famílias” da cidade do desconforto e da
sensação de agressão e de medo frente ao contato com práticas e segmentos populares
rotulados e condenados.
Por isso, a presença de qualquer pobre urbano nos espaços públicos, nos quais estivessem
concentradas elites, deveria ser vista como suspeita e – portanto – reprimida para que a
“ordem” não fosse melindrada, como no caso que segue.
Um individuo de nacionalidade extrangeira foi espancado, ante-hontem, em frente
ao café O Cometa, por pretender assistir ao espectaculo do theatrinho Gato
Malhado, trajando muito modestamente. O facto foi presidido por um agente de
policia alli de serviço, que conduziu, com uma praça, o pobre homem até a 2º
delegacia, depois de dar-lhe muitas bordoadas. (Jornal do Comércio: 22 de outubro
de 1910).
As elites gomíferas e autoridades públicas acreditavam piamente que a incorporação de ideais,
como os de modernidade e civilidade, trariam o futuro esperado, mesmo esse sendo
pretensamente unilateral. Sob tais aspectos pode-se perceber a anexação desses valores,
inicialmente pelas elites e depois objetivando estender à sociedade manauara por via de
Instituições e toda uma pedagogia elaborada em prol de inúmeros interesses e necessidades,
porque “as instituições modernas diferem de todas as formas anteriores de ordem social
quanto a seu dinamismo, ao grau em que interferem com hábitos e costumes tradicionais, e a
seu impacto global” (Jornal do Comércio: 22 de outubro de 1910 ). Essa interferência alterou
radicalmente a vida cotidiana, as culturas tradicionais e afetou hábitos e costumes dos
habitantes da cidade.
Para tais fins, ações de cunho repressivo ou depreciativas eram realizadas por fiscais de
órgãos públicos, escolas, polícia, imprensa, por vários organismos institucionais que
realizavam seus feitos objetivando um pretenso bem comum da sociedade.
O governador do estado, Antônio Clemente Ribeiro Bittencourt evidencia a necessidade da
educação formal para que a sociedade conhecesse a lei e a ela obedecesse: “Como poderá o
povo comprehender o espírito da lei se lhe falta a educação necessária para esse fim?”
(Relatório do Chefe de Repartição de Segurança Pública: 10 de julho de 1910 ).
Dessa feita, a escolaridade incentivada e depois obrigatória, a vigilância sobre os estudantes
fugitivos das escolas, a depreciação ao trabalho ambulante, a repressão às diversões
populares, a vigilância sobre esses mesmos populares, entre outras características do cotidiano
citadino da Manaus da Borracha, faziam parte de todo um processo de aprendizado
direcionado aos segmentos sociais vistos como dissonantes dos princípios de modernidade,
civilidade e progresso.
No que tange à disseminação de regras de conduta social a imprensa escrita influenciou na
aceitação de estilos de vida vistos como “modernos”. As mensagens que os jornais traziam,
principalmente nas colunas policiais, eram carregadas de subjetividade do redator que, em boa
medida, estavam antenadas com as das elites, convergentes com a linha editorial do periódico.
A reprodutibilidade de mensagens estereotipadas e depreciativas formavam opiniões e
causavam, em boa parte da sociedade, uma predisposição a aceitar e reproduzir posturas,
formas de comportamento, enfim, padrões sociais, como evidencia as crônicas policiais.
Do recôndito do sertão cearense, atirado á proa de um cargueiro, aportou ás
regiões amazônicas o Jose Caninana. Não sendo propriamente um finório, o
Caninana também não era lá para que se diga nenhum trouxa. Passaram-se os
mezes, e tendo experimentado mil diversos meios de cavar a vida, não via
desapparecer-lhe da pessoa aquelle aspecto caipira com que desembarcára na terra
das farturas e das piracemas. Parecia-lhe mesmo que o actuara a influencia
maleficiosa de uma jettatura de que ouvira falar aos periódicos locaes. (…) (Jornal
do Comercio do Amazonas: 30/09/1917) .
Com expressões como: “caipira, influência maleficiosa e jettatura” entre outras
cotidianamente registradas nos “periódicos locaes” foi sendo criada uma mentalidade
hegemônica que se contrapunha a personagens enquadrados no noticiário. Quais seriam então
os padrões socialmente aceitos? As senhoras de fina estirpe, com seus vestidos longos e
ornamentados e seus maridos acompanhantes, ilustrados com seu fraque e cartola, ou seja,
todos aqueles que transvertessem uma conduta social a lá europeia e moderna, dando uma
aparente ideia de civilização.
Quanto aos jecas (de jettatura), deveriam ser levados a “esquecer” seus velhos hábitos,
incorporando as pedagogias da urbanidade. O ser social deveria identificar-se a um padrão. A
“lembrança” e a prática de hábitos e costumes considerados rudes representavam a quebra da
unidade social e comportamental pretendida, inibindo sentimentos de pertencimento
(ARANTES, 2000: 132 ).
Dessa forma, as crônicas policiais dos jornais pesquisados impeliram muitos de seus leitores a
criminalizações de práticas que até então faziam parte da cultura de habitantes da cidade. Não
que os valores difundidos nas matérias jornalísticas tenham sido disseminados de forma
deliberada, objetivando alcançar um fim. Mas, deve-se ressaltar que o corpo redacional dos
Jornais, principalmente das crônicas policiais, estava inserido em um contexto de cidade que
censurava personagens e ações populares que se enquadravam no perfil de José Caninana.
Até mesmo o “sentido pecuniário”, sendo este legitimado pelos ideais do capital, provocaram
imposições de conduta e estilos de vida. Em Manaus, populares provenientes de comunidades
indígenas, caboclos e ribeirinhos tiveram seus elementos culturais depreciados, com seus
modos tradicionais de vida desmotivados. A pobreza passou a ser vista como sinônimo de
fracasso, de incapacidade e de preguiça. Daí, a economia de subsistência, a coleta, o
extrativismo e outros meios considerados rudimentares foram desencorajados, considerando o
sistema de vida fundamentado no capital.
As categorias populares na Manaus da Borracha foram envolvidas e envolveram-se em um
processo de circularidades sobre a dinâmica da cidade, invalidando ideias fixas ou polarizadas
sobre as convenções sociais impostas. Esses variados segmentos produziram, no dia-a-dia na
cidade, adaptações que foram hora gradativas, hora abruptas, acomodações, estranhamentos,
sentimentos de pertencimento, aversão às regras, assimilações, indiferenças, mudanças. Às
vezes eram passivos, ativos, resistentes, resignados, aceitando ou agindo contra por
conveniência.
Quando se cruzam estudos sobre modernidade com o processo histórico que caracterizou a
Manaus da Borracha, percebe-se que houve uma “inserção compulsória na Belle Époque”
(BRETAS, 1997: 31 ), na qual o projeto de ordem social das elites, apoiadas pelas autoridades
da Primeira República, levaram a cabo objetivos de repressão e/ou vigilância social,
mecanismos fundamentais para a construção de sociedades ditas ordeiras, modernas,
civilizadas e educadas para o progresso comum, produzindo novas dimensões culturais,
valores, padrões e referenciais, disciplinando posturas e marginalizando segmentos sociais
considerados perigosos.
Houve uma série de outros espaços, objetos materiais, normatizações e cotidianos históricos
que representavam a materialidade das tensões sociais vividas entre culturas e segmentos da
cidade, que não puderam ser iluminados neste artigo. Era a busca de concretização de ideais,
como civilidade e modernidade, que motivavam tensões quando se chocavam com práticas
das culturas populares. Era a busca por evidenciar nestas paragens algo além da “dádiva da
natureza”. Um dos principais objetivos estava no “movimento dos espíritos que aproximava
da civilização ocidental estes povos distantes” (DAOU, 1998: 206 ).
A ocidentalização trouxe possibilidades inéditas: o remodelamento da paisagem, o vapor, a
ferrovia, a urbanidade, a ciência aliada à saúde, entre outros. Contudo, também trouxe
tentativas de impor culturas e experiências conforme os padrões estabelecidos pelas elites,
tudo em nome do progresso inexorável.
Avaliar os choques entre as convenções sociais estabelecidas pelas elites e as práticas
culturais populares, como o alargamento das ruas, a retirada das moradias palustres,
proibições de hábitos e costumes pelo Código de Postura (1890; 1910), a fiscalização
sanitarista nas casas, a imposição no uso da água encanada, a proibição da criação de víveres,
hortifrutigranjeiros e os banhos de rio no perímetro urbano, é compreender os múltiplos
sentidos da cidade. Foram normas, convenções e modismo estabelecidos pelas elites que não
foram totalmente incorporados por parcelas da sociedade, aceito em partes, com resignação
ou tratado com indiferença e até com resistências, normatizações que marginalizavam hábitos
e costumes constituídos, relegando tais práticas populares à “coisa menor” e/ou a
criminalizações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAÚJO, André Vidal de. Sociologia de Manaus: aspectos de sua aculturação. Manaus:
Edições Fundação Cultural do Amazonas, 1974.
ARANTES, Antônio Augusto. Paisagens Paulistanas. Campinas, SP UNICAMP. São Paulo.
Imprensa Oficial 2000.
CORRÊA, Luiz Miranda. O Nascimento de uma Cidade. (Manaus, 1890 a 1900). Manaus:
Edições Governo do Estado do Am. 1966.
Código de Postura do Município de Manaus, 1910: Biblioteca Pública do Estado do
Amazonas.
COSTA, Francisca Deusa Sena. Quando Viver Ameaça a Ordem Urbana. Dissertação de
Mestrado em História. São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1998.
DAOU, Ana Maira Lima. A Cidade, o Teatro e o “paiz das seringueiras”: práticas e
representações da sociedade amazonense na virada do século XIX. Tese de Doutorado em
Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1998.
DIAS, Ednéa Mascarenhas. A Ilusão do Fausto: Manaus, 1890-1910. Dissertação de
Mestrado em História. São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1988.
GIDDENS, Anthony 1938. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
Jornal A Federação: Aquivo do Centro dos Povos da Amazônia. Manaus-AM.
Jornal Álbum do Amazonas: Arquivo do Centro dos Povos da Amazônia. Manaus-AM.
Jornal O Norte: Acervo Arquivístico do Centro dos Povos da Amazônia. Manaus – Amazonas.
Jornal do Comércio do Amazonas: Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas.
MESQUITA, Otoni Moreira de. Manaus Historia e Arquitetura – 1852-1910. editora Valer,
1999.
PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. A Cidade Sobre os Ombros: trabalho e conflito no porto de
Manaus (1899-1925). Manaus, Edua, 1999.
Relatório do Chefe de Repartição de Segurança Pública. In: Mensagem do Governador do
Estado Cel. Antônio Clemente Ribeiro Bittencourt. 10 de julho de 1910, p. 81. Arquivo
Público do Estado do Amazonas.

Você também pode gostar