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Trata-se da monografia apresentada na conclusão de minha graduação em Filosofia pela Universidade Federal
Fluminense. Embora ainda não contenha uma ficha catalográfica, tomo como importante citá-la para apresentar
a noção de continuidade que este pré-projeto possui, quando posto em comparação com a investigação
anteriormente realizada.
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Em Tratado da natureza humana, Hume instaura uma questão que perdura até os dias de hoje, pela qual se
questiona esta possibilidade, embora constatada a realização de tal derivação ao longo da publicação de diversas
obras, componentes da vertente filosófica que se debruça sobre a prescrição de deveres. Veja em Hume, 1739,
p.509.
7
Veja Searle, 1964, pp. 52-58.
Como a primeira questão no interior desta sobreposição, torna-se possível notar-se um
caráter de homogeneidade entre as duas estruturas de moralidade, poética e filosófica,
responsável por justificar a necessidade de estas ocuparem um mesmo espaço. Em outros
termos, no caráter de homogeneidade exposto pela argumentação dos filósofos, repousa a
afirmação de que a atividade a ser desempenhada por ambos os grupos seria, essencialmente,
a mesma. Dito ainda de um terceiro modo, trata-se da afirmação de que ambas as estruturas
lidam com um mesmo objeto; pretendem regular um mesmo objeto: o ordenamento da ação
individual ou coletiva do homem grego.
A segunda questão a ser analisada diz respeito ao caráter propriamente heterogêneo de
tais estruturas, sendo este responsável por dar razão à impossibilidade destas ocuparem,
simultaneamente, o mesmo espaço. Tal heterogeneidade situar-se-ia como razão pela qual se
justifica a possibilidade, e até mesmo necessidade, da substituição da estrutura que se
encontra vigente no momento em que irrompe a que ameaça tomar-lhe a posição. E ainda,
como seu aspecto mais importante, poder-se-ia dizer que, no caráter propriamente
substitutivo desta argumentação, repousa a afirmação de que ambas as estruturas não
poderiam complementar-se. Sendo fechadas, perfeitas em si mesmas, negando uma à outra,
apresentar-se-iam como necessariamente excludentes.
Por fim, como a terceira questão a ser analisada, produto das questões anteriormente
dispostas, encontram-se as razões pelas quais se fundamenta a necessidade desta segunda
sobrepor-se à primeira8. Em outros termos, as razões pelas quais se torna necessário à
pedagogia dos poetas ceder o espaço a esta pedagogia dos filósofos. E ainda, dito de outro
modo, as razões pelas quais a estrutura filosófica se apresentaria como superior ou, ao menos,
mais adequada para ocupar a posição de referência às ações do homem grego.
Inicialmente, no que diz respeito à existência deste caráter de homogeneidade entre as
estruturas dispostas, podemos afirmar que, embora exista uma clara diferença na maneira pela
qual se educa, nos objetivos de tal educação e nos alicerces que sustentam suas autoridades,
têm-se em vista que ambas se propõem legislar sobre o mesmo objeto9. Esta consideração,
8
Simultaneamente, serão apresentadas algumas das razões pelas quais se aponta para filosofia, por parte dos
poetas, como inadequada para ocupar a posição que pretende. Entretanto, torna-se lícita a rememoração pela
qual identificamos a condenação de alguns dos pensadores que se punham contra o modelo pedagógico vigente,
como o caso de Sócrates, de Protágoras etc.
9
Afinal, segundo a estrutura apresentada pelo conceito de instituição, que parece se identificar com
determinadas estruturas da cultura grega, um conjunto de regras só pode legislar segundo um único objeto, não
sendo seu papel atuar na regulação do que não lhe compete. Por exemplo, as regras da economia doméstica não
poderiam legislar sobre a economia da pólis que, por sua vez, possuiria suas próprias regras. Do mesmo modo,
as regras que legislavam sobre a economia da pólis não teriam força nem validade para servir de princípio
regulador da economia doméstica.
dada a condição histórica em que se encontram ambos os sistemas, alude à forte aliança entre
a pedagogia e a política. À luz destas questões, nos deparamos com um dos sentidos do termo
arché que, traduzido como princípio, expressa justamente a estrutura reguladora e
mantenedora das formas de exercício de um governo.
Deste modo, encontra-se uma certa clareza na afirmação de que Platão, ou qualquer
outro filósofo que se ponha frente à pedagogia poética, não se interessa em modificar a
coesão entre a pedagogia e a política, mas no conteúdo que se transmite no interior desta
relação. Trata-se aqui da relação inalienável entre a vida humana e a vida política e,
novamente, a depender da educação; do modelo utilizado para educar todo um corpo social,
modifica-se também a estrutura política da cidade na qual tais indivíduos se encontram.
Por fim, nota-se a permanência das quatro virtudes, para além da modificação da
substituição do nome da deusa pelo termo que se refere a um conceito,10 responsáveis por
guiar um indivíduo pelo caminho mais adequado, recorrentemente utilizadas nas obras
platônica quanto poética.
Neste sentido, podemos observar que, ao ser tomada como um princípio, a poesia
grega atua de modo a tornar possível toda uma cultura através de sua prática pedagógica. Esta
se apresenta de modo a delimitar, através da exaltação, aquilo que deve ser tomado como
exemplo de virtude e, portanto, digno de ser mimetizado, copiado, utilizado como espelho da
ação do indivíduo. Assim, torna-se possível identificar o fato de que a educação se daria
através desta idealização do que deveria ser mimetizado.
Um nítido exemplo deste modo de operar encontra-se no percurso de Aquiles, o qual
prefere ter uma vida curta, e alcançar a glória (kléos), ao invés de ter uma vida longa, repleta
de prazeres estáveis no envelhecimento11. Neste sentido, pode-se observar também, como
aponta W. Jaeger, em sua Paideia, que “as últimas fronteiras da ética são (...) as leis do ser”12,
com isso, quer dizer que Homero não faz uma diferenciação entre as leis inerentes à própria
vida e as leis morais. Deste modo, trata de apresentar as paixões como a força que move o
indivíduo e, nelas, repousariam as leis da moral; do modo de ação que deve ser espelhado.
Por outro lado, “a filosofia, desde a sua origem, pretende estabelecer uma crise e
portanto uma crítica dessa pedagogia, tomando o seu posto na função e poder de educar”13.
Desde Xenófanes, passando por Heráclito e se desenvolvendo de maneira mais evidente em
10
Trata-se aqui da substituição, encontrada na obra platônica que vai de Diké, representando a deusa da justiça
na obra dos poetas, para Dikaiosýne, o conceito laicizado de justiça.
11
Trata-se da passagem na qual Aquiles, ao medir-se com Agamemnon, apresenta os dois possíveis destinos que
lhe aguardam, como fora previsto por sua mãe. Veja em Ilíada, Canto IX, 410-416.
12
Jaeger, 2013, p.77.
13
Costa, 2022, p.4
Platão — dada a escassez do material bibliográfico que lhe antecede —, a filosofia se
apresenta de modo a constituir contundentes críticas à pedagogia poética14. Em Xenófanes,
inicialmente, apresenta-se o problema moral. Trata-se de uma espécie de indignidade dos
exemplos postos por Homero, “Homero como Hesíodo atribuíram aos deuses tudo/ quanto
entre os homens é infâmia e vergonha/ roubar, raptar e enganar mutuamente”15.
Tal desenvolvimento é herdado por Heráclito que, em dois de seus fragmentos, põe-se
frente à educação realizada por Homero, encarnado pelos poetas nos concursos. Inicialmente,
afirma que “Esse Homero merece ser expulso dos concursos e bastonado”16, o que
demonstraria, segundo a exposição de Alexandre Costa em seu artigo Homero e o princípio
da pedagogia, “o ‘Homero’ que poderia ser bastonado por Heráclito, por exemplo, se refere à
forma como Homero ali se fazia presente: no corpo, na voz e na arte de um aedo ou de um
rapsodo que cantassem seus poemas nos concursos e festividades públicas”17. Em seguida,
encontra-se o fragmento B5618, através da anedota dos piolhos, Heráclito tem como objetivo
minar o caráter epistêmico da figura homérica que, segundo a posição que ocupa, não seria
dotado de tal caráter. Trata-se, no interior deste fragmento de caráter anedótico, da
descredibilização daquele que, mesmo estando na posição de pedagogo da Grécia, ainda seria
passível de ser enganado por uma brincadeira de crianças.
Por fim, ainda no que diz respeito à parte que concerne à filosofia, encontra-se a obra
platônica, mais especificamente no Livro X da República. Existiriam, fundamentalmente,
duas razões pelas quais este se põe de maneira contrária à pedagogia poética: em primeiro
lugar, trata-se do fato pelo qual considera que “Homero é o mestre e o senhor da tragédia”. É
contra a poesia trágica que dirige a força principal do ataque, pois é nela que se manifesta
mais vigoroso o elemento 'patético' impulsionador da ação que a poesia exerce sobre a
alma.”19 Com isso, questiona-se o fato de que a poesia não dialoga com a razão, mas sim com
as paixões, dado o fato de que esta não seria uma boa influência, dado que esta desperta os
piores elementos humanos, o que seria problemático para a constituição de seu estado. Por
14
Para complementar a imagem que queremos delimitar, recorremos também à apresentação do conceito de
paideia, realizada por P. Hadot em seu livro “O que é filosofia antiga?”, na qual, ao falar de uma filosofia antes
da filosofia, o autor aponta para as “práticas e teorias que se reportam a uma exigência fundamental da
mentalidade grega, o desejo de formar e de educar. Hadot, 2014, p.30.
15
Xenófanes, B11.
16
Heráclito, B42.
17
Costa, 2021, p.8.
18
“O fragmento, encontrado na obra heraclítica apresenta a seguinte questão: “Ludibriados são os homens no
conhecimento das coisas aparentes, à semelhança de Homero, que foi o mais sábio de todos os helenos. Pois
ludibriaram-no meninos, a matar piolhos, falando-lhe: “quantas coisas vimos e catamos, largamo-nas; quantas
não vimos nem pegamos, levamo-nas.”
19
Jaeger, 2013, p 989. Trata-se aqui da seleção de alguns fragmentos do livro X da República de Platão, em
vista de evidenciar essa visão platônica do poeta.
outro lado, como proposta da filosofia ante este modelo pedagógico poético, apresenta-se a
ideia de que o homem superior deveria dominar seus instintos através de uma mentalidade
que põe em evidência a razão, em detrimento do controle outrora exercido pelas paixões.
Por outro lado, como uma contrapartida dos poetas, frente à posição filosófica,
apresenta-se o desenvolvimento da comédia de Aristófanes denominada As nuvens. Nela,
encontramos alguns dos elementos pelos quais o poeta se põe a criticar a pedagogia nascente.
Trata-se da história de Estrepsíades que, submerso em dívidas e temendo ir ao tribunal,
procura por Sócrates e os filósofos para que estes ensinem a arte dos dois discursos, para que,
com o auxílio do segundo, possa subverter quaisquer noções de justiça em seu favor. Trata-se
aqui, visto o nascimento de caráter inalienavelmente epistemológico da filosofia, de realizar
um contra-ataque da pedagogia poética, direcionada a determinadas questões desta pedagogia
nascente; a pedagogia filosófica.
No decorrer da apresentação, nota-se o teor político da obra que, por meio do recurso
ao ridículo, tece duras críticas ao modelo pedagógico dos filósofos. A primeira destas críticas
se apresenta através da descrença de Sócrates pelos deuses, substituindo Zeus pelo Turbilhão
— uma clara alusão à laicização do conhecimento proposta pela filosofia.
Em segundo lugar, ainda em As nuvens, no embate travado entre os dois discursos
filosóficos — o discurso justo e o discurso injusto —, uma espécie de ode à educação antiga,
responsável pela criação e manutenção de todos os bons costumes, bem como pela criação
dos guerreiros de Maratona, por parte do discurso justo. Por outro lado, o discurso injusto,
personificado, aborda todos os costumes em questão como velharias, conduzindo o seu
portador a uma série de práticas que, por mais que — temporariamente — apresentem-se
como vantajosas, são passíveis de todo o tipo de censura20. E assim, ao final da obra,
Estrepsíades, que recorre ao discurso injusto para fugir de seus credores, acaba perecendo
ante o discurso injusto que, ao ser ensinado para seu filho, este o utiliza de maneira
desfavorável ao seu pai, resultando em um prejuízo ao protagonista da história.
Assim apresenta-se a contenda fundamental ao nosso desenvolvimento. Por um lado,
encontra-se a poesia grega, já bem estabelecida, de autoria21 divina e natureza estritamente
mimética, seja de uma ancestralidade ainda rememorada, seja através da herança genética de
uma areté. Por outro, encontra-se uma filosofia nascente, de caráter autoral — próprio — e
contestável, bem como de natureza epistemológica, e, vista pelos olhos de seus
20
cf. Aristófanes, As nuvens, 885-1110.
21
Compreende-se pelo termo autoria, conforme é apresentado em Homero e o princípio da pedagogia, uma
espécie de elemento responsável por compor o caráter de autoridade no qual se sustentam ambas as estruturas,
cada uma à sua maneira.
contendedores, profana e laicizante22. Deste modo, através das referências supracitadas,
acreditamos encontrar aqui um conjunto de elementos pelos quais se torna possível, através
desta sobreposição de estruturas, traçar alguns indicativos para as questões que servirão de
elemento norteador desta pesquisa.
22
Aqui não podemos deixar de fazer referência à célebre metáfora, desenvolvida por M. H. Abrams, em sua
obra The Mirror and the Lamp: Romantic Theory and the Critical Tradition, na qual são apresentados os
exemplos do espelho, possibilitando uma leitura a este caráter mimético contido na obra poética, e o exemplo da
lâmpada, possibilitando uma leitura deste emanar de uma composição que remete a um indivíduo circunscrito
em um local e tempo bem definidos, contido na obra filosófica.
torná-la algo diferente, proporcionando uma lida inteiramente diferente com o seu objeto. E
ainda, as razões pelas quais se encontra um caráter de exclusividade, não podendo uma atuar
sobre o objeto simultaneamente à atuação da outra. Por fim, no terceiro subtópico, serão
apresentadas as razões, de ambos os lados, pelas quais estas se apresentam como superiores,
ou, ao menos, mais adequadas a legislar sobre as ações individual e coletiva do homem
grego. Trata-se de investigar não só as razões pelas quais se utiliza deste caráter valorativo,
mas a própria natureza e possibilidade do caráter valorativo de uma estrutura moral, ou seja,
quais as razões pelas quais uma pode apresentar-se como mais adequada que uma outra no
exercício de uma mesma atividade.
E assim, no quinto capítulo, serão apresentadas as considerações finais sobre os
resultados da investigação realizada no decorrer de todo o percurso. Aliado a isso, tal capítulo
será reservado para abordar algumas outras questões que podem vir a aparecer ao longo do
processo. Naturalmente, tal disposição de capítulos indica uma previsão, dados os elementos
obtidos até então. Sendo assim, esta pode sofrer algumas modificações com a aquisição de
novos dados e com os naturais acréscimos do processo.
Atividade/Bimestre 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
Sessões de X X X X X X X X X X X X
orientação
Revisão do conceito X
de instituição
Levantamento X X X
bibliográfico
Estudo da estrutura X X X X X X
poética
Estudo da estrutura X X X X X X
filosófica
Participação de X X X X X X
grupo de estudos
acerca da pedagogia
grega
Análise da relação X X X X X X
entre ambas as
estruturas
Desenvolvimento de X X X X X
tese
Escrita da X X X X X
dissertação
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18 de maio de 2022
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