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O OLHAR FENOMENOLÓGICO COMO INSTRUMENTO DE

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COMPREENSÃO DO LUGAR

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Alice Coelho Corrêa e Castro
3
Elvira Maria Santana da Cunha
4
Elisabete Rodrigues Reis

RESUMO

Esse trabalho percorre conceitos da fenomenologia como espaço existencial, ocupando-se


em explicitar alguns dos aspectos de qualidade da cidade, promovendo maior compreensão
do espaço arquitetônico. Trata-se de uma reflexão sobre a inter-relação do homem e cidade,
como possibilidade de compreensão e interpretação do ambiente urbano. Nosso objetivo
principal é realizar uma investigação bibliográfica de artigos e livros para compreender como
o olhar fenomenológico pode ampliar a compreensão do espaço da cidade e estabelecer
uma reflexão relacional e interdisciplinar que contribua para a qualificação do pensar e
construir lugares satisfatórios para o habitar humano.

Palavras-chave​ Olhar fenomenológico. Espaço existencial. Cidade

1
​Artigo produzido para a disciplina de Iniciação Científica do curso de Arquitetura e Urbanismo - Unilasalle/RJ
ministrada pela Profª Msc. Estela Maris de Souza.
2
​Graduanda do curso de Arquitetura e Urbanismo - Unilasalle/RJ
3
​Graduanda do curso de Arquitetura e Urbanismo - Unilasalle/RJ
4
​Profª Drª do curso de Arquitetura e Urbanismo Unilasalle/RJ
INTRODUÇÃO

A pesquisa intitulada “O olhar fenomenológico como instrumento de compreensão do lugar”,


tem como questão central, a investigação e a reflexão acerca de como o aporte
teórico-conceitual da fenomenologia pode ampliar a compreensão da cidade.

No mundo contemporâneo e globalizado as grandes cidades sofrem pela falta de qualidade


nos espaços habitados. Por uma série de questões históricas, entre as quais, a
supervalorização das variantes econômicas em detrimento das variantes humanísticas e
sociais, as grandes cidades parecem contaminadas pelo consumismo, pela aceleração do
tempo e pela falta de atenção com as questões ambientais. A forma de planejamento da
cidade que se acreditava como parte vital na experiência de relações interpessoais, foi
violentamente alterada. Os lugares de encontro, os lugares de qualidade foram se perdendo
em prol da valorização de determinadas variantes em detrimento de outras, visto, por
exemplo, que as cidades são mais pensadas para carros do que propriamente para as
pessoas. A mobilidade é essencial. Contudo, é necessário que o desenho de nossas
cidades pense na dinâmica urbana como um todo; nesse contexto, seus habitantes não
podem ser negligenciados.

Partindo desta argumentação, esta pesquisa levanta a seguinte questão: como o olhar
fenomenológico pode ampliar a compreensão da cidade? Com base nesse questionamento,
buscamos subsídios dentro do contexto do olhar fenomenológico para explicitar que,
cidades são locais de encontro. Praças, ruas, parques e até mesmo calçadas bem feitas e
dimensionadas, são princípios que estimulam o crescimento, são lugares de encontro que a
tornam humana e dá prazer. É direito de todos que espaços públicos e coletivos sejam
acessíveis para todos os habitantes da cidade; sentar em um banco de praça, caminhar por
calçadas, ir e vir com filhos ao parque e conversar em esquinas obtendo desta forma
condições de descobrimento. Conforme nos ensina por Jan Gehl (2010), os espaços
públicos oferecem oportunidade de encontro, e são essenciais à qualidade de vida dos
habitantes da cidade. A convivência, seja no âmbito profissional, no transporte, nas
atividades culturais, na esfera artística, no lazer e na circulação livre de pessoas, tornam a
cidade mais viva, mais interessante. Todos esses eventos reforçam a identidade e a relação
de pertencimento com o lugar e reafirmam o espaço arquitetônico como espaço existencial.

Portanto, quando Norberg-Schulz (1975), propõe um olhar que valoriza determinados


percursos, chama atenção exatamente para essa questão do espaço arquitetônico ser
definido pelo espaço existencial. Seus pensamentos concebem uma nova maneira de

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abordagem em relação ao espaço arquitetônico como dimensão da existência humana e a
necessidade de relações com o meio ambiente que o rodeia.

À vista disso, compreender a própria existência enquanto corpo sensorial e a maneira de


atribuir significado e sentido a esse lugar, sua importância como ponto de orientação e a
identificação com o espaço e sua história, são essenciais para a percepção da experiência
que confirma a importância do entendimento fenomenológico do lugar. Lugar este que,
conforme Norberg-Shulz (1975), pode ser compreendido por seu caráter de espacialidade e
está cumprindo seu papel.

É a partir do olhar fenomenológico e das teorias sobre o lugar, desenvolvidas pelo arquiteto
Norberg-Schulz (1975), que a pesquisa será construída. Nesse contexto, a pesquisa tem por
objetivo geral, realizar uma investigação bibliográfica de artigos e livros para compreender o
aporte teórico-conceitual fenomenológico e ampliar a apreensão da cidade

Como objetivos específicos, na primeira parte da pesquisa foram estudados os conceitos de


olhar fenomenológico, espaço existencial, lugar e cidade. Posteriormente nos debruçamos
no estudo dos aspectos definidores de qualidade dos lugares habitados, referenciar as
questões de qualidade desses espaços e a sua relação com a fenomenologia como
possibilidade de percepção dos lugares da cidade, distinguir e ampliar a reflexão pela busca
de diálogos interdisciplinares para a compreensão dos lugares habitados na cidade.

Tendo em vista o atual contexto que as cidades se encontram, onde a preponderância do


discurso da razão científica e a visão voltada para fins econômicos imperam na
contemporaneidade, as cidades e os espaços públicos, passam a seguir direção contrária
ao seu papel tradicional. Essas questões se tornam mais explícitas nas argumentações
expostas no artigo da professora Elisabete Reis (2010), que discorre acerca do processo de
transformação das cidades. No artigo em referência fica claro como as cidades, antes como
espaços de trocas, encontros e lugares de experiências corporais acabaram se
transformando em lugares excludentes, lugares de indiferença e de baixa relação de
pertencimento e identidade entre seus moradores.

A partir dessa argumentação, a pesquisa se justifica pelo fato de contribuir para uma
ampliação da compreensão das cidades e seu papel como lugar, e a percepção do indivíduo
como ser existencial no espaço, nos lugares das cidades, como definido pelo arquiteto
Norberg-Schulz (1975). No livro citado, o autor apresenta a cidade através desse olhar, a
simultaneidade de homem e mundo, e a maneira de ser e estar no mundo. A cidade, o

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lugar, não do ponto de vista estatístico, dimensional ou econômico, mas da visão empírica,
a forma como o homem se relaciona no ambiente que o cerca.

A vista disso, esse trabalho pretende compreender a relação e a perspectiva da experiência


das pessoas com os lugares habitados a fim de resgatar a importância das cidades
enquanto lugares das trocas, das experiências corporais e repensar as cidades com o
objetivo de contribuir para a criação de lugares satisfatórios para a existência humana.

Os principais autores que fundamentam a pesquisa são: o arquiteto Norberg-Schulz (1975),


que constrói sua argumentação a partir do conceito da perspectiva da experiência, um dos
principais teóricos a trabalhar com os conceitos defendidos por Martin Heidegger e abordar
a fenomenologia do lugar; Reis (2010), que trabalha e se fundamenta com os conceitos de
Heidegger e Schulz, aproximando os conceitos com o contexto contemporâneo; Pallasma
(2013), que aborda em seu livro, “Os olhos da pele”, a percepção dos sentidos e aponta a
supremacia da visão na contemporaneidade; Jacobs (2000), que busca em sua obra
questionar o desenvolvimento das grandes cidades em correspondência ao sistema
econômico.

Assim, a partir do método de revisão bibliográfica e documental, iremos organizar o trabalho


em três momentos principais; a primeira parte do trabalho se ocupará em definir e explicitar
os conceitos que irão estruturar a pesquisa, ou seja: fenomenologia e olhar fenomenológico,
espaço existencial, lugar e cidade. Parte desses conceitos serão fundamentados nas teorias
elaboradas pelo arquiteto Norberg-Schulz (1975), Yi-Fu Tuan (1983) e dos estudos
elaborados por Jan Gehl (2013). Num segundo momento iremos nos deter sobre as
variantes que compõem e definem a qualidade dos lugares habitados, para isso nos
utilizaremos principalmente dos estudos desenvolvidos pelo arquiteto Jan Gehl, sintetizados
nos livros Cidades para as pessoas (2013) e A vida na cidade: como estudar (2018), onde o
autor investiga e explicita os indicadores de qualidade da vida urbana nas cidades. Por fim,
estabeleceremos uma reflexão relacional e interdisciplinar entre a compreensão dos lugares
habitados pelo olhar fenomenológico, com o objetivo de contribuir para a qualificação do
pensar e construir lugares satisfatórios para o habitar humano.

SOBRE OS CONCEITOS

A compreensão da fenomenologia e ou olhar fenomenológico, implica no entendimento da


existência humana e a sua experiência com o ambiente que o cerca. O conceito de
fenomenologia vai além da percepção da experiência sensorial, compreende a maneira que

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nos relacionamos e atribuímos significados e sentidos aos lugares. Norberg-Schulz (1975),
em sua obra “Existencia Espaço e Arquitetura”, relaciona a perspectiva da experiência e do
olhar fenomenológico, fundamenta-se a partir da epistemologia e dos pensamentos de
Martin Heidegger, pensador no campo da fenomenologia existencial que afirma, “uma
edificação não pode ser compreendida somente como um objeto a ser admirado, é
principalmente parte de uma experiência contínua de construção de moradias”
(NORBERG-SCHULZ, 1975, p. 20).

A experiência contínua que o filósofo descreve está diretamente ligada a continuidade da


experiência humana, que não pode ser definida, uma vez que cada experiência é distinta
para cada ser humano. No artigo “Phenomenology and Architecture: Bruder Klaus Chapel
Peter Zumthor“, a autora, reconhece a fenomenologia como o estudo das estruturas,
experiências e consciência.

O princípio do conceito fenomenológico, busca um retorno das coisas como elas mesmas,
busca um entendimento de um todo, “oposto às abstrações e construções mentais” (Reis,
2017). Norberg-Schulz (1975), ancora-se a esse olhar fenomenológico, a fim de questionar
os modelos positivistas que estruturaram o modernismo no século vinte e dessa forma,
consolida-se uma reação contrária ao positivismo.

O arquiteto atribui como “​genius loci​”, (espírito do lugar), a compreensão da relação


interpessoal do indivíduo com o espaço, Reis (2010), ancorada pelos fundamentos de
Norberg-Schulz, apresenta “​genius loci” como a maneira que cada pessoa se sente a partir
do espaço, e a soma de todos valores físicos e simbólicos da natureza e do ambiente
humano.

A partir do entendimento de “​genius loci”​ , é possível compreender o significado de lugar,


definido à medida que, passamos a ter uma relação de apropriação com o espaço existente,
ao atribuir sentido e significado a sua existência. “Quando pensamos em lugar, espaço e
tempo, eles se fundem em um, tornam-se a substância do ser; pode nos fazer nos identificar
com um espaço, pois se tornou ingrediente de nossa experiência”. (TRIAS, 2015, p.3).

Dessa forma é possível compreender o diálogo atribuído a ambos conceitos, ao “​genius loci”​
e ao “espaço existencial”, ancorados pelo arquiteto Norberg-Schulz (1975), em seu livro
“Existencia, Espaço e Arquitetura”. No qual o autor, relaciona também, a percepção
epistemológica, de relação com o mundo que parte da experiência, e é desenvolvida
progressivamente, compreendida durante a infância, em primeiro momento, através do

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reconhecimento dos objetos no espaço e posteriormente, passa a criar conexões, a fim de
fundamentar uma compreensão de um todo.

Norberg-Schulz (1975), afirma, “Espaço existencial como um sistema relativamente estável


de esquemas perceptivos ou imagens do ambiente circundante”. Ao referir-se à “esquemas
perceptivos” e “imagens do ambiente circundante” o arquiteto procura, por meio da filosofia
epistemológica, compreender o espaço como parte fundamental da natureza existencial,
como também, apreender de maneira detalhada essa existência, reconhecendo seus
“aspectos abstratos e seus aspectos concretos”.

Os aspectos abstratos, ao qual ele se refere, “compreende os esquemas mais gerais de um


ídolo topológico ou geométrico”, reconhecendo a topologia, como um campo matemático
que permite o entendimento desses conceitos de convergência, conexão e continuidade. Os
aspectos concretos, como “elementos circundantes”, que compõe o espaço, como a
paisagem, os edifícios, elementos físicos, o ambiente urbano ou rural.
(NORBERG-SCHULZ, 1975, p. 20)

Norberg-Schulz (1975) defende que “o espaço é apenas um dos aspectos da existência.


Toda atividade implica movimentos e relacionamentos com lugares”. A fim de reconhecer a
relação interpessoal de lugar, espaço e ser humano, ele conclui, que, “o desenvolvimento do
conceito de lugar e espaço como um sistema de lugares, é, portanto, uma condição
necessária para encontrar um lugar firme para onde se posicione existencialmente”
(NORBERG-SCHULZ, 1975, p.19).

Como a partir desse contexto, compreender o conceito de cidade? Segundo Jan Gehl
(2010), o arquiteto e urbanista, apresenta a cidade como o espaço dos encontros, das
trocas e das percepções, além de proporcionar o lazer e a reflexão. Em seu livro “Cidade
para Pessoas”, o autor, realiza um estudo criterioso e profundo sobre a qualidade dos
espaços públicos e sua relação com a sociedade civil.

Ao apreender o conceito de fenomenologia e de espaço existencial, é possível reforçar a


relação interpessoal de ser-humano, lugar e cidade. Assim como a arte, o cinema e a poesia
Reis, (2017) em sua tese, conduz uma reflexão do papel da cidade que é capaz de
emocionar, de nos conduzir ao encontro de nós mesmos e ao encontro do outro, a cidade
como cenário de nossa experiência no mundo.

Reis (2017) relaciona nossa percepção e capacidade de emoção e reconhecimento, através


da arte e do cinema. Contudo, é possível também compreender essa relação com as

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cidades em que se vive, “As cidades no cinema nos envolvem e nos induzem por causa da
emoção que elas nos causam e nos preenchem. [...] à alma das coisas, à nossa própria
intimidade e é por isso que elas nos comovem”. Assim como a cidade retratada pela autora,
as cidades reais, são capazes de percorrer nossos afetos e sentimentos.

A cidade como lugar de encontro, de troca de emoções, de reforçar identidades, de


reconhecimento e de comunidade. “Cidades assim como livros podem ser lidas, a rua, os
caminhos para pedestre, a praça e o parque, são a gramática da cidade” (GEHL, 2010,
p.11). Entretanto, é preciso questionar como esse livro está sendo escrito, essa gramática
está realmente correta?

O autor afirma que todos devem ter o direito à cidade, a espaços abertos, assim como tem o
direito à água tratada, entretanto é possível reconhecer que isso não representa uma
realidade. Dessa forma, através desse artigo, traz-se o questionamento de; como a partir do
olhar fenomenológico é possível ampliar a compreensão da cidade, não só como um espaço
em que se vive, mas também um espaço em que se sente.

A partir desse contexto, de alguma forma, refletir como possibilitar uma leitura de qualidade
para todos e reconhecer os erros em sua gramática. “Bairros bem planejados inspiram os
moradores, comunidades mal planejadas brutaliza seus cidadãos” (GEHL, 2010, p.11).
Como está sendo escrito hoje, esse livro chamado cidade?

VARIANTES QUE COMPÕEM E DEFINEM A QUALIDADE DOS ESPAÇOS


HABITADOS

Esses conceitos possibilitam compreender a cidade como objetivo único para convivência
da experiência humana, permeada pela diversidade e pelo contato da sociedade em torno
dela. A atribuição de sentido se dá individualmente, mas, o conjunto ambientado por
múltiplas relações distinguem as qualidades essenciais de uma cidade. É preciso inteirar-se
dela e isso implica saber onde está sua vitalidade.

“A cidade viva precisa de uma vida urbana variada e complexa” (GEHL, 2010, p.63), o autor
entende que o ambiente urbano edificado dispõe de amplo impacto sobre o que se pode ou
não realizar. Seus estudos incluíam o modo como as pessoas se utilizam dos espaços
públicos e as variantes que compõem e definem as qualidades dos lugares habitados.

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Gehl (2010) acredita que a escala humana foi negligenciada pelo planejamento urbano,
evidenciando isto pela falta de visão e estudo dos urbanistas relacionado ao que acontece
ao nível dos olhos.

A experiência de conforto e bem-estar nas cidades está intimamente ligada


ao modo de estrutura urbana e o espaço da cidade se harmonizar com o
corpo humano, seus sentidos, dimensões espaciais e escalas
correspondentes. Se não houver bons espaços e boas escalas humanas,
não existirão as qualidades urbanas cruciais. (GEHL, 2010, p.162)

O autor acredita que quanto maior forem as atividades acontecidas no nível dos olhos, mais
segura e saudável será a cidade, consequentemente, seu bem-estar consiste em como os
edifícios se relacionam com o térreo, como se interligam e como os espaços públicos se
organizam ao redor. “Quanto mais movimentadas e atraentes forem as calçadas e quanto
maior o número e a variedade de usuários, maior deverá ser a largura total para comportar
seus usos satisfatoriamente” (JACOBS, 1961, p.95).

A vida entre os edifícios com suas funções e habitantes é mais importante do que os
próprios edifícios. Entende-se que, influenciada quantitativamente, a cidade pode, de fato
atrair mais pessoas, mas é a qualidade dela que as convida à permanência. Os autores
defendem a teoria de que a cidade pode ter alta densidade, porém com prédios de alturas
menores, menores proporções espaciais e maior vida em comunidade. Em seu livro, Jan
Gehl (2010) realiza um estudo das proporções espaciais das cidades antigas, o que revela o
mesmo modelo em todas elas.

Ruas com larguras de 3, 5, 8 ou 10 metros podem facilmente absorver o


tráfego de 2.400 a 7.800 pedestres por hora. As praças muitas vezes
aproximam-se do número mágico de 40 x 80 metros, o que significa que as
pessoas podem observar toda a cena, ver a própria praça e o rosto das
pessoas conforme atravessam o espaço. (GEHL, 2010, p.164)

A escala menor, ao se desenrolar ao nível dos olhos, convida as pessoas a estarem nos
espaços públicos, por meio de espaços convexos onde as distâncias são efêmeras, as
velocidades são baixas e a permanência é incentivada numa mesma esfera. Gehl (2010)
afirma que esses pré-requisitos são facilmente encontrados nas velhas cidades de
pedestres.

É significativo compreender como as pessoas utilizam os espaços públicos abarcando a


experiência acumulada ao longo da história. Cidades antigas transformam-se em boas
fontes de inspiração para a cidade contemporânea. Embora as culturas sejam diferentes,
todos fazemos parte de uma mesma espécie. A cidade qualitativa, com boa escala, é

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sustentável, amigável para as pessoas, é compacta, segura, com bons espaços públicos,
boa para caminhar, pedalar e com boas opções de transporte público (GEHL, 2010).

“Independentemente de ideologias de planejamento ou condições econômicas, a gestão


cuidadosa da dimensão humana em todos os tipos de cidades e áreas urbanas deve ser
requisito universal.” ​(GEHL, 2010, pg.118) ​O autor sugere critérios de avaliação de uma
cidade considerada ao nível dos olhos:

Caminhar: bons espaços, sem obstáculos, boas superfícies, acessibilidade para todos e
fachadas que se veem e que se experimentam;

Permanecer:​ zonas atraentes para simplesmente se manter em pé ou sentado;

Observar:​ vistas interessantes, distâncias curtas, sem obstáculos;

​ proveitar os aspectos positivos do clima e proteger-se contra experiências


Sentir: a
sensoriais indelicadas, causadas por vento, chuva, frio ou calor, poluição, ruídos;

Ter ​espaços para jogar e se exercitar: ​criatividade e atividades físicas, a toda hora e em
todas estações;

Ter oportunidades de falar e ser ouvido​: baixo nível de ruído e mobiliário urbano
adequado;

Criar experiências sensoriais positivas:​ fachadas ativas, bons materiais, vistas, árvores,
plantas, água;

Proteção: contra a violência urbana e o crime que, invariavelmente depende de haver


atividades dia e noite nas ruas, estar sob os olhos de muita gente e ter boa iluminação;

A escala humana: para edifícios e espaços abertos, tamanho e densidade, pensados para
a pessoa que caminha e não para quem passa num carro;

Proteção de pedestres: eliminando o medo do trânsito e acidentes trazendo sensação de


segurança.

Além disso, uma boa cidade concilia a atribuição de ser lugar de encontro e um lugar de
mercado de bens e serviços. É também imprescindível que se ofereça acesso a saúde,
escola e trabalho, tendo como alicerce a moradia e transporte coletivo de qualidade,
servidos por uma boa mobilidade. O planejamento urbano contemporâneo deve ser

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pensado como uma série de setores que possam ser percorridos a pé, conectando as
pessoas e misturando atividades, o que é essencial para a vitalidade das cidades.

Uma outra e não menos importante temática adotada é a mobilidade. Gehl (2010) pondera a
relevância de medidas para a redução do uso de carros particulares sugerindo que a
solução para os congestionamentos não é só melhorar o transporte público e sim criar mais
opções para o deslocamento das pessoas. Grande parte do seu trabalho evidencia o uso da
bicicleta visto como um meio de transporte mais popular a cada dia. Quando a cidade cria
condições e incentiva pessoas a pedalarem e caminharem torna-se mais saudável.

Pode-se dizer que há uma tendência mundial de recuperar as cidades seguindo essas
linhas, sobretudo no contexto atual, onde a necessidade emergente de replanejamento das
cidades torna-se crucial. Esse é um dos exemplos mais notáveis da importância da
mobilidade urbana nas cidades. Num cenário de pandemia, a COVID-19 tem gerado
intervenções urbanas pontuais caracterizadas como urbanismo tático. Com o fechamento
das ruas e a necessidade de oferecer mais segurança aos que precisam se deslocar
durante a crise, grandes ciclovias e alargamento de calçadas, comuns em intervenções de
urbanismo tático, estão sendo criadas da noite para o dia oferecendo mais espaço para que
as pessoas possam manter distância segura umas das outras nos deslocamentos, a pé ou
de bicicleta. Essas extensões de calçada podem ser implementadas com tinta ou tachões
demarcando o novo desenho do pavimento.

É uma forma rápida e eficiente de enfrentar desafios impostos pela pandemia e de testar
novos perfis de ruas que priorizem pedestres e ciclistas e contribuam para cidades mais
vibrantes, acolhedoras, e menos poluídas. Muitas cidades estão acelerando seu processo
de implantação e priorizando a mobilidade ativa pretendendo com isso tornar as cidades
mais estimulantes para o comércio, as ruas mais seguras e evitar o retorno da poluição. O
atual contexto tem evidenciado a importância de planejamentos que integrem diferentes
estratégias na construção de cidades mais sustentáveis e resilientes, combatendo a
poluição do ar, as emissões de carbono e outras externalidades negativas da mobilidade
baseada no transporte motorizado individual. (ArchDaily Brasil, 2020).

Alguns podem relacionar medidas como as mencionadas acima à um processo emergencial


e provisório da cidade, que embora reflitam a insegurança reinante, surgem, como esforço
universal de qualificação da própria cidade, tanto funcional, no que concerne o dia a dia de
cada um, quanto social que depende da interação das pessoas em espaços públicos. “A
difundida prática de planejar do alto e de fora deve ser substituída por novos procedimentos

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de planejamento de dentro e de baixo, seguindo o princípio: primeiro a vida, depois o
espaço e só então os edifícios.” (GEHL, 2010, p.198)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A compreensão dos lugares habitados pelo olhar fenomenológico nos trouxe uma reflexão
crítica sobre os problemas das grandes cidades. Objetivando contribuir para ações efetivas
que visem melhorar a qualidade dos lugares satisfatórios para o habitar das pessoas nas
grandes cidades, inferimos que é chegada a hora de valorizarmos mais a vida no seu
aspecto ordinário. Os aspectos extraordinários já são habitualmente valorizados pela
espetacularização da cidade e das ações voltadas para garantir a roda do consumismo
desenfreado. Os fundamentos da fenomenologia aplicados na esfera urbana provocam
investigações e estabelecem condições de como esse olhar pode ampliar a compreensão
da cidade e como o trabalho, com a dimensão humana, pode atingir diretamente a mudança
das questões presentes no cenário urbano atual.

Uma vez que a supervalorização do capitalismo de mercado, contribui para a especulação


imobiliária e para a escassa qualidade dos espaços públicos, parece-nos oportuno criar
condições para que os habitantes da cidade a ressignifiquem. É o momento de pensarmos
na materialidade da cidade a partir dos hábitos, vínculos, relações simbólicas e camadas de
tempo que fazem sentido para os seus habitantes. Embora pareça, à primeira vista,
incompatível aliar humanismo, sensibilidade, uso de tecnologias e economia em relações de
equidade social, num único corpo que é a cidade, acreditamos que é nosso ofício
trabalharmos para tal.

A análise do conceito fenomenológico e o significado de como cada pessoa se sente a partir


do espaço habitado e das coisas como elas mesmas, norteou a reflexão sobre o
comportamento das cidades. Seu desenvolvimento e desenho no cenário atual prioriza a
aceleração do tempo e dinâmica dos automóveis, contribuindo desfavoravelmente com a
violência, os congestionamentos e o estresse. Dessa forma, esse cenário, configura ações
que, relacionadas aos lugares existentes provocam consequências no ambiente urbano.
Sob esse contexto, é necessário um olhar humanizado, é necessário considerar pessoas,
seus hábitos e suas relações de pertencimento, é necessário talvez, criar uma nova relação
em tudo na cidade.

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Contudo, essa forma de perceber o espaço urbano, não representa um trabalho isolado,
essa atribuição, não é só do arquiteto, nem só do político, nem tão somente do
esclarecimento da população. Não se pode tratar coisas separadas que naturalmente são
imbricadas. A saúde, a segurança, a habitação são peças atadas, vinculadas de apenas
uma maneira. As peças não são únicas, uma se entrelaça à outra, você só habita bem se
houver segurança, só há condições de saúde se usufruir de habitação, tudo está
relacionado por sua própria natureza. É necessário saber trabalhar de uma maneira
cooperativa, a fim de contribuir para um cenário satisfatório para o habitar humano,
reconhecendo a inter-relação do cidadão e a cidade, sua experiência e participação no
desenvolvimento do ambiente social, tanto como indivíduo, quanto cocriador do ambiente
que o compõe.
Em síntese, acreditamos que a valorização dos lugares de significado e sentido da
experiência cotidiana dos habitantes da cidade pode nos apontar caminhos favoráveis para
ampliar a compreensão do ambiente da cidade e nos auxiliar na criação de lugares
qualificados para as atividades humanas.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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