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DOI: 10.1590/0103-1104202012519
RESUMO Esta reflexão crítica se dá em torno da ética científica do Crispr-Cas9, e estrutura-se em cinco
momentos: 1) inicia-se recordando o filme ‘Gattaca’ e o experimento de edição de embriões humanos
por meio da técnica Crispr-Cas9, protagonizado por He Jiankui, no final de 2018, na China, e que chocou
o mundo científico; 2) a seguir, faz-se uma incursão em busca de compreensão sobre a descoberta do
Crispr-Cas9 e que tipo de implicações éticas traz à humanidade; 3) nessa etapa, fazem-se considerações
em torno da pesquisa científica dessa revolucionária técnica de edição de genes, que tem que continuar e
evoluir, mas respeitando diretrizes éticas; 4) necessita-se de diretrizes éticas para a governança das técnicas
de edição do genoma humano – alguns princípios éticos gerais são propostos; 5) finaliza-se a reflexão
apontando para a necessidade de fazer uma ciência com consciência, prudência e responsabilidade, para
construir um futuro com esperança ética, evitando o alarmismo apocalíptico (tecnofobia) de um lado,
bem como o utopismo tecnológico ingênuo (tecnoutopia) de outro.
ABSTRACT This critical reflection takes place around the scientific ethics of Crispr-Cas9, and is structured
in five moments: 1) it starts by remembering the film ‘Gattaca’ and the experiment of editing human embryos
using the Crispr-Cas9 technique, by He Jiankui, in late 2018, in China, and which shocked the scientific world;
2) next, there is an inroad in search of understanding about the discovery of Crispr-Cas9 and what kind of
ethical implications it brings to humanity; 3) at this stage, considerations are made around the scientific
research of this revolutionary gene editing technique, which has to continue and evolve, while respecting ethical
guidelines; 4) ethical guidelines are needed for the governance of human genome editing techniques – some
general ethical principles are proposed; 5) the reflection ends by pointing to the need to make science with
conscience, prudence and responsibility, to build a future with ethical hope, avoiding apocalyptic alarmism
(technophobia) on the one hand, as well as naive technological utopianism (technoutopia) from another.
1 Pontifícia
Universidade
Católica do Paraná (PUC-
PR) – Curitiba (PR), Brasil.
anor.sganzerla@gmail.com
2 Pontifícia Universidade
Lateranense (PUL) – Roma,
Itália. (in memoriam)
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 44, N. 125, P. 527-540, ABR-JUN 2020
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tecnocientíficos e a ética, Potter, que é consi- Com referenciais éticos e bioéticos pratica-
derado um dos ‘pais da bioética’, afirma: mente inexistentes para guiar procedimentos
científicos, e muito mais permissivos do que a
a humanidade necessita urgentemente de uma maioria dos países desenvolvidos, esse contex-
nova sabedoria que forneça o ‘conhecimento to torna-se um paraíso natural para esse tipo
de como usar o conhecimento’ para a sobre- de ousadia ou temeridade científica.
vivência humana e para o melhoramento da Em 26 de novembro de 2018, o pesquisador
qualidade de vida6(27). chinês, o biofísico He Jiankui, inquietou e
chocou a comunidade científica mundial ao
Dessa forma, analisar a ética científica em anunciar, via vídeo pelo YouTube, que tinha
torno da técnica do Crispr-Cas9 e a necessida- criado os primeiros bebês geneticamente
de de fazer ciência com consciência, prudência modificados do mundo, implantados em uma
e responsabilidade é o objetivo desta reflexão. mulher que deu à luz meninas gêmeas chama-
das Lulu e Nana, nascidas, segundo o pesqui-
sador, em novembro de 2018. Para Jiankui, o
A película ‘Gattaca’ e edição procedimento denominado ‘cirurgia genética’,
de embriões humanos na utilizando-se da técnica do Crispr-Cas9, teria
ocorrido de forma ‘segura’, e as gêmeas seriam
China ‘saudáveis como qualquer outro bebê’. Em
entrevista a Associated press8, Jiankui, após
Ao entrarmos no campo da genética e genô- o anúncio, afirma: “sinto a forte responsabili-
mica, imediatamente nos deparamos com uma dade de não só chegar primeiro, mas também
série de filmes explorados pela ficção cientí- estabelecer um exemplo. A sociedade decidirá o
fica, que povoam o imaginário popular, por que fazer a seguir”, em termos de permitir ou
vezes amedrontando, outras denunciando um proibir essa técnica científica. E acrescenta:
futuro drástico para a humanidade. O perigo “eu entendo que meu trabalho é controverso,
da eugenia, entre tantas outras perspectivas, mas acredito que as famílias precisam dessa
geralmente mais apocalípticas do que porta- tecnologia”, explica Jiankui.
doras de esperanças, tem ganhado destaque. Jiankui é visto pela comunidade científi-
Entre os filmes de ficção científica, temos ca como um franco atirador e um obcecado
‘Gattaca’ (1997), cujo nome foi criado a partir caçador de glórias9. Estudou na Universidade
das iniciais das quatro letras G, A, T e C que de Rice e na Universidade de Stanford, ambas
identificam quatro tipos de bases nitrogena- nos Estados Unidos da América (EUA). De
das: Guanina (G), Adenina (A), Timina (T) e volta ao seu país natal, ele abriu um labora-
Citosina (C), com que se codificam os genes da tório na Universidade do Sul, de Ciência e
dupla hélice da molécula do DNA. Trata-se de Tecnologia, em Shenzhen. Ele também tem
um filme sobre discriminação genética, mas, duas empresas de genética.
felizmente, ainda estamos longe daquela disto- Durante a ‘Conferência internacional sobre
pia anunciada por essa película. Na sociedade edição de genes’, em Hong Kong (27 de novem-
de ‘Gattaca’, a população está dividida entre os bro de 2018), Jiankui explicou que seu objetivo
geneticamente válidos (que têm bons genes, não é curar ou prevenir doenças hereditárias,
escolhidos a dedo) e os inválidos (fruto do mas tentar criar uma característica que poucas
acaso reprodutivo), e, por isso, considerados pessoas têm: a habilidade de resistir a possíveis
como seres inferiores7. infecções pelo vírus HIV, o vírus da Aids. Os
Não é nenhuma surpresa que os primeiros experimentos que levaram a geração de bebês
nascimentos de bebês com DNA editado pelo com genoma ‘customizado’ pelo Crispr-Cas9
Crispr-Cas9 tenham acontecido na China. não constam em publicação oficial revisada
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criticamente por outros cientistas, o padrão- Existem acusações sérias, segundo as quais
-ouro de confiabilidade e veracidade para a o pesquisador chinês teria forjado documen-
ciência moderna, o que redobra o olhar crítico tos éticos de aprovação, utilizado métodos
sobre o que foi anunciado. de edição genética pouco seguros e eficazes
Imediatamente após a divulgação por e evitado deliberadamente a supervisão. A
Jiankui, as principais instituições mundiais Universidade de Ciência e Tecnologia do Sul,
de ciência e de medicina reagiram fortemente de Henzhen, rescindiu o contrato de trabalho
condenando esse feito ‘científico’, chamando com Jiankui e começou uma investigação em
a atenção para a urgente necessidade de criar relação ao que foi anunciado. Considerou que
proteções éticas e legais para impedir que ex- a edição de embriões humanos pelo pesqui-
perimentos não supervisionados como esse sador violou seriamente a ética acadêmica e
se repitam10. os códigos de conduta. A universidade decla-
O temor provocado por Jiankui não se rou que está em profundo choque e tomou as
limita à possibilidade de os bebês desenvol- medidas imediatas em busca de esclarecimen-
verem problemas de saúde inesperados – e, to por parte de He Jiankui.
possivelmente, hereditários – nem às tenta- Mais de 120 cientistas chineses também
tivas de produção de bebês alterados gene- assinaram um documento opondo-se aos expe-
ticamente com determinadas características rimentos do jovem pesquisador chinês. Esses
físicas, intelectuais ou atléticas. Os cientistas cientistas declaram que ‘qualquer tentativa’
temem que ocorra uma reação negativa por de fazer mudanças em embriões humanos
parte da sociedade à pesquisa com a edição implantados é ‘uma loucura’ e que dar à luz
genética que não envolve embriões e que re- um bebê nessas condições é um ‘alto risco’. Em
presenta um grande potencial de tratamento vários países do mundo, bioeticistas também
ou prevenção de doenças. classificaram o experimento como ‘monstruo-
Uma das descobridoras da técnica Crispr- so’, e que, sendo verdade o que foi comunicado,
Cas9, Jennifer Doudna, bioquímica da trata-se de uma grande irresponsabilidade,
Universidade da Califórnia, em Berkeley, em antiética e perigosa11.
entrevista a Associated press8, afirmou que Pela reação frontalmente negativa tanto
dos cientistas chineses como dos bioeticis-
ficou simplesmente horrorizada. Senti uma espécie tas pelo mundo, e da comunidade científica
de mal-estar físico. Foi fundamental que esse tra- internacional, ao que tudo indica, Jiankui
balho perigoso e gratuito tenha sido oficialmente agiu nas brechas do sistema regulatório re-
reconhecido e considerado ilegal. lativamente permissivo da China. Os experi-
mentos de Jiankui também devem ser lidos
Continua Jennifer Doudna afirmando que no contexto de um crescimento expressivo e
esse anúncio confirma a existência de um rápido dos investimentos em pesquisa e do
objetivo das autoridades políticas chineses
limite internacional para a conduta ética e científica de transformar o país em uma superpotência
para ajudar a garantir que esse tipo de trabalho – científica e tecnológica.
radical e desnecessário do ponto de visto médico Certamente, trata-se de uma questão
e negligente – não volte a ocorrer. muito complexa. Se levarmos em conta
apenas as questões tecnocientíficas, a
O próprio governo chinês, em uma in- imaginação é simplesmente o limite. No
vestigação preliminar do feito de Jiankui, entanto, se levarmos em consideração o
afirma que este ‘violou gravemente’ as re- bem-estar humano, a dignidade da pessoa,
gulamentações éticas chinesas dessa área a sobrevivência e o futuro da humanidade, o
da genética. limite que se impõe a ser honrado como um
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para melhorar a precisão da técnica de edição a necessidade de adotar uma moratória sobre
genética conhecida como Crispr-Cas9. Diante a edição do genoma humano. Tal proibição, no
de tantas iniciativas de pesquisa que começam entanto, não deve ser aplicada para a edição
a mexer com embriões humanos, com o uso das de linhas germinativas para fins de pesqui-
ferramentas biotecnológicas que têm o poten- sa, desde que não haja a transferência do
cial de alterar o genoma humano, reacende-se embrião para o útero, bem como para a edição
o debate a respeito dos limites da ciência; e, do genoma em células somáticas humanas
nesse sentido, a bioética, com sua essência não reprodutivas para fins de tratar doenças.
interdisciplinar, torna-se uma ferramenta Afirma o documento:
indispensável na promoção do diálogo entre
os diferentes atores. nós clamamos por uma moratória global em
Tal experimentação atualmente está sob todos os usos clínicos da edição da linhagem
moratória voluntária nos EUA e fortemente germinativa humana, isto é, mudança do DNA
regulada na Europa. A geneticista Jennifer hereditário para criar crianças geneticamente
Doudna9, com prudência ética, afirma que, modificadas16(165).
na prática, será necessário ainda muito tempo
para podermos editar com segurança o DNA E acrescenta que a ‘moratória global’ não
de um embrião humano, mas que essa po- deve ser entendida como uma proibição per-
tencialidade está no coração da técnica do manente, mas sim o
Crispr-Cas9.
Alguns pesquisadores, em março de 2015, [...] estabelecimento de uma estrutura inter-
três anos antes da divulgação do ‘experimen- nacional na qual as nações, embora retenham
to científico’ de He Jiankui, publicaram um o direito de tomar suas próprias decisões,
alerta na prestigiosa revista científica ‘Nature’, comprometam-se voluntariamente a não
solicitando uma moratória total nos estudos aprovar qualquer uso da edição clínica ger-
que envolvam a manipulação genética de es- minal, a menos que certas condições sejam
permatozoides, óvulos e embriões humanos. atendidas16(166).
Edward Lanphier, Presidente da Aliança para
a Medicina Regenerativa’ é um dos cientistas O documento também pede para que se
que assinaram o artigo da revista. Afirma ele: estabeleça um período em que não será per-
mitido nenhum uso clínico de edição da linha
[...] não somos ratos de laboratórios, muito germinativa, de modo a favorecer a reflexão
menos algo como um milho transgênico. Somos das questões técnicas, científicas, médicas,
uma espécie única na natureza, com carac- sociais, éticas e morais envolvidas, em vista de
terísticas próprias que nos trouxeram onde definir uma estrutura internacional. Passado
estamos. Quando discutimos a modificação de esse período, embora as nações possam adotar
embriões, estamos refletindo sobre a alteração caminhos diferentes, todas elas concordariam
permanente da espécie. Por décadas, os países em proceder de modo aberto, respeitando os
desenvolvidos debateram a modificação de desejos de toda a humanidade, visto que tal
genes em células reprodutivas e se posiciona- prática irá influenciar toda a vida no planeta.
ram contra isso15(410). Em um painel da Organização Mundial da
Saúde, que tratou da técnica do Crispr-cas9
Um novo pedido de moratória foi feito em para a edição de genética, propõe-se que se faça
março de 2019 por um grupo de especialis- um registro global de estudos que envolvam
tas de sete países, com a participação de 18 a edição do genoma humano e que os finan-
cientistas e eticistas16. Tal pedido, também ciadores e editores de pesquisas exijam com
publicado na revista científica ‘Nature’, reforça que os cientistas nele participem17. Entretanto,
apesar dos esforços e dos apelos, na prática, em que a busca da cura é muito pior do que a
nenhum mecanismo para assegurar o diálogo doença em si mesma. Esse cenário poderia ocorrer
internacional a respeito da edição genética na perante um cientista com boas intenções. Agora,
linha germinativa, até o momento, foi criado; podemos nos perguntar e imaginemos essas po-
e, embora muitos cientistas estivessem cientes derosas ferramentas nas mãos de bio-hackers sem
do perigo da utilização da técnica, eles também escrúpulos, podendo agir como verdadeiros terro-
não se empenharam em tomar medidas neces- ristas genéticos. Eles poderiam alterar o genoma
sárias para impedir a sua efetivação. da gripe, por exemplo, tornando-a mais potente
A edição do DNA nas primeiras fases da vida e desencadeando uma epidemia que certamente
humana tem a potencialidade de nos livrar de colocaria em risco a vida de muita gente.
doenças devastadoras, o que nos enche de oti- Existem grandes inquietações e preocupa-
mismo em relação à continuação da pesquisa ções quanto às questões éticas e de segurança em
na área. No entanto, tal possibilidade também relação a essas técnicas de manipulação genéti-
levanta muitas inquietações éticas ante a capa- ca. A edição de genomas em embriões humanos
cidade de criar sub ou super-humanos, formas usando tecnologias atuais pode ter consequências
sofisticadas de novas eugenias, além de pos- imprevisíveis e indesejáveis sobre as gerações
síveis doenças e desvios genéticos ainda não futuras. Eticamente é inaceitável20.
conhecidos que podem comprometer a vida Entre os bioeticistas que refletem sobre essas
humana no futuro18. novas técnicas de edição gênica em embriões,
A alteração o DNA humano cria uma enfatiza-se que elas têm um grande potencial
zona cinzenta que inquieta a humanidade promissor, porque poderiam erradicar doenças
em relação ao seu futuro. De um lado, temos genéticas devastadoras e incuráveis antes do
centenas de milhares de pessoas que hoje bebê nascer. Outros mais cautelosos dizem
sofrem de doenças de origem genética, que que essa técnica ultrapassa uma linha ética de
se beneficiariam com as pesquisas e aplica- grande perigo, pois mudanças da linha germi-
ção dessa nova técnica do Crispr-Cas9 para a nal são hereditárias e poderiam ter um efeito
cura destas doenças. Por outro, trata-se de um imprevisível sobre as gerações futuras, além da
empreendimento altamente arriscado quando ameaça sempre presente da prática da eugenia e
ainda não temos um conhecimento profundo da criação de ‘super-raças’. Os processos cientí-
de como o DNA realmente funciona. Existem ficos que interferem no genoma humano devem
muitas pesquisas em curso que procuram en- ser feitos com segurança, prudência, ética,
tender como as diferentes peças do genoma transparência e controle social da sociedade.
humano funcionam juntas. Dos 20 mil genes do Além disso, os cientistas nunca devem perder
genoma humano, sabemos um pouco a respeito a capacidade de se perguntar se o que estão
de apenas de 6 mil. Precisamos ainda progredir desenvolvendo é realmente necessário de ser
no conhecimento do nosso genoma, temos realizado e de ser implementado.
ainda muita coisa desconhecida. Considerando Nem tudo o que é tecnicamente possível de ser
as regiões codificadas, temos apenas 2% do realizado é eticamente desejável, principalmente
genoma conhecido19. quando se coloca em risco questões de biosse-
Estamos diante de uma realidade em que gurança identificadas com a própria genômica
podem surgir cenários sombrios. Imaginemos das gerações futuras. Não se trata de precaução
a possibilidade de um cientista, muito bem- exagerada, mas de responsabilidade ética em
-intencionado, desenvolver a cura para uma relação a procedimentos cujos resultados ainda
doença e aplicar essa nova técnica em centenas não são seguros, e que podem colocar em risco a
de milhares de doentes, sem antes saber que vida futura da espécie no nosso planeta. Falamos
os efeitos colaterais podem ser devastadores mais de prudência e precaução do que em temor,
e mesmo mortais. Ou seja, trata-se do caso em uma perspectiva bioética. O problema é que,
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pelo conhecimento que temos hoje, ainda que Uma regra clara é que quando uma determi-
precário em várias áreas, já sabemos que certas nada intervenção provoca mais benefícios que
modificações radicais inseridas no genoma riscos ou danos potenciais, vale a pena ir adiante.
humano poderão tornar-se irreversíveis, invia- Quanto à edição dos embriões, os riscos ainda
bilizando a reprodução da espécie. Ademais, são de tal monta que nem sequer podemos falar
diante de uma catástrofe dessas proporções, de em benefícios, afirmam muitos pesquisadores da
quem seria a responsabilidade? área, por isso do apelo à moratória internacional.
É por isso que necessitamos de uma ética Embora a moratória possa dar a impressão de
de proteção. A ‘Declaração universal sobre o censura ou limites ao progresso científico, com
genoma humano e os direitos humanos’ da ela também podemos evitar a prática de aventu-
Organização das Nações Unidas para a Educação, reiros. É como se disséssemos que, no momento,
a Ciência e a Cultura (Unesco), ainda nos anos somos livres para pensar, mas ainda não temos
1990, deixa claro que todas as pesquisas com o a liberdade para realizar. Esse processo, Jonas
genoma humano devem levar em conta suas classifica-o como “freio voluntário”22(21).
implicações éticas e sociais. Em um dos seus
artigos, essa importante declaração internacional
expõe algumas condições fundamentais para o A pesquisa científica a
exercício da atividade científica: respeito do gene editing
[...] incluindo o cuidado, a cautela, a honestidade
ainda precisa evoluir
intelectual e a integridade na realização de suas
pesquisas, e, também na apresentação e na utili- Algumas notícias dos cientistas e pesquisadores
zação de suas descobertas, devem ser objeto de dessa área genética que chegam ao público a
atenção especial no quadro das pesquisas com o respeito da técnica do Crispr-Cas9 informam-
genoma humano, devido a suas implicações éticas -nos que ocorreram centenas de mutações ge-
e sociais. Os responsáveis pelas políticas científicas, néticas inesperadas. É o êxito de um pequeno
em âmbito público e privado, também incorrem estudo publicado na ‘Nature Methods’, cujo
em responsabilidades especiais a esse respeito21. título do artigo já denuncia o problema encon-
trado: Unespected mutations after Crispr-Cas9
É importante lembrar que, em uma perspectiva editing in vivo (mutações inesperadas após a
histórica evolutiva em medicina, nem todos os edição do Crispr-Cas9 in vivo)23.
procedimentos realizados têm 100% de segurança O experimento em discussão possibilitou a
ou eficiência. A evolução dos conhecimentos e correção de um gene defeituoso responsável
tecnologias, aos poucos, faz com que essas inter- pela cegueira de dois ratos. Ao mesmo tempo,
venções sejam menos perigosas ou danosas para o seu DNA modificado apresentou mutações
o ser humano, a exemplo da cesariana no início genéticas off target (inesperadas) em números
do século XVIII. Essa prática médica causava muito superiores do quanto se esperava. Os
inicialmente a morte de quase todas as mulheres ratos, não obstante as mutações constatadas,
que eram a ela submetidas. Na atualidade, no aparentam ser sãos e normais, mas isso não
entanto, tornou-se uma prática médica corri- exclui possíveis consequências no futuro, por
queira e segura que salva a vida de mães e bebês. exemplo, que algumas dessas mutações indu-
O mesmo ocorre em relação aos transplantes de zidas se desenvolvam em formas tumorais.
coração, que, no início dessa inovação, há 30 anos, Estão começando os primeiros protoco-
somente 25% dos transplantados sobreviviam. los de pesquisa em seres humanos, prestes
Atualmente, essa percentagem está acima de 85%, a acontecer na China e nos EUA. Em 2016,
e o transplantado pode continuar a viver uma vida no Reino Unido, foi dada permissão para um
de qualidade com o novo órgão. grupo de pesquisadores utilizar o Crispr-Cas9
em embriões humanos. Aguardemos, pois os e flexível como nunca. Esses avanços causaram
resultados publicados devem ser replicados uma explosão de interesse em todo o mundo
e confirmados para serem partilhados com a a respeito de caminhos possíveis em que a
comunidade científica. edição do genoma pode aprimorar a saúde do
A técnica de gene editing já foi aplicada em ser humano. A velocidade com que essas tec-
embriões humanos para torná-los mais re- nologias avançam e são aplicadas tem gerado
sistentes ao vírus HIV, como vimos no início preocupações éticas e dúvidas em relação a
com o caso chinês de Hen Jiankui no final de quem deve governar essas tecnologias, bem
2018. Os resultados, até o momento, mostraram como quando o público deveria ser engajado
que o procedimento foi totalmente ineficaz. O em tais decisões, entre outras24.
próximo passo poderia ser a modificação da A obra ‘Editando o genoma humano: ciência,
linha germinal, ovócitos e espermatozoides, ética e governança’, um importante documento
como se todos os outros passos já estivessem da Academia Nacional de Ciências (ANC) e da
sido realizados com sucesso, o que não é o caso. Academia Nacional de Medicina (ANM) (EUA),
Sendo assim, isso nos faz pensar que talvez lançado em 14 de fevereiro de 2017, é resultado
estaríamos mais próximos de uma previsão de um intenso trabalho de mais de dois anos
de horóscopo que de um anúncio com uma de um comitê ad hoc de peritos, no âmbito da
fundamentação científica credível. biologia molecular e genética, examinando em
Enfim, o debate a respeito da ética de profundidade as implicações clínicas, sociais,
seres humanos geneticamente engenheirados éticas e legais das tecnologias da edição de genes
reacendeu-se novamente, assim, defrontam- humanos25. Entre as conclusões e recomenda-
-nos com sérios questionamentos, tais como: ções desse documento, assinala-se que é impor-
devemos desenhar geneticamente nossos tante levantar as questões do processo de edição
descendentes? Se for sim, como seria isso? do genoma humano; equilibrar os benefícios
Quais são os limites éticos claros desse novo potenciais com os riscos não previstos; governar
poder e quais são os fins em direção aos quais o uso da edição do genoma; incorporar valores
deveríamos direcioná-lo? Quais são as nossas da sociedade nas aplicações clínicas e decisões
obrigações e deveres em relação às futuras em relação às políticas públicas; respeitar as
gerações? Não deveríamos ter o controle sobre inevitáveis diferenças culturais entre as nações
a evolução, de forma que nossos descendentes e culturas que estarão decidindo sobre o uso
pudessem transcender a natureza humana, ou dessas novas tecnologias.
deveríamos considerar a natureza humana O comitê define também critérios que
como um dom de nossos antepassados para devem ser respeitados antes da permissão
a geração do presente, que devemos cuidá-la de pesquisa clínica de edição com células-
para o bem das gerações futuras? -tronco que recebemos como herança e
apresenta algumas conclusões sobre a necessi-
dade crucial para educação e engajamento do
Princípios gerais para a público, apresentando sete princípios gerais
governança das técnicas de que se traduzem em uma série de responsa-
bilidades que os pesquisadores necessitam
edição do genoma humano considerar no processo de edição e governança
do genoma humano.
A edição do genoma é uma nova ferramenta Os princípios éticos gerais, bem como as
poderosa capaz de realizar alterações preci- responsabilidades decorrentes da observa-
sas no material de um organismo genético. ção desses sinalizadores de valores a serem
Avanços científicos mais recentes tornaram a respeitados, identificados nesse documento,
edição do genoma ainda mais eficiente, precisa são os seguintes:
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precisam ser enfrentadas, de modo que as Embora o enhancement somático possa ter
possíveis conquistas da tecnociência não se um valor terapêutico para uma pessoa, o apri-
tornam verdadeiras ameaças à dignidade da moramento de características ou capacidades
vida humana nem da humanidade futura. por meio da edição de células germinativas
levanta questões sobre eugenia e torna visível
uma série indesejável de repercussões, tais
Para concluir: perspectivas como o tratamento que a sociedade daria aos
de esperança em vista do indivíduos com deficiências, que teriam um
acesso injusto a tais tecnologias, na base do
futuro status socioeconômico.
O documento da ANC e da ANM dos EUA
Ao chegarmos ao término desta reflexão que apresenta também recomendações para ir
buscou tratar da ética científica em torno da adiante com a edição do genoma humano. Para
técnica do Crispr-Cas9, optamos por seguir a tanto, deve-se buscar a promoção do bem-
orientação do editorial da revista ‘The Lancet’26 -estar, o respeito, a equidade, além de respeitar
ao publicar o relatório da ANC e da ANM. os princípios da transparência, do cuidado
Uma primeira observação a ser feita é que o devido e da ciência responsável para preservar
report coloca uma grande ênfase na importante o uso clínico e a pesquisa ética.
distinção a respeito do objetivo-alvo em relação A cooperação internacional exigirá um
às células somáticas ou germinativas. A grande diálogo franco entre os países envolvidos,
maioria das pesquisas biomédicas básicas é feita agências reguladoras e comunidades cientí-
com células somáticas, não reprodutivas, como ficas. Essas recomendações do report chegam
tais, e os riscos e preocupações éticas estão em um momento crucial, pois a corrida por re-
delimitados somente ao indivíduo. Uma vez sultados está em curso, a exemplo do primeiro
que o sistema Crispr-Cas9 partilha muitas ca- ensaio clínico usando a tecnologia Crispr-Cas9
racterísticas com outros tipos de terapia gênica, para atingir células cancerosas aprovado nos
a segurança e a infraestrutura reguladoras que EUA e do primeiro gene injetado num paciente
já existem podem fornecer uma fundamentação editado por esta tecnologia na China.
suficiente para rapidamente mover a tecnologia A imediata aplicação clínica de edição do
no âmbito clínico. genoma será em células somáticas humanas
De outro lado, a edição de células germinati- para o tratamento ou prevenção de doenças
vas abre um quadro completamente diferente e e deficiências. De fato, tal pesquisa já está em
desconhecido, bem como dilemas e perplexida- testes clínicos nos EUA. Quanto à edição de
des éticas. A edição de células germinativas tem células germinativas (óvulos e espermato-
um grande apelo em termos de habilidade de zoides), não é o que se prevê neste momento.
‘corrigir’ mutações genéticas presentes nos genes Os autores do report da ANC e da ANM são
das pessoas antes que estes genes sejam transmi- cautelosos ao afirmar esse procedimento:
tidos à prole, com a promessa de erradicar con-
dições ou doenças hereditárias. Ocorre que essa [...] não seria atualmente aprovado, devido à in-
promessa é marcada por complexas questões certeza a respeito da segurança e eficácia, a tec-
éticas, entre elas: não é possível saber alguns dos nologia está avançando rapidamente, e a edição
caminhos que a geração de descendentes viáveis de células germinativas, pode, num futuro não
poderia ser afetada; como proceder quando o muito distante, tornar-se uma possibilidade
processo de edição não for bem-sucedido; bem realista que mereça serias considerações [...]
como as características ou qualidades presen- existem circunstancias em que a edição de
tes no próprio conceito de enhancement como células germinativas ou embriões, podem ser a
oposto a corrigir uma mutação prejudicial. única e a opção mais aceitável para os pais que
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desejam ter um criança ao minimizar os riscos diria que, com urgência, neste momento, ne-
de transmitir um seria doença ou deficiência. cessitamos de uma ciência com consciência27.
Existe uma história de debate em torno da pos- Ou seja, os avanços da tecnociência, a respeito
sibilidade de tornar as mudanças hereditárias da edição genética, não podem ocorrer sem um
para o genoma humano. Por causa dos efeitos amplo consenso da sociedade, sem um engaja-
de tais mudanças serem multigeracionais, quer mento equitativo das diferentes vozes, pois o que
sejam os benefícios potenciais, bem como os está em jogo é a alteração da natureza humana
riscos podem ser multiplicados25(144). e da humanidade. Esse diálogo, portanto, deve
levar em conta os saberes da técnica, da ciência,
Não é à toa que mesmo os cientistas mais da medicina, mas também as questões sociais,
entusiasmados envolvidos nessas pesquisas, ambientais, éticas e morais, o que compõe o que
ao se darem conta de tamanho perigo, com se classifica como bioética global.
essa alta possibilidade de riscos e danos poten- A engenharia genética tem provocado espe-
ciais serem multiplicados hereditariamente, rança e temor, de tecnofobia e de tecnoutopia
tornaram-se os primeiros a levantar a bandeira na humanidade. Contudo, uma abordagem
de que precisamos de mais prudência, pre- prudente, que leve em conta as lições da histó-
caução e de um consenso de uma moratória ria, ajudará a mitigar tanto o alarmismo apoca-
internacional. Nesse sentido, a edição genética líptico de um lado quanto o utopismo ingênuo
torna-se também uma questão de saúde e de do outro, que caracterizam os debates hoje em
política pública. torno das invocações tecnologias genéticas.
A humanidade necessita de uma tecnoci-
ência responsável, respeitadora e protetora da
vida, desde o âmbito individual até o cósmico Colaboradores
ecológico, e não de uma tecnociência mani-
puladora, interessada unicamente na glória Sganzerla A (0000-0001-8687-3408)*, Pessini
individual e nos interesses econômicos. Edgard L (0000-0002-7940-2998)* contribuíram
Morin, notável pensador e educador francês, igualmente para a elaboração do manuscrito. s
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