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O estatuto
do conhecimento
científico

Capítulo 9
O que é e como se constrói a ciência

Lição 34 | Conhecimento vulgar e conhecimento científico


Lição 35 | O método científico: a perspetiva indutivista
Lição 36 | Críticas ao indutivismo
Lição 37 | O falsificacionismo de Popper
Lição 38 | Conjeturas e refutações
Muitas pessoas pensam que a ciência é o melhor
exemplo de que o conhecimento é possível. Algumas
consideram mesmo que só a ciência merece verdadei-
ramente ser chamada «conhecimento».

Esta confiança na ciência não surgiu por acaso. Afi-


nal, os resultados por ela alcançados e a sua aplicação
prática têm tido um enorme impacto, quer na maneira
como compreendemos o mundo quer na maneira
como vivemos no nosso dia a dia. Dos medicamentos
aos telemóveis, dos óculos que usamos aos automó-
veis, da luz elétrica à Internet, tudo isso é fruto da
ciência. E tudo isso são coisas sem as quais já quase
não nos conseguimos imaginar.

Como conseguiu a ciência tais proezas? Será que o


sucesso da ciência se deve à maneira como os cientis-
tas trabalham, a algum método especial? Será que
esse sucesso mostra que a ciência nos proporciona
verdades objetivas e inquestionáveis acerca da reali-
dade? E como progride a ciência?

Estas não são questões científicas, mas questões fi-


losóficas acerca da ciência, para quais não há, ao
contrário do que se poderia supor, respostas consen-
suais.

São algumas das respostas para estas questões que


iremos estudar e discutir nos próximos capítulos.
Percurso do Capítulo 9

O que é
a ciência?

Como se faz?
Caraterísticas
(método)

Conhecimento vulgar Indutivismo Falsificacionismo


e conhecimento
científico

Watching the Stars, fotografia de Pedro Daniel.

Os principais protagonistas da ciência moderna (Galileu, Kepler, Newton e outros) atribuíam um papel especial
à observação rigorosa da natureza e à experimentação, considerando que essas eram as marcas distintivas da ati-
vidade científica. Graças ao método científico, somos capazes de dar boas explicações para alguns dos mais fasci-
nantes aspetos do universo.

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O que é e como se constrói a ciência Capítulo 9

Lição 34
Conhecimento vulgar
e conhecimento científico
A ciência é simplesmente senso comum no seu melhor,
ou seja, é rigorosamente cuidadosa na observação
e, na lógica, é impiedosa com as falácias.
Thomas Huxley

A ciência é uma tentativa sistemática e organizada de compreender o mundo: de


que é feito, como funciona e porquê.
Claro que desde sempre os seres humanos mostraram interesse em compreender
o mundo. Contudo, a ciência, tal como a entendemos hoje, surgiu apenas por volta
do início do século XVII, com os esforços e as descobertas revolucionárias de pessoas
como Galileu Galilei (1564-1642) e Johannes Kepler (1571-1630), impulsionados pelas
ideias de Nicolau Copérnico (1473-1543) e de Francis Bacon (1561-1626) e continuados
por Isaac Newton (1643-1727) e muitos outros. Esse foi um período tão marcante que
costuma ser referido como a Revolução Científica que deu origem à ciência moderna.
Mas o que trouxe de especial a Revolução Científica a ponto de se considerar que só
a partir daí passou a haver ciência de pleno direito?

Uma caraterização da ciência


Galileu é geralmente apontado como o fundador da ciência moderna. Costumam
ser apresentadas três razões principais para isso.
Em primeiro lugar, lutou pela autonomia da ciência em relação à religião e à mera
especulação filosófica. Contra a autoridade e a tradição, insistiu que a ciência não de-
via depender do que diziam as Sagradas Escrituras nem do saber livresco aprendido
nas escolas. Pelo contrário, Galileu considerava que se devia procurar o conhecimento
da natureza diretamente na própria natureza.
Em segundo lugar, defendeu um método próprio para a ciência, alegando que, para
se fazer ciência, tem de se obedecer a certos princípios metodológicos. Esses princí-
pios ou regras eram genericamente os seguintes: 1) começar com observações cuida-
dosas dos factos que se quer explicar; 2) formular hipóteses explicativas para o que foi
observado; 3) deduzir consequências das hipóteses e tentar confirmá-las recorrendo a
experiências; 4) finalmente, selecionar apenas as hipóteses confirmadas, as quais se
tornam então teorias que incluem leis científicas sobre o funcionamento da natureza.
Dado o papel crucial da experimentação na confirmação das hipóteses, o método cien-
tífico adotado por Galileu veio a ser conhecido como método experimental.
Em terceiro lugar, reivindicou para a ciência o rigor e a precisão da linguagem ma-
temática. As leis científicas puderam, então, ser expressas quantitativamente, o que
permitiu fazer previsões rigorosas.

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PARTE 3 O estatuto do conhecimento científico

Foi o nascimento desta atividade autónoma, metódica e rigorosa que tornou pos-
sível a Revolução Científica, a qual nos deu a conhecer coisas tão fascinantes como a
constituição básica da matéria, a origem da enorme diversidade de seres vivos, o fun-
cionamento do cérebro humano ou a formação da Terra e das estrelas.
Os sucessos da ciência pareceram tão irresistíveis que muitas pessoas acabaram
por encará-la de uma forma totalmente acrítica, defendendo que só o saber científico
tem realmente valor cognitivo e que só a ciência pode contribuir para o progresso da
humanidade. Esta atitude dogmática em relação à ciência é chamada cientismo. No
entanto, esta é uma ideia que a generalidade dos cientistas não partilham, sendo mui-
tas vezes eles próprios os primeiros a alertar para os limites da ciência.

Ciência ou tecnologia?
Confunde-se frequentemente a ciência com a tecnologia. Mas, apesar de depende-
rem uma da outra, trata-se de coisas diferentes.
A atividade científica consiste essencialmente na investigação com vista a construir
teorias explicativas e a encontrar leis que permitam fazer previsões. O cientista é um
investigador, e a sua atividade é essencialmente gerar novos conhecimentos.
Por sua vez, a tecnologia consiste no resultado da aplicação dos conhecimentos ob-
tidos pela ciência. Mais do que a investigação teórica, o que carateriza a tecnologia é
a aplicação prática, materializada na invenção ou construção de instrumentos e de
equipamentos. A tecnologia é, então, um assunto de engenheiros.
A confusão entre ciência e tecnologia – entre o cientista e o engenheiro – é com-
preensível, pois cada uma delas contribui para o avanço da outra. Por um lado, cons-
troem-se novos equipamentos recorrendo ao conhecimento facultado pelas ciências;
por outro lado, as ciências precisam dos equipamentos postos à sua disposição pelos
engenheiros (telescópios, microscópios, detetores de raios X, etc.) para melhor obser-
varem o que se pretende investigar. Por isso a ciência e a tecnologia parecem insepa-
ráveis, a ponto de alguns cientistas serem, ao mesmo tempo, engenheiros, e de alguns
engenheiros serem, ao mesmo tempo, cientistas.

O conhecimento vulgar (ou senso comum)


Contudo, seria um exagero pensar que só há conhecimento científico. Mesmo antes
de haver ciência, as pessoas já sabiam muitas coisas de que necessitavam para sobrevi-
ver: sabiam, por exemplo, que certas plantas eram venenosas e que outras tinham pro-
priedades curativas; que há uma altura certa para semear os campos e outra para colher
os frutos; que o sal conserva os alimentos e que o calor os deteriora mais rapidamente.
Aprendemos muitas coisas à nossa própria custa: por necessidade e com as lições
que a vida nos foi dando. Mas também aprendemos com o que outros mais experientes
do que nós – os nossos pais e avós, as pessoas mais velhas, os antigos – foram parti-
lhando connosco e nos transmitiram ao longo dos tempos. Tudo isso faz parte de um
património comum de conhecimentos a que se dá o nome de «conhecimento vulgar»
ou também «senso comum», e que é diferente do conhecimento científico.

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O que é e como se constrói a ciência Capítulo 9

O senso comum é, então, o conjunto de crenças comuns a uma grande parte dos
seres humanos. Essas crenças são justificadas pela experiência quotidiana e pelo seu
valor prático, mantendo-se ao longo de gerações sem serem postas em causa.

Comparando senso comum e ciência


Por vezes os cientistas afirmam coisas que se opõem claramente ao senso comum.
Por exemplo, os físicos dizem-nos que a mesa à nossa frente é formada por pequenas
partículas em movimento – os átomos – e os astrónomos que o Sol não se move em
torno da Terra, o que parece contradizer o mais elementar senso comum. Mas tam-
bém é verdade que, em muitos aspetos, a ciência se aproveitou de algumas ideias de
senso comum. Por exemplo, a química aproveitou muita da informação comum sobre
certas propriedades das plantas, de há muito conhecidas.
Há, todavia, uma caraterística central da ciência que raramente está presente no senso
comum: a sua capacidade para produzir teorias explicativas. O senso comum pode di-
zer-nos que certa planta tem propriedades curativas, mas raramente explica porquê.
Assim, a ciência distingue-se do senso comum pelo seu caráter essencialmente
teórico e explicativo, mas também pelo seu elevado grau de sistematização, pela
forma metódica e organizada como se adquire o conhecimento, além da forma crítica
como é avaliado.

Senso comum Ciência


Como um corpo de conhecimentos Como um corpo de conhecimentos
Como
dispersos e pouco estruturados. sistematizados e fortemente estru-
se apresenta?
turados.
Muitas vezes de forma espontânea, Tipicamente, é o resultado de inves-
Como
sendo outras vezes herdado de ge- tigação metódica e organizada.
se adquire?
rações anteriores.
Geralmente procura-se descrever A finalidade é geralmente produzir
Qual
as coisas com fins essencialmente boas teorias explicativas.
a finalidade?
práticos.
Como é É encarado e transmitido de forma É criticamente avaliada e testada
encarado(a)? geralmente dogmática. pelos próprios cientistas.

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PARTE 3 O estatuto do conhecimento científico

ATIVIDADE 72

Eis uma lista de caraterísticas da ciência:


1. A sistematização.
2. O poder explicativo.
3. O método.
4. A atitude crítica.
5. O caráter teórico.
Indique qual destas caraterísticas é realçada em cada uma das citações abaixo.
Caraterística
Citação
realçada
«A ciência é mais uma maneira de pensar do que um corpo de conhecimen-
tos». Carl Sagan

«Toda a ciência e toda a filosofia são senso comum esclarecido». Karl Popper

«A ciência é conhecimento organizado». Kant

«O conhecimento e a descoberta científicos têm sido alcançados apenas


por aqueles que foram à sua procura sem qualquer finalidade prática em
vista». Max Planck

«A busca de boas explicações é, a meu ver, o princípio básico regulador [...]


da ciência». David Deutsch

ATIVIDADE 73

Senso comum Ciência

Por Por
Sim Não Sim Não
vezes vezes

1. É motivado por necessida-


des práticas.

2. É preciso e rigoroso.

3. É justificado pela experiên-


cia quotidiana.

4. É estruturado.

5. Dá boas explicações.

6. É uma atividade metódica.

7. É informativo.

8. É criticamente avaliado.

9. Depende da observação em-


pírica.

10. É testável.

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O que é e como se constrói a ciência Capítulo 9

Lição 35
O método científico:
a perspetiva indutivista
Quer investiguemos um princípio científico quer um facto
particular, cada passo na sequência de inferências
é essencialmente indutivo, tanto quando recorremos
à experimentação como quando recorremos ao raciocínio.
John Stuart Mill

Muitos filósofos consideram que a chave do sucesso da ciência depende da ma-


neira como os cientistas trabalham, isto é, do método que a distingue de tudo o resto
e a torna especial. Mas que método é esse?
Esta é uma pergunta para a qual não há uma resposta consensual. As duas princi-
pais perspetivas rivais são o indutivismo (o método da ciência baseia-se no raciocínio
indutivo) e o dedutivismo (o método baseia-se no raciocínio dedutivo).
A perspetiva indutivista clássica é normalmente associada aos defensores do mé-
todo experimental, tal como este foi entendido durante a Revolução Científica. O fi-
lósofo Francis Bacon foi quem primeiro defendeu um método para a ciência baseado
na indução. Mas outros, como John Stuart Mill (1806-73) e Hans Reichenbach (1891-
-1953), defenderam versões diferentes do indutivismo.
A perspetiva dedutivista – ou não indutivista, como também se diz – tem sido as-
sociada ao seu mais ilustre defensor, o filósofo Karl Popper (1902-94). Esta perspetiva
é mais conhecida pelo nome de falsificacionismo.
Nesta lição vamos apresentar apenas a perspetiva indutivista.

O método experimental
e o raciocínio indutivo
Recordando o que foi estudado na Lição 15, tanto as generalizações como as pre-
visões são raciocínios indutivos. No primeiro caso partimos da observação de casos
particulares3 para concluirmos com uma afirmação geral. No caso das previsões, a
conclusão diz respeito a um acontecimento particular futuro, obtida também a partir
de observações feitas no passado.
Ora, a ciência visa precisamente estabelecer teorias e leis universais capazes de fa-
zer previsões rigorosas a partir de um número finito – mesmo que elevado – de obser-
vações particulares e de experiências realizadas. Assim, de acordo com os indutivistas,
não haveria ciência sem indução, cujo papel é central no método científico. Basta pen-
sar que o método experimental começa precisamente com a observação – por isso se
diz que a ciência parte de factos – e que as hipóteses são confirmadas pela experi-
mentação.

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PARTE 3 O estatuto do conhecimento científico

Isso não poderia ser feito recorrendo apenas ao raciocínio dedutivo, defendem os
indutivistas, pois consideram que a dedução não tem o caráter ampliativo – isto é, não
acrescenta conhecimento – que se espera encontrar na ciência. A ideia dos indutivis-
tas é que o raciocínio dedutivo é meramente demonstrativo, querendo com isso dizer
que a dedução se limita a estabelecer na conclusão o que já estava implícito nas pre-
missas, o que pode aumentar o nosso grau de certeza na conclusão, mas não aumenta
substancialmente o nosso conhecimento, pensam eles. Assim, num raciocínio dedu-
tivo que tenha como premissas enunciados sobre observações particulares, nunca se
poderia chegar a uma conclusão geral. Mesmo num raciocínio dedutivo que parta de
premissas gerais, precisamos de ter a garantia de que tais premissas são verdadeiras
– como chegámos lá? –, o que só é possível recorrendo, mais uma vez, à indução.
Não é que a dedução não tenha a sua importância, pois ela intervém quando é pre-
ciso deduzir consequências das hipóteses, as quais terão de ser depois experimental-
mente confirmadas. Por isso há até quem, realçando esse aspeto, prefira chamar hipo-
tético-dedutivo ao método experimental. Mas os indutivistas pensam que só a
indução permite explicar o caráter ampliativo que encontramos nos princípios gerais
e nas previsões das teorias científicas.
Muitos indutivistas sublinham que a indução está, aliás, duplamente presente no
método experimental: tanto no processo de descoberta como no processo de justifi-
cação de teorias.

O papel da indução na descoberta e na justificação


Alguns filósofos chamaram a atenção para uma distinção importante entre a ma-
neira como se dá a descoberta científica – o contexto de descoberta – e a maneira
como se justificam os resultados obtidos com essa descoberta – o contexto de justi-
ficação. Há mesmo quem pense que a maneira como se descobre um dado resultado
científico é irrelevante para a confiança que tal resultado merece.
Por exemplo, um cientista pode ter sonhado com uma dada hipótese que se veio
a revelar verdadeira; ou pode ter «tropeçado nela» por acaso, como sugere a história
da maçã que caiu na cabeça de Newton enquanto descansava deitado à sombra uma
macieira, descobrindo assim a explicação para a queda dos corpos; pode até ter-se
inspirado em alguma velha história fantástica ou simplesmente na sua imaginação.
Tudo isso pode ter dado origem a descobertas científicas. Mas a tarefa do cientista
está muito longe de se reduzir a isso.
O que é cognitivamente mais importante ainda não foi feito: ainda é preciso apre-
sentar provas ou razões que justifiquem a nossa confiança nessa descoberta e de que
ela funciona realmente. Como explica ela o que precisa ser explicado? Quais as con-
sequências que dela se extraem? Que previsões permite fazer? Responder a isso diz
respeito ao contexto de justificação.
Porém, muitos indutivistas defendem que a indução tem um papel central tanto na
descoberta como na justificação de teorias, sendo que o contexto de descoberta cor-
responde às duas primeiras fases do método experimental assinaladas na lição ante-
rior (observação de factos e formulação de hipóteses explicativas dos factos observa-
dos) e o contexto de justificação às outras duas (confirmação de hipóteses por meio
da experimentação e estabelecimento de leis gerais).

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O que é e como se constrói a ciência Capítulo 9

A inferência indutiva tem, por um lado, um papel central no processo de descober-


ta, pois mesmo quando algumas descobertas parecem ter surgido na cabeça do cien-
tista por mero acaso, ele já se debatia com um conjunto de observações para as quais
precisava de uma explicação geral. A hipótese imaginada só é vista como uma desco-
berta se, à partida, permitir explicar as observações realizadas. Portanto, a hipótese
acaba por ser sempre o resultado de uma generalização.
Por outro lado, tem também um papel central na justificação, pois as hipóteses só
serão aceites como teorias gerais se forem sucessivamente verificadas por experiên-
cias particulares. As leis científicas são, pois, o resultado da indução a partir de expe-
riências em que se verifica aquilo que é previsto pela teoria. Assim, tanto a lógica da
descoberta como a lógica da justificação têm um caráter indutivo. É isso que o esque-
ma seguinte procura ilustrar.

Descoberta 1. observação indução 2. hipótese

… Justificação 3. experimentação indução 4. lei geral

ATIVIDADE 74

De acordo com a perspetiva indutivista…

da observação.

1. A investigação de hipóteses.
científica parte de problemas.

de experiências.

refutar hipóteses.

2. A experimentação construir hipóteses.


destina-se a confirmar hipóteses.

descobrir novas hipóteses.

são previsões.

3. As hipóteses são generalizações.


científicas são deduzidas.

são sempre verdadeiras.

induz-se a partir da observação e a partir da experimentação.

4. No método induz-se apenas a partir da observação.


experimental induz-se apenas a partir da experimentação.

induz-se a partir das hipóteses.

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PARTE 3 O estatuto do conhecimento científico

ATIVIDADE 75
Teorias científicas e cientistas
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Horizontais Verticais
4. Químico russo, criador da primeira ta- 1. Há três leis com o nome deste astrónomo, que descobriu
bela periódica. que as órbitas dos planetas são elípticas e não circulares.
6. É o autor da mais conhecida teoria da 2. Há duas teorias com este nome, uma geral e outras res-
biologia. trita.
9. Teoria defendida por Copérnico e a fa- 3. Esta é a teoria sobre as placas …
vor da qual Galileu apresentou provas. 5. O pai da química moderna, conhecido por formular o
12. A teoria que explica como surgiram as princípio da conservação da matéria.
espécies e se desenvolveram. 7. Autor da teoria da gravitação universal e um dos mais
13. Descobriu, com James Watson, a estru- importantes cientistas de sempre.
tura do ADN. 8. Este Max é alemão e é considerado o pai da física quân-
14. Esta teoria diz que o universo começou tica.
com um big… 10. O mais conhecido cientista do século XX.
11. Teoria sobre a constituição básica da matéria.

ATIVIDADE 76
Leia o texto seguinte:
«No seu esforço de encontrar uma solução para o seu problema, o cientista pode soltar
a sua imaginação e o curso do seu pensamento criativo pode ser influenciado até por no-
ções cientificamente questionáveis. Por exemplo, no seu estudo sobre o movimento pla-
netário, Kepler foi influenciado pelo seu interesse numa doutrina mística sobre números e
por uma paixão por demonstrar a música das esferas. Porém, a objetividade científica é sal-
vaguardada pelo princípio de que as hipóteses e teorias científicas, embora possam ser li-
vremente inventadas e propostas na ciência, só podem ser aceites no corpo do conheci-
mento científico se passarem pelo escrutínio crítico, que inclui particularmente o confronto
de previsões apropriadas com observações ou experiências cuidadosas.»
Carl Hempel, Filosofia das Ciências da Natureza, pp. 14-18.

1. O autor do texto diz haver dois momentos ou situações claramente distintas no decurso
da atividade do cientista. Como costumam ser designados?
2. Refira os elementos do texto que descrevem cada um desses momentos.

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O que é e como se constrói a ciência Capítulo 9

Lição 36
Críticas ao indutivismo
As vulgares divisões em sujeito e objeto, mundo exterior e mundo
interior [...] só servem para suscitar equívocos. De modo que,
na ciência, o objeto da investigação não é a natureza em si mesma,
mas a natureza subordinada à nossa maneira de colocar
o problema. [...] A ciência já não é um espetador
colocado em frente da natureza.
Werner Heisenberg

Na lição anterior foi apresentada a versão clássica ou tradicional do indutivismo.


Há, contudo, outras versões mais recentes que procuram responder às várias objeções
levantadas ao indutivismo clássico. Quais são essas objeções?
Eis três das mais importantes.

Como observar o inobservável?


Os indutivistas defendem, como vimos, que em ciência se parte sempre da obser-
vação e que o papel da indução é precisamente chegar a teorias universais capazes
de explicar o que foi observado.
Por exemplo, Galileu viu muitas vezes objetos a cair e observou que eles levavam
maior velocidade quando chegavam ao chão do que imediatamente após serem lar-
gados livremente no ar. Tentou, então, explicar como se comportam os objetos
quando são deixados em queda livre. Depois de muitas observações, formulou uma
hipótese que acabou por confirmar recorrendo à experimentação – as célebres expe-
riências do plano inclinado –, estabelecendo a teoria de que a velocidade não é cons-
tante e formulando uma lei universal, de acordo com a qual um corpo em queda livre
leva o dobro do tempo para percorrer o quádruplo do espaço.
Claro que Galileu só partiu da observação porque aquilo que pretendia explicar
podia ser observado. Porém, há variadíssimos casos de explicações científicas em que
aquilo que precisa de ser explicado não é diretamente observável: é o caso das partí-
culas subatómicas, como os neutrinos, ou de coisas invisíveis como campos eletro-
magnéticos. Já sem falar da origem do universo, que os cientistas também procuram
explicar e que ninguém alguma vez observou.
Portanto, argumentam alguns filósofos, não é verdade que, em ciência, se parte
sempre da observação do que se pretende explicar, ao contrário do que os indutivis-
tas defendem.

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PARTE 3 O estatuto do conhecimento científico

A observação pura é possível?


Partir da observação significa, de acordo com os indutivistas, registar e classificar
cuidadosamente os factos empíricos de forma completamente neutra e isenta, isto é,
sem privilegiar qualquer perspetiva teórica. Caso a observação não fosse neutra, o
cientista estaria a ser tendencioso, pois acabaria por selecionar os factos observados
em função das suas convicções ou inclinações teóricas. Ora, isso seria, no fundo, pôr
a teoria antes da observação, invertendo de alguma maneira as coisas, o que o indu-
tivista não pode admitir.
Mas para o que havemos exatamente de dirigir a nossa atenção quando fazemos
observações se não tivermos ideia do que estamos à espera de encontrar? Será que
a observação pura, sem qualquer enquadramento teórico, é possível?
Muitos filósofos sublinham que, perante tanta coisa que pode ser observada e regis-
tada, o cientista tem de selecionar o que interessa, deixando de parte o que não inte-
ressa; tem de decidir entre o que é relevante e o que não é relevante. Ora, a não ser que
a decisão seja tomada ao calhas, o que contraria a prática científica, o cientista só con-
segue tomar essa decisão com base em algum critério prévio. Que critério é esse?
Tal critério só pode ser proporcionado por alguma hipótese inicial ou expetativa
teórica. A ideia é que geralmente prestamos mais atenção àquilo que, de certo modo,
já procurávamos. Tem, portanto de haver como que uma luz que guia a observação,
sendo essa luz alguma hipótese básica ou interesse teórico. Isto explica também por
que razão dois cientistas de áreas diferentes observam aspetos diferentes quando
olham para a mesma coisa: por exemplo, um geólogo e um biólogo podem estudar
o mesmo local, mas o geólogo vai certamente reparar em certos aspetos que esca-
pam ao biólogo, e vice-versa. Assim, a observação acaba sempre por ser contaminada
(influenciada) pela teoria, pelo que a observação pura que os indutivistas supõem ser
o ponto de partida não é realmente o ponto de partida, dado nem sequer ser possível.

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O que é e como se constrói a ciência Capítulo 9

O problema da indução
Talvez a mais importante objeção ao indutivismo seja o problema da indução, ini-
cialmente levantado por David Hume, que já conhecemos da Lição 32.
Hume pergunta como podemos saber, por exemplo, que todos os corvos são ne-
gros (generalização) ou que o próximo corvo que alguém vir será negro (previsão)?
A resposta é, em ambos os casos: por indução. Quer dizer, baseamo-nos num grande
– mas finito – número de casos particulares observados, daí retirando a conclusão uni-
versal de que todos os corvos, mesmo os que nunca observámos, são negros ou de
que o próximo, que ainda ninguém observou, será também negro. Isto é a indução a
funcionar.
Mas, pergunta Hume, como podemos nós confiar no raciocínio indutivo? Afinal, o
que nos garante que os corvos que ainda não observámos sejam como os que obser-
vámos? Tal garantia é-nos dada, diz-se, pelo princípio de que a natureza é uniforme, isto
é, por ela ser previsível e repetitiva. É isso que justifica a nossa confiança no raciocínio
indutivo. Mas esse princípio não pode ser estabelecido dedutivamente; pelo contrário,
o princípio de que a natureza é uniforme só pode basear-se na experiência, ou seja, em
observações anteriores. Nesse caso, o princípio é o resultado de uma generalização.
Sendo assim, ele próprio se baseia no raciocínio indutivo. Mas isso é claramente fala-
cioso – trata-se de uma petição de princípio. Isto é como se, num tribunal, o acusado
fosse também chamado a depor como sua própria, e única, testemunha de defesa.
Que conclusão Hume retira daqui? Que justificar a nossa confiança no raciocínio in-
dutivo recorrendo a outro raciocínio indutivo é não justificar coisa alguma. Para con-
fiarmos no raciocínio indutivo, ele precisa de uma justificação independente, que não
existe. Logo, a indução é injustificada e não é confiável.
Ora, se o método científico se baseia essencialmente no raciocínio indutivo, como
defendem os indutivistas, e este não é confiável, então é a própria ciência que não é
confiável. Parece, pois, que, se quisermos continuar a confiar na ciência, temos de re-
jeitar o indutivismo.

177
PARTE 3 O estatuto do conhecimento científico

ATIVIDADE 77

Procure (numa enciclopédia, na Internet, etc.) e apresente um bom exemplo de uma


teoria científica que tente explicar algo que não seja diretamente observável.

ATIVIDADE 78

A experiência Michelson-Morley é muitas vezes referida como o mais brilhante erro da his-
tória da ciência. O nome deve-se aos dois cientistas americanos que, no ano de 1887, levaram
a cabo a célebre experiência com a velocidade da luz, sendo depois repetida e aperfeiçoada por
diversas vezes até cerca de 1905. O objetivo principal da experiência era provar a existência do
éter, a substância misteriosa que ocupava todo o espaço dito «vazio», postulada pela Teoria
Ondulatória da luz. De acordo com a Teoria Ondulatória – que a generalidade dos físicos da al-
tura pensavam substituir com sucesso a anterior Teoria Corpuscular –, a luz era formada por on-
das e não por pequeníssimos corpos. Mas, a haver ondas luminosas, teria de existir um meio no
qual elas se propagassem, tal com as ondas sonoras se propagam no ar. Esse meio nunca antes
detetado só poderia ser o éter, o tal quinto elemento misterioso de que falavam alguns filósofos
da Antiguidade grega. Ora, a experiência de Michelson e Morley visava precisamente usar ondas
luminosas em diferentes sentidos, nomeadamente contra e a favor do movimento de translação
da Terra, de modo a detetar interferências do vento de éter. Para esse efeito, mandaram cons-
truir um engenhoso instrumento, precisamente chamado interferómetro, que emitia as tais on-
das e, usando um sistema de espelhos, elas eram refletidas e reenviadas para um sensor de luz.
O que se esperava era que ondas emitidas em sentidos diferentes regressassem em momentos
ligeiramente diferentes, comprovando assim a interferência do vento de éter.
Porém, o resultado foi sempre o mesmo e sempre dececionante para os dois físicos, pois
nunca se chegou a verificar o que estavam à espera: as ondas luminosas chegavam sempre ao
mesmo tempo. Pensaram que havia problemas com o aparelho, que não estava devidamente
calibrado, e mandaram fazer outro melhor. Mas o resultado continuou a ser o mesmo, levando-
-os a confessar que não percebiam porquê.
Mas, apesar de Michelson e Morley ficarem abatidos com o insucesso da sua experiência, al-
guém viu aí uma descoberta importante, que passou, de certo modo, ao lado deles próprios e
que acabou por ter consequências importantíssimas para a história da ciência. Essa descoberta
foi a de que a velocidade da luz é constante, independentemente do observador, tendo Einstein
recorrido a ela para elaborar a famosa Teoria da Relatividade, ao mesmo tempo que descartou
a existência do éter.

– Esta história verdadeira pode ser uma boa ilustração de uma das objeções ao induti-
vismo. Qual e porquê?

ATIVIDADE 79

1. Alguns filósofos pensam que a observação


pura é impossível porque

2. De acordo com Hume, todas as inferên-


cias indutivas pressupõem

3. A ciência não tem de partir da observação


porque

4. Segundo Hume, a justificação da indução


é circular porque

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O que é e como se constrói a ciência Capítulo 9

Lição 37
O falsificacionismo de Popper
Poderia dizer-se que, ao rejeitar o método de indução,
privo a ciência empírica daquilo que constitui, aparentemente,
a sua caraterística mais importante; isto quer dizer que afasto
as barreiras que separam a ciência da especulação metafísica.
A minha resposta é a de que a razão principal para eu rejeitar
a Lógica Indutiva consiste, precisamente, [...] em ela não
proporcionar um adequado «critério de demarcação».
Karl Popper

O filósofo Karl Popper (1902-94) dá razão a Hume, considerando não haver justifi-
cação adequada para o raciocínio indutivo. De facto, argumenta Popper, por maior
que seja o número de cisnes brancos observados, nunca será correto concluir que to-
dos os cisnes, incluindo os que não observámos, são brancos.
Será, então, que o problema da indução põe em causa a própria ciência? Popper
pensa que não. O problema da indução não constitui problema algum para a ciência,
do seu ponto de vista, porque o que distingue a ciência não é o raciocínio indutivo.
A ciência, considera Popper, passa muito bem sem a indução.
Mas se a indução não é, afinal, a caraterística diferenciadora da ciência, como dis-
tinguir a ciência do que não é ciência?

Demarcação e falsificabilidade
Popper argumenta que aqueles que defendem ser a indução aquilo que permite
demarcar a ciência do que não é ciência fazem-no porque acreditam que, graças ao
raciocínio indutivo, se pode verificar empiricamente teorias universais. Mas, como
mostrou Hume, nenhuma teoria universal é empiricamente verificável, seja de que ma-
neira for. Portanto, a indução de nada serve: recorrer à experiência para verificar indu-
tivamente hipóteses científicas equivale a procurar algo que não existe nem pode
existir. Assim, nem a indução nem a verificabilidade – isto é, a caraterística de ser ve-
rificável – funcionam como critério de demarcação entre teorias científicas e não cien-
tíficas.
No fundo, diz ele, o que é racional esperar de uma teoria científica não é que ela
seja empiricamente verificada, mas antes que ela possa ser empiricamente testada.
Essa é a marca de cientificidade que permite distinguir as teorias científicas de quais-
quer outras. Ora, recorrer à experiência para testar as suas teorias é algo que está ao
alcance dos cientistas, mesmo sem indução.

179
PARTE 3 O estatuto do conhecimento científico

Testar teorias é tentar ativamente encontrar casos que sejam incompatíveis com
ela. Mas isso é o oposto de verificá-las. O que os cientistas fazem com as suas teorias
é, pois, tentar falsificá-las. Ao passo que nenhuma quantidade de casos particulares
permite verificar uma proposição universal como a de que todos os cisnes são bran-
cos, basta observarmos apenas um cisne que não seja branco para a falsificar, isto é,
para provar que é falsa. Tudo o que se exige é procurar informação empírica relevante
e raciocinar dedutivamente, como se verá adiante.

O esquema seguinte resume a perspetiva de Popper sobre a demarcação.

Uma teoria é científica só se for

TESTÁVEL

Uma teoria é testável só se for

empiricamente FALSIFICÁVEL

Mas quais as teorias que são falsificáveis e quais as que não o são?

Falsificabilidade e falsificação
Antes de avançarmos, temos de compreender a diferença entre falsificabilidade e
falsificação.
Os cientistas, como é natural, não estão interessados em teorias falsas. Pelo con-
trário, querem ver-se livres delas. Só que ninguém consegue ver-se livre de algo inde-
sejável se não estiver especialmente atento a isso e se não o procurar ativamente. Por
isso, temos de conceber casos possíveis que, a serem observados, falsificariam a teo-
ria em causa. Isto quer apenas dizer que tem de ser possível imaginar pelo menos um
caso incompatível com a teoria em causa. Podemos nunca vir a observar um caso des-
ses, mas tem de ser pensável. A ideia é a de que a teoria, para ser falsificável, tem de
«dizer» em que circunstâncias observacionais se revelaria falsa. É isto que significa ser
falsificável.
Assim, mesmo as teorias científicas que, por hipótese, são verdadeiras são também
falsificáveis. Por exemplo, a teoria de que todas as esmeraldas são verdes – caso seja
mesmo verdadeira – é, ainda assim, falsificável, pois é possível pensar o que teríamos
de encontrar para a refutar: uma esmeralda que não fosse verde. Claro que, se a teoria
for mesmo verdadeira, nunca iremos encontrar uma esmeralda assim e, portanto,
nunca a conseguiremos falsificar. Uma teoria ser falsificável não depende, pois, de ser
falsa nem de vir a ser efetivamente falsificada. Tal como uma coisa ser comestível não
depende de vir a ser efetivamente comida. Há muitas coisas comestíveis que nunca
foram nem serão alguma vez comidas por alguém.

180
O que é e como se constrói a ciência Capítulo 9

Graus de falsificabilidade
Outro aspeto importante é o de que, de acordo com Popper, há graus de falsifica-
bilidade. Em princípio, e desde que não seja falsificada, quanto maior for o grau de
falsificabilidade de uma dada teoria ou de uma dada proposição mais científica ela é.
De acordo com Popper, podemos avaliar o grau de falsificabilidade de uma teoria (ou
de uma proposição) da seguinte maneira:

Quanto mais coisas a teoria (ou a proposição) proibir mais conteúdo empírico ela
tem e maior é o seu grau de falsificabilidade.

O conteúdo empírico de uma teoria (ou de uma proposição) é a informação que


ela dá sobre o mundo que observamos.

Assim, é relativamente fácil saber que teorias (ou que proposições) são falsificáveis
em maior e em menor grau, mas também quais não são, de todo, falsificáveis. As que
não forem falsificáveis não são sequer científicas. Mas também não basta as teorias se-
rem falsificáveis para serem científicas. As teorias ou proposições científicas devem
também proporcionar boas explicações e permitir fazer algumas previsões. Por isso, a
teoria de que todos os filósofos franceses fumam cachimbo é falsificável, mas não é
científica. A falsificabilidade é apenas condição necessária, mas não suficiente, para a
cientificidade de uma teoria.
Há teorias, como as da astrologia e da psicanálise, que se autodenominam cientí-
ficas, mas que ou não são falsificáveis ou evitam por todos os meios confrontar-se com
casos que as refutem. Essas teorias apresentam-se como irrefutáveis, pelo que não
passam, segundo Popper, de pseudociências.

181
PARTE 3 O estatuto do conhecimento científico

Podemos compreender melhor a ideia de falsificabilidade e seus graus a partir dos


seguintes exemplos:
1. Há esmeraldas verdes. Não falsificável. Obviamente que observar uma esmeralda verde
não provaria que a proposição é falsa; mas observar uma esmeralda de outra cor qualquer
também não. Logo, nenhuma esmeralda que possamos observar, fosse de que cor fosse,
provaria que a proposição é falsa. Isto mostra que nenhuma afirmação particular é falsificável.

2. As esmeraldas são verdes ou não são verdes. Não falsificável. Mais uma vez, nenhuma
observação possível, fosse de esmeraldas verdes ou de outra cor, provaria que a afirmação é
falsa. Esta proposição não tem conteúdo empírico, pois não dá qualquer informação sobre o
mundo que observamos. Não pode ser falsa, seja o mundo como for.

3. Os pardais têm asas. Falsificável. Observar um pardal sem asas, por exemplo, bastaria
para provar que a proposição é falsa, ainda que ninguém tenha observado pardais sem asas.

4. As aves têm asas. Falsificável num grau mais elevado do que a anterior. Observar um pa-
pagaio sem asas, por exemplo, bastaria para provar que a proposição é falsa. Mas um papa-
gaio sem asas não provaria que a proposição 3 é falsa. Assim, há casos possíveis que falsifi-
cariam 4 mas não 3, ao passo que todos os que falsificariam 3 falsificariam também 4. Esta
última é mais «arriscada», pois proíbe mais coisas. Por isso, tem um maior conteúdo empírico
e tem um elevado grau de falsificabilidade.

5. Todas as aves voam. Falsificável. Podemos observar aves, como os pinguins ou as avestru-
zes, que não voam, o que prova que a proposição é falsa. Logo, é falsificável. Mas não é cien-
tífica, o que mostra que a falsificabilidade é apenas uma condição necessária, mas não sufi-
ciente, para uma proposição ser científica.
6. As pessoas que acreditam realmente na vitória acabam sempre por vencer. Não falsifi-
cável. Não é sequer possível saber o que teria de ser observado para provar que a proposi-
ção é falsa. Pelo que se sabe, acreditar em algo é um estado mental privado que não pode
ser empiricamente observado. Mesmo que alguém nos diga que acredita, ela pode não acre-
ditar realmente.
7. Ninguém irá ganhar o primeiro prémio num dos próximos sorteios do euromilhões. Não
falsificável. Se observarmos que alguém ganha o primeiro prémio da próxima semana, isso
não prova que a proposição é falsa; se observarmos que na próxima semana não sai o pri-
meiro prémio, isso também não prova que a afirmação é falsa. E o mesmo raciocínio se aplica
ao sorteio da semana seguinte, a não ser que se esclareça o que se entende por «próximos»,
indicando um número de semanas, por exemplo.

8. Ninguém irá ganhar o primeiro prémio do euromilhões do dia 3 de janeiro de 2004. Falsifi-
cável. Se observarmos que alguém ganha o primeiro prémio, provamos que a proposição é falsa.

9. Um português de Portalegre irá ganhar o primeiro prémio do euromilhões do dia 3 de


janeiro de 2014. Sim, com um elevado grau de falsificabilidade. Basta observarmos que o
primeiro prémio sai a alguém de Elvas para provarmos que é falsa. A quantidade de casos
que esta proposição proíbe torna-a altamente falsificável.
10. As pessoas agem sempre motivadas por sentimentos obscuros e inconfessáveis. Não
falsificável. Nenhuma observação seria capaz de mostrar que a proposição é falsa, pois qual-
quer observação seria, em princípio, compatível com ela. Este é um exemplo de uma teoria
da psicanálise, que Popper considera ser uma pseudociência, uma vez que procura apresen-
tar-se como uma teoria irrefutável.

182
O que é e como se constrói a ciência Capítulo 9

ATIVIDADE 80
Indique quais das seguintes afirmações são, de acordo com Popper, ver-
dadeiras e quais são falsas, explicando em que consiste a falsidade destas.
1. O problema da indução põe em causa a
ciência.

2. A indução não é o critério que permite dis-


tinguir o que é científico do que não o é.

3. O critério de demarcação é a mesma coisa


que o critério de cientificidade.

4. Para ser científica, uma teoria tem de ser


testável.

5. Uma teoria é testável só se for falsificada.

6. Qualquer teoria falsificada é falsificável.

7. Algumas teorias científicas não são falsificá-


veis.

8. Todas as teorias falsificáveis são científicas.

ATIVIDADE 81 Falsificável? Científica?

1. A próxima semana será propícia a relações amorosas para os


homens do signo Caranguejo.

2. Por vezes os professores enganam-se.

3. Cristiano Ronaldo irá marcar um golo de cabeça no jogo do


Campeonato do Mundo de 2014 contra a Alemanha.

4. Há pessoas com sorte.

5. Alguns pedaços de cobre dilatam quando são aquecidos.

6. Todos os portugueses são milionários.

7. Os planetas têm órbitas elípticas.

8. A Lua é feita de queijo.

ATIVIDADE 82
Assinale as afirmações da coluna B que são corretas.
A B

1. Todos os rubis são vermelhos. Mais falsificável do que 2 e 4.

2. Todas as pedras preciosas são vermelhas. Mais falsificável que 1, 3 e 4.

Mais falsificável que 4 e tão falsificável


3. Nenhum rubi é vermelho.
como 1.

4. O rubi da Marylin é vermelho. A mais falsificável de todas.

183
PARTE 3 O estatuto do conhecimento científico

Lição 38
Conjeturas e refutações
Prezado Senhor Popper:
Li o seu trabalho e, de um modo geral, concordo. [...] Não me
agrada de modo algum a tendência «positivista», agora na moda,
de apego ao observável. [...] Penso (como o senhor, aliás)
que a teoria não pode ser fabricada a partir dos resultados
da observação, antes tem de ser inventada.
Albert Einstein

Popper diz, como vimos, não haver lugar para a indução na ciência e que os cien-
tistas, em vez de tentarem verificar as suas teorias, têm de tentar falsificá-las. Isso im-
plica conceber o método científico de maneira diferente do habitual. Como proce-
dem, então, os cientistas?

O método crítico
É importante começar por sublinhar que, na opinião de Popper, o método cientí-
fico nada tem de especial, pois não é assim tão diferente do que se passa com qual-
quer outra atividade racional, incluindo a filosofia. No fundo, trata-se de reconhecer
que a ciência é, como a filosofia, um atividade crítica. Que método é esse, afinal?
Popper considera que o método crítico pode ser caraterizado como «o método
de conjeturas ousadas e de tentativas engenhosas e severas para refutá-las». Daí cha-
mar-lhe também «método das conjeturas e refutações». As coisas funcionam assim:

1. Tudo começa com algum problema. Se não houver problema, a investigação


nem sequer arranca. Popper insiste que qualquer teoria, seja científica ou filosó-
fica ou outra qualquer, é sempre uma resposta – ou tentativa de solução – para
algum tipo de problema, isto é, para algo que precisa de explicação. Não se
parte, portanto, da observação, como supõem os indutivistas.

2. Perante um dado problema, o cientista só tem uma coisa a fazer, que é avançar
com uma primeira tentativa de solução, isto é, com uma hipótese. A hipótese
tem um caráter meramente conjetural, ou seja, trata-se de uma suposição. Note-
-se que, para Popper, tanto faz falar de hipóteses, suposições ou teorias. Vai
tudo dar ao mesmo, pois o que ele quer sublinhar é o seu caráter conjetural. Daí
usar o termo «conjeturas» na designação do método científico. O que se espera
de uma conjetura ou hipótese é que seja ousada, isto, é que tenha um grande po-
der previsivo.

184
O que é e como se constrói a ciência Capítulo 9

3. A hipótese terá de ser testada, isto é, terá de ser sujeita a tentativas sérias de re-
futação. Este é o aspeto falsificacionista do método proposto por Popper, pois
tentar refutar uma hipótese é tentar confrontá-la com potenciais casos que pro-
vem a sua falsidade. E é aqui, e só aqui, que a observação e a experimentação
desempenham um papel importante, pois só elas permitem refutar as hipóteses.
Dado que as hipóteses ou teorias têm de incluir algumas previsões – quanto
mais previrem mais ousadas são –, os cientistas procuram fazer observações mi-
nuciosas ou realizar experiências rigorosas cujos resultados sejam incompatíveis
com aquilo que a teoria prevê.
O que acontece se a hipótese for refutada? A resposta de Popper é que ela terá de
ser substituída por outra melhor, que responda ao mesmo problema, mas que não en-
frente as mesmas dificuldades que a anterior. Essa nova hipótese terá, por sua vez de
ser submetida a testes severos, e assim sucessivamente, num processo de substituição
de más teorias por teorias cada vez melhores e mais resistentes a testes de falsificação.
E se a hipótese não for refutada? A resposta de Popper é que terá de se continuar
a tentar refutá-la com testes cada vez mais severos.

O papel da observação
e a corroboração de teorias
Vale a pena destacar três aspetos acerca do método das conjeturas e refutações.
Em primeiro lugar, o cientista não procura proteger a todo o custo as suas teorias
de eventuais ataques. Pelo contrário, o método exige que ele próprio seja crítico em
relação a elas. Felizmente, pensa Popper, se algum cientista ficar «agarrado» às suas
teorias, outros tratarão de as criticar por si. Isto revela o caráter essencialmente crítico
do método científico.
Em segundo lugar, contrariamente ao que supõem os defensores do método indu-
tivo, não se parte da observação, nem a experimentação serve para verificar ou con-
firmar teorias. A observação surge depois da hipótese, e a sua finalidade é encontrar
contraexemplos, e não suportá-la. Analogamente, a finalidade da experimentação é
tentar mostrar que não ocorre aquilo que a hipótese prevê, visando a sua falsificação,
e não a sua verificação.
Em terceiro lugar, é um método que se baseia apenas no raciocínio dedutivo, e não
no indutivo. Popper refere que a lógica dos testes experimentais obedece à forma ló-
gica da regra de dedução modus tollens, contrastando com o caráter falacioso do ra-
ciocínio caraterístico do método indutivista:

Falsificar teorias, segundo Popper Verificação de teorias, segundo os indutivistas


Se a teoria (T) é ver- Forma lógica da infe- Se a teoria (T) é verda- Forma lógica da infe-
dadeira, então ocorre rência: deira, então ocorre rência:
aquilo que ela prevê T→P aquilo que ela prevê T→P
(P). ¬P (P). P
Mas aquilo que ela pre- ∴ ¬T Aquilo que ela prevê ∴T
vê não ocorre. Aplicação da regra ocorre. Falácia da afirmação
Logo, a teoria não é modus tollens. Logo, a teoria é ver- da consequente.
verdadeira. dadeira.

185
PARTE 3 O estatuto do conhecimento científico

Isto mostra também, de acordo com Popper, que é errado afirmar que há teorias
ou hipóteses verdadeiras, dado que elas nunca são verificadas. Mesmo quando as
teorias passam com sucesso testes severos para as falsificar, continua a ser errado afir-
mar que são verdadeiras. Nem sequer é correto dizer que aumenta com isso o seu
grau de confirmação.
Então, se nunca se pode provar que uma teoria é verdadeira, o que dizer daquelas
que não conseguimos falsificar, mesmo que tentemos seriamente fazê-lo? Essas teo-
rias são, diz Popper, corroboradas. O termo usado por Popper para as teorias até en-
tão bem sucedidas é «corroboração» e não «verificação». Assim, uma boa teoria cien-
tífica é uma teoria corroborada. Nunca podemos estar certos de que alcançámos a
verdade. Popper prefere, por isso, falar de verosimilhança em vez de verdade.
O gráfico seguinte mostra o que se passa no método crítico defendido por Popper.

Perplexidade Conjetura Tentativa


inicial de refutação Corroborada
Resiste
continuam
aos testes
os testes
Observação
Hipótese
Problema Testes
(Teoria)
experimentais
Refutada
Não resiste
nova
aos testes
hipótese

Críticas a Popper
Várias objeções têm sido apontadas à perspetiva de Popper sobre a ciência. Vamos
referir, muito rapidamente, apenas três.
Uma delas é que a perspetiva de Popper não corresponde ao que realmente se
passa na prática: muitos milhares de cientistas que fazem todos os dias investigação
não procuram refutar teorias, tratando antes de lhes encontrar novas aplicações.
Além disso, há variadíssimos exemplos de teorias cujas previsões não se confirmaram
e que nem por isso foram abandonadas. Tudo o que aconteceu foi os cientistas pro-
cederem apenas a alguns ajustes na teoria, conservando-a em vez de a considerarem
falsificada. Mesmo que fosse desejável que os cientistas se comportassem como diz
Popper, a história da ciência parece mostrar que isso só raramente ocorre. Assim, a
teoria de Popper não descreve a realidade, antes se limitando a dizer como os cien-
tista deveriam proceder. Quer isto dizer a sua teoria acerca do método não é descri-
tiva, mas antes normativa.
Uma segunda objeção é que Popper só dá conta do conhecimento científico nega-
tivo e não daquele que, em geral, nos leva a dar importância à ciência: os seus resul-
tados positivos. O conhecimento útil da ciência tem um caráter positivo, por isso temos
razões práticas para acreditar nele. Sabemos por exemplo que a penicilina funciona
porque tem certos resultados, e não porque não foi falsificada.

186
O que é e como se constrói a ciência Capítulo 9

Uma última objeção é que, de acordo com Popper, não podemos proferir juízos so-
bre o futuro que sejam racionalmente justificados, pelo que nos deixa na mesma si-
tuação levantada pelo problema da indução. Como justificar, então, a minha previsão
de que se me atirar da janela do 20.° andar irei estatelar-me no chão em vez de flutuar
no ar? Popper concorda com Hume que é errado basear-me na ideia de que o futuro
será como o passado. Devo, então, concluir que é tão justificado acreditar que ficarei
a flutuar no ar como acreditar que irei estatelar-me no chão, caso me atire da janela
do 20.° andar?

ATIVIDADE 83

Complete o seguinte dicionário Popper

Método das conjeturas e refutações = método _________ .

Refutação = _________ .

Conjetura = _________ ou _________ .

Raciocínio científico = raciocínio _________ .

Forma lógica do processo de falsificação de teorias = regra _________ .

Teoria que passa o teste de falsificação = teoria _________ .

Teoria que não resiste aos testes = teoria _________ ou teoria _________ .

ATIVIDADE 84

– Dê um exemplo de uma teoria científica fortemente corroborada.


– Dê um exemplo de uma teoria científica falsificada.

187
PARTE 3 O estatuto do conhecimento científico

NESTE CAPÍTULO APRENDI QUE...


1. A ciência, em sentido moderno, surgiu com a Re- 15. A falsificabilidade e a falsificação não são exata-
volução Científica iniciada com Galileu, no início mente a mesma coisa.
do século XVII, ao reclamar autonomia (em relação 16. Uma teoria falsificada é falsificável, mas uma teo-
à religião e ao saber livresco) para o conhecimen- ria falsificável não tem de ser falsificada.
to da natureza, ao usar o método experimental e
17. De acordo com Popper, há graus de falsificabili-
ao recorrer à linguagem rigorosa da matemática.
dade, e é desejável que uma teoria ou uma pro-
2. O conhecimento científico é diferente do conhe- posição científica tenham um elevado grau de
cimento vulgar, ou senso comum. falsificabilidade.
3. O senso comum é um corpo de conhecimentos 18. Uma teoria ou proposição têm um grau de falsifi-
dispersos e pouco estruturados, é adquirido de cabilidade tanto mais elevado quanto mais con-
forma espontânea, limita-se a descrever as coisas teúdo empírico tiverem.
com intuitos práticos e é herdado e transmitido
19. Uma teoria ou proposição têm tanto mais conteú-
de forma acrítica (ou dogmática).
do empírico quanto mais informação derem so-
4. A ciência é um corpo de conhecimentos sistema- bre o mundo.
tizados e estruturados, é o resultado da investi-
20. Ser falsificável é uma condição necessária para
gação metódica, produz teorias explicativas e é
uma teoria ou uma proposição serem científicas,
criticamente avaliado.
mas não é uma condição suficiente.
5. Os defensores da perspetiva indutivista do mé-
21. As teorias científicas têm também de proporcio-
todo científico consideram que este assenta no
nar soluções, ainda que provisórias, a partir das
raciocínio indutivo, quer quando parte de obser-
quais se possam fazer algumas previsões.
vações particulares para concluir hipóteses gerais
quer quando procura confirmar essas hipóteses 22. As teorias que passam por científicas mas que se
por meio da experimentação. furtam à falsificabilidade apresentam-se como ir-
refutáveis, pelo que são pseudocientíficas.
6. Os indutivistas consideram ser a indução aquilo
que confere o caráter ampliativo ao conhecimen- 23. O método sugerido por Popper é o método crí-
to que se encontra na ciência. tico, das conjeturas e refutações.
7. De acordo com os indutivistas clássicos, a indu- 24. O método crítico parte sempre de um problema,
ção é importante tanto na descoberta científica a que se responde com uma hipótese (teoria),
como na justificação de teorias. para depois ser testada no sentido de a refutar
(falsificar).
8. Há objeções ao indutivismo: algumas teorias vi-
sam explicar inobserváveis, a observação é sem- 25. Se a teoria for refutada, terá de ser substituída
pre contaminada pela teoria e a objeção colocada por outra e submeter-se a novos testes de falsifi-
pelo problema da indução levantado por Hume. cação.
9. Uma alternativa ao indutivismo é o falsificacionis- 26. Se uma teoria sobreviver aos testes de falsifica-
mo, defendido por Popper. ção, não é verificada, mas sim corroborada.
10. Popper considera que o problema da indução 27. O papel da observação e da experimentação é,
não tem solução, mas que isso não afeta a ciência de acordo com Popper, o de testar ou pôr à prova
porque esta não recorre à indução, baseando-se as hipóteses, e não apoiá-las.
antes na dedução. 28. O método crítico baseia-se apenas no raciocínio
11. De acordo com Popper é logicamente impossível dedutivo, em particular na aplicação da regra de
verificar uma teoria científica. dedução modus tollens.
12. Na opinião de Popper, a falsificabilidade, e não a 29. Há várias objeções à perspetiva de Popper, no-
verificabilidade, é o critério de demarcação entre meadamente: na prática, os cientistas não proce-
as teorias científicas e as não científicas. dem como ele diz; ele admite apenas a existência
de conhecimento negativo; os juízos sobre o fu-
13. As teorias científicas têm de ser testáveis, e testar
turo são injustificados, deixando-nos numa situa-
uma teoria é tentar falsificá-la empiricamente.
ção semelhante à do problema da indução.
14. Tentar falsificar empiricamente uma teoria é pro-
curar casos que a teoria proíbe, isto é, observar
casos incompatíveis com a teoria.

188
O que é e como se constrói a ciência Capítulo 9

Texto 23
A emergência da ciência moderna
Lisa Bortolotti

«Bacon faz parte da chamada “revolução científica”. Os acontecimentos que condu-


ziram à aceitação do sistema copernicano do movimento dos planetas, que culmina-
ram na formulação das leis da física de Newton, são muitas vezes caraterizados como
os capítulos fundamentais da fascinante história do nascimento da ciência moderna.

Lisa Bortolotti
A razão para se investir a Revolução Copernicana de um papel tão importante na filo-
sofia da ciência não tem apenas a ver com o derrube espetacular das teorias astronó-
micas e físicas de Aristóteles e Ptolomeu, mas também com as inovações metodológi-
cas que foram ocorrendo gradualmente a partir do final do século XVI.
Eis as cinco mudanças mais dignas de nota:

1. A autoridade dos filósofos naturais do passado é posta em causa com base em no-
vas observações e novas ideias sobre o método da ciência;
2. A matemática passa a ser concebida como a linguagem da natureza, e é conferida
uma estrutura explicitamente matemática às teorias da física e da astronomia;
3. Os cientistas começam a fazer uso de experiências e da observação mediada de
uma maneira regular e sistemática, e intervêm ativamente na natureza;
4. Dá-se uma certa institucionalização da investigação colaborativa, o que origina o
desenvolvimento de sociedades eruditas;
5. O enquadramento para a explicação da natureza (o movimento, a cosmologia, a
fisiologia, etc.) deixa gradualmente de ser organicista, ou seja, de ver os fenóme-
nos naturais como o resultado de intenções, para passar a ser mecanicista, vendo
os fenómenos naturais como os efeitos de interações causais entre as várias partes
de uma máquina de funcionamento perfeito, quer se trate do corpo humano, quer
do universo como um todo.

Estes elementos estão inter-relacionados, e, vistos como um todo, dão-nos uma ideia
de quão moderna a ciência emergiu não somente do conquista de descobertas teóricas
e da adopção de novas metodologias, mas também da gradual instauração de novos
enquadramentos explicativos e da emergência de uma nova conceção da natureza.»
Lisa Bortolotti, Introdução à Filosofia da Ciência. Trad. de Jorge Beleza.
Lisboa: Gradiva, 2013, pp. 80-1.

189
PARTE 3 O estatuto do conhecimento científico

Texto 24
A ciência é senso comum esclarecido
Karl Popper
«A ciência, a filosofia, o pensamento racional, todos devem partir do senso comum.
Não, talvez, por ser o senso comum um ponto de partida seguro: a expressão “senso
comum” que uso aqui é muito vaga, simplesmente porque denota uma coisa vaga e
mutável – os instintos, ou opiniões de muitas pessoas, às vezes adequados ou verda-
deiros e às vezes inadequados e falsos.
Karl Popper

Como nos pode fornecer um ponto de partida uma coisa tão vaga e insegura como
o senso comum? A minha resposta é: porque não pretendemos nem tentamos cons-
truir (como o fizeram, digamos, Descartes [...] ou Kant) um sistema seguro sobre esses
“alicerces”. Qualquer das nossas muitas suposições se senso comum [...] da qual par-
tamos pode ser contestada e criticada a qualquer momento; frequentemente tal supo-
sição é criticada com êxito e rejeitada (por exemplo, a teoria de que a Terra é plana).
Em tal caso, o senso comum é modificado pela correção, ou é ultrapassado e substi-
tuído por uma teoria que, por menor ou maior período de tempo, pode parecer a cer-
tas pessoas como mais ou menos “maluca”. Se tal teoria necessitar de muito treino
para ser compreendida, poderá mesmo deixar para sempre de ser absorvida pelo senso
comum. Contudo, mesmo assim podemos exigir que tentemos chegar o mais perto
possível do ideal: Toda a ciência e toda a filosofia são senso comum esclarecido.»
Karl Popper, Conhecimento Objetivo. Trad. de Milton Amado.
Belo Horizonte: Editora Itataia, 1975 p. 42.

Texto 25
Há observação sem teoria?
Karl Popper
«A crença de que a Ciência procede da observação para a teoria é ainda tão firme e
generalizada que a minha recusa em subscrevê-la é frequentemente acolhida com in-
credulidade. [...]
Há vinte e cinco anos, tentei trazer esta questão a um grupo de estudantes de Física,
em Viena, iniciando uma conferência com as seguintes instruções: “Peguem no lápis
e no papel; observem cuidadosamente e anotem o que observarem!”. Eles pergunta-
ram, como é óbvio, o que é que eu queria que eles observassem. Manifestamente, a ins-
trução “Observem!” é absurda. [...] A observação é sempre seletiva. Requer um objecto
determinado, uma tarefa definida, um interesse, um ponto de vista, um problema. E a
sua descrição pressupõe uma linguagem descritiva, com palavras qualificativas; pres-
supõe similaridade e classificação, que pressupõem, por seu turno, interesses, pontos
de vista e problemas. “Um animal com fome”, escreve Katz, “divide o seu meio circun-
dante em coisas comestíveis e incomestíveis. Um animal em fuga vê caminhos por
onde se escapar e sítios para se esconder. Falando em termos gerais, os objetos mudam
de acordo com as necessidades do animal.” Podemos acrescentar que os objetos po-
dem ser classificados, e podem tornar-se semelhantes ou dissemelhantes, unicamente
desta maneira – relacionando-se com necessidades e interesses. Esta regra aplica-se não
só aos animais, mas também aos cientistas.»
Karl Popper, Conjeturas e Refutações. Trad. de Benedita Bettencourt.
Coimbra: Almedina, 2003, pp. 72-3.

190
O que é e como se constrói a ciência Capítulo 9

Texto 26
Atitude crítica e pseudociência
Karl Popper

«A atitude dogmática está claramente ligada à tendência para verificar as nossas leis
e os nossos esquemas, mediante uma tentativa de os aplicar e confirmar que vai ao
ponto de negligenciar as refutações; ao passo que a atitude crítica se traduz na pron-
tidão em modificar essas leis e esses esquemas; em testá-los; em refutá-los, em falsificá-
-los, se possível. Isto sugere que podemos identificar a atitude crítica com a atitude
científica, e a atitude dogmática com [...] a pseudocientífica. [...]
A atitude crítica, a atitude da livre discussão das teorias, que tem por finalidade des-
cobrir os seus pontos fracos no sentido de os aperfeiçoar, é a atitude da razoabilidade,
da racionalidade. É uma atitude que faz amplo uso da discussão verbal e da observação
– observação feita, porém, no interesse da discussão. A descoberta do método crítico
pelos Gregos deu origem, a princípio, à falsa esperança na solução de todos os velhos
problemas; na determinação de um conhecimento certo; e na possibilidade de condu-
zir à comprovação e justificação das nossas teorias. [...] Na verdade, nada pode ser justi-
ficado ou provado (fora do domínio da Matemática e da Lógica).»
Karl Popper, Conjeturas e Refutações. Trad. de Benedita Bettencourt.
Coimbra: Almedina, 2003, pp. 77-8.

Texto 27
Falsificabilidade e dedução
Karl Popper
«A minha posição está alicerçada numa assimetria entre verificabilidade e falsificabi-
lidade, assimetria que decorre da forma lógica dos enunciados universais. Estes enun-
ciados nunca são deriváveis de enunciados singulares, mas podem ser contraditados
pelos enunciados singulares. Consequentemente, é possível, recorrendo a inferências
puramente dedutivas (com o auxílio do modus tollens, da lógica tradicional), concluir
acerca da falsidade de enunciados universais a partir da verdade de enunciados singu-
lares. Essa conclusão acerca da falsidade dos enunciados universais é a única espécie
de inferência estritamente dedutiva que atua [...] de enunciados singulares para enun-
ciados universais.»
Karl Popper, A Lógica da Pesquisa Científica. Trad. de Leonidas Hegenberg
e Octanny da Mota. São Paulo: Editora Cultrix, 1974, p. 43.

191
PARTE 3 O estatuto do conhecimento científico

Texto 28
Uma avaliação da perspetiva de Popper
David Papineau

«A filosofia da ciência de Popper tem alguma força enquanto descrição de uma pes-
quisa científica pura. Não há dúvida de que muitas teorias científicas partem de conje-
turas exatamente do modo descrito por Popper. Quando a teoria geral da relatividade,
de Einstein, foi apresentada pela primeira vez, pouquíssimos cientistas acreditaram
efetivamente nela. Em vez disso, consideraram-na uma hipótese interessante e ficaram
curiosos por ver se era verdadeira. Nesse estádio inicial da vida de uma teoria, as reco-
David Papineau

mendações de Popper fazem muito sentido. Obviamente, se está curioso para ver se
uma teoria é verdadeira, o próximo passo é submetê-la a testes observacionais. Para
esse fim é importante que a teoria seja formulada em termos suficientemente precisos
para que os cientistas calculem o que ela implica a respeito do mundo observável – ou
seja, em termos suficientemente precisos para que ela seja falsificável. E, é claro, se a
nova teoria for falsificada, os cientistas rejeitá-la-ão e irão procurar alguma alterna-
tiva, ao passo que no caso da corroboração das previsões os cientistas continuarão a
investigá-la.
A filosofia da ciência de Popper erra, contudo, ao afirmar que as teorias científicas
nunca progridem além do nível da conjetura. Conforme acabei de dizer, as teorias
apresentam-se quase sempre como conjeturas no início, e podem permanecer como
conjeturas enquanto surgem os primeiros indícios. No entanto, em muitos casos a
acumulação de indícios a favor de uma teoria vai conduzi-la da condição de conjetura
à de uma verdade estabelecida. A teoria geral da relatividade surgiu como uma conje-
tura, e muitos cientistas ainda a consideraram hipotética [...]. Entretanto, esses indí-
cios já foram completados [...] e somente um cientista excêntrico encararia hoje a teo-
ria geral da relatividade como menos do que firmemente estabelecida.»

David Papineau, «Filosofia da Ciência», p. 295.

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