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O estatuto
do conhecimento
científico
Capítulo 9
O que é e como se constrói a ciência
O que é
a ciência?
Como se faz?
Caraterísticas
(método)
Os principais protagonistas da ciência moderna (Galileu, Kepler, Newton e outros) atribuíam um papel especial
à observação rigorosa da natureza e à experimentação, considerando que essas eram as marcas distintivas da ati-
vidade científica. Graças ao método científico, somos capazes de dar boas explicações para alguns dos mais fasci-
nantes aspetos do universo.
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O que é e como se constrói a ciência Capítulo 9
Lição 34
Conhecimento vulgar
e conhecimento científico
A ciência é simplesmente senso comum no seu melhor,
ou seja, é rigorosamente cuidadosa na observação
e, na lógica, é impiedosa com as falácias.
Thomas Huxley
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PARTE 3 O estatuto do conhecimento científico
Foi o nascimento desta atividade autónoma, metódica e rigorosa que tornou pos-
sível a Revolução Científica, a qual nos deu a conhecer coisas tão fascinantes como a
constituição básica da matéria, a origem da enorme diversidade de seres vivos, o fun-
cionamento do cérebro humano ou a formação da Terra e das estrelas.
Os sucessos da ciência pareceram tão irresistíveis que muitas pessoas acabaram
por encará-la de uma forma totalmente acrítica, defendendo que só o saber científico
tem realmente valor cognitivo e que só a ciência pode contribuir para o progresso da
humanidade. Esta atitude dogmática em relação à ciência é chamada cientismo. No
entanto, esta é uma ideia que a generalidade dos cientistas não partilham, sendo mui-
tas vezes eles próprios os primeiros a alertar para os limites da ciência.
Ciência ou tecnologia?
Confunde-se frequentemente a ciência com a tecnologia. Mas, apesar de depende-
rem uma da outra, trata-se de coisas diferentes.
A atividade científica consiste essencialmente na investigação com vista a construir
teorias explicativas e a encontrar leis que permitam fazer previsões. O cientista é um
investigador, e a sua atividade é essencialmente gerar novos conhecimentos.
Por sua vez, a tecnologia consiste no resultado da aplicação dos conhecimentos ob-
tidos pela ciência. Mais do que a investigação teórica, o que carateriza a tecnologia é
a aplicação prática, materializada na invenção ou construção de instrumentos e de
equipamentos. A tecnologia é, então, um assunto de engenheiros.
A confusão entre ciência e tecnologia – entre o cientista e o engenheiro – é com-
preensível, pois cada uma delas contribui para o avanço da outra. Por um lado, cons-
troem-se novos equipamentos recorrendo ao conhecimento facultado pelas ciências;
por outro lado, as ciências precisam dos equipamentos postos à sua disposição pelos
engenheiros (telescópios, microscópios, detetores de raios X, etc.) para melhor obser-
varem o que se pretende investigar. Por isso a ciência e a tecnologia parecem insepa-
ráveis, a ponto de alguns cientistas serem, ao mesmo tempo, engenheiros, e de alguns
engenheiros serem, ao mesmo tempo, cientistas.
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O que é e como se constrói a ciência Capítulo 9
O senso comum é, então, o conjunto de crenças comuns a uma grande parte dos
seres humanos. Essas crenças são justificadas pela experiência quotidiana e pelo seu
valor prático, mantendo-se ao longo de gerações sem serem postas em causa.
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PARTE 3 O estatuto do conhecimento científico
ATIVIDADE 72
«Toda a ciência e toda a filosofia são senso comum esclarecido». Karl Popper
ATIVIDADE 73
Por Por
Sim Não Sim Não
vezes vezes
2. É preciso e rigoroso.
4. É estruturado.
5. Dá boas explicações.
7. É informativo.
8. É criticamente avaliado.
10. É testável.
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O que é e como se constrói a ciência Capítulo 9
Lição 35
O método científico:
a perspetiva indutivista
Quer investiguemos um princípio científico quer um facto
particular, cada passo na sequência de inferências
é essencialmente indutivo, tanto quando recorremos
à experimentação como quando recorremos ao raciocínio.
John Stuart Mill
O método experimental
e o raciocínio indutivo
Recordando o que foi estudado na Lição 15, tanto as generalizações como as pre-
visões são raciocínios indutivos. No primeiro caso partimos da observação de casos
particulares3 para concluirmos com uma afirmação geral. No caso das previsões, a
conclusão diz respeito a um acontecimento particular futuro, obtida também a partir
de observações feitas no passado.
Ora, a ciência visa precisamente estabelecer teorias e leis universais capazes de fa-
zer previsões rigorosas a partir de um número finito – mesmo que elevado – de obser-
vações particulares e de experiências realizadas. Assim, de acordo com os indutivistas,
não haveria ciência sem indução, cujo papel é central no método científico. Basta pen-
sar que o método experimental começa precisamente com a observação – por isso se
diz que a ciência parte de factos – e que as hipóteses são confirmadas pela experi-
mentação.
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PARTE 3 O estatuto do conhecimento científico
Isso não poderia ser feito recorrendo apenas ao raciocínio dedutivo, defendem os
indutivistas, pois consideram que a dedução não tem o caráter ampliativo – isto é, não
acrescenta conhecimento – que se espera encontrar na ciência. A ideia dos indutivis-
tas é que o raciocínio dedutivo é meramente demonstrativo, querendo com isso dizer
que a dedução se limita a estabelecer na conclusão o que já estava implícito nas pre-
missas, o que pode aumentar o nosso grau de certeza na conclusão, mas não aumenta
substancialmente o nosso conhecimento, pensam eles. Assim, num raciocínio dedu-
tivo que tenha como premissas enunciados sobre observações particulares, nunca se
poderia chegar a uma conclusão geral. Mesmo num raciocínio dedutivo que parta de
premissas gerais, precisamos de ter a garantia de que tais premissas são verdadeiras
– como chegámos lá? –, o que só é possível recorrendo, mais uma vez, à indução.
Não é que a dedução não tenha a sua importância, pois ela intervém quando é pre-
ciso deduzir consequências das hipóteses, as quais terão de ser depois experimental-
mente confirmadas. Por isso há até quem, realçando esse aspeto, prefira chamar hipo-
tético-dedutivo ao método experimental. Mas os indutivistas pensam que só a
indução permite explicar o caráter ampliativo que encontramos nos princípios gerais
e nas previsões das teorias científicas.
Muitos indutivistas sublinham que a indução está, aliás, duplamente presente no
método experimental: tanto no processo de descoberta como no processo de justifi-
cação de teorias.
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O que é e como se constrói a ciência Capítulo 9
ATIVIDADE 74
da observação.
1. A investigação de hipóteses.
científica parte de problemas.
de experiências.
refutar hipóteses.
são previsões.
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PARTE 3 O estatuto do conhecimento científico
ATIVIDADE 75
Teorias científicas e cientistas
1 2 3
5
4 7
6
8
10 11
9
12
13 14
Horizontais Verticais
4. Químico russo, criador da primeira ta- 1. Há três leis com o nome deste astrónomo, que descobriu
bela periódica. que as órbitas dos planetas são elípticas e não circulares.
6. É o autor da mais conhecida teoria da 2. Há duas teorias com este nome, uma geral e outras res-
biologia. trita.
9. Teoria defendida por Copérnico e a fa- 3. Esta é a teoria sobre as placas …
vor da qual Galileu apresentou provas. 5. O pai da química moderna, conhecido por formular o
12. A teoria que explica como surgiram as princípio da conservação da matéria.
espécies e se desenvolveram. 7. Autor da teoria da gravitação universal e um dos mais
13. Descobriu, com James Watson, a estru- importantes cientistas de sempre.
tura do ADN. 8. Este Max é alemão e é considerado o pai da física quân-
14. Esta teoria diz que o universo começou tica.
com um big… 10. O mais conhecido cientista do século XX.
11. Teoria sobre a constituição básica da matéria.
ATIVIDADE 76
Leia o texto seguinte:
«No seu esforço de encontrar uma solução para o seu problema, o cientista pode soltar
a sua imaginação e o curso do seu pensamento criativo pode ser influenciado até por no-
ções cientificamente questionáveis. Por exemplo, no seu estudo sobre o movimento pla-
netário, Kepler foi influenciado pelo seu interesse numa doutrina mística sobre números e
por uma paixão por demonstrar a música das esferas. Porém, a objetividade científica é sal-
vaguardada pelo princípio de que as hipóteses e teorias científicas, embora possam ser li-
vremente inventadas e propostas na ciência, só podem ser aceites no corpo do conheci-
mento científico se passarem pelo escrutínio crítico, que inclui particularmente o confronto
de previsões apropriadas com observações ou experiências cuidadosas.»
Carl Hempel, Filosofia das Ciências da Natureza, pp. 14-18.
1. O autor do texto diz haver dois momentos ou situações claramente distintas no decurso
da atividade do cientista. Como costumam ser designados?
2. Refira os elementos do texto que descrevem cada um desses momentos.
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O que é e como se constrói a ciência Capítulo 9
Lição 36
Críticas ao indutivismo
As vulgares divisões em sujeito e objeto, mundo exterior e mundo
interior [...] só servem para suscitar equívocos. De modo que,
na ciência, o objeto da investigação não é a natureza em si mesma,
mas a natureza subordinada à nossa maneira de colocar
o problema. [...] A ciência já não é um espetador
colocado em frente da natureza.
Werner Heisenberg
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O que é e como se constrói a ciência Capítulo 9
O problema da indução
Talvez a mais importante objeção ao indutivismo seja o problema da indução, ini-
cialmente levantado por David Hume, que já conhecemos da Lição 32.
Hume pergunta como podemos saber, por exemplo, que todos os corvos são ne-
gros (generalização) ou que o próximo corvo que alguém vir será negro (previsão)?
A resposta é, em ambos os casos: por indução. Quer dizer, baseamo-nos num grande
– mas finito – número de casos particulares observados, daí retirando a conclusão uni-
versal de que todos os corvos, mesmo os que nunca observámos, são negros ou de
que o próximo, que ainda ninguém observou, será também negro. Isto é a indução a
funcionar.
Mas, pergunta Hume, como podemos nós confiar no raciocínio indutivo? Afinal, o
que nos garante que os corvos que ainda não observámos sejam como os que obser-
vámos? Tal garantia é-nos dada, diz-se, pelo princípio de que a natureza é uniforme, isto
é, por ela ser previsível e repetitiva. É isso que justifica a nossa confiança no raciocínio
indutivo. Mas esse princípio não pode ser estabelecido dedutivamente; pelo contrário,
o princípio de que a natureza é uniforme só pode basear-se na experiência, ou seja, em
observações anteriores. Nesse caso, o princípio é o resultado de uma generalização.
Sendo assim, ele próprio se baseia no raciocínio indutivo. Mas isso é claramente fala-
cioso – trata-se de uma petição de princípio. Isto é como se, num tribunal, o acusado
fosse também chamado a depor como sua própria, e única, testemunha de defesa.
Que conclusão Hume retira daqui? Que justificar a nossa confiança no raciocínio in-
dutivo recorrendo a outro raciocínio indutivo é não justificar coisa alguma. Para con-
fiarmos no raciocínio indutivo, ele precisa de uma justificação independente, que não
existe. Logo, a indução é injustificada e não é confiável.
Ora, se o método científico se baseia essencialmente no raciocínio indutivo, como
defendem os indutivistas, e este não é confiável, então é a própria ciência que não é
confiável. Parece, pois, que, se quisermos continuar a confiar na ciência, temos de re-
jeitar o indutivismo.
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PARTE 3 O estatuto do conhecimento científico
ATIVIDADE 77
ATIVIDADE 78
A experiência Michelson-Morley é muitas vezes referida como o mais brilhante erro da his-
tória da ciência. O nome deve-se aos dois cientistas americanos que, no ano de 1887, levaram
a cabo a célebre experiência com a velocidade da luz, sendo depois repetida e aperfeiçoada por
diversas vezes até cerca de 1905. O objetivo principal da experiência era provar a existência do
éter, a substância misteriosa que ocupava todo o espaço dito «vazio», postulada pela Teoria
Ondulatória da luz. De acordo com a Teoria Ondulatória – que a generalidade dos físicos da al-
tura pensavam substituir com sucesso a anterior Teoria Corpuscular –, a luz era formada por on-
das e não por pequeníssimos corpos. Mas, a haver ondas luminosas, teria de existir um meio no
qual elas se propagassem, tal com as ondas sonoras se propagam no ar. Esse meio nunca antes
detetado só poderia ser o éter, o tal quinto elemento misterioso de que falavam alguns filósofos
da Antiguidade grega. Ora, a experiência de Michelson e Morley visava precisamente usar ondas
luminosas em diferentes sentidos, nomeadamente contra e a favor do movimento de translação
da Terra, de modo a detetar interferências do vento de éter. Para esse efeito, mandaram cons-
truir um engenhoso instrumento, precisamente chamado interferómetro, que emitia as tais on-
das e, usando um sistema de espelhos, elas eram refletidas e reenviadas para um sensor de luz.
O que se esperava era que ondas emitidas em sentidos diferentes regressassem em momentos
ligeiramente diferentes, comprovando assim a interferência do vento de éter.
Porém, o resultado foi sempre o mesmo e sempre dececionante para os dois físicos, pois
nunca se chegou a verificar o que estavam à espera: as ondas luminosas chegavam sempre ao
mesmo tempo. Pensaram que havia problemas com o aparelho, que não estava devidamente
calibrado, e mandaram fazer outro melhor. Mas o resultado continuou a ser o mesmo, levando-
-os a confessar que não percebiam porquê.
Mas, apesar de Michelson e Morley ficarem abatidos com o insucesso da sua experiência, al-
guém viu aí uma descoberta importante, que passou, de certo modo, ao lado deles próprios e
que acabou por ter consequências importantíssimas para a história da ciência. Essa descoberta
foi a de que a velocidade da luz é constante, independentemente do observador, tendo Einstein
recorrido a ela para elaborar a famosa Teoria da Relatividade, ao mesmo tempo que descartou
a existência do éter.
– Esta história verdadeira pode ser uma boa ilustração de uma das objeções ao induti-
vismo. Qual e porquê?
ATIVIDADE 79
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O que é e como se constrói a ciência Capítulo 9
Lição 37
O falsificacionismo de Popper
Poderia dizer-se que, ao rejeitar o método de indução,
privo a ciência empírica daquilo que constitui, aparentemente,
a sua caraterística mais importante; isto quer dizer que afasto
as barreiras que separam a ciência da especulação metafísica.
A minha resposta é a de que a razão principal para eu rejeitar
a Lógica Indutiva consiste, precisamente, [...] em ela não
proporcionar um adequado «critério de demarcação».
Karl Popper
O filósofo Karl Popper (1902-94) dá razão a Hume, considerando não haver justifi-
cação adequada para o raciocínio indutivo. De facto, argumenta Popper, por maior
que seja o número de cisnes brancos observados, nunca será correto concluir que to-
dos os cisnes, incluindo os que não observámos, são brancos.
Será, então, que o problema da indução põe em causa a própria ciência? Popper
pensa que não. O problema da indução não constitui problema algum para a ciência,
do seu ponto de vista, porque o que distingue a ciência não é o raciocínio indutivo.
A ciência, considera Popper, passa muito bem sem a indução.
Mas se a indução não é, afinal, a caraterística diferenciadora da ciência, como dis-
tinguir a ciência do que não é ciência?
Demarcação e falsificabilidade
Popper argumenta que aqueles que defendem ser a indução aquilo que permite
demarcar a ciência do que não é ciência fazem-no porque acreditam que, graças ao
raciocínio indutivo, se pode verificar empiricamente teorias universais. Mas, como
mostrou Hume, nenhuma teoria universal é empiricamente verificável, seja de que ma-
neira for. Portanto, a indução de nada serve: recorrer à experiência para verificar indu-
tivamente hipóteses científicas equivale a procurar algo que não existe nem pode
existir. Assim, nem a indução nem a verificabilidade – isto é, a caraterística de ser ve-
rificável – funcionam como critério de demarcação entre teorias científicas e não cien-
tíficas.
No fundo, diz ele, o que é racional esperar de uma teoria científica não é que ela
seja empiricamente verificada, mas antes que ela possa ser empiricamente testada.
Essa é a marca de cientificidade que permite distinguir as teorias científicas de quais-
quer outras. Ora, recorrer à experiência para testar as suas teorias é algo que está ao
alcance dos cientistas, mesmo sem indução.
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PARTE 3 O estatuto do conhecimento científico
Testar teorias é tentar ativamente encontrar casos que sejam incompatíveis com
ela. Mas isso é o oposto de verificá-las. O que os cientistas fazem com as suas teorias
é, pois, tentar falsificá-las. Ao passo que nenhuma quantidade de casos particulares
permite verificar uma proposição universal como a de que todos os cisnes são bran-
cos, basta observarmos apenas um cisne que não seja branco para a falsificar, isto é,
para provar que é falsa. Tudo o que se exige é procurar informação empírica relevante
e raciocinar dedutivamente, como se verá adiante.
TESTÁVEL
empiricamente FALSIFICÁVEL
Mas quais as teorias que são falsificáveis e quais as que não o são?
Falsificabilidade e falsificação
Antes de avançarmos, temos de compreender a diferença entre falsificabilidade e
falsificação.
Os cientistas, como é natural, não estão interessados em teorias falsas. Pelo con-
trário, querem ver-se livres delas. Só que ninguém consegue ver-se livre de algo inde-
sejável se não estiver especialmente atento a isso e se não o procurar ativamente. Por
isso, temos de conceber casos possíveis que, a serem observados, falsificariam a teo-
ria em causa. Isto quer apenas dizer que tem de ser possível imaginar pelo menos um
caso incompatível com a teoria em causa. Podemos nunca vir a observar um caso des-
ses, mas tem de ser pensável. A ideia é a de que a teoria, para ser falsificável, tem de
«dizer» em que circunstâncias observacionais se revelaria falsa. É isto que significa ser
falsificável.
Assim, mesmo as teorias científicas que, por hipótese, são verdadeiras são também
falsificáveis. Por exemplo, a teoria de que todas as esmeraldas são verdes – caso seja
mesmo verdadeira – é, ainda assim, falsificável, pois é possível pensar o que teríamos
de encontrar para a refutar: uma esmeralda que não fosse verde. Claro que, se a teoria
for mesmo verdadeira, nunca iremos encontrar uma esmeralda assim e, portanto,
nunca a conseguiremos falsificar. Uma teoria ser falsificável não depende, pois, de ser
falsa nem de vir a ser efetivamente falsificada. Tal como uma coisa ser comestível não
depende de vir a ser efetivamente comida. Há muitas coisas comestíveis que nunca
foram nem serão alguma vez comidas por alguém.
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O que é e como se constrói a ciência Capítulo 9
Graus de falsificabilidade
Outro aspeto importante é o de que, de acordo com Popper, há graus de falsifica-
bilidade. Em princípio, e desde que não seja falsificada, quanto maior for o grau de
falsificabilidade de uma dada teoria ou de uma dada proposição mais científica ela é.
De acordo com Popper, podemos avaliar o grau de falsificabilidade de uma teoria (ou
de uma proposição) da seguinte maneira:
Quanto mais coisas a teoria (ou a proposição) proibir mais conteúdo empírico ela
tem e maior é o seu grau de falsificabilidade.
Assim, é relativamente fácil saber que teorias (ou que proposições) são falsificáveis
em maior e em menor grau, mas também quais não são, de todo, falsificáveis. As que
não forem falsificáveis não são sequer científicas. Mas também não basta as teorias se-
rem falsificáveis para serem científicas. As teorias ou proposições científicas devem
também proporcionar boas explicações e permitir fazer algumas previsões. Por isso, a
teoria de que todos os filósofos franceses fumam cachimbo é falsificável, mas não é
científica. A falsificabilidade é apenas condição necessária, mas não suficiente, para a
cientificidade de uma teoria.
Há teorias, como as da astrologia e da psicanálise, que se autodenominam cientí-
ficas, mas que ou não são falsificáveis ou evitam por todos os meios confrontar-se com
casos que as refutem. Essas teorias apresentam-se como irrefutáveis, pelo que não
passam, segundo Popper, de pseudociências.
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PARTE 3 O estatuto do conhecimento científico
2. As esmeraldas são verdes ou não são verdes. Não falsificável. Mais uma vez, nenhuma
observação possível, fosse de esmeraldas verdes ou de outra cor, provaria que a afirmação é
falsa. Esta proposição não tem conteúdo empírico, pois não dá qualquer informação sobre o
mundo que observamos. Não pode ser falsa, seja o mundo como for.
3. Os pardais têm asas. Falsificável. Observar um pardal sem asas, por exemplo, bastaria
para provar que a proposição é falsa, ainda que ninguém tenha observado pardais sem asas.
4. As aves têm asas. Falsificável num grau mais elevado do que a anterior. Observar um pa-
pagaio sem asas, por exemplo, bastaria para provar que a proposição é falsa. Mas um papa-
gaio sem asas não provaria que a proposição 3 é falsa. Assim, há casos possíveis que falsifi-
cariam 4 mas não 3, ao passo que todos os que falsificariam 3 falsificariam também 4. Esta
última é mais «arriscada», pois proíbe mais coisas. Por isso, tem um maior conteúdo empírico
e tem um elevado grau de falsificabilidade.
5. Todas as aves voam. Falsificável. Podemos observar aves, como os pinguins ou as avestru-
zes, que não voam, o que prova que a proposição é falsa. Logo, é falsificável. Mas não é cien-
tífica, o que mostra que a falsificabilidade é apenas uma condição necessária, mas não sufi-
ciente, para uma proposição ser científica.
6. As pessoas que acreditam realmente na vitória acabam sempre por vencer. Não falsifi-
cável. Não é sequer possível saber o que teria de ser observado para provar que a proposi-
ção é falsa. Pelo que se sabe, acreditar em algo é um estado mental privado que não pode
ser empiricamente observado. Mesmo que alguém nos diga que acredita, ela pode não acre-
ditar realmente.
7. Ninguém irá ganhar o primeiro prémio num dos próximos sorteios do euromilhões. Não
falsificável. Se observarmos que alguém ganha o primeiro prémio da próxima semana, isso
não prova que a proposição é falsa; se observarmos que na próxima semana não sai o pri-
meiro prémio, isso também não prova que a afirmação é falsa. E o mesmo raciocínio se aplica
ao sorteio da semana seguinte, a não ser que se esclareça o que se entende por «próximos»,
indicando um número de semanas, por exemplo.
8. Ninguém irá ganhar o primeiro prémio do euromilhões do dia 3 de janeiro de 2004. Falsifi-
cável. Se observarmos que alguém ganha o primeiro prémio, provamos que a proposição é falsa.
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O que é e como se constrói a ciência Capítulo 9
ATIVIDADE 80
Indique quais das seguintes afirmações são, de acordo com Popper, ver-
dadeiras e quais são falsas, explicando em que consiste a falsidade destas.
1. O problema da indução põe em causa a
ciência.
ATIVIDADE 82
Assinale as afirmações da coluna B que são corretas.
A B
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PARTE 3 O estatuto do conhecimento científico
Lição 38
Conjeturas e refutações
Prezado Senhor Popper:
Li o seu trabalho e, de um modo geral, concordo. [...] Não me
agrada de modo algum a tendência «positivista», agora na moda,
de apego ao observável. [...] Penso (como o senhor, aliás)
que a teoria não pode ser fabricada a partir dos resultados
da observação, antes tem de ser inventada.
Albert Einstein
Popper diz, como vimos, não haver lugar para a indução na ciência e que os cien-
tistas, em vez de tentarem verificar as suas teorias, têm de tentar falsificá-las. Isso im-
plica conceber o método científico de maneira diferente do habitual. Como proce-
dem, então, os cientistas?
O método crítico
É importante começar por sublinhar que, na opinião de Popper, o método cientí-
fico nada tem de especial, pois não é assim tão diferente do que se passa com qual-
quer outra atividade racional, incluindo a filosofia. No fundo, trata-se de reconhecer
que a ciência é, como a filosofia, um atividade crítica. Que método é esse, afinal?
Popper considera que o método crítico pode ser caraterizado como «o método
de conjeturas ousadas e de tentativas engenhosas e severas para refutá-las». Daí cha-
mar-lhe também «método das conjeturas e refutações». As coisas funcionam assim:
2. Perante um dado problema, o cientista só tem uma coisa a fazer, que é avançar
com uma primeira tentativa de solução, isto é, com uma hipótese. A hipótese
tem um caráter meramente conjetural, ou seja, trata-se de uma suposição. Note-
-se que, para Popper, tanto faz falar de hipóteses, suposições ou teorias. Vai
tudo dar ao mesmo, pois o que ele quer sublinhar é o seu caráter conjetural. Daí
usar o termo «conjeturas» na designação do método científico. O que se espera
de uma conjetura ou hipótese é que seja ousada, isto, é que tenha um grande po-
der previsivo.
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O que é e como se constrói a ciência Capítulo 9
3. A hipótese terá de ser testada, isto é, terá de ser sujeita a tentativas sérias de re-
futação. Este é o aspeto falsificacionista do método proposto por Popper, pois
tentar refutar uma hipótese é tentar confrontá-la com potenciais casos que pro-
vem a sua falsidade. E é aqui, e só aqui, que a observação e a experimentação
desempenham um papel importante, pois só elas permitem refutar as hipóteses.
Dado que as hipóteses ou teorias têm de incluir algumas previsões – quanto
mais previrem mais ousadas são –, os cientistas procuram fazer observações mi-
nuciosas ou realizar experiências rigorosas cujos resultados sejam incompatíveis
com aquilo que a teoria prevê.
O que acontece se a hipótese for refutada? A resposta de Popper é que ela terá de
ser substituída por outra melhor, que responda ao mesmo problema, mas que não en-
frente as mesmas dificuldades que a anterior. Essa nova hipótese terá, por sua vez de
ser submetida a testes severos, e assim sucessivamente, num processo de substituição
de más teorias por teorias cada vez melhores e mais resistentes a testes de falsificação.
E se a hipótese não for refutada? A resposta de Popper é que terá de se continuar
a tentar refutá-la com testes cada vez mais severos.
O papel da observação
e a corroboração de teorias
Vale a pena destacar três aspetos acerca do método das conjeturas e refutações.
Em primeiro lugar, o cientista não procura proteger a todo o custo as suas teorias
de eventuais ataques. Pelo contrário, o método exige que ele próprio seja crítico em
relação a elas. Felizmente, pensa Popper, se algum cientista ficar «agarrado» às suas
teorias, outros tratarão de as criticar por si. Isto revela o caráter essencialmente crítico
do método científico.
Em segundo lugar, contrariamente ao que supõem os defensores do método indu-
tivo, não se parte da observação, nem a experimentação serve para verificar ou con-
firmar teorias. A observação surge depois da hipótese, e a sua finalidade é encontrar
contraexemplos, e não suportá-la. Analogamente, a finalidade da experimentação é
tentar mostrar que não ocorre aquilo que a hipótese prevê, visando a sua falsificação,
e não a sua verificação.
Em terceiro lugar, é um método que se baseia apenas no raciocínio dedutivo, e não
no indutivo. Popper refere que a lógica dos testes experimentais obedece à forma ló-
gica da regra de dedução modus tollens, contrastando com o caráter falacioso do ra-
ciocínio caraterístico do método indutivista:
185
PARTE 3 O estatuto do conhecimento científico
Isto mostra também, de acordo com Popper, que é errado afirmar que há teorias
ou hipóteses verdadeiras, dado que elas nunca são verificadas. Mesmo quando as
teorias passam com sucesso testes severos para as falsificar, continua a ser errado afir-
mar que são verdadeiras. Nem sequer é correto dizer que aumenta com isso o seu
grau de confirmação.
Então, se nunca se pode provar que uma teoria é verdadeira, o que dizer daquelas
que não conseguimos falsificar, mesmo que tentemos seriamente fazê-lo? Essas teo-
rias são, diz Popper, corroboradas. O termo usado por Popper para as teorias até en-
tão bem sucedidas é «corroboração» e não «verificação». Assim, uma boa teoria cien-
tífica é uma teoria corroborada. Nunca podemos estar certos de que alcançámos a
verdade. Popper prefere, por isso, falar de verosimilhança em vez de verdade.
O gráfico seguinte mostra o que se passa no método crítico defendido por Popper.
Críticas a Popper
Várias objeções têm sido apontadas à perspetiva de Popper sobre a ciência. Vamos
referir, muito rapidamente, apenas três.
Uma delas é que a perspetiva de Popper não corresponde ao que realmente se
passa na prática: muitos milhares de cientistas que fazem todos os dias investigação
não procuram refutar teorias, tratando antes de lhes encontrar novas aplicações.
Além disso, há variadíssimos exemplos de teorias cujas previsões não se confirmaram
e que nem por isso foram abandonadas. Tudo o que aconteceu foi os cientistas pro-
cederem apenas a alguns ajustes na teoria, conservando-a em vez de a considerarem
falsificada. Mesmo que fosse desejável que os cientistas se comportassem como diz
Popper, a história da ciência parece mostrar que isso só raramente ocorre. Assim, a
teoria de Popper não descreve a realidade, antes se limitando a dizer como os cien-
tista deveriam proceder. Quer isto dizer a sua teoria acerca do método não é descri-
tiva, mas antes normativa.
Uma segunda objeção é que Popper só dá conta do conhecimento científico nega-
tivo e não daquele que, em geral, nos leva a dar importância à ciência: os seus resul-
tados positivos. O conhecimento útil da ciência tem um caráter positivo, por isso temos
razões práticas para acreditar nele. Sabemos por exemplo que a penicilina funciona
porque tem certos resultados, e não porque não foi falsificada.
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O que é e como se constrói a ciência Capítulo 9
Uma última objeção é que, de acordo com Popper, não podemos proferir juízos so-
bre o futuro que sejam racionalmente justificados, pelo que nos deixa na mesma si-
tuação levantada pelo problema da indução. Como justificar, então, a minha previsão
de que se me atirar da janela do 20.° andar irei estatelar-me no chão em vez de flutuar
no ar? Popper concorda com Hume que é errado basear-me na ideia de que o futuro
será como o passado. Devo, então, concluir que é tão justificado acreditar que ficarei
a flutuar no ar como acreditar que irei estatelar-me no chão, caso me atire da janela
do 20.° andar?
ATIVIDADE 83
Refutação = _________ .
Teoria que não resiste aos testes = teoria _________ ou teoria _________ .
ATIVIDADE 84
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PARTE 3 O estatuto do conhecimento científico
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O que é e como se constrói a ciência Capítulo 9
Texto 23
A emergência da ciência moderna
Lisa Bortolotti
Lisa Bortolotti
A razão para se investir a Revolução Copernicana de um papel tão importante na filo-
sofia da ciência não tem apenas a ver com o derrube espetacular das teorias astronó-
micas e físicas de Aristóteles e Ptolomeu, mas também com as inovações metodológi-
cas que foram ocorrendo gradualmente a partir do final do século XVI.
Eis as cinco mudanças mais dignas de nota:
1. A autoridade dos filósofos naturais do passado é posta em causa com base em no-
vas observações e novas ideias sobre o método da ciência;
2. A matemática passa a ser concebida como a linguagem da natureza, e é conferida
uma estrutura explicitamente matemática às teorias da física e da astronomia;
3. Os cientistas começam a fazer uso de experiências e da observação mediada de
uma maneira regular e sistemática, e intervêm ativamente na natureza;
4. Dá-se uma certa institucionalização da investigação colaborativa, o que origina o
desenvolvimento de sociedades eruditas;
5. O enquadramento para a explicação da natureza (o movimento, a cosmologia, a
fisiologia, etc.) deixa gradualmente de ser organicista, ou seja, de ver os fenóme-
nos naturais como o resultado de intenções, para passar a ser mecanicista, vendo
os fenómenos naturais como os efeitos de interações causais entre as várias partes
de uma máquina de funcionamento perfeito, quer se trate do corpo humano, quer
do universo como um todo.
Estes elementos estão inter-relacionados, e, vistos como um todo, dão-nos uma ideia
de quão moderna a ciência emergiu não somente do conquista de descobertas teóricas
e da adopção de novas metodologias, mas também da gradual instauração de novos
enquadramentos explicativos e da emergência de uma nova conceção da natureza.»
Lisa Bortolotti, Introdução à Filosofia da Ciência. Trad. de Jorge Beleza.
Lisboa: Gradiva, 2013, pp. 80-1.
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PARTE 3 O estatuto do conhecimento científico
Texto 24
A ciência é senso comum esclarecido
Karl Popper
«A ciência, a filosofia, o pensamento racional, todos devem partir do senso comum.
Não, talvez, por ser o senso comum um ponto de partida seguro: a expressão “senso
comum” que uso aqui é muito vaga, simplesmente porque denota uma coisa vaga e
mutável – os instintos, ou opiniões de muitas pessoas, às vezes adequados ou verda-
deiros e às vezes inadequados e falsos.
Karl Popper
Como nos pode fornecer um ponto de partida uma coisa tão vaga e insegura como
o senso comum? A minha resposta é: porque não pretendemos nem tentamos cons-
truir (como o fizeram, digamos, Descartes [...] ou Kant) um sistema seguro sobre esses
“alicerces”. Qualquer das nossas muitas suposições se senso comum [...] da qual par-
tamos pode ser contestada e criticada a qualquer momento; frequentemente tal supo-
sição é criticada com êxito e rejeitada (por exemplo, a teoria de que a Terra é plana).
Em tal caso, o senso comum é modificado pela correção, ou é ultrapassado e substi-
tuído por uma teoria que, por menor ou maior período de tempo, pode parecer a cer-
tas pessoas como mais ou menos “maluca”. Se tal teoria necessitar de muito treino
para ser compreendida, poderá mesmo deixar para sempre de ser absorvida pelo senso
comum. Contudo, mesmo assim podemos exigir que tentemos chegar o mais perto
possível do ideal: Toda a ciência e toda a filosofia são senso comum esclarecido.»
Karl Popper, Conhecimento Objetivo. Trad. de Milton Amado.
Belo Horizonte: Editora Itataia, 1975 p. 42.
Texto 25
Há observação sem teoria?
Karl Popper
«A crença de que a Ciência procede da observação para a teoria é ainda tão firme e
generalizada que a minha recusa em subscrevê-la é frequentemente acolhida com in-
credulidade. [...]
Há vinte e cinco anos, tentei trazer esta questão a um grupo de estudantes de Física,
em Viena, iniciando uma conferência com as seguintes instruções: “Peguem no lápis
e no papel; observem cuidadosamente e anotem o que observarem!”. Eles pergunta-
ram, como é óbvio, o que é que eu queria que eles observassem. Manifestamente, a ins-
trução “Observem!” é absurda. [...] A observação é sempre seletiva. Requer um objecto
determinado, uma tarefa definida, um interesse, um ponto de vista, um problema. E a
sua descrição pressupõe uma linguagem descritiva, com palavras qualificativas; pres-
supõe similaridade e classificação, que pressupõem, por seu turno, interesses, pontos
de vista e problemas. “Um animal com fome”, escreve Katz, “divide o seu meio circun-
dante em coisas comestíveis e incomestíveis. Um animal em fuga vê caminhos por
onde se escapar e sítios para se esconder. Falando em termos gerais, os objetos mudam
de acordo com as necessidades do animal.” Podemos acrescentar que os objetos po-
dem ser classificados, e podem tornar-se semelhantes ou dissemelhantes, unicamente
desta maneira – relacionando-se com necessidades e interesses. Esta regra aplica-se não
só aos animais, mas também aos cientistas.»
Karl Popper, Conjeturas e Refutações. Trad. de Benedita Bettencourt.
Coimbra: Almedina, 2003, pp. 72-3.
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O que é e como se constrói a ciência Capítulo 9
Texto 26
Atitude crítica e pseudociência
Karl Popper
«A atitude dogmática está claramente ligada à tendência para verificar as nossas leis
e os nossos esquemas, mediante uma tentativa de os aplicar e confirmar que vai ao
ponto de negligenciar as refutações; ao passo que a atitude crítica se traduz na pron-
tidão em modificar essas leis e esses esquemas; em testá-los; em refutá-los, em falsificá-
-los, se possível. Isto sugere que podemos identificar a atitude crítica com a atitude
científica, e a atitude dogmática com [...] a pseudocientífica. [...]
A atitude crítica, a atitude da livre discussão das teorias, que tem por finalidade des-
cobrir os seus pontos fracos no sentido de os aperfeiçoar, é a atitude da razoabilidade,
da racionalidade. É uma atitude que faz amplo uso da discussão verbal e da observação
– observação feita, porém, no interesse da discussão. A descoberta do método crítico
pelos Gregos deu origem, a princípio, à falsa esperança na solução de todos os velhos
problemas; na determinação de um conhecimento certo; e na possibilidade de condu-
zir à comprovação e justificação das nossas teorias. [...] Na verdade, nada pode ser justi-
ficado ou provado (fora do domínio da Matemática e da Lógica).»
Karl Popper, Conjeturas e Refutações. Trad. de Benedita Bettencourt.
Coimbra: Almedina, 2003, pp. 77-8.
Texto 27
Falsificabilidade e dedução
Karl Popper
«A minha posição está alicerçada numa assimetria entre verificabilidade e falsificabi-
lidade, assimetria que decorre da forma lógica dos enunciados universais. Estes enun-
ciados nunca são deriváveis de enunciados singulares, mas podem ser contraditados
pelos enunciados singulares. Consequentemente, é possível, recorrendo a inferências
puramente dedutivas (com o auxílio do modus tollens, da lógica tradicional), concluir
acerca da falsidade de enunciados universais a partir da verdade de enunciados singu-
lares. Essa conclusão acerca da falsidade dos enunciados universais é a única espécie
de inferência estritamente dedutiva que atua [...] de enunciados singulares para enun-
ciados universais.»
Karl Popper, A Lógica da Pesquisa Científica. Trad. de Leonidas Hegenberg
e Octanny da Mota. São Paulo: Editora Cultrix, 1974, p. 43.
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PARTE 3 O estatuto do conhecimento científico
Texto 28
Uma avaliação da perspetiva de Popper
David Papineau
«A filosofia da ciência de Popper tem alguma força enquanto descrição de uma pes-
quisa científica pura. Não há dúvida de que muitas teorias científicas partem de conje-
turas exatamente do modo descrito por Popper. Quando a teoria geral da relatividade,
de Einstein, foi apresentada pela primeira vez, pouquíssimos cientistas acreditaram
efetivamente nela. Em vez disso, consideraram-na uma hipótese interessante e ficaram
curiosos por ver se era verdadeira. Nesse estádio inicial da vida de uma teoria, as reco-
David Papineau
mendações de Popper fazem muito sentido. Obviamente, se está curioso para ver se
uma teoria é verdadeira, o próximo passo é submetê-la a testes observacionais. Para
esse fim é importante que a teoria seja formulada em termos suficientemente precisos
para que os cientistas calculem o que ela implica a respeito do mundo observável – ou
seja, em termos suficientemente precisos para que ela seja falsificável. E, é claro, se a
nova teoria for falsificada, os cientistas rejeitá-la-ão e irão procurar alguma alterna-
tiva, ao passo que no caso da corroboração das previsões os cientistas continuarão a
investigá-la.
A filosofia da ciência de Popper erra, contudo, ao afirmar que as teorias científicas
nunca progridem além do nível da conjetura. Conforme acabei de dizer, as teorias
apresentam-se quase sempre como conjeturas no início, e podem permanecer como
conjeturas enquanto surgem os primeiros indícios. No entanto, em muitos casos a
acumulação de indícios a favor de uma teoria vai conduzi-la da condição de conjetura
à de uma verdade estabelecida. A teoria geral da relatividade surgiu como uma conje-
tura, e muitos cientistas ainda a consideraram hipotética [...]. Entretanto, esses indí-
cios já foram completados [...] e somente um cientista excêntrico encararia hoje a teo-
ria geral da relatividade como menos do que firmemente estabelecida.»
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