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EXPERI

A transparên

CATALOGAÇÃO NA FONTE DO
DEPARTAMENTO NACIONAL DO LIVRO
B673c
BoíF, Lconarclo
Experim entar Deus: a transparência de todas as coisas / Leonardo BoíF.
-C am pinas: Verns, 2002.
p .; 13 x 18 cm
ISBN 85-87795-29-5
LEONARD«
1. Deus - Adoração e amor. 2. Vida cristã. I. Título.
CDD: 231.7
Revisão
Aurea G. Tullio Vasconcelos
Sabino Ferreira Affonso
C apa
S u m á r io
Adriana Miranda
André S. Tavares da Silva
Projeto Gráfico
André S. Tavares Silva

© by A nim us/Anim a Produções, 2002 I n t r o d u ç ã o ................................................................................................. 9


R. Álvaro Ramos, 105, 7- andar (704)
Botafogo - RJ - CEP 22280-110
Telefone: (21) 9385-5335 1. C o m o aparece D eus n o p r o c e s s o d e v i d a - m o r t e -
Edição original cm língua portuguesa: RESSURREIÇÃO DA L I N G U A G E M ............................................................... 11
Alualidtulc do experiência (le. Deus, 1974.
a) A m ontanha é montanha:
Direitos mundiais de publicação saber-im anência-identificação............................... 13
em língua portuguesa:
V erus E d ito ra
b ) A m ontanha não é montanha:
Rua Francisco Otaviano, 900 não-saber-transcendência-desidentificação 14
13070-560 - Cam pinas/SP - Brasil
PABX: (0xxl9) 3241-0832 c) A m ontanha é montanha:
verus@ veruseditora.com .br sabor-transparência-identidade............................ 15
www.veruseditora.com.br

Todos os direitos reservados. 2. M ate as i m a g e n s , e D eu s a p a r e c e r á ................................ 19


Nenhuma parte desta obra pode ser
reproduzida ou transmitida por qualquer forma a) Deus totalm ente outro: transcendência 22
e/o u quaisquer meios (eletrônico ou
mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou b ) Deus radicalmente íntimo: im anência............. 27
arquivada em qualquer sistema ou banco de
dados sem permissão escrita da Editora. c) Deus através de todas as coisas: transparência.. 30

3. Q u e é ex - p e r i - ê n c i a ? ...................................................................... 3 9
4. A EXPERIÊNCIA TÍriCA b) Deserto como busca do paraíso........................... 145
DO NOSSO MUNDO M ODERNO........................................ 45 c) A consagração religiosa como expressão da
radicalidade da experiência de D eus................ 147
5. C o m o a pa r e c e D eus n o m u n d o
DA T E C N O -C IÊ N C IA .................................... 51 d ) Experiência de Deus na fraternidad e.............. 148
e ) Experiência de Deus na inserção no m undo
6. C om o a pa r e c e D eu s n a m o d e r n a c o s m o l o g ia ...... 63 do pobre e do excluído......................................... 150
7. C o m o a pa r e c e D eus n o m u n d o o p r im i d o C o n c l u s ã o ................................................................................................. 1 5 5
d a A m é r ic a L a t i n a ......................................................................... 7 3

N o t a s ............................................................................................................. 157
8. C om o D eu s e m e r g e n a c a m in h a d a p e s s o a l .............. 89
a) Deus como experiência da bondade
e do senüdo radical da vida.................................... 92
b ) Deus como experiência do vazio da vida 97
c) Deus como experiência da plenitude da vida .. 98
9. A EXPERIÊNCIA CRISTÃ DE DeUS.................................. 105

a) A experiência de Deus de Jesus de N azaré 108


b) A revelação da natureza íntim a de Deus
como com unhão de Pessoas na experiência
de Je su s........................................................................ 128
1 0 . A EXPERIÊNCIA DE DEUS NA VIDA RELIGIOSA 143
a) O cantus fvrmus: a memória de Deus
e de Jesus C risto...................................................... 144
Introdução

presente texto retom a um escrito produzido em


1974. Muitas coisas mudaram na vida do autor e mui­
tas outras temáticas ocuparam seu interesse, especialmente o
alargamento da Teologia da Libertação para dentro, da preo­
cupação ecológica. Pobres e Terra gritam porque estão sen­
do oprimidos. Pobres e Terra devem ser libertados juntos,
pois constituem uma única e complexa realidade. O que não
mudou, enüetanto, foi a busca da experiência de Deus. Ela é
o cerne da fé viva e pessoal e o conteúdo principal da teolo­
gia, independente de suas tendências e correntes.
9
Experimentar Deus não é pensar sobre Deus, mas sen­
tir Deus com a totalidade de nosso ser. Experimentar Deus
não é falar de Deus aos outros, mas falar a Deus junto com
os outros.
O texto atual foi profundam ente revisto, modificado
e completado. Praticamente representa um a obra nova. O
interesse dele reside em criar espaço para que cada um C o m o aparece D eus
possa fazer sua experiência de Deus. N O PRO CESSO DE
V lD A ~M O R TE'R E SSU R R E lÇ Ã O
Para encontrarm os o Deus vivo e verdadeiro a quem
podemos entregar o coração, precisamos negar aquele Deus DA LIN G U A G EM
construído pelo imaginário religioso e aprisionado nas ma­
lhas das doutrinas. Depois de termos mergulhado em Deus
e de tê-lo sentido nascendo de dentro de nosso coração,
poderemos, livremente, re-assumir o imaginário e as dou­
trinas. Elas se despem de sua pretensão de definir Deus e
se transfiguram em metáforas com as quais nos acercamos
do Mistério para não sermos queimados por ele.
artimos da constatação de que vigora um a vasta cri­
Em bora sem nom e adequado, Deus arde em nosso
se das imagens de Deus nas religiões, nas igrejas e
coração e ilumina nossa vida. Então não precisamos mais
nas sociedades contem porâneas. Alguns apressados pro­
crer em Deus. Simplesmente sabemos dele porque o ex­
perim entam os. clamaram logo a m orte de Deus. Outros tentam superar
a crise elaborando imagens mais modernas e adequadas à
Petrópolis, Festa de São João Batista, 2002. nossa percepção atual da realidade. Não representa tal
procedim ento m ero trabalho substitutivo, m antendo a es­ a) A m o n ta n h a é m o n ta n h a :
trutura da crise, pois não rom pe com o m undo das ima­ SA B E R ~IM A N È N C IA ~ ID E N T IF IC A Ç Ã O
gens? Mas há os que procuram pensar a partir de um a
instância mais originária do que as imagens: a existência Num primeiro momento da experiência de Deus, sob
hum ana, histórica, aberta e dinâm ica, onde, de fato, o impacto do encontro, damos nomes a Deü§: chamamo-lo
transparece o Mistério, a dimensão de im anência e a de de Senhor, de Pai, de Mãe, de Pedra, de Santo. A palavrà
transcendência, isto é, aquilo que cham am os Deus. No está a serviço do que experim entam os de Deus. Fixamos
início de tudo está o encontro com Deus, não ao lado, uma representação. Inicialmente não temos ainda consciên­
dentro ou acima do mundo, mas juntam ente com o m un­ cia de que se trata apenas de uma representação daquilo
do, no m undo e através do mundo. Deus som ente é real que não pode ser representado. Deus é Pai bondoso ou Mãe
e significativo para o ser hum ano se em ergir das p ro­ de infinita ternura; em nível de experiência, temos a ver
fundezas de sua própria experiência no m undo com os com uma realidade compacta e não meramente figurativa.
outros. Por ser real e significativo, apesar de ser Mistério, Sabemos sobre Deus por um a ciência experimental, possí­
ganha um nome; pro-jetamos imagens dele; construímos vel de ser traduzida por um discurso já sofisticado da argu­
re-presentações. E a form a como concretizamos nossa ex­ mentação filosófico-teológica. Aqui se elaboram conceitos e
periência. Mas é nesse processo que se arm a um grave uma lógica minuciosa dos meandros do mistério divino e de
problem a: Que valor dar às imagens? Como se relacio­ sua comunicação ao universo e aos seres humanos. Deus é
nam com Deus? Podemos dispensar as imagens? Os ho­ identificado com os conceitos que dele fazemos. Ele habita
m ens religiosos que acum ularam experiências com a in­ nossos conceitos e nossas linguagens. Elaboramos doutrinas
tim idade de Deus poderão nos ajudar. Ao testem unha­ sobre Deus e sobre o m undo divino, doutrinas que se en­
rem Deus, usando o recurso da linguagem e do imaginá­ contram nos vários credos e nos catecismos. Com tal proce­
rio, eles afirmam, negam e voltam a afirm ar.1 Traçaram- dimento tentamos encher de sentido último e pleno nossa
nos um cam inho de três passos, que querem os tam bém vida. Deus pode ser encontrado na intimidade do coração.
percorrer. Com ele podemos falar, rezar, cair de joelhos, levar nossos
queixumes e esperar sua graça e salvação. A montanha é mon­ Começamos a questionar todas as nossas representações. Pode
tanha, Deus-Pai-e-Mãe de infinita ternura. surgir uma teologia da morte de Deus: decreta a morte de
todas as palavras referidas ao Divino, porque elas mais escon­
dem do que comunicam Deus. Não sabemos mais nada;
b) A m ontanha não é m ontanha: desidentificamos Deus das coisas que dizemos dele. Por aí
N Ã O -S A B E R -T R A N S C E N D Ê N C IA -D E S ID E N T IF IC A Ç Ã O entendemos o lema dos mestres zen: “Se encontrares o buda,
mata-o.” Se encontrares o buda, não é o Buda - é apenas
Num segundo momento da experiência de Deus, damo- sua imagem. Mata a imagem para estares livre para o encon­
nos conta da insuficiência de todas as imagens de Deus. Tudo tro com o verdadeiro Buda. Algo semelhante notamos nos
o que dele dizemos é figurativo e simbólico. Ele está para grandes mestres espirituais do cristianismo, especialmente
além de todo nome e desborda de todo o conceito. Deus é em São João da Cruz, que se mostrava hostil às visões, aos
simplesmente transcendente. Vale dizer, ele rompe todos os êxtases e a todas as formas de experiências especiais.2 Deus
limites e está para além de todos os confins. Sempre e sem­ não é encontradiço entre e ao lado das coisas deste mundo.
pre. Talvez tenhamos passado por uma profunda crise. Os Se o encontrarmos aí, então encontramos um ídolo e não o
marcos referenciais de nosso agir religioso começaram a vaci­ Deus vivo e verdadeiro que está sempre para além dos senti­
lar. Como compreender Deus-Pai ao lado da violência cósmi­ dos corporais e espirituais. A m ontanha não é montanha:
ca das galáxias que se engolem, das devastações que dizimam Deus-Pai não é Deus-Pai como nossos pais terrestres o são.
grande parte do capital biótico da Terra ou simplesmente
face ao drama de nossos amigos inocentes que foram presos
e torturados barbaram ente por causa de suas convicções C) A M ONTANHA É M ONTANHA:
libertárias? Como conciliar a bondade de Deus-Mãe com a SA BO R rTR A N SPA R ÊN C IA ^ ID E N T ID A D E

esposa amada que foi seviciada, diante do marido preso, até


ser morta? Deus é Pai materno ou Mãe paterna, mas um ou­ Num terceiro mom ento da experiência de Deus, rea­
tro Pai e uma outra Mãe. Não é um maior, mas um diferente. bilitamos as imagens de Deus. Após tê-las afirmado (A), tê-
las negado (B), agora criticamente nos reconciliamos com ino. Por essa palavra queremos dizer: tudo está em Deus,
elas. Assumimo-las como imagens e não mais como a pró­ embora nem tudo seja Deus; bem como Deus está em tudo,
pria identificação de Deus. Com preendem os que nosso em bora Deus não seja tudo. Junto com o Criador está a
acesso a Deus só pode ser feito através das imagens. Come­ criatura, vinda dele, mas diferente dele.
çamos a saboreá-las porque estamos livres diante delas. Elas
Quem chegou a este terceiro momento não deixa na­
são os andaimes, não a construção, e as acolhemos como
da fora; assume tudo, porque tudo é revelação de Deus.
andaimes. Não pretendemos nenhum a ciência sobre Deus;
saboreamos a sabedoria de Deus que se revela através de “Quem é o Tao?”, perguntou certa feita um discípulo ao
todas as coisas. Tudo pode se tornar transparente a ele, mestre zen. E este respondeu: “É a m ente diária de cada
porque tudo é figurativo. Figurativo de quê? De Deus, de um.” “Que é a mente diária de cada um?”, tornou o discí­
sua sabedoria, de seu amor, de sua bondade e de sua mise­ pulo. Ao que o mestre concluiu: “Quando fatigados, dor­
ricórdia, etc. Mas isso só é possível se tivermos passado pelo mimos; quando temos fome, comemos.”1 Para quem per­
prim eiro e segundo momentos, quando nos tivermos li­ cebe que Deus está em todas as coisas, tudo é manifestação
bertado da simples “sabedoria da linguagem” (I C or 1,17) e do dom que é Deus, da gratuidade que é seu amor. Essa
quando tivermos já passado pela “doutrina da cruz” que simplicidade reconduz todas as coisas, boas e más, para a
destrói a ciência dos cientistas (I C or 1,18-23). Então não nos sua unidade em Deus. A partir disso Paulo podia admoes­
preocupam os mais com os antropomorfismos, porque sa­ tar os rom anos que oferecessem a vida como hóstia viva,
bemos que tudo o que dissermos de Deus é antropomorfo. santa e agradável a Deus, pois nisso consiste o verdadeiro
Mas Deus pode ser antropomorfo (à imagem do homem) sacrifício (cí. Rm 12,1); quem clá, dê com simplicidade; quem
porque o homem é teomorfo (à imagem de Deus).3 Tudo preside, presida com solicitude; quem pratica a misericór­
é simples. Nada há para se refletir. Basta ver, mas ver em dia, faça-o com alegria (cf. R m 12,8); quer comamos, quer
profundidade. Deus, sem se confundir com as coisas, está bebamos, quer façamos qualquer coisa, que seja feito tudo
presente nelas, porque as coisas são - para quem vê em para a glória de Deus (cf. I Cor 10,31). Quem experimentou
profundidade - trans-parentes. É a verdade do panenteís- o mistério de Deus não pergunta mais: vive simplesmente
a transpai ência de todas as coisas e celebra o advento de
Deus em cada situação.
A experiência de Deus não se dá apenas neste tercei­
ro m om ento do sabor. Ela é um a experiência total que
inclui o saber, o não-saber e o sabor. Im porta não fixar-se
em nenhum deles. O terceiro momento torna-se novamen­
te primeiro e inicia o processo onde os nomes de Deus são M a te as im a g e n s ,
afum ados, negados e reassumidos. Todo esse per-curso e D eus a pa recerá
constitui a experiência concreta, dolorosa e gratificante de
Deus. Ele se dá e se retrai continuam ente; se re-vela e se
vela em cada mom ento porque ele será sempre o Mistério
e o nosso eterno Futuro.

partir das refiexões que fizemos sobre os três passos


no acercamento de Deus pelo caminho das imagens,
de sua crítica e seu resgate, ficou claro que falar em expe­
riência de Deus hoje é já assumir um a postura crítica den­
tro da crise geral de nossas representações sobre o mistério
de Deus. Épocas houve em que os hom ens faziam um a
verdadeira experiência de Deus simplesmente colocando-
se em contato vital com as doutrinas tradicionais formula-
das pela religião e sancionadas pela sociedade. Nessa me­ e penetra nossa existência. Só a partir disso tentemos bal­
diação viviam o imediato do mistério de Deus c enchiam buciar-lhe um nome que não será o seu nome, mas o nome
de sentido a existência. de nosso amor e de nossa reverência Aquele que é o Sem-
Nome e o Inefável.” Não era outra coisa que pedia um fino
Nossa época se caracteriza por uma suspeita geral con­ poeta c místico cristão italiano, David Turoldo, em seu poe­
tra todos os discursos que tentam traduzir o definitivamen­ ma “Para além da floresta”: “Irmão ateu, nobrem ente em­
te im portante e o radicalmente decisivo cla vida humana. penhado na busca de um Deus que eu não sei te dar, atra­
A crítica colocou em xeque todas as nossas idéias sobre Deus. vessemos juntos o deserto! De deserto em deserto, ande­
Ela ganhou corpo nas famosas críticas feitas pelos mestres mos para além da floresta das diferentes fés, livres e nus
da suspeita - Freud, Marx e Nietzsche pela seculariza- rumo ao Ser nu. Ali onde a palavra morre, encontrará nos­
ção, pela desmitologização, pela tentativa de tradução se­ so caminho seu fim.”
cular dos conceitos religiosos, pela teologia da m orte de
Deus, pelo esforço de desmascaramento da função ideoló­ O esforço do nosso ensaio sobre a experiência de Deus
gica assumida pelas religiões, a fim de justificar o status quo se orienta na busca do sentido originário da palavra Deus,
social ou para preservar, nos países mantidos no subdesen­ encoberto sob muitos nomes e fossilizado nas doutrinas so­
volvimento, um tipo de sociedade injusta e discriminatória bre Deus. Para nos situarmos na via cla experiência de Deus,
da urgência da revolução; ganhou corpo também na críti­ precisamos conscientizar o trabalho deconstmitivo já ope­
ca às Igrejas carismáticas e populares que obedecem à lógi­ rado em nossa civilização concernente a todas as idéias e
ca do mercado e veiculam uma religião mais como entre­ representações sobre Deus. Não superamos a crise das ima­
tenimento que apelo à conversão e à interiorização. gens de Deus criando novas e, pretensam ente, mais ade­
quadas ao espírito do tempo. Isso apenas perpetua a crise
Face a esta crise generalizada, não são poucas as vozes porque, ingenuam ente, se assume aquela estrutura gera­
que admoestam: “Paremos um pouco. No âmbito do pen- dora de imagens de Deus que a crise precisamente quer
samento-raiz, façamos economia da palavra Deus. Guarde­ questionar. Essa estrutura é a vontade de sempre procurar
mos silêncio. Experimentemos aquele Mistério que circunda imagens melhores sem sair desta lógica de substituição de
Outro que mora numa luz inacessível (cf. I Tm 6,16). Ele está
umas imagens por outras. Não devemos identificar aquela
na inteligência, mas desborda toda a capacidade da inteli­
força originária que está aquém e além das imagens, força
gência. Por isso é mistério. Não como um enigma que, co­
que nos coloca no encontro vivo com Deus e que está sem­
nhecido, desaparece. Mas como mistério essencial que sem­
pre na origem de todas as imagens? Essa é a questão funda­
pre habita e desafia o conhecim ento. Q uanto mais o co­
m ental. Portanto, não é fugindo da crise para o m undo
nhecemos, tanto mais permanece mistério no conhecimen­
anterior a ela que superaremos a crise, mas entrando den­
to. Por que isso? Porque Deus é sempre maior. Dizia admira­
tro dela e radicalizando-a ainda mais até identificarmos a
velmente Santo Agostinho: “Por mais altos que sejam os
experiência originária de Deus. Entretanto, tenhamos des­ vôos do pensamento, Deus está ainda para além. Se com­
de o início uma perspectiva correta: como não se comba­ preendeste, não é Deus. Se imaginaste com preender, com­
tem imagens de Deus com outras imagens, assim também preendeste não Deus, mas apenas um a representação de
não se processa a experiência de Deus negando sistemati­ Deus. Se tens a impressão de tê-lo quase com preendido,
camente todas as representações de Deus. Devemos atraves­ então foste enganado por tua própria reflexão.”1 Deus é
sá-las e assim superá-las. Em outras palavras, im porta mais absolutamente transcendente a todas as coisas existentes e
falar a Deus do que falar sobre Deus. Mais que pensar Deus possíveis. Isso quer dizer: ele ultrapassa todos os limites e
^com a cabeça é preciso sentir Deus com o coração. É o que vai além de qualquer horizonte real e possível. Embora pre­
significa experimentar Deus. Como se fará isso? Eis o desa­ sente e perpassando tudo, não pode ser retido nas malhas
fio que pretendem os abordar em nosso texto. de nenhum a presença concreta. Ele as viola e vai além.
Por outra parte, exatam ente por ser transcendente em
cada concreção, a ele nunca vamos nem dele jam ais saí­
a) D eus t o t a l m e n t e o u t r o : t r a n s c e n d ê n c ia
mos. Sempre estamos nele. Em bora dentro, ele está para
além de tudo.
As pessoas que verdadeiramente experimentam Deus
sem pre testemunharam: Ele é superior summo meo, Deus é O problem a surge quando o ser hum ano começa a
superior a tudo o que podemos imaginar. É o Totalmente representar a transcendência de Deus ou o Deus do misté­
23
rio e o mistério de Deus. Deus transcendente é represen­ nar ateu”-, porque separou o m undo de Deus. Deus é an­
tado como o Deus acima do m undo e, o que é pior, fora do tes um a projeção do homem do que o nome do Mistério
mundo. E um Deus sem o mundo. O mistério vem repre­ que tudo penetra. Diante de um Deus representado como
sentado como um enigma a ser decifrado. Para o místico, distante, acima e fora do mundo, ninguém cai de joelhos,
o mistério é um acontecim ento a ser acolhido com total não junta as mãos, não abre o coração para a intimidade
disponibilidade. E como tal não está em oposição à inteli­ amorosa, não chora, não canta nem dança.
gência. Como dizíamos, pertence ao mistério ser conheci­ Essa representação da Transcendência nos impede de
do mais e mais. Mistério que vem representado como enig­ valorizar a encarnação de Deus em Jesus Cristo. Não é um
ma começa a significar aquilo que não pode ser alcançado Deus que se abaixa com profunda simpatia para com o ser
pela razão. Então se envia Deus ao exílio da razão. Aparece hum ano. Não assume a nadidade humana. Mas conserva,
como o limite da razão, quando, na verdade, ele é o ilimita­ contrariamente ao que diz São Paulo (cf. F12,5-7), sua majes­
do da razão. tática e transcendente divindade. Então representam os
Representado como totalmente fora do mundo, Deus Jesus Cristo, Deus-encarnado, como aquele que sabe tudo
de fato não seria experimentávcl. Ele é feito objeto da re­ desde o ventre m aterno, que sabia de sua m orte desde o
velação, a irrupção dentro do m undo daquele que está fora início da vida e que sabia cada passo de seu cam inho.
do mundo. Então ele revela verdades e representações de Destarte, a encarnação como os evangelhos no-la apresen­
si. Segundo tal compreensão, crer é crer em verdades so­ tam vem pulverizada de sua densidade profundam ente
bre Deus. Deus se transforma cm puro objeto da fé inte­ humana. Não se entende então por que Jesus Cristo pôde
lectual, fé que nada sente de Deus, mas que adere a ele ser verdadeiram ente tentado, porque “embora fosse Filho
num total despojamento e na assunção de doutrinas e re­ teve de aprender a obedecer pelo sofrimento” (Hb 5,8).
presentações acerca de Deus. Esta representação da transcendência divina com o
Esse Deus está muito próximo do Deus do deísta. “O distância do m undo tem conseqüências desastrosas para a
deísta é um homem que não teve ainda tempo de se tor­ vida de fé. Por um lado estão as experiências da vida e do
mundo; por outro, a adesão às verdades abstratas sobre Deus cia de Deus. Ele habita em nossas representações, mas está,
sem se estabelecer um nexo entre elas. A fé, ao invés de também e sempre, para além e aquém delas.
surgir do coração da vida, é sobreposta a ela. A Igreja com­
parece então como uma instituição centralizada na defesa b) D eus r a d ic a l m e n t e í n t i m o : im a n ê n c ia
do depósito de verdades reveladas e na proclam ação de
princípios morais distantes da concretez da existência. Não A fé vivenciada sempre expressou Deus como Aquele
raro terrorizam mais os fiéis e fazem a vida ainda mais tris­ que está mais íntimo a nós do que nós a nós mesmos: intimior
te, ao invés de liberá-la para a entrega generosa e total do intimo meo. Deus está de tal maneira no coração de todas as
hom em ao mistério de Deus. coisas que, em tudo o que pensamos, em tudo o que vemos
A pregação de um Deus sem o m undo teve como con­ e tocamos, tocamos, vemos e pensamos atemática e irre-
seqüência o surgim ento de um m undo sem Deus. O ser flexamente a Deus. Nada, nem o próprio inferno, é obstá­
hum ano não resistiu a esse dualismo que faz violência à culo à sua inefável presença.
vida. Rompeu com essa mal representada transcendência O problem a surge quando tentam os representar a
proclamando, como no aforismo 125 de A Gaia Ciência de imanência de Deus e identificamos a representação com a
Nietzsche: “Anuncio-vos a morte de Deus. Nós o matamos, presença de Deus. ijàeus está verdadeiram ente presente
você e eu. Todos somos assassinos.” Na verdade, Nietzsche em tudo, mas não aniquila nem substitui o m undo com
não prega a m orte cle Deus, mas a falsa transcendência suas coisasj Cada qual possui sua legítima autonomia e con­
que nos leva a fazer representações de Deus e confundir, sistência. Entretanto, há uma forma cle imaginar a atuação
ingenuam ente, a representação com Deus. Dando m orte de Deus no m undo como se Deus fora uma causa segunda
às imagens de Deus, abrimos espaço para a experiência do como as demais causas imanentes deste mundo.^Concebe­
Deus vivo e verdadeiro, do Mistério inefável e sensível ao mos a Palavra de Deus ao modo das palavras humanas. A
coração. O ateísmo negador das representações de Deus vontade de Deus como a vontade humana, o am or e a jus­
oferece, portanto, a chance de uma verdadeira experiên­ tiça de Deus como o am or c a justiça hum anasjÉ uma con-
cepção epifânica de Deus pela qual pensam os ver Deus ras. Certo tipo de teologia apresentou a Vontade de Deus
diretamente em tudo. Nessa representação não se deixa o parcelada em inúmeras leis, dogmas, qualificações, cânones,
m undo ser mundo. Não há lugar para uma história huma­ ordenações, preceitos cada vez mais minuciosos consoante
na. Tudo é assumido diretamente por Deus. Deus se trans­ as necessidades da vida.
form a num fenôm eno do m undo. Ele vem representado De repente porém o fiel começou a perguntar: Será
como o Ente supremo, infinito, criador do céu e da terra. que Deus e sua salvação são tão complicados? Tudo isso não
E um Ente ao lado, dentro e no coração dos demais entes, é apenas linguagem hum ana para traduzir o único Misté­
embora seja infinito e onipotente. Possui todos os atributos rio de Deus que não pode ser identificado com os antro-
positivos dos entes, mas em grau infinito. Porque é um Ente, pomorfismos de nossa linguagem? Deus está realmente por
acredita-se, pode ser experim entado em termos de visões, todas as partes, mas não é um fenômeno captável como os
audições e consolações interiores. Mas estamos diante de demais fenôm enos intra-mundanos. Deus é Mistério que
uma ilusão. O que experimentamos não é Deus, mas nos­ sempre se dá, mas também se retrai; sempre se revela, e ao
sas imagens de Deus. mesmo tem po se vela; sem pre se com unica, mas não se
Essa compreensão antropomórfica de Deus teve con­ confunde com o mundo. À concepção epifânica (manifes­
seqüências eclesiológicas e políticas profundas. A lei divina tação direta), que colocava Deus como um fenôm eno no
vem entendida no mesmo nível que a lei humana. A dou­ mundo, devemos opor uma concepção teológica que usa
trina revelada e as instituições divinas são com preendidas mediações, sinais e símbolos. Deus está no mundo, mas tam­
no mesmo horizonte das doutrinas e instituições humanas. bém para além dele. A razão (logos) vê Deus através da
Essas identificações se prestaram à manipulação, por parte realidade do m undo e não diretam ente nele mesmo. Daí
dos detentores do poder e da interpretação ortodoxa, em necessitar-se de reflexão, da séria afirmação do m undo,
favor da situação estabelecida. O único Mistério de Deus se visto então como itinerário da mente para dentro de Deus,
desdobrou em muitos mistérios de fé. A única Palavra de título de um um livro místico de São Boaventura: Itinerarium
Deus foi fracionada em muitas palavras divinas das Escritu­ mentis in Deum.
A diluição de Deus dentro das categorias do m undo imanente. A afirmação exclusiva da imanência de Deus no
trouxe como resultado uma negação nova de Deus. Deus m undo conduziu à negação de Deus transcendente. E que
não é uma categoria do poder, da justiça e do am or huma­ imanência e transcendência são feitas categorias opostas e
nos que pode sei manipulada para manter a situação privi­ excludentes. Aplicadas a Deus, deviam levar à negação ou
legiada de alguns ou para revolucionar essa situação. A reli­ do m undo ou de Deus. Como sair desse impasse?
gião pode se tom ar de fato ópio do povo quando confunde Deus não é só transcendente nem é só imanente. Ele é
Deus e as coisas divinas com as instituições e verdades reli­ também transparente. Como diz São Paulo: “Há um só Deus
giosas. O Deus! Vós não sois senão o amor - mas vós sois um e Pai de todos, que está acima de tudo [transcendente], por
outro amor! Vós não sois senão a justiça - mas vós sois uma tudo [transparente] e em tudo [im anente]” (Ef4,6).
outra justiça”, rezava um dos maiores teólogos católicos fran­
ceses do século XX. ’ A negação do Deus antropomorfo cria Existe um a categoria interm édia entre a transcendên­
a condição da possibilidade da experiência do Deus vivo e cia e a imanência: a transparência. Ela não exclui, mas inclui.
verdadeiro que está no mundo, mas não se esgota no mun­ Ela participa de ambas e se comunica com ambas. Transpa­
do. No transcendentalismo se afirmava a Deus e se negava o rência significa a presença da transcendência dentro da in-
mundo; no imanentismo se nega a Deus e se afirma o mun­ manència. Em outras palavras, significa a presença de Deus
do. Podemos afirmar tanto a Detis quanto o mundo? Esse é dentro do m undo e do m undo dentro de Deus.4 Essa pre­
o desafio que nos cabe enfrentar e resolver. sença transforma o m undo de m eram ente in-manente em
trans-parente para a trans-cendência presente dentro dele.
O m undo não é negado, mas afirmado. Contudo ele não é
c) D e u s a t r a v é s d e t o d a s a s c o is a s : apenas mundo; é o lugar e a própria manifestação emergen­
TRANSPARÊNCIA te daquilo que é mais do que mundo, isto é, do Trans-cen-
dente, de Deus. Bem o disse Teilhard de Chardin: O gran­
As reflexões acima deixaram claro: a afirmação exclu­ de mistério do cristianismo não é exatam ente a Aparição, f
siva da transcendência de Deus levou a negar o m undo mas a Trans-parência de Deus no Universo. Oh! sim, Senhor,^
nao só o raio de luz que passa roçando, mas o raio que pene­ m undo -, mas os coloca um em presença do outro, num a
tra. Não vossa Epi-fania, Jesus, mas vossa Dia-fania.”5 com pleta inter-retro-relação (sem elhante ao que ocorre
Deus emerge, aparece através do hom em e do m un­ entre as três divinas Pessoas da Santíssima Trindade, cha­
do. Estes se tornam então trans-parentes para Deus. Deus é mada pela teologia técnica de pericórese ou circuminsessão).
real e concreto, porque não vive acima e fora do mundo, Aqui reside, exatamente, o fundam ento da transparência.
mas no coração do mundo para além dele; dentro, mas sem Mas como aparece, em termos de experiência concre­
se exaurir aí e se tornar uma peça do mundo. Porque Deus ta, a verdade do panenteísm o, da m útua presença Deus-
deixou de ser vivido dentro do m undo é que foi fossilizado mundo? A dimensão originária que abre esse espaço e que
num a representação que o situava fora do m undo. O pró­ nos impede de objetivarmos Deus para um além distante ou
prio m undo não está abandonado a si mesmo nos espaços de um aquém opaco e m undano é a historicidade do sei
infinitos que se expandem na medida em que o universo se hum ano. Im porta entender bem o que seja historicidade,
auto-cria e se distende. Ele é ancorado em Deus. É, pode­ pois em butido nela se encontra aquilo que chamamos de
ríamos com certa ousadia dizer, o corpo visível de Deus. imanência e transcendência. A historicidade suige quando
De que forma todas as coisas são transparentes para entendemos o processo que passaremos a descrever.
Deus? Como se dá a união do m undo e de Deus, sem con­ O ser hum ano se descobre num a situação histórica,
fundir Deus com o m undo e o m undo com Deus e sem se datada, pessoal, social e ecologicamente definida, sempre
negarem mutuamente? Qual é a dimensão originária que junto com outros no mundo, situação face à qual se .sente
nos impede de criarmos objetivações negadoras de Deus e desafiado a tomar posição e a assumir decisões e destarte a
negadoras do mundo?
constituir-se como pessoa. Ele é o único ser da criação que
Já acenamos anteriorm ente que é pelo panenteísmo. não nasce pronto. Tem que se construir e plasmar seu des­
O panenteísm o (biologicamente significa “tudo em Deus tino interferindo no m undo e se relacionando com os ou­
e Deus em tudo”), que não dever ser confundido com o tros. Ao assumir radicalmente essa situação concreta, ex­
panteísmo, afirma a autonomia de ambos os pólos - Deus e perim enta de fato quem ele é: um ser m ergulhado no
m undo e nas várias estruturas e conjunturas, mas também zer sobre Ele uma ciência, como se Ele fosse um objeto fixo,
um ser capaz de elevar-se perm anentem ente acima delas, cujo com portam ento podem os descrever. A função mais
de rebelar-se contra elas, de questioná-las, de elaborar al­ im portante da ciência é prever o com portam ento futuro
ternativas a elas e de fazer opções que o definem definiti­ dos objetos que são estudados. Se as previsões não se cum­
vamente. Ele pode ser um a galinha que cisca o chão de prem consoante a teoria científica, é sinal de que a teoria
seu cercado como pode ser um a águia que ergue vôo e estava equivocada e assim não havia ciência certa.
ganha as alturas. Essa sua decisão significa existencialmen- / Não podemos prever a intervenção cie Deus. Daí não
te realização ou frustração, felicidade ou desgraça, salva­ podermos enquadrar Deus nos moldes de nosso paradigma
ção ou perdição. A in-m anência é a situação dada. A
9 científico. A rigor não se poderia fazer nenhum a teologia.
transcendência é a ultrapassagem dela. Elas se encontram
Se ainda assim ousamos fazer teologia, que pretende ser o -
unidas no mesmo ser humano concreto. A imanência que
logos sobre Deus, é porque nos sentimos em purrados pela
aí em erge e a transcendência que aí se anuncia não são
nossa sede de saber que não exclui nada e ninguém de nosr
entidades existentes em si mesmas, como coisas que estão-
(C sa curiosidade. Mas o fazemos na consciência de que nossas
aí. Absolutamente. In-manência e trans-cendência são di­
palavras são simbólicas e metafóricas. Mais negamos do que
mensões da realidade hum ana concreta e histórica. A esse
processo unitário e complexo chamamos de historicidade. afirmamos, quando tentam os balbuciar algo consistente
acerca de Deus. Ademais, nos damos conta - e isso o mos­
Deus só possui um significado real se Ele emergir de tra a história da humanidade desde os seus primórdios há
dentro dessa situação histórica concreta do ser humano; se milhões de anos - de que um mistério cerca a nossa-exis­
Ele se manifestar como o Sentido radical de sua vida e a tência. Esse mistério que se dá na história foi chamado por
Luz pela qual vê a luz. mil nomes e resum ido no nom e Deus. O Deus testem u­
O Deus do qual testemunham as Escrituras judaico-cris- nhado, por exem plo, pelas Escrituras do Prim eiro e do
tãs é o Deus que irrompe dentro da história humana, com as Segundo Testam ento, é apresentado como um Deus his-
características delineadas acima. Não podemos, a rigor, fa- ( tórico. Ele acompanhava as vicissitudes do povo, em pátria
vi 4
ou no exílio. E aí surgia como a Presença concretíssima (é Tais afirmações não soam como um a bela teoria ao
o que significa em hebraico Javé), o Caminho, a Pedra, a lado de outras? Para deixar de soar como teoria, deve ser
Luz, a Força, o Com panheiro de cam inhada, o Santo, o reconduzida àquela dimensão na qual se vive: a experiên­
Futuro absoluto, etc." À luz dessa leitura de Deus como re­ cia. Na experiência, teoria e práxis se casam e vivem juntas
velação na história, podemos com preender os velhos textos num a unidade fundamental. A teoria não é mais abstração
da fé, escritos durante mais de dois mil anos por aquele e idéia vazia. Ela é explicitação da práxis e a comunicação
povo que tentou sempre descobrir a Deus escondido sob dela. A práxis não é movimentação irracional, mas busca a
todos os eventos que vivia: o povo de Israel. Só assim a vida e realização de sentido. É na experiência radical da realida­
a história se tornam para ele transparentes. de que Deus em erge na consciência do ser hum ano. E
pela experiência de Deus buscado e encontrado no cora­
Um Deus vivido assim não é uma idéia que paira sobre a ção da experiência do real que este se torna transparente
história, o termo de um raciocínio teórico que pudesse ser e se transfigura num grande sacramento com unicador de
alcançado independentem ente da vida concreta do ser hu­ Deus. Como articular essa experiência?7
mano ou do povo. Pensar assim seria recair na problemática
das representações estáticas, seja de trans-cendência, seja de
in-manência que criticamos antes. Deus é a Suprema Reali­
dade que surge quando a pessoa radicaliza, quer dizer, vai
até à raiz da íealidade histórica que vive. História aqui não é
a recitação dos fatos passados, mas a dimensão na qual a pes­
soa ou toda uma coletividade vive, luta, se confronta, se deci­
de e constrói um caminho pessoal ou coletivo. Na radicali-
dade dessa dimensão emerge Deus como Vida da vida e For­
ça na caminhada. Quem é esse Deus? Isso só sabemos quan­
do nos abrimos a Ele e nos arriscamos a experimentá-lo.
Q ue É E X -P E R I'Ê N C IA ?

A
palavra experiência é uma das mais discutidas e difí­
.ceis de nossa tradição
* ocidental. Não poderemos
r aqui
^
desdobrar todo o leque de seu rico significado.1 Restringir-
nos-emos à perspectiva essencial que nos permite articular
Deus como experiência dentro de nossa história pessoal e
coletiva.
Talvez a etimologia da própria palavra ex-peri-ência nos
forneça a primeira achega à sua compreensão. Ex-peri-ência
é a ciência ou o conhecimento (ciência) que o ser huma-
no adquire quando sai de si mesmo (ex) e procura com­ dogm ática e fundam entalista, portanto manifesta um sa­
preender um objeto por todos os lados (peri). A experiên­ ber não veri-ficável, que não sub-siste nem re-siste em con­
cia não é um conhecimento teórico ou livresco. Mas é ad­ tato com a realidade experimentada.
quirido em contato com a realidade que não se deixa pe­
; netrar facilmente e que até se opõe e resiste ao ser hum a­ A ciência que resulta da ex-peri-ência não é m era sensa­
no. Por isso em toda a experiência existe um quociente ção de um objeto. E a síntese de toda um a série de aborda­
, forte de sofrimento e de luta. gens do objeto (perr. “ao redor de”, “em torno de”). Já Aris­
tóteles notara muito bem que a experiência (empeina) não
,, Ao apropriar-se da realidade, domesticando-a, o ser resulta de um a percepção isolada, mas constitui um a sín­
hum ano aprende. A experiência resulta do encontro com
tese de muitas percepções e combinações reunidas, naqui­
o mundo, num vai-e-vem incessante, encontro que nos per­
lo que possuem de comum, dentro de um modelo esque­
mite construir e tambcm destruir representações que ha­
mático (Met. 980b). Pela experiência o objeto se faz cada
víamos recebido da sociedade ou da educação. O encon­
vez mais presente dentro de quem quer conhecer, na me­
tro é sempre enriquecedor, pois suscita nossa fantasia, for­
nece materiais para novas conexões, base para representa­ dida em que ele se abre mais e mais ao objeto e d estuda de
ções e idéias diferentes acerca da realidade. O conheci­ diferentes ângulos. Um médico experim entado é aquele
m ento que resulta desse embate é precisamente o que cha­ que se confrontou muitas vezes com a mesma doença sob
mamos de experiência. Ela constitui um a riqueza que só os mais diferentes sintomas, sob formas e circunstâncias as
quem passou por ela pode comunicar. Ela lhe confere au- mais diversificadas a ponto de não mais se surpreender ou
tor-idade, precisam ente a autoridade de um a pessoa ex­ se enganar. Ele conhece simplesmente. Não tanto porque
perim entada. O saber é um saber veri-ficável que se fez estudou em livros - isso também -, mas porque esteve às
verdade concreta e vital. Abertura, despojamento de pre­ voltas, concretam ente, com a doença e conheceu-lhe os
conceitos e de idéias-feitas são condições indispensáveis à sintomas. O modelo que elaborou da doença, com binan­
experiência. Fechar-se à experiência é negar-se ao questio­ do experiência vivida com ciência dos livros, é um modelo
nam ento, à chance de enriquecim ento e revela atitude testado e veri-ficado.
Já vimos, da palavra ex-peri-ência, o sema peri (ao redor ficados e testados com a realidade. Podem se confirmar;
de). Falta-nos analisar o sema ex. Ex é um a pre-posição lati­ mas podem também ser destruídos, corrigidos e enrique­
na que significa, entre outros conteúdos, “estar orientado cidos. Experiência envolve todo esse processo doloroso e
para fora”, “exposto a”, “aberto para”. Temos, por exem­ criativo.
plo, as palavras: ex-clamação, ex-posição, ex-istência. Neste
sentido, ex ex-prime um a característica fundam ental do Resumindo, podemos dizer que experiência é o modo
ser hum ano como ex-istência. Ele é um ser que ex-iste vol­ como interiorizamos a realidade e a form a que encontra­
tado para fora (ex), em diálogo e em com unhão com o mos para nos situar no m undo junto com os outros. Assim
outro ou com o mundo. Daí ser a ex-peri-ência não apenas entendida, a experiência deve, pois, ser distinguida da vi­
um a ciência, mas uma verdadeira cons-ciència. O objeto se vência. A vivência é a situação psicológica, as disposições
manifesta à consciência, segundo as leis estruturais dessa dos sentimentos que a experiência produz na subjetivida­
consciência. A ex-peri-ência nunca é sem pre-su-posições. de humana. São as emoções e valorações que antecedem,
A consciência tem já pre-su-posições, que são posições to­ acompanham ou se seguem à experiência dos objetos que
madas historicam ente ou herdadas da cultura dentro da se fazem presentes no interior da psique humana. Vivência''
qual estamos inseridos. A consciência não é vazia, mas toma não é sinônimo de experiência. É conseqüência e resulta­
modelos de interpretação do passado, da sociedade atual do da experiência na psique humana. Ela pertence ao fe­
e da própria cam inhada pessoal. Esses m odelos povoam nôm eno total da experiência, mas este é mais amplo e pro­
sempre a consciência. Quando a pessoa sai de si (ex) e vai ao fundo do que aquele, a vivência.
encontro dos objetos, ela carrega toda essa carga. A expe­ Se experiência é o modo como nos situamos no mun­
riência contém, pois, um elemento subjetivo (a ex-istência) do e o m undo em nós, então ela possui o caráter de um
e um elem ento objetivo (os objetos). Nesse encontro de horizonte. Horizonte é um a ótica que nos permite ver os
ambos, na modificação que se opera tanto na consciência objetos, um focal que ilum ina a realidade e nos perm ite
como nos objetos, é que se estrutura a experiência. Os mo­ descobrir os distintos objetos den tro dela, nom eá-los,
delos já presentes na consciência são confrontados, veri­ ordená-los no rigor de um a sistematização. Por exemplo,
atualm ente na América Latina, estamos nos habituando a
ver tudo sob a ótica da libertação ou da opressão, da inclu­
são ou da exclusão dos processos globais: a pedagogia, a
teologia, a pregação, os sacramentos, os sistemas políticos e
os projetos econômicos. Perguntamo-nos quase instintiva­
mente: Até que ponto essa doutrina liberta ou m antém o
cidadão marginalizado e excluído? Até que ponto essa op­
A EXPERIÊNCIA T ÍPIC A
ção econôm ica reforça a inserção no processo de globa­ D O N O SSO M U N D O M O D E R N O
lização de form a subalterna e assim aprofunda o regime
de dependência ou até que ponto rompe com ele e liber­
ta historicamente? A libertação é um horizonte, um a ótica,
um a experiência que nos faz descobrir os objetos na sua
dimensão de libertação ou de opressão, de inclusão ou de
exclusão.

O
modo como os seres humanos se fizeram presentes
no m undo e fizeram o m undo presente neles va­
riou ao longo da história. O homem mítico interpretava
m undo dentro de outras categorias, diferentes das nossa
Tinha outra experiência. Da mesma form a o hom em da
metafísica clássica experimentava o m undo diferentem en­
te, como uma hierarquia de entes dentro de uma ordem,
presidida e culminada pelo Ente supremo e eterno. Qual é
o específico de nossa experiência de m undo?1
O típico de nosso mundo é o saber cada vez mais minu­ da na consciência. Na verdade, a própria ciência se deu
cioso e certo (certeza não é sinônimo de verdade!). Tudo é bem conta de seu estatuto herm enêutico próprio, quer
objetivado, isto é, feito objeto do saber. O saber lhe confere dizer, de seu alcance e de seus limites. C onhecer não é
segurança, porque saber é poder. Poder é subjugar todas as reduplicar. A experiência é sem pre feita dentro de um
coisas aos interesses do ser humano, de uma classe, de um modelo prévio e de perguntas previamente colocadas. Con­
país, de uma cultura, de um sistema político e econômico. forme as perguntas, vêm também as respostas. O modelo
Esse saber objetiva tudo: Deus feito objeto do saber teológi­ científico prévio já seleciona o que se deseja conhecer. Só
co; o próprio ser humano, objeto de estudo de numerosíssi­ verificamos aquilo que procuramos. Daí dizer-se que os da­
mas ciências; o universo e a Terra, objetos máximos da pes­ dos científicos não são rigorosamente dados científicos, mas
quisa científica. Desse saber nasceram as ciências e sua apli­
são feitos através de nossos inevitáveis modelos. Em razão
cação concreta, a técnica. Elas se consideram eminentemente
disso, podemos e devemos dizer que a objetividade cientí­
como ciências experimentais e objetivas. O nosso m undo é
fica inclui a subjetividade hum ana, as opções sociais e os
e se entende como m undo técnico-científico, artefato da
manipulação dos seres humanos. Não admite nenhum a for­ interesses do grupo. É sempre o ser hum ano que faz ciên­
ça numinosa e misteriosa limitante. Tudo quer desvendar; cia. E o faz com tudo aquilo que é, com interesses bem
de tudo quer conhecer as leis de funcionamento; experi­ definidos e com um sentido que confere ao seu trabalho.
menta e controla criticamente a experiência até poder esta­ Isso determ ina as perguntas, marca os modelos de análise
belecer uma ciência exata e segura. O conjunto dessas op­ e orienta a direção de seu interesse científico.
ções e processos constitui a assim chamada sociedade do co­ De qualquer forma a nossa experiência do m undo é
nhecimento, da informação e da comunicação. m arcada pelo caráter científico-técnico. Isso diferencia o
Já se ultrapassou a ingenuidade herm enêutica de um nosso tempo de outros tempos da história humana. Contu­
tipo de pensar científico que se entendia a si mesmo como do, d en tro desta experiência do m undo, apontou um
pura objetividade. O pensam ento e a ciência, pensava-se, elem ento im portante para o nosso tem a da experiência
nada mais são do que o reflexo da realidade experimenta­ de Deus. A ciência da objetividade científica envolve o ho­
mem que entra na determ inação daquilo que deve ser A pergunta pelo sentido da vida é inarredável. Ela,
analisado e pesquisado, marcando a pesquisa com o senti­ como notamos acima, já está implícita e latente dentro da
do que ele lhe dá. Numa primeira dimensão, o ser huma­ própria ciência e da técnica. O ser hum ano pesquisa e trans­
no se preocupa prim ordialm ente em dar um a explicação forma o m undo porque vê sentido nisso, porque se realiza
aí, porque consegue expressar dim ensões latentes nele.
aos fenômenos que analisa. Ela se processa com o recurso
Que sentido o ser hum ano busca realizar e viver quando
às causas imanentes verificáveis do próprio fenômeno. Dessa
dialoga técnico-cientificamcnte com a realidade? A análise
forma constrói o edifício científico e a possibilidade de sua
desse questionam ento nos abre para o sentido originário
utilização para transformar o m undo pela técnica. Esse com­
de Deus, presente também dentro do m undo m oderno.
plexo é um artefato humano, fruto do exercício da capaci­
dade do espírito.
Num segundo momento, mais fundamental que o pri­
m eiro da ex-plicação, o hom em se pergunta pelo sentido
dessas manifestações humanas. A ciência e a técnica são
um modo de o homem se situar no m undo e o m undo no
hom em . Que significado possuem? Que visam eles? Que
procura o hom em com tudo isso? Pergunta-se pelo senti­
do, que é mais do que uma ex-plicação científica. A per­
gunta pelo sentido abrange a totalidade do fenôm eno cien­
tífico. Como dizia com acerto um dos homens mais atentos
aos propósitos da ciência, Ludwig Wittgestein: “Mesmo quan­
do tivermos respondido a todas as possíveis questões cientí­
ficas, perceberem os que nossos problem as vitais nem se­
quer foram tocados.”"
C o m o aparece D eus
no MUNDO
DA TEC N CTCIÊN CLA

D
eus não aparece em nosso m undo como um fenô­
meno. Se tal acontecesse, ele também seria objeto
de análise e de ciência. Mas não seria o Deus divino d
Mistério, senão parte deste m undo objetivável, portanto
um ídolo (um objeto do m undo diante do qual nos pros­
tramos e adoramos). Não sendo fenômeno, a ciência, com
razão, prescinde da hipótese Deus, como fator ex-plicativo
da realidade experimental. Buscar a Deus no nível do fe­ Todo o saber e todo o poder estão sustentados, por­
nôm eno significa buscar nada e, se achar, achar um ídolo. tanto, por um Não-Saber e por um Não-Poder. Que é esse
Deus não surge explicitado e tematizado aí. Ele está, no Não-Saber e esse Não-Poder? Não é aquilo que chamamos
m undo técnico-científico, totalm ente ausente. Foi para o de Mistério? A ciência emerge, portanto, de um Mistério.
exílio. Retraiu-sc de forma completa. Mas essa retração deu Ela está à mercê de uma força e de um vigor que a levam a
chance para que aparecesse o ser hum ano no cenário da cam inhar cada vez mais célere, exacerbando sua vontade
história (a historicidade a que nos referíamos anteriorm en­ de tudo conhecer e tudo domesticar. Mas não pode do­
te) e tudo o que ele pode em termos de saber, de poder e mesticar e apreender dentro das malhas de suas ciências e
de manipulação do captável por seus sentidos, ampliados de suas técnicas o De O nde e a Origem de seu poder e de
pelos aparatos tecnológicos. seu saber.
Já aqui se anuncia um a pergunta incôm oda para o Como dizia a sabedoria da antiga índia: “A força pela
espírito científico: De onde vem o vigor e a força do saber, qual o pensam ento pensa, não pode ser pensada.” A lín­
do conquistar e do dominar? O ser hum ano se surpreende gua pode falar sobre todas as coisas, mas não pode falar a
tomado por esse instinto de saber e de poder. Responder força pela qual fala. O olho pode ver todas as coisas, mas
que isso vem cla natureza é dar um a resposta científica, não consegue ver a si mesmo. O espelho apenas nos dá
mas que não sacia a pergunta. Porque podemos perguntar um a imagem do olho, não o olho mesmo. Se quebro o
adiante: E de onde o tem a natureza? Das energias cósmi­ espelho que espelha m eu olho, não quebrei com isso o
cas que atuam a partir do vácuo quântico, sempre saturado meu olho. Que é esse olho que tudo permite ver e não se
de energia? E essas energias provêm de onde? Poderemos deixa ver? Que é esse Mistério sem nome? Que é esse Não-
levar ao infinito as perguntas e as respostas evasivas. No fi­
Saber?
nal o ser hum ano deverá, humildemente, reconhecer: “Não
sei!” Ao responder assim, pode se considerar absolutamen­ Não chamaram todas as religiões e todos os místicos ao
te honesto. E o máximo que a perspectiva científica permi­ Inefável que se dá e se retrai em nossa existência, de Deus?
tirá dizer, mantendo-se dentro de seus limites científicos. Deus não é a palavra para dizer o Não-Palavra? Não diz o
salmo: “Em tua luz, Senhor, vejo a luz”? Por isso dizia o assim no m undo técnico-científico: velado, olvidado e si­
Sábio: “Nomear o Tao é nom ear a Não-Coisa... O Tao é um lenciado. Mas como o sol e como a raiz ele está presente,
nom e que indica sem definir. O Tao está para além das sendo a força e a vida da vontade de saber e de poder.
palavras e para além das coisas. Não se exprime nem por
Para quem conseguir realizar semelhantes reflexões,
palavras nem pelo silêncio. O nde não existem nem mais o mundo, de repente, começa a se transformar num gran­
palavras nem o silêncio, o Tao é apreendido.”1 de sacramento. Apesar de todo o seu aparato técnico, ele
O Deus-Mistério está no m undo técnico-científico, mas rem ete e aponta para um a realidade fundante que o su­
retraído, olvidado, silenciado. Porque não se fala dele não porta. Não só algumas coisas do m undo técnico-científico
significa que não esteja presente ou seja negado. Ele está nos en-via-m. para Deus, mas tudo se torna via e nos convi­
lá no pudor do silêncio. Deus é como a raiz de uma árvore. da para a via-gem para Deus - tanto as positividades quan­
Vemos a árvore. Admiramos sua fronde. Comemos de seus to as negatividades, tanto as conquistas humanizadoras da
frutos. Estudamos sua natureza. Aquilo que não é visto na técnica quanto suas manipulações inumanas. Uma e outra
superfície da terra, a raiz, isso dá vigor e vida à árvore. A são suportadas pelo mesmo fundamento. Isso não significa
raiz não aparece à primeira vista. Ela está recolhida no si­ que Deus é responsável pelo mal no m undo técnico. Deus,
lêncio da terra. Quando comemos os frutos e descansamos já vimos, não está presente como um a causa segunda e
à sombra da árvore, não nos lembramos da raiz - mas é dela como um fenômeno. E o homem que causa a poluição e
que vem a seiva e, com a seiva, a vida. Deus é essa raiz e essa monta mecanismos de exploração globalizada. A força pe­
seiva oculta. Deus é como o sol que brilha lá fora na nature­ la qual ele faz isso não é dele, mas lhe foi dada. E ele abu­
za. Da sala iluminada pela luz do sol, não vemos o sol. Ao sou dessa força, por isso a responsabilidade cabe ao ser hu­
enxergarmos, ao trabalharmos e ao movermo-nos à luz do mano. Ao invés de sentir-se en-via-do de Deus e dar-se conta
sol dentro da sala, raramente recordamos o sol. Ele é olvi­ de que ele não é o absoluto de si mesmo, atribui a si o
dado e silenciado. Nem por isso deixa de brilhar sobre aque­ poder fazer e o poder destruir. Não percebe que está à
le que dele se esquece menos ou mais do que sobre aquele mercê de Algo que não é ele e que o transcende continua­
que dele se lembra e o nomeia em sua vida. Deus aparece mente. Por isso não age conforme os apelos que vêm do
Mistério, através de sua consciência, da racionalidade e da assim como o animal. Este possui órgãos especializados em
fraternidade, mas obedece à voz de si mesmo e de sua função de certos objetos que satisfazem suas necessidades.
desordenada vontade de auto-afirmação. Aquele, contu­ O animal possui um m undo circun-stante que é o seu habitat.
do, que conseguir vencer a tentação que o mal no m undo O ser hum ano, à diferença do animal, não está aberto para
técnico representa, para esse, o nosso m undo opaco e isso ou para aquilo do m undo, mas simplesmente para o
hominizado, onde só aparece o ser hum ano e seu traba­ m undo em sua totalidade.
lho, também se trans-figura e se torna diá-fano para a Raiz Contudo - e aqui aparece algo de novo - o m undo e a
que secretamente o vivifica e para o Sol que indiretamente cultura técnico-científica não satisfazem o impulso de aber­
o ilumina: Deus. tura do homem. Nele há sempre uma plusvalia e um exces­
Anteriormente lançamos a pergunta e a deixamos no so de impulso e de paixão que o deixam existencialmente
ar: Que sentido o ser hum ano busca realizar e viver quan­ sempre insatisfeito. Por isso está sempre elaborando novos
do se relaciona técnico-cientificamente com a realidade? mundos, excogitando novas interpretações, inventando no­
O que se revela? A atividade técnico-científica revela quem vos métodos de conhecimento da realidade, criando formas
é o ser humano. Ele é, por excelência, um ser aberto para de sociabilidade e também contestando modelos sociais. Que
o m undo. Biologicamente é um ser-carência; não possui significa isso? Significa que sua abertura para com o m undo
nenhum órgão especializado; se quiser sobreviver, precisa é um a abertura total. Ela se concretiza no m undo junto com
trabalhar. Pelo trabalho transforma o m undo e cria a cultu­ outros, mas não se exaure nessa concreção. O ser humano é
maior do que o mundo. Nele há uma ânsia infinita. Nele
ra. A ciência e a técnica constituem as formas mais refina­
arde um princípio-esperança que o impulsiona sem pre a
das de relacionam ento do ser hum ano para com o m un­
criar e a se re-situar continuamente no mundo, sonhando
do, fazendo-o cada vez mais sua posse na satisfação de suas
no sono e na vigília com mundos cada vez mais humanos e
necessidades e da criação de sentidos de beleza e de arte.
fraternos até projetar utopias de suma felicidade e realiza­
O m undo científico-técnico é a concretização da aber­ ção. O ser humano, homem e mulher, é um projeto infini­
tura do ser hum ano. Mas ele não está aberto ao m undo to. Eis o que significa transcendência e imanência do ser
hum ano. Enraizado (imanência), se abre ao largo espaço Assum indo nossa historicidade (epocalidade), afir­
infinito (transcendência). mando-a efetivamente, começaremos a apreender o senti­
do originário de Deus que surge do coração e da latência
Q ue m otor é esse que o aciona para um a abertura dessa mesma historicidade. Deus então não está fora e sem
total? Se o ser hum ano é abertura infinita que alcança para o m undo; nem se confunde com o m undo. Mas em erge
além do m undo e da cultura, qual é seu correspondente como o fundam ento e o sentido escondidos do m undo
adequado? Só o infinito sacia um a ânsia infinita. A palavra técnico-científico. E um Deus real e vivo que está junto de
Deus exprime o infinito da abertura infinita do ser hum a­ nossa caminhada histórica. Ele aparece como aquele pon­
no. Essa palavra só possui sentido se expressar o correspon­ to de convergência para onde tendem incansável e incons­
dente da total abertura do homem. cientemente todos os nossos esforços.
O m undo técnico-científico, quando analisado na sua A ânsia infinita, por mais infinita que seja, só encontra
dinâmica interna, nos leva a colocar o problema de Deus. A finitos e só cria, na sua práxis transformadora, finitos. Quan­
abertura para o mundo, encarnada na transformação técni­ to mais cria e exacerba seu saber e poder, tanto mais per­
ca, é um mom ento que concretiza a abertura total do ser cebe que o infinito de sua ânsia não é factível nem fruto de
humano, sob a qual se esconde a abertura para aquilo que seu trabalho. Essa realidade vai revelando cada vez mais o
chamamos Deus. Além de um sentido para o próprio ser infinito para o qual a pessoa tende, infinito que não pode
hum ano na tarefa de assenhorear-se da natureza, a ciência ser reduzido ao ser hum ano ou a uma categoria humana.
e a técnica possuem um sentido mais profundo: elas signifi­ Vai aparecendo cada vez mais aquilo que não é hum ano,
cam a busca secreta, inconsciente e insaciável de um a Reali­ mas que é mais do que o humano. Emerge a dimensão do
dade Suprema que é mais do que a domesticação do m un­ Mistério como abertura total de compreensibilidade e de
do. Só percebe isso quem se engaja profundamente dentro futuro. As religiões, especialmente o cristianismo, em pre­
deste mundo, quem não teme a mundanidade do mundo, garam o nome Deus para designar esse “Mistério supremo
quem tenta pensar radicalmente e até o fim aquele sentido e inefável que envolve nossa existência”, como diz o Concí­
que está latente dentro da tarefa científico-técnica. lio Vaticano II (Nostra Aetate, n. 2).
O sentido presente na cientificidade de nosso m un­ para ele. Ele não é mais o mesmo na sua profunda opaci­
do, enquanto a tarefa do saber científico e do poder técni­ dade. Ele se torna revelador de Deus e articulador do Sen­
co implica um sentido realizado pelo ser hum ano, signifi­ tido. Ele começa a nos aparecer trans-parente para Deus.
ca, na sua profundidade, a presença do Sentido por exce­ Em tudo isso Deus se vela e re-vela, se dá e se retrai e vem
lência, isto é, a presença, retraída e silenciada, de Deus. É misturado com todas as coisas. Acolher a Deus que assim
essa presença do Sentido dentro do nosso modo próprio nos visita é abrir-se para a dimensão da fé. E crer. E, cren­
de sentir o m undo que impossibilita um a linguagem do do, dizemos um sim radical ao Sentido latente descoberto
absurdo radical do ser. Toda compreensão absurda da rea­ no m undo em que vivemos.
lidade é rigorosamente contraditória porque tem que pro­
var a não-absurdidade do absurdo. Com isso afirma um sen­
tido.2 Deus não pode jamais ser banido nem do m undo
riem da linguagem. Ele se faz presente no próprio ato de
; querer bani-lo.
Ao perguntarmos, como o fizemos acima, pelo senti­
do do m undo técnico-científico, não procurávamos aquilo
que não tínhamos encontrado. A reflexão nos mostrou que
já estávamos dentro do Sentido; só podíam os perguntar
porque já tínhamos sido surpreendidos e envolvidos pelo
Sentido mesmo. A reflexão apenas trouxe à memória aquilo
que estava dentro dela, mas vivia esquecido; fez-nos recor­
dar que a luz provém do sol e que a árvore vive de uma raiz.
Não criamos o sol nem inventamos a raiz. Eles estavam sem­
pre lá. A partir dessa experiência de Deus em contato com
o nosso mundo, podemos olhar com um a ótica diferente
60
6
C o m o a pa r ec e D eus
NA M O D E R N A C O SM O L O G IA

U
m dos campos de conhecimento que mais se desen­
volveram a partir dos meados do século XX é segu­
ram ente o da m oderna cosmologia. A cosmologia narra a
história do nascimento e do desenvolvimento do universo,
a partir dos muitos conhecimentos que acumulamos da as­
trofísica, da física quântica, das ciências do caos e da com­
plexidade, da ecologia, da psicologia, da m oderna antro­
pologia. Esses conhecimentos vêm articulados com o passa-
63
do da humanidade, com as grandes tradições espirituais e grito dos pobres', podem os sumariar, da seguinte forma, os
religiosas e com os vários saberes elaborados pelas várias passos do teatro cósmico:
culturas. Tudo isso vem enquadrado dentro de uma visão
cvolucionista do universo. Daí surge uma nova imagem do Inicialmente havia um pontozinho quase imperceptí­
universo, que m udou profundam ente nossa percepção das vel, im pregnado de energia originária. N ada existia, nem
coisas, do ser hum ano e também nossa experiência de Deus. espaço, nem tempo, nem matéria organizada. Num deter­
Somos seres históricos, que um dia começamos e ainda não m inado mom ento, sem que saibamos o porquê, aquela quie­
estamos prontos. Estamos todos em gênese, abertos para o tude prim ordial se quebrou. O correu um a inimaginável
futuro. Deus emerge de dentro dessa experiência cosmo- explosão. Tudo foi lançado em todas as direções, sob calor
lógica como o Futuro do mundo, como a Grande Promes­ de bilhões de graus e em incontrolável velocidade. Fótons
sa para o coração humano, como o Grande Atrator que nos se irradiaram , inaugurando o processo de expansão que
chama lá na frente. ainda está em curso. A energia originária se desdobrou nas
quatro forças que sustentam tudo: a gravitacional, a eletro­
A nova cosmologia parte de um fato, talvez o mais sig­
nificativo da história das ciências: a identificação da data de magnética, a nuclear fraca e a forte. Surgiram os primeiros
nosso nascimento. Foi captada, vinda de todas as partes do seres, os seis tipos de quarks que se estabilizaram e forma­
universo, uma radiação cósmica de fundo (-3 graus Kelvin). ram os prótons e nêutrons. Três m inutos após a grande
Trata-se de um raio fraquíssimo, um a espécie de ruído explosão (big-bang), formaram-se os primeiros núcleos de
derradeiro, eco da grande explosão primordial, de onde átomos. Surgiu a primeira síntese, o hidrogênio e o hélio,
se originaram todas as coisas. É o famoso big-bang. Analisan­ encontráveis em todo o espaço cósmico. Após esses três
do-se a radiação das galáxias mais distantes, calculou-se que minutos, formaram-se grandes nuvens de gases. Após dois
essa incomensurável explosão tenha ocorrido há 15 bilhões a três bilhões de anos, elas se condensaram e se resfriaram,
de anos. E a nossa idade, pessoal e de todo o universo. Sem dando origem às grandes estrelas vermelhas. Em seu inte­
entrar em detalhes e dispensando a fundam entação teóri­ rior ocorreram formidáveis interações, perm itindo o sur­
ca, coisa que fizemos em nosso livro Ecologia: grito da Terra, gim ento de elem entos químicos mais pesados que o hi­
drogênio e o hélio, imprescindíveis para a form ação da mais adequada, pois ela sugere o vazio e o nada. Mas a inten­
matéria do universo e da vida, como o carbono, o silício, o ção é constatar que, com o irromper do big-bang, se manifes­
magnésio, o oxigênio, o níquel, o ferro e outros. Essas gi­ tou um a fonte abissal de energia, o vácuo quântico. Efetiva­
gantes vermelhas explodiram e se transformaram em super­ mente, alguns preferem chamá-lo de abismo alimentador de
novas. Elementos pesados foram ejetados ao espaço inter­ tudo (all-nourishing abyss) porque se trata de um vácuo sa­
estelar e deram origem às estrelas de segunda geração, turado de energia ilimitada. Dele tudo sai - ondas de ener­
como o nosso Sol, os planetas, os satélites e os corpos mate­ gia, partículas elementares - e a ele tudo retorna. Algumas
riais. Esses elementos formaram as galáxias, as moléculas, energias se estabilizam e aparecem como matéria, outras
as células, as águas, os dinossauros, os papagaios, os cavalos formam campos energéticos ou mórficos e então são cha­
e os seres humanos. Todos somos inter-retro-conectados, madas de função de onda. Mas em todo esse processo se
form ando o grande sistema do universo, construído por verifica um a minuciosa calibragem de medidas, sem as quais
aqueles elem entos (cerca de cem) que se form aram em o universo e nós mesmos não estaríamos aqui para falar disso
bilhões de anos de trabalho cósmico. O universo é mais tudo. Quer dizer, para que existisse o céu sobre nossa cabe­
ça e nós pudéssemos estar aqui, foi necessário que todos os
que o conjunto de todos os seres e energias existentes; é o
fatores cósmicos, ao largo dos 15 bilhões de anos, tivessem se
conjunto das relações que envolvem todos os seres e os fa­
conectado, se equilibrado e convergido. Sem essa sinfonia,
zem interdependentes uns dos outros.
jamais teria surgido a complexidade, a vida, a consciência e
Um dia estivemos todos juntos, com o virtualidade, a nossa própria existência. Tal compreensão supõe que o
naquele núcleo primordial; em nossos elementos básicos, universo seja carregado de propósito e intencionalidade, im­
fomos forjados nas estrelas, depois na Via-Láctea, no siste­ plica num Agente infinitamente inteligente por detrás da
ma solar e na Terra. Somos todos parentes e irmãos. Te­ ordem universal, apesar de todo o caos e das dizimações que
mos a mesma origem e, seguramente, o mesmo destino. estigmatizaram o universo e a Terra.
Os cosmólogos referem-se não apenas ao big-bang, mas Essa ordem fascinou cientistas como Einstein, Bòhm,
também ao vácuo quântico. Vácuo náo seja talvez a palavra Hawking, Swimme e outros. A consciência de Deus quer
67
expressar essa ordem suprem a e dinâmica, sempre feita a Deus. Deus é sempre Mistério e Incognoscível. Mas Ele pode
partir do caos. Deus estava primeiro no universo, em nossa ser intuído pela razão devota e pode ser sentido pelo cora­
galáxia, em nosso sistema solar, em nosso planeta, forman­ ção. Então, Deus foi Aquele que colocou tudo em marcha e
do ordens a pardr da desordem. E, porque estava lá, pôde, tudo alimenta. Portanto, Deus emerge não fora do processo
num dado m om ento da evolução, emergir na consciência cosmogênico, mas como um a exigência dele.
dos seres humanos. Mas não basta dizer que Deus está na raiz da existên­
A hipótese do big-bang e do abismo alim entador de cia de todas as coisas. O utra questão importante é: Por que
tudo supõe que o m undo teve início e que um a Energia exatam ente nós e o universo existimos? Que Deus quer
poderosa o m antenha continuam ente no ser. Quem deu expressar com a criação? Responder a isso não é preocupa­
o impulso inicial? Quem sustenta o universo como tudo e ção apenas da consciência religiosa, mas da própria ciên­
cada coisa para continuarem a existir e a se expandir? O cia. Stephen Hawking, em seu famoso livro Uma breve histó­
ria do tempo'2, revela a intenção de sua pesquisa cosmológica,
que havia antes do big-bang? O nada? Se havia o nada, como
que é conhecer o que Deus tinha em m ente ao criar o
surgiu algo? Do nada não vem nunca nada. Se, apesar do
inteiro universo. Sucintam ente podem os dizer que o sen­
nada, apareceram seres, é sinal de que Alguém os chamou
tido do universo e de nossa própria existência consciente é
à existência e os alimenta perm anentem ente em seu ser.
sermos um espelho no qual Deus vê a si mesmo. Cria o
Talvez com modéstia e precaução, em respeito ao rigor universo com o desbordam ento de sua plenitude de ser,
científico, possamos responder: antes do big-bang não havia de bondade e de inteligência. Cria para se auto-entregar a
nada do que agora existe. Porque, se existisse, deveríamos algo distinto dele. Cria para fazer outros participarem de
perguntar: De onde veio? O que podem os sensatam ente sua superabundância. Cria o ser hum ano com consciência
dizer é: Existia o Incognoscível, vigorava o Mistério. Sobre o para que ele possa ouvir as histórias do universo, possa cap­
Mistério e o Incognoscível, por definição, não se pode dizer tar as mensagens dos seres da criação, dos céus, dos mares,
literalmente nada. Ora, ocorre que o Mistério e o Incog­ das florestas, dos animais e do próprio processo hum ano e
noscível são os nomes pelos quais as religiões chamaram a religar tudo à Fonte originária de onde procedem.
69
O universo e cada ser dentro dele se encontram em relação. Ele comparece como o Futuro absoluto, o Ponto
gênese. Não acabaram de nascer. Por isso vêm carregados Ômega de realização de todas as promessas presentes na
de virtualidades ainda não realizadas. O universo e especial­ criação. Como tudo tem a ver com tudo em todos os pontos
m ente o ser hum ano representam um a prom essa e um e em todas as circunstâncias, tudo tem a ver com a Fonte
futuro. A tendência de tudo é poder realizar-se e mostrar originadora de tudo. Todas as coisas comungam entre si e
as potencialidades que carrega dentro. Por isso, a expan­ com ungam com Deus. Deus é um Deus-comunhão. Essa
são significa tam bém criação. Deus se m anifesta dentro constatação servirá de base para entendermos depois a ex­
desse processo, anim ando, atraindo e fazendo convergir. periência cristã de Deus como comunhão de Pessoas divinas
Ele é o Ponto Omega, o grande Atrator de todas as ener­ que se fazem presentes dentro do processo da evolução.
gias e de todas as formas de matéria para um a culminância
na qual a promessa se transforma em realidade e a virtua­
lidade em ridente concreção.
Como nom ear esse Deus-Mistério-Incognoscível a par­
tir de nossa compreensão do universo em expansão? O pri­
m eiro que nos ocorre é chamá-lo de Energia Suprem a,
consciente, ordenadora, sustentadora, amorosa. Podemos
compreendê-lo como Paixão infinita de comunicação e ex­
pansão, pois o universo é cheio de movimento em equilí­
brio, criando o tempo, o espaço e todos os seres na medida
em que se dilata indefinidamente. Deus irrompe como Es­
pírito que perpassa o todo e cada parte, porquanto tudo é
sutilm ente interdependente e apresenta um a ordem que
continuam ente se cria a partir da desordem inicial e que
se abre para formas cada vez mais abertas e superiores de
70
C o m o a pa rece D eus
N O M U N D O O P R IM ID O
d a A m é r ic a L a t in a

O
m undo da tecno-ciência a que acenamos na parte
anterior constitui o horizonte mais visto de nossa exis­
tência, situada na América Latina. Nossa historicidade abor­
da cientificamente e não mais mítica ou metafisicamente
o m undo. Usamos de todas as formas de tecnologia para
agilizarmos as forças produtivas e acumularmos bens e ser­
viços, em bora injustamente repartidos. Dentro desse hori-
zonte mais vasto se articula, historicamente, um outro, aque­ A América Latina comparece como um continente subde­
le sob o qual vivemos na América Latina. Como ele se rea­ senvolvido e retardatário em relação aos países opulentos
liza entre nós? Antes de mais nada, vale constatar que pre­ do hemisfério norte. Uma reflexão sócio-analítica mais vi­
dom ina na gente de nível popular um a interpretação re- gilante constata que esse subdesenvolvimento é o sub-pro-
ligioso-mítica do m undo. Tudo isso possui seu inestim á­ duto do desenvolvimento desses países, que têm interesse
vel valor e representa um a dimensão perm anente de todo político em nos manter, por força, no sub-desenvolvimen-
ser hum ano, pois o hom em técnico-científico tam bém é to. Vivemos num verdadeiro regime continental de depen­
un sauvage et primitif nas estruturas fundam entais de seu dência e de captividade. Somos periferia dos grandes cen­
saber. As várias experiências que fez em contato com o tros metropolitanos de decisão que se situam em Nova York,
m undo - a mítica, a metafísica e agora a científica -, não Londres, Paris, Bonn e não em Brasília, Buenos Aires, San­
devem ser interpretadas diacronicamente. Elas são janelas tiago ou Cidade do México.
da alma hum ana pelas quais vemos a multiforme paisagem Essa m anutenção opressiva no subdesenvolvimento é
da realidade. Devem pois ser interpretadas sincronicamente resultado de cinco séculos de colonização, neocolonização
com o estruturas atuais de nossa m ente, pelas quais nos e hoje globocolonização. Somos atrelados a um sistema glo­
orientamos no mundo. Tal reflexão se faz im portante para bal de relações econômico-sociais, hoje globalizadas, que não
fazermos justiça à realidade que vivemos no continente la­ controlamos e que nos dita o que devemos produzir, o que
tino-americano. consumir e o que exportar. Não é aqui o lugar para deta­
Entretanto, a singularidade é também para nós o es­ lharmos a crítica a esse sistema de convivência hum ana e
pírito científico-técnico. Mas ele é vivido na América Lati­ de relacionamento com os bens de produção e consumo.1
na sob a forma de um drama perverso. O saber científico e Certo é que seu espírito e as motivações predom inantes
o poder técnico não são entidades inocentes e neutras. Nem centralizadas na busca do lucro, do proveito e do interesse
revelam apenas a forma como o ser hum ano dialoga com a individual, assentados na propriedade privada dos meios
realidade. Mas, historicamente, foram e são usados como de produção, no papel hegem ônico do dinheiro-capital,
instrum ento de dominação e de opressão de outros povos. na livre empresa, na comercialização do trabalho do ho­
75
mem, na sistemática depredação dos recursos escassos da anual de 47% da população mais pobre do mundo. A con­
natureza e na mercantilização de tudo, são terrivelmente seqüência dessa injustiça que clama ao céu faz com que
inumanos e geram um a qualidade de vida extrem am ente 850 milhões de pessoas passem sistematicamente fome e
pobre, anêmica e violenta. A organização do poder se arti­ sobrevivam na insegurança alimentar; um terço destas não
cula de tal forma que corrobora continuamente o fortale­ chega aos quarenta anos. A contradição não se situa mais
cimento das minorias ricas sobre as maiorias pobres. A ex­ entre leste-oeste, vale dizer, entre capitalismo e socialismo,
ploração ou, pelo menos, o uso do homem pelo outro ho­ mas entre o norte opulento e o sul miserável. Os dados da
mem, assume, muitas vezes, formas desapiedadas com alta superexploração de um lado sobre o outro são aterrado­
taxa de iniqüidade social. res. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimen­
to, a que já nos referimos, dava conta de que em 1990 os
Para não sermos abstratos, arrolaremos alguns dados.
fluxos do norte para o sul foram da ordem de 54 bilhões
Dos cerca de seis bilhões de pessoas existentes hoje, 1,3
de dólares na forma de investimentos, empréstimos e aju­
bilhão vivem com menos de um dólar diário e mais de dois
das. Ao passo que as transferências do Terceiro M undo para
bilhões com apenas dois bilhões de dólares, segundo da­
o Prim eiro equivaleram a quinhentos bilhões de dólares
dos do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
no mesmo ano. E as proporções até o presente só têm au­
(PNUD) do ano 2000. Os bens e serviços são pessimamen­
mentado.2 A América Latina está enchafurdada nesse labi­
te distribuídos. Os 20% mais ricos da população mundial
rinto histórico que nunca se resolve.3
consomem 93% de todos os produtos e serviços, enquanto
os 20% mais pobres consomem apenas 1,4%. O fosso entre No Brasil, os dados são também dramáticos. Os 10%
uns e outros aum enta ao invés de dim inuir. A diferença mais ricos concentram 50% da riqueza nacional; os 50%
entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres do m undo mais pobres detêm apenas 10%; 40% da população brasi­
cresceu de 30 a 1 em 1960, para 61 a 1 em 1991 e para 78 leira vive abaixo da linha de pobreza; e cinqüenta milhões
a 1 em 1999. Os 225 indivíduos mais ricos do mundo, dos de brasileiros não conseguem ter um a alimentação suficien­
quais sessenta são norte-americanos, têm uma riqueza com­ te. O Brasil, pelo olhar imparcial da ONU, está entre os
binada de mais de um trilhão de dólares, igual à renda últimos lugares do m undo com referência ao índice de
Desenvolvimento Hum ano.4 Esse achatamento dos salários finição, é inalcançável, porquanto em transformação cada
encontra sua contrapartida na extrem a concentração da vez mais rápida. Com acerto observou Celso Furtado, o
renda em reduzidíssima parcela da população. Entre 1998 m elhor economista brasileiro:
e 1999 a proporção de pobres aum entou de 32,7% para
33,9%, segundo o IPEA. O Brasil, sempre batendo recor­ A experiência já demonstrou que, se se aumenta o esforço
des, em matéria de pobreza e desigualdade, m antém 55,6 para andar mais rápido e reduzir a distância do alvo perse­
milhões de brasileiros vivendo com menos de cem reais guido, a deformação estrutural se acentua, pois uma acu­
por mês. Cerca de três milhões tornaram-se pobres no ano mulação mais intensa em benefício de uma parte da popu­
da desvalorização do real em 1998.5 Relativamente a esses lação amplia o fosso que existe entre as condições de vida
dados, temos que 56% da população se encontram na fai­ da minoria beneficiada e as da massa, fosso que é a essência
xa da marginalidade absoluta (capacidade de consumo res­ mesma do subdesenvolvimento. Cabe inferir, portanto, que
a melhoria efetiva das condições de vida da massa da popu­
trita à alimentação básica) e 75% da população na faixa da
lação dos países do Terceiro Mundo, particularmente dos
marginalidade relativa que consiste na capacidade de con­
de grande dimensão demográfica, somente será alcançada
sumo não superior ao estrito atendim ento das prim eiras
por outros caminhos. A índia nunca será uma Suécia de
necessidades.1’ O m odelo brasileiro diretam ente beneficia um bilhão de habitantes, nem o Brasil uma reprodução dos
pequena m argem da população, que tem suas riquezas Estados Unidos.7
enorm em ente aumentadas. A participação no produto so­
cial, teoricamente aberta a todos, é feita capilarmente por
Esses parcos dados ilustram a elevada taxa de iniqüi­
apenas 5% da população.
dade hum ana que o sistema capitalista comporta. Nem se­
O desenvolvimento não é definido em termos de in­ quer arrolamos o desastre ecológico, em nível mundial, que
dependência e auto-sustentação a partir das próprias for­ está provocando danos sobre todos os ecossistemas e o siste-
ças, mas em termos de aproximação ao paradigma dos paí­ ma-Gaia. Algo deve estar profundam ente errado na opção
ses opulentos do hemisfério norte, paradigma que, por de­ por semelhante sistema global, que se instaurou e está se
globalizando em todos os recantos da Terra. Essa situação “Estão mal batizados”, com enta Marcuse, “enquanto acei­
faz um a provocação terrível para a experiência de Deus. tam e obedecem ao evangelho libertador somente num a
Como se revela Deus em sem elhante situação? Dissemos form a altam ente sublimada - que deixa a realidade sem
anteriorm ente que Deus emerge a partir da história que liberdade como estava antes.”8
vivemos. Sobre ele não temos um a ciência previam ente
construída aplicável à nossa situação. Que face mostra Deus J. L. Segundo, teólogo uruguaio e um dos críticos mais
dentro de nosso m undo inumano? lúcidos do caminho da evangelização na América Latina,
fazia uma constatação também dolorosa:
Há que considerar a imagem de Deus vinculada ideo­
logicamente pelo sistema. Justifica a situação. O sistema ca­
Ao revelar o sistema capitalista - no decurso de seu desen­
pitalista apresenta a Deus como aquele Ser Supremo que
naturalm ente estabelece as classes, onde haverá sem pre volvimento - toda a sua dimensão de dominação inumana,
ricos e pobres. Prega um Deus que manda observar as leis o cristão não encontra na experiência de sua vida social
da natureza, entendendo-se a fome pela vantagem pessoal, nenhum elemento que lhe sim para pensar o Deus que se
a concorrência e a livre empresa como decorrentes da lei revelou em Jesus Cristo. Mais ainda, seu ajuizamento do
natural. Anuncia um Deus que m anda obedecer a ordem sistema social o leva necessariamente à crítica de uma no­
estabelecida, não se perguntando se essa ordem não pode­ ção de Deus em que se projeta a falsa imagem criada por
rá ser, como efetivamente está sendo, ordem na desordem uma ideologia de dominação. Nesse sentido podemos di­
e fruto do egoísmo de grupos de interesse. Trágica para a zer que nunca como hoje tem sido tão difícil conceber exis-
fé se tom a a situação quando nos damos conta de que os tencialmente o Deus cristão.'1
próprios conceitos fundamentais do cristianismo foram as­
similados como suporte justificador do sistema de opres­ Não obstante isso, observamos: quem é o Deus cristão
são, como humildade, obediência, honestidade, paciência, não o sabemos a priori, senão assumindo os desafios dessa
carregar a cruz de Cristo, pobreza, renúncia, amor incondi­ situação de captividade. Dentro dela se revelará um rosto
cional, etc. Freud dizia que os cristãos estavam mal batizados. novo do Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo.
81
vezes mais crer nessas coisas que pronunciar vosso nome.
Deus se faz presente na América Latina por um a du­
Fora delas é impossível que eu alguma vez vos encontre e
pla ausência extrem am ente angustiante. A dependência
aqueles que as tomam por guia estão sobre o caminho que
opressora, a marginalidade de milhões, a miséria hum ilhan­
os conduz a vós.”111
te, a ganância insaciável de uns poucos, a violência dos tra­
ficantes de drogas e armas despertam em nós sede de jus­
tiça, fome de participação, ânsia de fraternidade e desejo O Deus que assim aparece é o Deus inversus. Ele emer­
imenso de criação de estruturas sociais que impeçam para ge do contraste. Q uanto maiores forem as trevas, m aior
sem pre a exploração do hom em pelo hom em . Porque será o resplendor da Luz. Mas essa Luz nos julga e nos con­
entrevemos a justiça, sofremos com a injustiça estrutural. dena. Não permite que fiquemos inativos face às injustiças
Porque vivemos na ânsia da solidariedade, penamos sob o que clamam ao céu e face à miséria que Deus não ama e
regime de discriminações. Porque estamos banhados pelo por isso não quer.
amor, nós nos debatemos com a desumanização das rela­ A segunda ausência, mais dolorosa que a primeira, tor­
ções sociais. A justiça, a solidariedade, o am or estão presen­ na também Deus presente pelo contraste. É a ausência de
tes na ausência deles como fato histórico. Não é porven­ Deus concreto, vivo e verdadeiro naqueles que usam em
tura Deus o símbolo lingüístico para dizermos a justiça, o seus lábios o nome de Deus e o veneram em seus templos.
amor, a participação, a com unhão, a solidariedade? Deus O cristianismo é a religião por excelência do continente
só possui sentido existencial se for o pólo de referência da subdesenvolvido. Deus é nomeado, venerado, suplicado na
justiça, do am or, da fraternidade hum anos. Admiravel­ publicidade oficial da vida. Mas a fé em Deus e em Jesus
mente o exprimiu o francês H. de Lubac, um dos maiores Cristo não chegou à sua plena explicitação cristã. Ficou
teólogos do mundo: muito presa ao modelo da religiosidade arcaica. Nela os
deuses querem ser servidos pelos seres humanos. Estes fo­
. Se eu falto ao amor ou se falto à justiça, afasto-me infalivel- ram feitos para servir a Deus. A fé cristã, como se articulou
> mente de vós e meu culto não é mais que idolatria. Para de form a definitiva e escatológica no cam inho de Jesus
crer em vós, devo crer no amor e crer na justiça, e vale mil Cristo, afirma que Deus não quer ser servido nele mesmo
sem o ser nos outros. Servir o outro, no qual está Deus, é o mo se designa cristianismo. Na verdade este últim o, na
imperativo de Jesus Cristo e a novidade da experiência cris­ práxis concreta da experiência da fé, se nega a si mesmo,
tã de Deus. E fácil servir diretamente a Deus - essa ação não embora continue a servir-se de toda a linguagem e temática
com prom ete ninguém . Servir o próxim o em quem Deus cristã. Aquele que nega o cristianismo sociológico na Amé­
está nos compromete porque o próximo não é uma abstra­ rica Latina, porque foi usurpado pelo poder estabelecido
ção, mas é alguém situado num m undo onde pode haver como sua legitimação ideológica, mas busca a justiça, a par­
miséria, injustiça gritante e egoísmo deslavado. Amar o pró­ ticipação e a libertação, está mais próximo do cristianismo
ximo pobre e doente, hum ilhado e explorado, nos com­ teológico e do Deus vivo e verdadeiro do que aquele outro
promete e nos obriga a tomar posição. Só quem ama o ou­ que professa a Deus e Jesus Cristo e assume toda a ortodo­
tro ama a Deus; só quem se engaja em sua libertação é que xia católica, mas fechou os olhos e endureceu o coração à
serve ao Senhor da história; “quem não ama seu irmão a dolorosa marginalidade de milhões, à exploração instituí­
quem vê, não é possível que ame a Deus a quem não vê” da em sistema e à repressão aceita como legal.
(IJo 4,20). Por aí se entende a identidade que João estabele­
Estas afirmações, escandalosas para o status quo religioso
ceu entre o amor a Deus e o amor ao próximo (cf. IJo 4,20s).
e social, não nos devem causar estranheza. Estão na melhor
O cristianismo vivido geralm ente na América Latina tradição jesuânica e profética. Quando Cristo quis explicar
não fez essa virada tipicamente cristã. O Deus venerado e quem era o próximo, quando se admirou da fé de um seu
proclamado é antes um ídolo do que o Deus vivo que in­ ouvinte e quando quis explanar o que é a prontidão obe­
terpela. Por isso se presta para sacramentalizar um a situa­ diente, não tomou exemplos dentre as pessoas piedosas ou
ção inum ana e abafar, com a usurpação do nom e sacros­ dentre as de sua religião revelada, mas tomou pessoas fora
santo - Deus, reservado ao Mistério que penetra toda a desses quadros oficiais. Citou o herege samaritano, a mulher
realidade -, a consciência, incapaz de se distanciar critica­ pagã siro-fenícia e o estrangeiro centurião romano. Há uma
m ente da situação e de detectar sua estrutura opressora. negação do cristão que é um a forma de resgatar o sentido
Daí não podermos identificar o cristianismo teológico com originário e divino do cristão. Estas reflexões, parece-nos, se
o cristianismo sociológico, isto é, com aquele que a si mes­ fazem urgentes e necessárias no contexto latino-americano,
dada a manipulação ideológica a que está sujeito o cristianis­ Deus num a m era categoria antropológica. Contrapor hori­
mo pelas elites dominantes. zontalismo a verticalismo é objetivar e hipostasiar fora da
vida aquilo que na vida concreta vem sempre junto. Com
, Deus não aparece apenas na ausência." Em nosso con­ isso torna-se o cristianismo abstrato e, por conseguinte, his­
texto humano de subdesenvolvidos se configura também um toricamente ineficaz. A vida mesma, a libertação, quando
rosto positivo de Deus. Ele emerge a partir do processo de afirmadas radicalmente e assumidas com toda a responsa­
libertação efetivo, do engajamento para superar estruturas bilidade, mostram a dimensão vertical e horizontal, a ima­
injustas, a começar por aquelas mais difíceis de serem supe­ nência e a transcendência. Q uando captadas juntas, elas
radas, que são as mentais. Ai aparece o significado originário nos abrem para a transparência de Deus no coração de
de Deus. No seio dessa diligência começa a aparecer, como
nossas lutas.
num a clareira, a força que sustenta o engajamento, a luz
que ilumina a obscuridade das opções e o sentido de todos Portanto, só quem se entrega de corpo e alma a servi­
os sacrifícios; começa a emergir Aquilo que é maior do que ço do próxim o, hum ilhado e ofendido, começa a perce­
nós, que nos impulsiona como sede de justiça, fome de soli­ ber um a dimensão que transcende o próximo e a ele mes­
dariedade, angústia de fraternidade e que se constitui como mo. Dá-se conta de que está envolto por um a energia po­
pólo de referência de nossos anseios. Quando tal experiên­ derosa que o circunda, o penetra, o transcende e lhe pos­
cia irrom per e tiver a capacidade de nos sustentar, então sibilita a tarefa do am or social, do engajamento e da liber­
em ergiu aquilo que chamamos Deus e experim entam os tação. Aí se verifica a verdadeira transcendência e o orto­
Deus em sua dia-fania histórica. Se isso não acontecer, então doxo verticalismo: emerge o Mistério que nós chamamos
Deus de fato não tem realidade existencial, porque não tem D eus.12
relação com o ser hum ano e com suas buscas. Ele está aí, A esse Mistério podem os nom ear, no balbucio reve­
mas sua presença não é captada e vivenciada. rente e no pudor santo, podem os chamá-lo por aquele
Entregar-se, portanto, à tarefa da libertação não é re­ nome que resume todos os nosso anseios: Deus libertador,
duzir o cristianismo a um mero horizontalismo e traduzir Deus vivo e vivificador, Deus da ternura dos humildes e da
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iracúndia sagrada contra as injustiças que assassinam seus
filhos e filhas. Reverenciamo-lo como Aquele que nos apon­
ta para o futuro. Amamo-lo como a nossa esperança. A Ele
nos agarramos como a força do combate e o consolo no de­
samparo da repressão. Essas são todas palavras humanas que
estão no dicionário, mas querem fazer presente Aquele que
nenhum dicionário pode conter e nomear, o Mistério de C o m o D eus em er g e
Deus, experim entado no concreto da vida e no contexto N A C A M IN H A D A PESSOAL
das tribulações de nosso continente latino-americano.

D
as reflexões que articulamos até aqui, deve ter fica­
do claro que Deus não constitui um objeto entre ou­
tros diretam ente experienciável. Deus em erge da radica-
lidade da experiência do mundo. O discurso sobre Deus é
um discurso qualificado sobre o mundo, um discurso sobre
o mundo enquanto nos apercebemos que ele não é a última
instância, mas vem sempre remetido e suportado por algo
que se ilumina dentro dele, mas que não é ele. Concretiza-
mos essa abordagem mostrando como Deus surge dentro tir, mas fica no nível das vivências subjetivas do mistério de
da experiência de nosso m undo técnico-científico e de nos­ Deus. Deus não é “visível”, nem “audível” nem “acessível”
sa realidade latino-americana e brasileira oprimida. só na experiência mística. Se assim fora, Deus seria o privi­
légio e o luxo de alguns iniciados e não o sentido que
A pessoa hum ana vive circunstanciada dentro desse pervade toda a existência, por mais cotidiana que se apre­
duplo horizonte. No entanto, ela não se deixa enquadrar sente. Daí poder-se experimentar Deus sempre e em qual­
simplesmente dentro desse m undo acima descrito. Possui quer situação, a partir do mom ento em que atingirmos a
sua caminhada pessoal. E um a síntese única e própria da profundidade da vida, lá onde ela mostra um a abertura
história. Nisso reside sua sacralidade e dignidade. É uma e absoluta que ultrapassa todos os limites e que, por isso, com­
única. Faz a sua experiência do m undo e, no coração dele, parece como o Transcendente em nós.
do mistério do mundo, isto é, de Deus.
Como se faz essa experiência de Deus na cam inhada
Esta experiência de Deus na dia-fania do m undo1, não pessoal? Pode existir um a espécie de mistagogia, quer di­
nos cansamos de repeti-lo, não é uma vivência de um objeto zer, uma via de iniciação? Aqui pisamos terra virgem. “Ca­
ou uma experiência ao lado de outra experiência. A expe­ minhante, não há caminho! O caminho se faz caminhan­
riência de Deus não deve ser imaginada como uma experiên­ do”, dizia o poeta espanhol Antonio Machado. Como não
cia de ver um pôr-do-sol e, ao lado disso, como a experiência podemos substituir ninguém nem viver a vida de alguém
de um a dor de dente.2 Se assim fora, Deus seria um fenô­ outro, também aqui ocorre algo semelhante: cada qual, na
meno do mundo. Deus não é encontradiço em nenhum a cam inhada de sua existência, deverá fazer a experiência
parte. Daí insistirmos que Deus só se torna real e vivo se da raiz que lhe alimenta a vida. Podemos, contudo, acenar
emergir da radicalidade da experiência do mundo, como para a seriedade da vida e con-vocar para descobrir Aquilo
sentido, como mistério que suporta o mundo, como força que já está presente, embora de forma oculta, em sua vida.
libertadora dentro de nosso engajamento por mais justiça Talvez alguém se dê conta de que aquilo que experimenta
e hum anidade. Nem a experiência de Deus consiste em na vida nunca foi verbalizado em termos de experiência
ter visões, audições e enlevos místicos. Tudo isso pode exis­ de Deus. Sobre Deus, imagina bem outra coisa, pode ser
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até de forma errônea. Apesar dessa possível falsa interpre­ cotididanas, porque possuímos uma confiança não reflexa
tação, devemos dizer que Deus realm ente pode ser expe- nem tematizada na bondade da vida. Esta é dramatizada
rienciável por aqueles que nem presum em isso. Mas eles pelo caos existencial, pela traição do amigo, pela mentira,
experimentam o mistério da vida, o sentido profundo que pelo ódio, pelas doenças e, finalmente, pela morte. Mas
a pervade, o secreto apelo para um Mais em tudo o que apesar de tudo não desistimos de viver, de nos levantar cada
sentem, vivem e fazem. Sob essa experiência se esconde m anhã e recomeçar o dia-a-dia. Há uma dimensão gratifi-
aquilo que deciframos como sendo Deus. Os acenos aqui cante na vida, que, apesar das contradições, não pode ser
esboçados não pretendem descrever um a experiência de destruída. E verdade que não podemos defini-la exatamen­
Deus, apenas chamar a atenção para um possível caminho te nem circunscrevê-la a algumas situações privilegiadas.
a ser aberto no qual Deus pode irromper. Sempre que pretendem os apanhá-la, ela nos escapa, pois
sua estrutura é a gratuidade e o seu puro acontecer. E por
causa dela que continuamos a viver, mesmo no meio das
a) D eus c o m o e x p e r iê n c ia d a b o n d a d e piores desgraças, o que deslegitima qualquer tentativa de
E DO SENTIDO RADICAL DA VIDA suicídio. O suicida, em seu gesto extremo, busca um senti­
do que a vida lhe nega e que ele, através da morte, presu­
Deus emerge do coração da vida, dizíamos anterior­ me encontrar. Por isso, para ele, a morte não é um proble­
mente. Ele vem misturado com as coisas. Ele é a interpre­ ma, mas uma solução. O absurdo absoluto representa uma
tação última daquilo que o ser hum ano experim enta em contradição lógica. A afirmação do absoluto absurdo não
sua radicalidade. Mas não só aí emerge Deus. Como Ele passa de um desejo impossível. A afirmação de um absur­
está sempre presente em tudo, então Ele se comunica tam­ do absoluto não pode ser absurda. Deve fazer sentido. Logo
bém na banalidade da existência. Aí também se concretiza há sempre um superavit de sentido em tudo o que fazemos
o sentido originário da vida e, por isso, de Deus. Todos e pensamos. E assim é porque vigora uma bondade de base
fazemos, por exemplo, a experiência da bondade radical no universo e da vida. Essa bondade da vida nunca pode
da vida.3 Entregamo-nos confiantes ao trabalho e às tarefas ser totalmente destruída nem negada. Ela não é outra coi­
sa senão Deus mesmo, em ergindo dentro da experiência do sobre o descoroçoam ento e se im põe a luz sobre o
hum ana. negrum e das trevas. E por causa do sentido que transcen­
de as finalidades imediatas e supera os sentidos captáveis
A partir daí podemos dizer: atrás da dúvida e da nega­ que o ser hum ano sem pre retom a a cam inhada da pró­
ção de Deus que todavia possam existir, há uma outra dúvi­ pria história e consegue suportar a m onotonia do cotidia­
da mais radical ainda: Existe Alguém que me aceita total­ no e o aparente vazio da rotina do dia-a-dia. Na verdade,
mente assim como sou? Quem nega a Deus, não nega tan­ esta se encontra saturada de um sentido latente, sentido
to a existência de uma Última Realidade, mas a possibilida­ que a faz suportável. Deus deve ser pensado a partir dessa
de de ser aceito. Afirmar a Deus é acolher implicitamente experiência do sentido. Ele é aquela Luz na qual vemos a
Alguém m aior que me aceita e que me ama. E este Al­ luz. Deus em erge nas palavras da prostituta quando diz:
guém é o derradeiro consolo e o sentido fundamental de “Reze por mim, padre, para que tudo dê certo. Vou tra­
todo o viver. balhar mais um pouco, vou ainda me vender por um ano.
Essa bondade fundam ental do viver se apresenta Depois, já devo ter pago m eu apartam ento. Vou ser mu­
com o experiência de sentido. Não criam os o sentido. lher de um hom em só. Vou ter meu marido, meus filhos.
Vou am ar e sofrer. Mas irei am ar e sofrer como gente.
Q uando perguntam os pelo sentido, já nos descobrim os
Deus é Pai e vai me ajudar a sair desta vida de miséria.”
dentro dele. Somos carregados por ele ao assumirmos com
Quem fala assim, fala a partir de um profundo sentido.
seriedade as pequenas e grandes coisas da rida, a rotina
Para aquele que entende, é Deus que assim faz a sua
do cotidiano, a convivência com o outro, a responsabilida­
parusia na rida dessa pessoa.
de da profissão. Apesar de todas as frustrações, apesar do
desm oronam ento de todas as seguranças, apesar da des­ O favelado trabalha duro para ganhar o salário míni­
truição de todas as máscaras, apesar do inevitável abando­ mo. E tido por um zero econômico e social. Os filhos se
no e traição de valores vitais, apesar de toda a imensidão multiplicam. Crescem por aí como bichinhos. Ele sente-se
das negatiridades humanas, triunfa o sentido sobre o ab­ açulado pela pobreza extrema. Apesar da miséria inumana,
surdo, vence a convicção da ordem fundam ental do m un­ tem um senso de dignidade que transluz no m odo como
recebe o outro. Não perdeu a religião, a alegria de viver, a b) D eus c o m o e x p e r iê n c ia d o v a z io d a v id a
sensibilidade pela necessidade do vizinho doente, a dimen­
são da solidariedade humana. Há nele uma sabedoria que Não experimentamos a cada m om ento nossa fragili­
escola alguma, a não ser a da vida, pode comunicar. “Deus dade? Tudo o que fazemos e construímos, mesmo com a
fez o m undo bem feito”, diz ele. “Fez de um jeito que, um m elhor boa vontade e pureza de coração, é fugaz. Pode
dia, todos serão realmente iguais. Fez um a coisa que nin­ estragar-se ou ser mal compreendido. Nossa harm onia in­
guém pode comprar. O milionário compra o que deseja e terior está sempre por se elaborar. Nunca é uma conquista
vai para onde quer. Deus inventou uma coisa que faz com que nos satisfaça plenamente. No fundo de todo o nosso
que todos sejam iguais e que ninguém pode comprar. Isso agir palpita sempre uma ansiedade que nenhum psicana­
ele manda de graça: a morte. O milionário pode comprar lista pode erradicar, pois ela é ontológica. Há uma última
um caixão de jacarandá. Mas ele também m orre e é enter­ solidão que fere o coração de existência. Regiões e mo­
rado num palmo de terra, igualzinho ao mais pobre dos mentos de nossa vida existem em que ninguém pode estar
pobres. Deus fez tudo bem feito, com a invenção da mor­ ao nosso lado. E jamais poderá estar. Devemos assumir sozi­
te. Por ela todo o m undo é feito igual e irmão. Quer quei­ nhos, num a radical e solitária responsabilidade, o destino
ra, quer não.” Poder falar assim é viver a partir de um a de nosso caminhar. A finitude que sentimos só é possível a
dimensão de profundidade. A alegria lhe advém. A sensi­ partir daquilo que não é finitude. Só a partir do ilimitado,
bilidade pelo outro e o senso de solidariedade acontecem sentimos nossa limitação. Só quem vive a liberdade sofre
na vida desse favelado. Não é Deus que se manifesta? Deus com a escravidão. Quando sentimos e sofremos o limite, já
não aparece exatam ente nessa dimensão? A nossa obje- estamos tam bém para além dele. Surpreendem o-nos no
tivação de Deus como um Ente Supremo impede-nos de horizonte aberto do infinito. Estamos sem pre enquadra­
ver essas manifestações da vida hum ana com ad-vento e dos num a situação dada, mas ao mesmo tempo nos auto-
e-vento divinos. Mas devemos habituar-nos a experimentar transcendemos e nos superamos a nós mesmos. Somos eter­
Deus que nasce assim dentro da vida hum ana - mesmo a nos protestantes face a tudo o que encontram os à nossa
mais banal. volta ou que nós mesmos temos construído. A experiência
de nosso limite, de nosso muro, de nossa fragilidade, num a dente do amor. Se observarmos bem, o que amamos quan­
palavra, de nossa imanência, nos con-voca para a experiên­ do amam os outra pessoa? E algum a coisa determ inável
cia do ilimitado, da abertura total e do absoluto. Esta expe­ como a beleza, a inteligência, a meiguice, a bondade, a
riência é condição daquela. Não é porventura a infmitude, sintonia com nós mesmos? Mas, se assim fora, não amaría­
o ilimitado, o absoluto o nome que damos ao Mistério que mos a pessoa, mas alguma coisa da pessoa. Na verdade,
se anuncia dentro dos quadros de nossa vida? Não é a dia- amamos a misteriosidade da pessoa, misteriosidade que se
fania sofrida de Deus que detectamos? manifesta em tantos gestos e em tantas dimensões identi­
ficáveis, mas que também deixam sempre a ser descoberta
a realidade intrigante da pessoa amada. Esse mistério é vivo
c) D eus c o m o e x p e r iê n c ia d a p l e n it u d e d a v id a e pessoal, transcende totalmente as determinações e con-
creções da pessoa. Por que a linguagem dos namorados se
Não fazemos a experiência do am or como experiên­ aproxima da linguagem do divino, nas juras de amor eter­
cia daquilo que acontece em nós, mas que é maior do que no, de absoluta fidelidade e entrega irrestrita? Não é por­
nós? Sentimo-nos amados pelo outro num a absoluta gra­ que o que está em jogo no amor é o mistério do amor, o
tuidade, gratuidade que acolhe nossa fragilidade e aceita fascínio da transcendência viva, isto é, Deus mesmo? O amor
nossa profunda limitação que, de per si, poderiam matar o hum ano é revelação, mais ainda, é com unicação desse
am or ou tirar as razões para o outro continuar amando. E, Amor maior. A pessoa é o lugar e a manifestação encarna­
contudo, acontece o amor. Não amamos também nós de da do Deus do amor e do amor de Deus e seu e-vento de
um a form a que não pode ser justificada por um funda­ doçura na história dos homens. Quem é Deus na sua últi­
m ento racional, acolhendo a historicidade e a pequenez ma profundidade, só podemos apreendê-lo a partir da ex­
do outro, suas negatividades, o fato absoluto de que ele periência do amor. Dessa experiência deu prova o Novo
Testamento ao afirmar que “Deus é am or” (IJo 4,8).
passou pelo nosso caminho e se deu o milagre do encon­
tro? Ninguém preparou nada. Ninguém marcou a encru­ Por isso o amor faz a dolorosa experiência: o tu huma­
zilhada. E contudo existe o milagre do encontro surpreen­ no não é a última instância; ele não satisfaz a exigência do
O
. /
coração por um Tu absoluto. O tu hum ano se ordena ao medida que vai caminhando, também se vai abrindo o ho­
Tu absoluto; é sua presença sacramental; é figurativo de rizonte da pergunta e se vai construindo a autodefmição
um outro Amor. O tu hum ano deve juntar-se ao eu amado pessoal.
e, juntos, colocar-se na direção do Tu absoluto. Então o
amor se tom a perfeito, porque morre para si mesmo a fim A experiência última do homem não é mais homem;
de ressuscitar num Amor maior, que é o próprio Deus. é a experiência daquilo que transcende o homem; é a ex­
periência do Mistério. Cada homem, por mais pecador e
Deus emerge também em toda a experiência do ou­ miserável que seja, não pode apagar a Transcendência que
tro. Diante do outro não estou diante de um objeto que se torna transparente em seu semblante. Ele é sempre maior
posso logo enquadrar em algum esquema. Não há ficha do que todos os seus crimes; maior do que todos os seus
que possa captar totalmente a pessoa hum ana. Ela nunca arroubos de am or e de mística. Nele flui uma torrente de
se ajusta adequadam ente a um a situação nem pode ser bondade, palpita um a profundidade misteriosa, irrom pe
definida a partir de suas circun-stâncias. No fundo, cada um além que constitui a perm anente diafania de Deus no
pessoa é uma pessoa, única e irrepetível. Ela, pela sua sim­ mundo. Por isso, o ser hum ano assoma como o maior sacra­
ples presença, significa um a convocação para a Transcen­ mento de Deus. Eis de onde provém toda a sacralidade da
dência viva. O ser humano, já o dissemos tantas vezes, re­ pessoa humana; daí toda a sua respeitabilidade; daí a iden­
presenta um projeto infinito e um mistério aberto sobre o tidade afirmada por Cristo entre o am or ao próximo e o
inteiro universo. Esse mistério não é o resíduo do ainda am or a Deus. O am or não é m andam ento m eram ente
não conhecido ou pesquisado. Mas é exatam ente aquilo voluntarístico: assim é porque Deus simplesmente o quer.
que antecede a todo o conhecim ento e se mostra ainda Deus o quer porque ele é o mais im portante que existe. E
m aior após todo o conhecim ento. Que é o ser humano? o ser hum ano é o lugar de sua aparição e realização privile­
Não é uma pergunta cuja resposta se exaure pela aborda­
giada e consciente.
gem da ciência. Trata-se de uma questão existencial e não
teórico-crítica. Por isso cada qual deve responder por si Já há muito que biólogos renomados como Hum berto
mesmo, ao longo da cam inhada da própria existência. À M aturana e Fritjof Capra vêm afirmando a base biológica
do amor. Ele se encontra na estrutura de toda realidade, nos diante de Deus, também experim entado como Misté­
que é sem pre urdida de relações, de cooperação, de co­ rio de sentido, de luz e de enternecimento.
m unhão e de inclusão. O am or é aquela força que tudo Poderíamos alongar-nos indefinidam ente na análise
liga e re-liga e que permite que as coisas formem um cos­ de situações existenciais, nas quais transparece a realida­
mos e não permaneçam no caos. Portanto, o amor possui de divina. Todas essas experiências, que se dão na cotidia-
um fundam ento ontológico: sua inclusão na estrutura da nidade da vida, são, na verdade, articulações da única ex­
própria realidade objetiva. No ser humano, esse dado obje­ periência unitária, articulações daquilo que nós cham a­
tivo se transforma num projeto assumido com consciência mos Deus. Deus, portanto, não vem de fora, nem se dá
e em plena liberdade. Através do amor, Deus mesmo conti­ somente em situações privilegiadas da vida, mas está sem­
nua se auto-doando e fazendo história dentro da história pre presente na trama de toda a existência. Emerge, tor­
humana, pessoal e coletiva. Amando o outro, na radicalidade, na-se ad-vento e e-vento.
estamos amando a Deus. “Se viste a teu irmão, então viste a
Pode haver m om entos de absoluta gratuidade nos
Deus”, disse um dos primeiros teólogos cristãos, Clemente
quais não se pergunta mais: sabe-se que Deus aconteceu
de Alexandria (Stromateü 1,19), ainda no século segundo.
na vida. Irrom pe um a harmonia, uma derradeira quietu­
A experiência de Deus no ser hum ano deve, sempre de interior, um a unidade de todas as coisas, ligadas a uma
de novo, superar a tentação de uma compreensão fechada única raiz de onde vivem, ex-istem e sub-sistem. Podem
da realidade humana. Seguramente o ser hum ano é aqui­ acontecer momentos assim na vida. Talvez após um longo
lo que dele podemos saber, detectar, analisar, decifrar com processo catártico; após penosas crises; quem sabe, no co­
o auxílio da observação pessoal ou com o recurso ao apara­ ração de uma vida alienada e pecaminosa. Deus pode emer­
to das ciências. Mas nesse esforço permanece algo não dito, gir não mais como pergunta nem como resposta ao questio­
não analisado, não decifrado no dito, no analisado e no nar irrequieto do coração. O ser hum ano experim enta,
decifrado. Essa sobra representa a misteriosidade inalcan- então, sua grandeza infinitamente maior do que aquela do
çável da realidade humana. Ela funda a base para colocarmo- cosmos; sente-se o sacerdote de toda a criação; agradece o
102
fato de poder viver; dá graças e canta loas em nom e de
tudo e de todos; pode então invocar o Mistério que experi­
menta: “Senhor, apesar de toda pequenez, posso deixar
que tudo penetre em mim, posso distender-me para o mais
distante do universo. Num momento posso tomar tudo em 9
minhas mãos e tudo te oferecer como num a missa cósmi­
ca, louvar-te como o Senhor, dar-te graças porque posso A EXPERIÊNCIA
dar graças e dizer: Aconteça o que acontecer, das profun­ c r is t ã d e D eu s
dezas de meu nada e do fundo dos infernos, não deixarei
de te louvar e eternam ente te agradecer.”
Se isso acontecer, saiba, então, que Deus terá irrom ­
pido em sua vida. Ele há de lhe ser mais real do que sua
própria realidade humana; há de existir mais seguram en­
te do que você mesmo existe. Pois armou tenda em você o
Absoluto. Revelou-se o que lhe concerne definitivamente
e lhe dá o sentido de todo o viver. É nessa oportunidade À té aqui tentamos articular a experiência de Deus que
que você talvez faça a experiência mais gratificante da vida: J lkSe ('tétua na vida humana. Não se falou propriam en­
sentirá a necessidade de agradecer e saberá a quem diri­ te ainda da experiência cristã de Deus. Há um a experiên­
gir-se: a Deus. cia tipicamente cristã de Deus? Ou melhor: Como se mos­
trou o Deus do Mistério no caminho de Jesus Cristo, funda­
mento do cristianismo?
Muito abstratamente podemos dizer: no cristianismo
articulou-se a experiência do Mistério como história do Misr-
105
tério. O Sentido não ficou di-fuso, pro-fuso e con-fuso dentro amor do homem de Nazaré são o perdão e a aceitação de Deus
da realidade. Ele armou tenda entre nós e se chamou Jesus mesmo. Nele transcendência divina e imanência hum ana se
Cristo (cf. Jo 1,14). O Mistério é tão radicalmente Mistério que encontram, fazendo que ele seja transparente a Deus.
pode, sem perder sua identidade, fazer-se carne e história.
Essas afirmações podem significar um escândalo para
Ele pode subsistir totalmente num Outro diferente dele. Se
todas as filosofias e teologias apofáticas, vale dizer, aquelas
assim não fora, não mostraria sua onipotência nem seu cará­
que negam qualquer valor às nossas afirmações acerca de
ter de Mistério. Então, sendo vida, ele pode morrer. Fazen­
Deus. Parecem blasfemas para quem afirma a total não-ob-
do-se morte, ele pode viver. Ele pode, sendo impalpável, fa­
jetividade do Mistério; soam idolátricas para quem afirma a
zer-se palpável; sendo invisível, fazer-se visível; sendo Criador,
absoluta transcendência do Mistério sem possibilidade de
fazer-se criatura. Diz o apóstolo João: “O que ouvimos, o que
se acercar à nossa condição im anente. Contudo nos per­
vimos com nossos olhos, o que contemplamos e o que as nos­
guntamos: Sabemos o que é o Mistério? O Mistério se dá no
sas mãos apalparam tocando o Verbo da Vida - [...] Vida
compreensível e no incompreensível, no além e no aquém,
eterna que estava com o Pai e nos foi manifestada - o que
na história e na superação da história. Isso significa: perten­
vimos e ouvimos vo-lo anunciamos...” (I Jo 1,1-3).
ce ao Mistério fazer-se totalm ente outro dele mesmo. O
A fé cristã, como mostra esse texto joaneu, testemunha Totalmente Outro do Mistério é sua kénose, vale dizer, sua
a história de Deus que, sendo Infinito e Transcendente, se auto-negação e humilhação. Isso é fazer-se criatura, escravo;
fez finito e imanente como uma parte de nosso mundo. Ce­ de escravo, um crucificado; de crucificado, um condenado
lebra a absoluta auto-comunicação de Deus; canta a radical aos infernos. Esse foi o caminho de Jesus Cristo, foi o cami­
proximidade do Mistério; alegra-se com a benignidade de nho do Deus inversus (cf. F1 2,6-8). Com isso entrou uma nova
nosso Deus. A benignidade, a proximidade e a auto-comuni­ possibilidade da linguagem religiosa: é a linguagem que
cação são experimentadas como amor irrestrito, bondade sem narra a história deste evento, do evento da doçura e da jovia­
limites, perdão pleno e presença misericordiosa de Deus lidade divinas que, por amor ao ser humano, se humilha e
dentro da própria realidade humana. Esta se torna diáfana, vai até o fim (cf. Jo 13,1). Como ocorreu esta história de Deus
transparente. A vida do hom em Jesus é a vida de Deus; o encarnado no mundo?
a) A exp eriên cia de D eu s de Jesus de N a za ré desde 587 a.C. Até 538 a.C., da Babilônia. Até 331 a.C., da
Pérsia. Até 323 a.C., da Macedônia de Alexandre. Até 197
Se Deus em erge de dentro de nosso m undo, como a.C., do Egito dos Ptolomeus. Até 166 a.C., da Síria dos
emergiu de dentro do m undo de Jesus de Nazaré? É situan­ Selêucidas. Em 64 a.C. cai sob a esfera do imperialismo ro­
do Jesus dentro de seu mundo que aparece a originalidade mano. No ano 40 de nossa era, Herodes, filho do ministro
de sua experiência de Deus.1 Certamente o Deus de Jesus idum eu de Hircano, Antípater, por decreto do Senado é
de Nazaré é o Deus da experiência dos pais da fé abraâmica proclamado rei dos judeus. Era um rei pagão, sustentado
do Primeiro Testamento. Mas também é um Deus experi­ pelo centro, Roma. Essa dependência exterior era inter­
mentado de uma maneira profundam ente diversa, porque nalizada pela presença das forças de ocupação, pelos cobra­
a encarnação de Deus não visa sancionar o que já sabíamos dores de impostos, pelo partido dos saduceus que faziam o
dele senão revelar-nos definitivamente quem e como Deus jogo da política romana. Mas também pela presença da cul­
realmente é em si mesmo. Não podemos olvidar que o mó­ tura romano-helenística que tornava a opressão mais odiosa
vel últim o da condenação de Jesus não residiu tanto na e aviltante, dado o caráter religioso e segregacionista dos
discordância com os fariseus quanto à interpretação da Lei, judeus. Depois da m orte de Herodes, o reino é dividido
mas pelo fato de Jesus ter apresentado um Deus de amor e entre seus filhos (cf. Lc 3,1-2); posteriormente, ajudéia passa
de perdão, um Pai com características de mãe, portanto, a ser governada por um procurador romano.
devido a uma experiência diferente de Deus. Sócio-econom icam ente, a Galiléia, terra de Jesus e
cenário principal de sua atividade de pregador am bulan­
a) Um mundo oprimido interior e exteriormente te, é uma região bem ocupada e trabalhada pela agricultu­
ra. A profissão da família de Jesus era a de um téknon que
O mundo em que viveu Jesus de Nazaré era profunda­ podia significar tanto carpinteiro quanto cobridor de te­
m ente oprim ido sob um regime geral de dependência, lhados. Trabalho havia para todos, mas o bem-estar não era
herdada de há muito tempo.2 A Palestina vivia na depen­ grande. Desconhecia-se o sistema de poupança, de sorte
dência e na periferia dos grandes impérios, praticamente, que um a carestia ou doença m aior provocavam êxodos
rurais em demanda de trabalho. Os diaristas, então, se amon­ facilmente sinais em todas as coisas, prenunciando a ins­
toavam nas praças das cidades (cí. Mt 20,1-15) ou se punham tauração do Reino de Deus e a liquidação de todos os ini­
a serviço de um grande proprietário ate saldarem suas dívi­ migos do povo.
das.3 A lei mosaica que dava ao primogênito o dobro dos A verdadeira opressão, contudo, não residia na pre­
demais acarretava, indiretamente, o crescimento de assala­ sença do poder romano, mas na interpretação legalista da
riados que, não encontrando emprego, se tornavam um religião e da vontade de Deus corroborada especialmente
verdadeiro proletariado, composto de mendigos, vagabun­ pelos fariseus.4 A lei, que devia auxiliar a encontrar o cami­
dos e ladrões. Havia ainda os ricos possuidores de terras, nho para Deus, degenerara com o peso das tradições, das
que espoliavam os camponeses na base de hipotecas e ex­
interpretações rabulísticas e das minúcias mesquinhas, numa
propriações por dívidas não pagas. O sistema tributário era terrível escravidão imposta em nome de Deus (cf. Mt 23,4;
pesado e detalhado; havia imposto para quase todas as coi­ Lc 11,46). Cristo chega a desabafar: “Fico bobo de ver como
sas; sobre cada membro da família, terra, gado, plantas fru­
vocês conseguem esvaziar o m andam ento de Deus, para
tíferas, água, carne, sal e sobre todos os caminhos. Herodes,
fazer valer a tradição de vocês” (Mc 7,9)! Tudo era medido
com suas construções faraônicas, em pobreceu o povo de
em termos de lei - quem é próximo e quem não o é, quem
form a extrem am ente sensível.
é puro e quem não o é, quais são as profissões mal-afama-
A dominação estrangeira constituía para o povo uma das - gerando discriminações sociais. Os fariseus observavam
verdadeira tentação para a fé nas promessas e no senhorio tudo ao pé da letra e aterrorizavam o povo, obrigando-o a
de Deus sobre o m undo a partir de Jerusalém. Os vários também observar tudo estritamente. Diziam: “Maldito o zé-
movimentos de libertação, especialmente o dos zelotas, ten­ povinho que não conhece a lei” (Jo 7,49). Embora perfei­
tavam preparar ou até provocar, com a violência, a inter­ tíssimos, possuíam um a distorção fundamental, denuncia­
venção salvadora de Deus. Quanto maior era a dependên­ da por Jesus: “Não se preocupam com a justiça, com a mi­
cia e opressão, mais intensa ainda ardia a esperança e a sericórdia e com a boa fé” (Mt 23,23). A lei, ao invés de
expectativa da intervenção iminente de Deus (cf. Lc 3,15), auxílio, se tom ou uma prisão dourada, mas sempre prisão.
exacerbada pela bizarra fantasia dos apocalípticos que viam Querendo se auto-assegurar cla salvação, o ser hum ano se
fechou sobre si mesmo contra os outros e, por fim, contra o os oprimidos, para anunciar um ano de graça do Senhor”
Deus vivo. Para o fariseu, viva é a Lei e não Deus. Transmi­ (Lc 4,18-19)/’ Ele grita para todos: “O prazo da espera expi­
tia um conceito fúnebre de Deus, pois Ele não se fazia pre­ rou. O Reino de Deus está aí. Mudem de vida! Acreditem
sente, era como se estivesse morto e tivesse deixado como nesta Boa Notícia” (Mc 1,15).
testamento um amontoado de leis e normas a garantirem
Face a um a situação global de opressão interior e ex­
a além-vida no seio de Abraão. Os que viviam à margem
terior, Jesus encontra Deus como total libertação. Reino
dessa com preensão legalística se consideravam perdidos,
de Deus é a palavra-chave que exprime sua experiência.
desesperados e abandonados por Deus e, ainda, socialmente
Deus resolveu intervir e pôr termo a esse m undo sinistro
difamados. Os doentes eram instruídos a interpretar suas
dominado por forças adversas ao hom em e a Deus. Reino
doenças como pecados pessoais ou de seus antepassados.
Triste e verdadeiramente oprimida era a condição hum a­ de Deus significa o sentido radical para esse mundo, livre
na quando Jesus começou sua atividade pública. do pecado, do ódio, do sofrimento e da morte. A utopia,
objeto de anelo de todos os séculos, agora se realiza como
ridente acontecimento, pois as doenças já estão sendo cu­
b) Deus experimentado como libertação
radas (cf. Mt 8,16-17), o luto já se transforma em alegria (cf.
e absoluto sentido
Lc 7,11-17), os elementos da natureza já não são mais inimi­
Nesse pano de fundo deprimente e opressor emerge gos (cf. Mt 8,27), os pecados são perdoados (cf. Mc 2,5), os
a figura de Jesus de Nazaré. Dentro dessa situação ele vive demônios são exorcizados (cf. Mt 12,28) e a morte está sen­
e experimenta Deus. Como lhe aparece Deus em sua vida? do banida para sem pre (cf. Mc 5,39). Deus, o sentido do
Deus nasce em sua experiência como o Libertador dessas m undo, reconciliado e transfigurado, eis o que a expres­
opressões. Sua primeira palavra é de libertação: “O Espí­ são Reino de Deus quer significar. Por isso “felizes vocês, po­
rito está sobre mim, porque me ungiu para proclam ar a bres, porque o Reino de Deus lhes pertence; felizes vocês,
boa-nova aos pobres. Ele me enviou para pregar aos cativos que padecem fome, porque serão fartos; felizes vocês, que
a liberdade, aos cegos a recuperação da vista, para libertar agora choram, por que irão rir” (Lc 6,20-21).
í 12
Não se trata mais de libertações regionais, seja políti­ trita e minuciosa a estilo dos fariseus? Os evangelhos mos­
cas, seja religiosas. A criação toda será libertada em todas as tram duas dimensões de Jesus totalmente paradoxais: uma
suas dimensões. Isso não constitui apenas anúncio proféti­ extremamente rigorista e outra liberal.b Por um lado, apre­
co e utópico; profetas judeus e pagãos de todos os tempos sentam Jesus que em nom e de Deus faz exigências mais
sonharam e pregaram o advento de um novo mundo. Nes­ duras do que aquelas dos fariseus. Ele é um rigorista: não
se nível do anúncio, Jesus se enfileira na lista dos grandes apenas o matar, mas já o irritar-se faz alguém ser réu de
profetas da hum anidade. Mas não é nisso que reside sua juízo (cf. Mt 5,21-22); não apenas o adultério consumado,
originalidade. Ele realiza utopia. Não diz: “O Reino virá”, mas já o olhar cobiçoso faz alguém adúltero (cf. Mt 5,27-28);
mas “o Reino já foi aproximado” (Mc 1,15; Mt 4,17) e já está “se o olho direito for ocasião de escândalo, arranca-o e joga-
em vosso meio” (Lc 17,21). Ele experimenta Deus presente o para longe; se a mão direita te escandalizar, corta-a e
agindo e ultimando sua vitória final, através de sua procla­ atira-a para longe de ti” (Mt 5,29-30). Todo o teor do ser­
mação e ação de profeta, curador e taum aturgo: “Se eu mão da m ontanha radicaliza as exigências da Lei, levando
expulso demônios pelo dedo de Deus, sem dúvida, o Rei­ a observância ao nível do impossível para o pobre homem
no de Deus chegou a vós” (Lc 11,20). Ele se experim enta mortal. Por outro lado, os evangelhos mostram um Jesus
agindo em nom e de Deus, porque se sente o mais forte soberano face à lei a ponto de ser considerado laxista pelos
que vence o forte (cf. Mc 3,27). Aqui está a novidade pere­ piedosos do tempo que se escandalizavam (cf. Mt 13,53-58).
ne de Jesus. Com ele Deus está em nosso meio. Não se incomodava com a observância rigorosa do sába­
do; mais im portante que o sábado é a pessoa hum ana (cf.
c) Deus experimentado como Pai e Mãe Mc 2,23-26; Lc 6,6-10; 13,10-17; 14,1-6; Mc 2,27). Ele e seus dis­
de infinita bondade cípulos não eram ascetas como os discípulos de João (cf.
Mc 2,18); acusavam-no de glutão e beberrão (cf. Lc 7,34;
Essa presença do Reino exige total adesão. Há que Mt 11,19); critica a distinção de próximo e não-próximo (cf.
estar aberto para o Deus presente. Mas que face possui esse Lc 10,29), porque “próximo é todo aquele de quem eu me
Deus? E ainda o Deus da Lei que cobra a observância irres­ aproximo, tanto faz se judeu ou pagão, santo ou celerado ,
fulmina, sobranceiro, as leis de purificação: não é o que te da boca de Jesus) e quer dizer “Papaizinho”, linguagem
entra, mas o que sai do ser hum ano que o faz impuro. O familiar e íntima, exprim indo toda a intensidade afetiva
que entra não passa pelo coração, mas passa para o estôma­ da experiência de Jesus. “Jesus falou com Deus como uma
go e acaba parando na privada (cf. Mc 7,19). Acolhe todo o criança fala com seu pai, cheia de confiança e segura e, ao
mundo, especialmente os que eram considerados pecado­ mesmo tempo, respeitosa e disposta à obediência.”7 Com
res públicos, como os exatores de impostos, com quem come esse Deus-Pai nos relacionamos com incondicional amor e
(cf. Lc 15,2; Mt 9,10-11), doentes e leprosos (cf. Mc 1,41), uma total entrega. Não basta cumprir a Lei. O amor não conhe­
herege samaritana (cf.Jo 4,7). Prefere os publicanos, as pros­ ce limites; alcança para além das leis; torna estas até absur­
titutas e os pecadores aos piedosos e teólogos (cf. Mt 21,31). das, porque o amor não é objeto de legislação. Daí nunca
No Evangelho de João encontramos esta frase libertadora podermos estar satisfeitos no nosso amor para com Deus e
de Jesus: “Se alguém vem a mim, eu não o mandarei em­ para com o próximo. Somos sempre devedores. Jesus eli­
bora” (Jo 6,37). minou de vez a consciência satisfeita de quem presume ter
Como se há de entender este paradoxo: por um lado cum prido todo o dever para com Deus; a consciência de
rigorista e por outro liberal? Se tomarmos a Lei como me­ estar em dia com Deus e de poder cobrar dele a promessa
dida de julgam ento, não conseguiremos entender o para­ que fez ao seu povo e aos que o amam. Jesus dizia: “Depois
doxo, porque um elemento exclui o outro. Esses dois as­ de terem feito tudo o que está prescrito, vocês devem di­
pectos opostos só são compreensíveis e revelam sua unida­ zer: ‘Somos simples empregados; fizemos apenas o que era
de interior se considerarmos a experiência típica que Je­ o nosso dever’” (Lc 17,10). Eliminou qualquer título de gló­
sus fez de Deus. O rigorismo, na verdade, não é rigorismo ria e de mérito perante Deus, quando desclassificou o fariseu
da Lei; é um rigorismo que ajuda a abandonar a absolu- que se gabava de suas boas obras e deu razão ao publicano
tização da Lei e confiar-se a um Deus que está acima e para que batia no peito e apenas dizia: “Meu Deus, tenha com­
além da Lei. Jesus fez a experiência de Deus não como juiz paixão de mim que sou um pobre pecador” (Lc 18,13).8
vigilante da Lei, mas de Deus como Pai de infinita bonda­ Por mais que façamos, somos sempre devedores diante de
de. Abba é a ipsissima vox Jesu (palavra que vem diretamen­ Deus. O rigorismo de Jesus se entende não a partir da ob-
servância da Lei, mas a partir das exigências do amor que miseri-cor-dioso” (Lc 6,36). Um dos traços mais característi­
não suporta, sem m orrer, limites de qualquer natureza. cos da experiência do Deus de Jesus consiste no fato de ele
ser misericordioso. Ser misericordioso significa ter entra­
O fariseu é rejeitado porque, fazendo obras boas, dan­ nhas e um coração sensível como tem um a mãe. Por pior
do esmolas e jejuando, se julga justo. Ninguém deve se que seja seu filho, ela sempre o acolherá e abraçará em seu
reputar justo e bom. Só Deus (cf. Lc 18,19). Diante de Deus, perdão. O que saiu de suas entranhas, jamais será esqueci­
somos todos publicanos, isto é, pobres pecadores. Reconhe­ do e negado. Por isso, as características do Abba, de Deus-
cermo-nos pecadores, nos faz justos; reconhecermo-nos jus­ Pai, são femininas. Deus-Pai é somente e plenam ente Pai
tos, nos faz pecadores. É o que nos ensina a parábola do quando também é Mãe de infinita misericórdia e bonda­
publicano e do fariseu (cf. Lc 18,9-14). O rigorismo não é, de. Isso nos permite que falemos de Deus-Pai-e-Mãe ao nos
portanto, da lei, mas do amor. referirmos ao Deus da experiência de Jesus.
À luz de Deus como Pai amoroso se entende o libera­ Jesus não é liberal e laxista porque come com os peca­
lismo de Jesus. Não se trata de desobediência à lei e anar­ dores, deixa que os impuros se aproximem dele e porque
quia moral. E a forma do amor que superou as divisões que se detém a conversar com um a pecadora conhecida na
a lei havia introduzido entre puros e impuros, próximos e cidade (cf. Lc 7,36ss). Com essa atitude consciente Jesus quer
não-próximos, bons e maus. O amor é irrestrito: ama tudo mostrar o amor que Deus tem a todos esses mal-afamados.
e todos. Pois é assim que Deus ama: “Ele é bondoso para Ele está amando como o Pai ama, pois ele faz a experiência
com os ingratos e maus” (Lc 6,35). Ele ama indistintamente de am or e bondade do Pai. Seu Deus é o Deus do filho
a todos, pois “faz nascer o sol sobre os maus e bons e faz pródigo (cf. Lc 15,11-32), o Deus que corre atrás da ovelha
chover sobre os justos e injustos” (Mt 5,45). Para o am or não tresmalhada (cf. Lc 15,4-7), o Deus que perdoa os dois deve­
há mais puros e impuros, não há mais próximos e não-pró­ dores que não tinham com que pagar (cf. Lc 7,41-43), o Deus
ximos, não há mais bons e maus. Todos são dignos de amor, do patrão bom que paga bem tanto os que trabalharam
porque Deus fê-los dignos de seu amor. Daí se entende o mais quanto os que trabalharam menos (cf. Mt 20,1-15). Para
apelo de Jesus: “Sede miseri-cor-diosos como vosso Pai é Jesus, pobres não são apenas os economicamente pobres,
mas todos os que sofrem alguma opressão, como as prosti­ próximo e, ao mesmo tempo, para além deste mundo. Vê
tutas e os doentes crônicos, os que não podem defender- sua ação em todas as coisas e se sente unido a essa ação:
se por si mesmos, os desesperançados, os que acham que “Meu Pai continua a trabalhar até agora, por isso eu tam­
não têm mais salvação.9 Todos esses devem sentir Deus como bém trabalho” (Jo 5,17).
Pai bondoso e Mãe misericordiosa que perdoa a culpa e
Essa imediatez da experiência de Deus que nós ante­
convida para a com unhão com Ele.
riorm ente chamávamos de transparência de Deus, confe­
Jesus não transmitiu um a doutrina sobre a bondade re a Jesus uma visão contemplativa da vida. Ele não lê o
infinita de Deus-Pai-e-Mãe. Ele mostrou essa bondade sen­ m undo profanam ente, mas sem pre em sua referência a
do ele mesmo bondoso, circulando com os pecadores e Deus que não está ligado a lugares privilegiados, ao tempo,
dando confiança aos desamparados social e religiosamen­ a ações litúrgicas, ou a orações, mas está presente em todos
te. Não faz isso por puro humanitarismo, mas como tradu­ os tempos e lugares. Ele empapa a realidade com sua mis­
ção concreta de sua experiência de Deus como Pai e amor, teriosa presença. Vê todos os lírios dos campos, as aves do
como graça e perdão. Porque se sente totalmente amado céu, a semente que é semeada, contempla a videira e um
e aceito pelo Pai, ele também aceita e am a a todos: “Se campo cultivado... mas vê na profundidade essas realida­
alguém vem a mim, eu não o mandarei em bora” (Jo 6,37). des todas. Elas recordam Deus que veste os lírios dos cam­
pos e alimenta os pardais; a semente é a Palavra de Deus;
d) Jesus possuía uma visão contemplativa do mundo Deus é o agricultor, ele é a videira e nós somos os ramos.
Em tudo lê a vontade de Deus, não apenas na Lei e nos
Jesus não se apresenta como um teólogo que reflete e Profetas. Sua experiência de Deus-Pai-e-Mãe presente é
expõe uma doutrina sobre Deus. Ele age com absoluta ime- tão intensa que se abandona inteiramente aos seus cuida­
diatez e evidência de Deus. Deus não é fruto de raciocí­ dos. Ele cuida de seus filhos e filhas, com o comer, o vestir
nios. Nem se chega a ele através de um a iniciação mistagógi- e o morar. Quer libertar as pessoas das preocupações pelo
ca. Deus lhe é transparente, um a evidência experimental, am anhã (cf. Mt 6,24-34).
Podemos dizer que todas as dimensões da vida, positi­ conexão com este m undo, portanto transparente, no in­
vas e negativas, são para ele pro-vocações para remeter-se a terior de um a experiência concreta. A realidade de Deus-
Deus. Ouve, na crônica da época, do desfalque de um ge­ Pai-e-Mãe em erge quando o ser hum ano se torna capaz
rente de firma e como foi esperto para safar-se bem dessa de descobrir no outro um filho e um a filha de Deus e um
situação penosa (cf. Lc 16,1-12). Isso lhe serve de compara­ irmão e um a irmã sua. Aqui reside novamente um traço
ção para explicar as ocasiões que nos são oferecidas para característico da experiência de Deus feita por Jesus. Ele
m udar de vida. Um assaltante age de surpresa, sem aviso não usa a palavra Deus sem vinculá-la concretam ente ao
prévio. Essa constatação lhe sugere a vinda repentina do ser hum ano. Os judeus usavam a palavra Deus justifican­
Filho do Homem (cf. Mt 24,43-44). As parábolas todas evi­ do com ela o ódio ao inimigo (cf. Mt 5,43) , as divisões en­
denciam como ele sabia tirar um a lição divina dos fatos tre puros e im puros, assim como nos tem pos atuais os
mais corriqueiros da vida. Isso só é possível para quem se fundamentalistas muçulmanos usam Deus-Alá para legiti­
dim ensiona contem plativam ente face à vida. Esta não é m ar seu terrorism o contra o O cidente. Deus era usado
vazia nem profana. Ela é penetrada pela presença de Deus- como instância superior em si, a partir da qual julgavam a
Pai-e-Mãe e Amor. Ela não é nem transcendente nem ima­ existência. Deus para Jesus em erge exatam ente dentro
nente. Ela é transparente para Deus. Jesus vivia a imediatez da vida e no relacionam ento com os outros. Cada pessoa
dessa presença. vale mais do que tudo (cf. Mt 6,26); é mais im portante que
a observância do sábado pela qual o povo eleito acredita­
e) Deus-Pai-e-Mãe leva a descobrir filhos va participar da celebração do Sábado que Deus mesmo
e filhas como irmãos e irmãs com seus anjos celebrava nos céus (cf. Mc 2,27); cada pes­
soa é mais im portante que o culto (cf. Lc 10,30-37), que o
Como é de fato Deus-Pai-e-Mãe, aparece no relacio­ sacrifício (cf. Mt 5,23-24; Mc 12,33); vale mais do que espeta­
nam ento com as outras pessoas. Jesus não fala de Deus culares objetivos revolucionários (cf. Mt 11,12), mais do que
em si, como um a grandeza metafísica e fora do m undo, ser piedoso e observante das sagradas leis e tradições (cf.
portanto transcendente. Refere-se a Ele sem pre num a Mt 23,23).
Deus quer ser servido nos outros e não tanto em si voluntarismo divino. É assim porque simplesmente Deus
mesmo. Sempre que se fala do am or a Deus, fala-se tam­ quis. Existe um a razão mais profunda, na ordem mesma
bém do amor ao próximo (cf. Mc 12,31-33; Mt 22,36-39 par.). É do ser: Deus está presente de tal m aneira no mistério do
no am or ao próximo que se decide a salvação. Quando al­ hom em que am ar o outro já inclui am ar a Deus. Desde
guém pergunta a Jesus o que se deve fazer para lograr a que Deus mesmo se fez um próximo, o amor ao próximo é
salvação, ele responde citando os mandamentos da segun­ também amor a Deus. À luz disso, entende-se que o amor
da tábua, todos referentes ao próximo (cf. Mc 10,17-22). Je­ se estenda também ao inimigo. Por pior que seja uma pes­
sus increpa os fariseus porque não se preocuparam “com o soa, ela não consegue ofuscar a beleza que encerra, pelo
mais grave da Lei: justiça, misericórdia e boa fé” (Mt 23,23). fato de Deus estar sem pre presente dentro dela. E essa
Isso não é simplesmente humanismo secular, como pode­ presença divina que faz amável até o inimigo, o ingrato e o
ria parecer à primeira vista. É o único e verdadeiro huma­ pecador (cf. Lc 6,35).
nismo, de transfundo divino, porque Deus mesmo se identi­
ficou com os mais necessitados (cf. Mt 25,31-45), com as criatu­
ras mais marginalizadas e desprezadas (cf. Mt 25,35-40). Elas f) Deus continua Pai-e-Mãe
são a epifania de Deus, o lugar onde ele marcou o encontro mesmo no extremo abandono
que significa salvação eterna. A bondade de Deus nada possui do rom ântico que
São João irá traduzir maravilhosamente a unidade do tudo justifica e simplesmente aceita. Antes, pelo contrário:
am or ao próximo com o amor a Deus, presente na prega­ sua bondade é outra bondade, diante da qual todos somos
ção de Jesus: “Se alguém disser: ‘Amo a Deus’, mas odeia imperfeitos. Apesar de nossa imperfeição, Deus nos aceita
seu irmão, mente. Pois quem não ama seu irmão, a quem e nos ama. Deus, portanto, se mostra onipotente e todo-
vê, não é possível que ame a Deus, a quem não vê. E nós poderoso na força que possui de suportar e de conviver
temos dele este preceito, que quem ama a Deus também com o ingrato e mau (cf. Lc 6,35). Ele serve a toda a huma­
ame o irm ão” (I Jo 4,20-21). O fundam ento da identidade na criatura, independentem ente de seu estado moral. Essa
do amor de Deus com o amor ao próximo não reside no bondade de Deus é mais forte que todo o ódio e toda a
injustiça na história e no universo. Jesus, com sua bondade, e bondade. A tentação do Getsêmani perdura até no alto
concretiza a bondade radical de Deus e nos confirma que da cruz: “Meu Deus, m eu Deus, por que me abandonas­
ela terá sempre futuro. te?” (Mc 15,34). “Uma teologia que não leva a sério o fato
de que o Filho de Deus se fez homem, homem fraco, ho­
Jesus fez a dolorosa experiência do fecham ento de mem mortal, sempre se escandalizará com a ‘desesperan­
seus contemporâneos, aprisionados em suas próprias segu- ça’ hum ana de Jesus. Mas sem essa escuridão não se enten­
ranças religiosas. Não devemos jamais olvidar o fato de que deria a totalidade da confiança de Jesus no Pai.”10 A deses­
foram exatam ente os piedosos que liquidaram Jesus. Em perança não foi a última atitude de Jesus. Ele se despoja
nome de Deus ele veio anunciar e presencializar um a total radicalmente de si mesmo e se entrega totalmente ao Pai:
libertação. Como foi aceito? Foi considerado blasfemo (cf. “Pai, em tuas mãos entrego o m eu espírito” (Lc 23,46). Je­
Mc 2,7), louco e fora de si (cf. Mc 3,21), impostor (cf. Mt 27,63), sus não renunciou a um sentido absoluto, mesmo face ao
possesso (cf. Mc 3,22; Jo 7,20), herege (cf. Jo 8,48), subversivo absurdo da morte conferida ao inocente que só amou. Con­
(cf. Lc 23,2). De todos os modos foram contra, até decidi­
tinuou a confiar e a amar até o extremo (cf.Jo 13,1). A res­
rem sua liquidação violenta (cf. Mc 3,6; Jo 5,18; 11,49-50). Je­ surreição mostrou que confiar assim na absoluta bondade
sus entreviu a morte. Esta lhe pareceu hedionda e absurda do Pai não é sem sentido. A Vida triunfou sobre a morte e
(cf. Hb 5,7), porque significava a rejeição, por parte dos ju ­
o Amor sobre o ódio. Nisto se revelou totalmente quem é
deus, da oferta libertadora de Deus. Mas enfrentou-se com Deus-Pai-e-Mãe: sua bondade não se deixa vencer por nada;
ela com extrema coragem pessoal.
ele pôde transformar a cruz num caminho e num sinal de
A grande tentação do Getsêmani mostra a profundi­ libertação. No cam inho de Jesus de Nazaré, na vida, no
dade da angústia de Jesus e, ao mesmo tempo, sua resolu­ sofrim ento, na m orte e na ressurreição se revelou Deus
ção; “Afasta de mim este cálice; mas não seja o que eu que­ assim como Ele é. A experiência de Jesus foi o meio dessa
ro, senão o que Tu queres” (Mc 14,36 par.). Mesmo que não revelação. Nela não se revelou apenas o Pai; foi-nos comu­
entenda, o Pai o saberá; abandona-se totalm ente à noite nicado o mistério absoluto de Deus, subsistindo como Pai,
escura dentro da qual também está presente o Pai de amor Filho e Espírito Santo. É o que consideraremos agora.
127
b) A revelação d a n a t u r e z a ín t im a de D eus c o m o Essa revelação não se fez, entretanto, do modo que é
COMUNHÃO DE PESSOAS NA EXPERIÊNCIA DE JESUS com um para nós, form ulando proposições verdadeiras e
ensinando verdades conceptuais. O mistério trinitário se
É assente para a fé que foi Jesus Cristo quem revelou o revelou no caminho concreto, na palavra, na atividade e na
mistério central do cristianismo, a Santíssima Trindade, a paixão e ressurreição de Jesus Cristo. A reflexão teológica
com unhão do Pai, do Filho e do Espírito Santo.11 Dada a posterior nos grandes concílios apenas explicitou num a lin­
im portância desse mistério, esperaríamos que Cristo nos guagem própria de seu tempo - a da filosofia grega com os
comunicasse numa proposição formal: “Eu vos ensino o mis­ conceitos de natureza e pessoa - aquilo que já está claro,
tério absoluto de Deus, uma natureza divina, subsistindo em mas num a outra linguagem, no Primeiro Testamento e na
três Pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo.” Nada disso encon­ gesta de Jesus Cristo.12
tramos no Primeiro Testamento. As poucas fórmulas trini- A natureza íntima de Deus enquanto Pai, Filho e Es­
tárias, particularmente Mateus 28,19 (“Ide, pois, fazei discí­ pírito Santo se fez visível em Jesus de Nazaré. Em sua vida
pulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e podemos ler a realidade trinitária, que não é a comunica­
do Filho e do Espírito Santo”), nunca intencionaram ensi­ ção de um a curiosidade teológica, sem nada com preen­
nar formalmente uma doutrina sobre a Trindade. Estão sem­ dermos dela, apenas que existe, senão que nos é revelado
pre dentro de um outro contexto; neste caso de Mateus algo que tem a ver com a compreensão profunda do uni­
28,19, trata-se de um contexto missionário e batismal. Ini­ verso e do ser hum ano e que, por isso, está ligado à nossa
cialmente o batismo era feito em nom e do Senhor Jesus salvação.
(cf. At 8,16; 19,5; I Cor 1,13-15). Mas os catecúm enos, na
catequese batismal, aprendiam que pelo batismo Deus-Pai a) Como na vida de Cristo se revelou a
enviaria a seus corações o Espírito de seu Filho, a fim de Santíssima Trindade
que pudessem exclamar com toda a confiança: “Abba, Pai”
(G1 4,6; Rm 8,15). Nessa breve fórmula se reúnem todos os Evidentemente não podemos descer a análises minu­
elementos reveladores da Santíssima Trindade. ciosas para iluminar o caminho no qual se deu a revelação
trinitária. Basta-nos mostrar a estrutura do processo reve­ curas e milagres (cf. Mc 2,5; 5,34-36; Lc 17,19; Mc 11,23; Mt 17,20;
lador. As reflexões acima descobriram-nos a intimidade de 21,21; Lc 17,6). Mas nessa fé espelha-se o evento revelador
Jesus com o Pai-e-Mãe. Por uin lado, Jesus vive uma distân­ da Trindade, especialm ente do Filho em sua dimensão
cia criacional de Deus-Pai-e-Mãe, pois reza, invoca e louva divina. O hom em desamparado e entregue à sua própria
o Pai (cf. Mt 11,27); espera e crê nele com infinita ternura sorte, vítima de doenças ou de possessões, crê em Jesus
expressa pela palavra Abba, Papaizinho. Sente-se, pois, di­ como quem tem o poder de Deus que sana e salva, res­
ferente do Pai e perm anentem ente diante dele. Por ou­ suscita e perdoa pecados. Jesus por sua vez age com o
tro, vive a experiência de ser Filho: “Tudo me foi entregue quem tem em si autoridade divina. Não suplica para que
por m eu Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho e o Pai faça o milagre; ele age miraculosamente. Percebe-
aquele a quem o Filho quiser revelá-lo” (Mt 11,27; cf. Mc 13,32). se: com Jesus está presente o poder mesmo de Deus. O
Comporta-se como o representante de Deus, assumindo que era impossível ao hom em , com Jesus se torna possí­
atitudes só compatíveis com Deus, como perdoar pecados vel (cf. Mc 10,27). A revelação de Jesus com o Filho não
e corrigir ou abolir a Lei. Possui uma consciência messiânica está tanto num a formulação dogmática, mas encontra-se
de tal forma nítida que se entendia como o Libertador e na atividade m esma de Jesus. Jesus age com o Filho de
condicionava a salvação à adesão a sua pessoa (cf. Lc 12,8-10). Deus que representa o Pai e está sempre em com unhão
Ele age não só em lugar de Deus, senão que tom a palpável íntim a com o Pai.
Deus mesmo, sua bondade e perdão. Sua intimidade com
Na atuação do Jesus terrestre se revelou também a ter­
Deus-Pai-e-Mãe era tão profunda que São João podia mais
ceira Pessoa da Santíssima Trindade, o Espírito Santo. Em­
tarde deixar o próprio Jesus dizer: “Eu e o Pai somos um ”
bora quase nunca fale do Espírito (exceto os textos joaneus
(10,30). Nota-se, pois, uma identidade e uma diferença com
o Pai. O Filho revela o Pai. e apenas uma vez em Mc 3,28-30), Cristo aparece nos evan­
gelhos como um carismático, cheio do Espírito, desde o seu
O Pai, por sua vez, revela o Filho. Este assume, como prim eiro m om ento de existência (cf. Lc 1,32-38.42-44). E
dissemos, atitudes divinas. Ele exige fé em sua pessoa. É sobre ele que o Espírito desce em forma corporal (pom­
verdade que essa fé está quase sem pre relacionada com ba) e o consagra para a missão libertadora (Mc 1,9-11 par.).
Não é Jesus que escolhe o caminho: o Espírito o impele a unidade e a diferença do único mistério do Pai, origem
para o deserto (cf. Mc 1,12) e o leva a fazer milagres, curas e de toda a salvação. Ele enviou seu Filho para, na força do
gestos libertadores: “Se é pelo Espírito de Deus que expul­ Espírito Santo, libertar a criação. Ao lado do Pai está sem­
so os demônios, então é sinal de que chegou a vós o Reino pre o Filho. Junto com o Pai e o Filho está o Espírito Santo
de Deus” (Mt 12,28). A virtude divina (Espírito) que opera­ como presença e realidade, perceptível até pelos sentidos,
va em Jesus é cham ada de exusía (soberania) ou dínamis pois se vêem pobres ouvindo a boa notícia de sua liberta­
(poder) (cf. Mc 1,22-27; 2,10; 5,30; 6,2-15; 9,39; 12,24; Lc 5,17). ção, mudos falando, doentes sendo curados e mortos, res­
E um a força que sai de Jesus, surpreendendo a ele pró­ suscitados, tudo isso na força do Espírito de Jesus.13
prio: “E logo Jesus percebeu em si mesmo que saíra dele
Será obra imensa da reflexão teológica dos séculos III
um a força {dínamis), voltou-se para o povo e perguntou:
e IV criar um a linguagem adequada para a cultura greco-
‘Quem tocou minhas vestes?”’ (Mc 5,30; Lc 8,46). Lucas co­
latina, base de nossa cultura ocidental, que expressasse o
m enta que “todo o povo procurava tocá-lo, pois um a for­
que se realizou na experiência de Jesus de Nazaré vivo,
ça saía dele e curava a todos” (6,19). Essa força que é Je­
m orto e ressuscitado. A experiência da fé contem plou o
sus, mas que ao mesmo tem po age independentem ente
Pai, viu o Filho e saboreou o Espírito Santo, auto-comuni-
dele, isso é a revelação daquilo que depois, no Primeiro
cando-se por e em Jesus. Chamou aos Três de Deus. Com
Testam ento, se cham ou de Espírito Santo como Espírito
isso não quis m utiplicar Deus, mas m ostrar o caráter de
de Jesus. Verifica-se também aqui um a identidade e um a
diferença. com unhão, presente na realidade divina. A Igreja antiga
não se apercebeu logo dos problemas que estavam aí im­
À luz da experiência da ressurreição de Jesus e do plicados, especialmente como combinar a unidade com a
surgimento de fenôm enos pneumáticos nas primeiras co­ trindade. Sem a pretensão de aprofundar a questão, im­
munidades cristãs, a Igreja nascente explicitou mais e mais porta reter esta constatação: a experiência da fé não partiu
essa revelação da Santíssima Trindade, feita na vida e na da unidade de Deus. Experimentou a diversidade em Deus.
obra de Cristo. Particularmente São Paulo e São João viram Viveu Deus como família, como com unhão e inter-retro-
35
relação cie Pai, Filho e Espírito Santo. Venerou os Três como Três sempre vêm juntos e se encontram eternam ente en­
Deus. Não especulou ainda em termos concisos o relacio­ trelaçados. Em outras palavras, dizer Trindade é dizer rela­
nam ento entre eles. ção. Como disse o Papa João Paulo II, quando esteve pela
prim eira vez na América Latina em 1979, em Puebla, no
O credo elaborado nos concílios ecumênicos de Nicéia
México: “A natureza íntim a de Deus não é solidão, mas
(325) e Constantinopla (381) encontrou fórmulas que se
com unhão, porque Deus é família, é Pai, Filho e Espírito
tornaram depois dogmas. O dogma básico acerca da San­
Santo.” Esse entrelaçamento foi expresso pela tradição teo­
tíssima Trindade reza assim: em Deus há uma única natu­
lógica pela palavra grega pericórese que significa “a inter-retro-
reza divina que subsiste em três Pessoas realm ente distin­
tas: Pai, Filho e Espírito Santo. Essa formulação abstrata não relação entre as Pessoas divinas”. Elas são distintas para po­
quer exprimir outra coisa senão aquilo que Jesus experi­ derem se relacionar. E essa relação m útua é tão profunda
mentou: que estava sempre em com unhão com o Pai, se e radical que elas se uni-ficam. Elas ficam um só Deus-co-
sentia Filho amado e que agia e falava com uma Força que munhão, um só Deus-amor, um só Deus-relação.
o tomava, o Espírito Santo. Precisamos superar a terminologia tradicional com a
O im portante não é afirmar os divinos Três. Isso até qual se pretendia expressar a natureza íntima de Deus. Ela
pode nos levar a uma heresia, vale dizer, a um erro na com­ é, para nossos ouvidos contem porâneos, demasiadamente
preensão da fé, a heresia do triteísmo, como se houvesse formal e abstrata. No nível da experiência de fé diríamos
três deuses. A centralidade se encontra na relação entre de forma mais simples c compreensível: Deus que está aci­
eles. As próprias palavras já supõem relação. Assim, não ma de nós e que é nossa origem chamamos de Pai-e-Mãe
existe pai simplesmente. Alguém é pai porque tem filho. eternos; Deus que está conosco e que se faz companheiro
Ninguém é filho simplesmente. É filho porque tem pai. de cam inhada se cham a Filho; e Deus que habita nosso
Espírito, no sentido originário, significa sopro. Não há so­ interior como entusiasmo e criatividade se chama Espírito
pro sem alguém que assopre. O Espírito é o sopro do Pai Santo. Como se depreende, não são três deuses, mas o
para o Filho e do Filho para o Pai. Como se depreende, os mesmo e único Deus-comunhão que atua em nós e nos
insere em sua rede de relações. Dentro de nós se realiza a b) A experiência da Santíssima Trindade
eterna relação de amor e de comunhão entre Pai, Filho e em nossa experiência humana
Espírito Santo. D eus-com unhão está sem pre nascendo
dentro de nós. Por isso somos seres de comunhão e um nó Asseverávamos anteriorm ente: a revelação do misté­
perm anente de relações. No início de tudo está a comu­ rio trinitário não é um a curiosidade; diz-nos algo de defini­
nhão dos divinos Três. tivamente im portante sem o qual não realizaríamos nem
compreenderíamos de m odo radical nossa própria hum a­
Mas compreendamos bem essa afirmação. Não signifi­ nidade. K. Rahner, um dos maiores teólogos católicos do
ca que a comunhão é apenas uma realidade nossa. Não. É século XX, afirmava com acerto:
antes de tudo a realidade divina, pois Deus se manifestou
assim como ele mesmo é, vale dizer, como com unhão de
A Trindade para nós não é puramente uma realidade que se
Pessoas.14 Deus é concretamente Pai, Filho e Espírito San­
possa apenas exprimir doutrinariamente. A Trindade mes­
to. Não é prim eiro um a unidade de natureza que depois
ma ocorre em nossa existência', como tal, ela própria nos é dada,
se desdobra em trindade de pessoas. Isso constituiria a he­
independentemente do fato de a Escritura nos comunicar
resia modalista, segundo a qual as divinas Pessoas seriam
sentenças a seu respeito. Essas sentenças, ao contrário, são
apenas três modos de dizer a mesma coisa, sempre idênti­
dirigidas a nós, justamente porque nos foi concedida essa
ca a si mesma. A doutrina da Trindade afirma a diferença
realidade mesma, acerca da qual se proferem as sentenças.15
entre as Pessoas. Uma não é a Outra. Mas Elas estão sem­
pre e eternam ente em com unhão entre si. Por isso nada
pré-existe à Trindade. Ela é a Realidade Última e absoluta­ Dito num a linguagem mais simples: antes de estar em
mente originária. Desde toda a eternidade Deus borbulha nossa cabeça e em nosso coração, a Trindade, o Pai, o Filho
em ser, em am or e em com unhão como de um a única e o Espírito Santo existiam em si e para si. E, ao criarem,
fonte misteriosa que somente existe na forma de três rios passaram seu jogo de relações para todo o universo e para
realm ente diferentes que comunicam a mesma água e se todas as coisas inter-retro-relacionadas entre si. Por isso, à
chamam Pai, Fillho e Espírito Santo. sem elhança do Deus-Trindade-Com unhão, as coisas são
sempre umas pelas outras, com as outras e para as outras. pela paixão e principalmente pelo amar. Eis a revelação do
Exatamente assim explica Santo Agostinho, o grande teólo­ Espírito Santo em nós.
go da reflexão trinitária, as relações entre as divinas Pessoas: Tanto a expressão de si mesma como verdade quan­
“Cada uma das Pessoas está em cada uma das outras, e todas to o am or fluem incessantemente do fundo misterioso da
em cada uma, e cada uma em todas, e todas estão em todas, pessoa, fonte de todos os gestos de com unicação e ex­
e todas não são senão um único Deus” (Dg Trinitate, VI, 10, 12). pressão. Esse fundo misterioso é a aparição do Pai em nossa
Então porque as Pessoas divinas existiam antes, podem estar existência.
em nós e m orar dentro de nós.
Ora, não dizemos que o Pai é por definição Aquele
Se, de fato, é assim, poderem os então experim entar que não tem origem, o Invisível do qual tudo pro-mana?
a Santíssima Trindade? Lógico que podem os experim en­ Tal realidade se reflete no mistério da pessoa, ela mesma
tar a Santíssima Trindade! Experimentamos a Trindade San­ pura gratuidade do estar-aí, mas da qual e-manam todas as
tíssima através daquilo que a teologia chama de vestígios expressões. O Filho é a Palavra, por essência a revelação do
trinitários inscritos na criação e na existência hum ana.11’ Pai, aquele que torna o Pai visível (cf. Jo 14,9). O reflexo do
Já consideramos a experiência de Deus-Trindade-Comu- Filho em nós é a palavra e a inteligência pelas quais se reve­
nhão no processo cósmico da criação. Não precisamos voltar a la a profundidade da nossa personalidade. O Espírito San­
ela. Queremos, sim, nos restringir à experiência da Trindade to é o Sopro do Pai e do Filho, o Amor que enlaça os dois.
na existência humana. Esta se apresenta como uma unidade- Esse amor se reflete em nosso amor que inunda nossa von­
fonte originária. Continuamente ela está se revelando, abrin­ tade e que nos impulsa para a união com a pessoa amada.
do-se como inteligência e verdade de si mesma, comunicando- Conhecim ento e am or são distintos no ser hum ano,
se por palavras, por gestos e por todo um universo simbólico e contudo, constituem a unidade fundam ental da pessoa,
expressivo. Eis a manifestação do Filho em nós. porquanto não é a inteligência que conhece, nem a vonta­
Em seguida, a vida é dotada de vontade que se mani­ de que ama, mas a pessoa que conhece e ama. A inteligên­
festa pela decisão, pela capacidade de realizar um projeto, cia é inteligência, mas em sua última radicalidade é figura-
tiva da Inteligência do Pai que é o Filho. A vontade é vonta­ unidade do mistério de Deus, bem como a unidade do
de, mas num sentido profundo é tam bém figurativa da mistério da pessoa.
Vontade do Pai e do Filho que é o Espírito Santo. Fazer a A fé cristã não é uma religião de mistérios, mas de um
experiência radical da pessoa é fazer a experiência daque­ único mistério: do mistério da auto-doação de Deus à cria­
la realidade que a Trindade significa: o mistério absoluto ção, especificamente, ao ser hum ano, como Fonte, como
sem origem, acima de nós (Pai), que se aproxima de nossa V erdade e com o Amor. Urge recuperar a sim plicidade
existência para cam inhar conosco (Filho) e que habita originária do cristianismo.
dentro de nós dando-nos força, luz e amor, fazendo que
tudo seja vivido em com unhão com a Trindade, com os No ano 180 o m ártir Speratus respondeu ao cônsul
outros e com o universo (Espírito Santo). Saturnino que lhe perguntara o que era o cristianismo: “Si
tranquillas praebueris aures tuas, dico mysterium simpli-
Atenção: não deduzimos a Santíssima Trindade do ser citatis.”17 Traduzindo: “Se mantiveres os ouvidos atentos, re­
hum ano. Pelo contrário, tentam os com preender o ser velar-te-ei o mistério da simplicidade.”
hum ano a partir da Trindade. Ela é a fundante, o ser hu­
mano é fundado. Aí ele se des-velou como manifestação e Que é esse mistério da simplicidade? Mistério da sim­
sacramento da própria Trindade dentro da criação. Cada plicidade foi o nome inicial do cristianismo para testemu­
Pessoa divina se auto-comunica e se revela ao ser hum ano nhar o Deus-Comunhão que entrou em nossa história como
assim como cada uma é: a auto-comunicação do Pai como Pai-e-Mãe amorosos, que nos entregaram seu Filho encar­
Útero e Fonte da qual tudo promana; a autocomunicação nado em nossa miséria na força e no entusiasmo do Espíri­
do Filho como Inteligência, Verdade e Manifestação do to vivificador. A experiência verdadeira e profunda de Deus
Pai que se reflete no homem-inteligência, como verdade e nos convence de quanto esse mistério divino é simples e
desvelamento do mistério da pessoa; a auto-comunicação como simples não deve ser nosso relacionamento com ele.
do Espírito Santo como Amor e Sopro do Pai e do Filho se É, no fundo, a experiência radical de nós mesmos, aberta e
configura no hom em -vontade como am or e vontade de possibilitada por Deus mesmo. Radicalmente somos feitos
unificação com o todo e com cada ser. Tudo isso constitui a Deus por participação.
A EXPERIÊNCIA DE Ü E U S
NA V ID A RELIGIOSA

á pessoas, em todas as religiões e principalm ente


no cristianismo, que se dedicam de corpo, alma e
tem po inteiro a cultivar o espaço de Deus dentro de sua
vida. São os religiosos e religiosas, aos milhares do mundo.
O Papa Paulo VI os chamou ousadamente de “especialistas
de Deus”1. São especialistas não tanto porque estudaram
as coisas divinas, mas porque se entregaram à experiência
viva de Deus. Seu carisma próprio é conferir centralidade
à experiência cristã de Deus no seguimento de Jesus Cris­ que lhe perm ite ver, viver e saborear em todas as coisas a
to, expressa pela consagração pública (os votos religiosos presença misteriosa de Deus Trino. Os trabalhos que exe­
de pobreza, obediência e castidade) e vivendo em frater­ cutará, os engajamentos que assumirá, os gestos que esbo­
nidades inseridas no m undo.2 çará não são como os demais gestos, engajamentos c traba­
lhos. Se for realm ente autêntica, sua experiência religiosa
os colorirá de uma forma que eles se tornam comunicadores
a ) O c a n t u s f i r m u s : a m e m ó r ia d e D e u s e reveladores dessa experiência de Deus.4
e d e J e su s C r i s t o
Essa experiência de Deus, para ser cristã, virá calcada
Dar centralidade à experiência de Deus no seguimento na experiência de Jesus Cristo. Isso implicará não somente
de Jesus Cristo significa colocar essa experiência como o a vivência da extrema proximidade de Deus-Pai-e-Mãe, mas
projeto fundamental da vida, como o pólo orientador de também do acolhimento de toda a dimensão de sombras e
todas as atividades e o marco para todas as demais referên­ de trevas que a vida presente pode apresentar. A sombra
cias. A memória de Deus e de Jesus Cristo constitui, para negra que sempre nos acompanha também é caminho de
usar um a bela expressão do grande teólogo protestante, encontro com Deus; a cruz é a forma dolorosa como nos
m ártir da resistência contra Hitler, Dietrich Bonhòffer, o encontramos com Deus, no completo despojamento e na
cantus firmus em tom o do qual cantam as outras vozes.3 perda de todas as seguranças que têm como contrapartida
um a confiança sem limites naquele que pode transformar
A partir de sua experiência de Deus, o religioso e a a morte em vida e o velho em novo.
religiosa contemplam o mundo, os homens, as tarefas que
devem assumir dentro da Igreja e da sociedade. O cultivo
consciente do espaço de Deus não leva o religioso a fugir b) D e ser to c o m o b u s c a d o pa r a íso
do mundo, mas a conferir um colorido novo à sua relação
para com o m undo. Sua atitude fundam ental deverá ser Para m anter firme o canto de Deus em sua vida, o
como aquela de Jesus Cristo, um a atitude contemplativa religioso deve se submeter a uma contínua vigilância, deve
145
O paraíso ainda não é o céu. O paraíso não é a meta final da
buscar com todo o coração a inocência matinal perdida,
vida espiritual. É, em realidade, apenas uma volta ao início.
ansiar pela purificação do eu de tal form a que Deus não
É começar de novo, ganhar uma nova chance. O monge
tenha apenas um lugar na vida, mas ocupe todos os lugares
que conseguiu atingir a pureza de coração e recuperou,
do coração. A tradição espiritual do O cidente cham ou a em certa medida, a inocência perdida por Adão, ainda não
isso de deserto, que não é um a categoria geográfica, mas terminou a viagem. Está apenas pronto para iniciá-la. Está
espiritual. Deserto exprime o desnudam ento interior, a li­ pronto para um novo trabalho “que olho nenhum jamais
bertação de tudo o que possa apagar, ofuscar a m em ória viu, ouvido nenhum jamais ouviu, nem coração nenhum
de Deus; o controle sobre todas as imagens e conceitos que pôde conceber”. A pureza do coração é o fim intermédio
perturbem a interioridade ou possam fazer concorrência da vida espiritual. O fim último, porém, é o reino de Deus.5
com o cantus firmus e assim destruir o projeto fundamental
que é deixar Deus ser o único Senhor do coração. Antecipar o reino e viver a partir das forças do século
futuro que já se prenunciam dentro do presente, nisso
Esse repouso dinâmico da contemplação, o religioso e
consiste o modo característico do viver religioso.
a religiosa o conquistarão na medida em que se entregarem
à ruminatio Dei (ruminação de Deus) pela oração, pela me­
ditação, pela vida do serviço desinteressado e pelo diuturno C) A C O N SA G R A Ç Ã O R E L IG IO SA C O M O EXPRESSÃO D A
esforço de realizar a experiência de Deus. Viver assim é en­ R A D 1C A L1D A D E D A E X PER IÊN C IA D E Ü E U S
trar no paraíso —não o paraíso geográfico do homem ada-
mítico, mas o paraíso dentro de si, que é a recuperação da Todo cristão, por força de sua consagração batismal, é
reconciliação e transparência do Divino dentro do coração. convocado a viver a experiência de Deus que é sem pre
Essa integração constituía a justiça original e foi perdida, ao vida no e segundo o Espírito. O religioso e a religiosa se
largo do tempo, porque Deus deixou de ser o cantus firmus. comprometem, na publicidade da Igreja, a viver essa vida
Como advertia Thomas Merton, o grande místico e escritor de forma radical e profética. A consagração pelos três votos
norte-americano dos meados do século XX: de pobreza, obediência e castidade querem detalhar o
único voto de consagração a Deus." A compreensão exclu­ ta Deus como Pai, experimenta o outro como próximo e o
sivamente jurídica dos três votos nos impediu de ver neles próximo como irmão. O caráter de fraternidade da expe­
o caráter profundam ente unitário da consagração religio­ riência do religioso não surge pelo fato de as pessoas esta­
sa. Eles nada mais intencionam senão articular, no nível da
rem juntas, mas surge no interior da própria experiência
vida concreta, o que significa doar-se totalm ente a Deus.
de Deus, feita no e com o irmão, porque em Jesus Cristo,
Essa doação não é abandono do m undo das coisas, da rela­
Deus mesmo se fez nosso irmão. Isso implica em que toda a
ção homem-mulher e da inserção na sociedade. Ela marca
experiência verdadeiram ente cristã é experiência de co­
por um acento novo estas relações fundamentais nas quais
se articula a vida humana, voltada aos bens da terra (pobre­ m unhão e de solidariedade; ao experim entar Deus, expe­
za), à relação hom em -m ulher (castidade) e à sociedade rim enta juntam ente a com unidade dos fiéis, a Igreja. A
(obediência). A consagração a Deus ilumina e orienta to­ experiência se insere dentro da vida dessa com unidade
das as dem ais relações, agora vistas a partir de Deus e que não começa com a m inha experiência, mas que a pos­
reconduzidas continuamente a Deus. Os três votos ganham sibilita, porque ela carrega dentro de sua história a expe­
relevância teológica, deixam de ser mero caminho ascético riência que Jesus de Nazaré, em sua santa hum anidade,
e renúncia estóica do mundo, se forem expressão e conse­ fez de Deus-Pai-e-Mãe e do Espírito Santo.
qüência da radicalidade do compromisso com Deus. Não A experiência do religioso e da religiosa, por mais ín­
significam renúncia, mas um a reassunção nova de todas as
tima e secreta que seja, deve sempre se confrontar com a
coisas, recuperadas na sua orientação original de revela­
experiência de Jesus Cristo e da história de sua presença
doras de Deus e de sendas para o encontro com Deus.
consciente pelos séculos, isto é, a com unidade eclesial. A
forma concreta como isso geralmente acontece é a adesão
d) E x p e r iê n c ia de D eus n a f r a t e r n id a d e do religioso e da religiosa ao carisma fundacional de um
cam inho de experiência percorrido de form a exem plar
A experiência cristã de Deus, como já consideramos, pelos fundadores de Ordens e Congregações. Dentro des­
é inseparável da experiência do irmão. Quem experimen­ sa cam inhada concreta e tam bém lim itada se des-vela o
ilimitado de Deus e o inexaurível do mistério de Cristo e por um lado a consciência do futuro absoluto exige um a
de sua presença no mundo. relativização total, por outro, pede abraçar seriam ente o
relativo, porque ele constitui o modo como o Absoluto se
antecipa no tempo e se realiza nas mediações históricas. A
e) E x p e r iê n c ia d e D eus n a in s e r ç ã o n o m u n d o concepção de um futuro absoluto não fornece nenhum
d o p o b r e e d o e x c l u íd o conteúdo concreto, definível e categorizável; ela significa
antes um a m aneira como devemos assumir os conteúdos
A consagração religiosa significa uma reserva total da da história e nossos engajamentos humanos: sempre man-
pessoa para Deus. Mas devemos entender corretam ente tendo-se no processo, sem pretender fixar-se definitivamen­
essa reserva, pois Deus não necessita para si pessoas e coisas te nos objetivos bem logrados. Destarte a pessoa está sem­
que se reservam a Ele. O que Ele necessita são represen­ pre aberta para o Mais e para o Futuro a partir de onde o
tantes seus no mundo. Por isso consagração implica, além coração pode esperar repouso e plenificação.
de reserva, missão e envio em nome de Deus. Deus tira do O hom em contem porâneo, m anipulado pela socie­
m undo para atirar mais profundam ente ao m undo. Este dade de consumo e produção, informação e entretenim en­
não é apenas o lugar da realização terrestre do ser huma­ to, vê-se, muitas vezes, perdido no em aranhado das solici­
no, também do religioso e da religiosa. É o lugar onde se tações aos sentidos que lhe advêm por todos os lados. Sen­
veri-fica, isto é, fica verdadeira, a autêntica experiência de te que dentro de sua vida se anuncia um a exigência mais
Deus. Daí o religioso e a religiosa desempenharem, no meio alta do que aquela de apenas produzir, trabalhar e consu­
do m undo, um a função profética e escatológica (escato- mir. Não temos apenas fome de pão, que é saciável, como
lógico é tudo aquilo que tem a ver com o destino terminal dizia um poeta, mas temos também fome de beleza, que é
do ser hum ano): vive de um Absoluto que se mostra como insaciável. A vida não é apenas luta contra a morte. Nela se
o Sentido radical do mundo. A partir desse Absoluto deve des-vela tam bém a dim ensão de sentido, de gratuidade,
relativizar todos os sucessos históricos. Eles não são a meta de celebração e de alegria de viver. Ora, nesse espaço se
ansiada, mas passo concreto na consecução da meta. Se torna significativa a linguagem do Divino e do Mistério. O
150
hom em m oderno é racionalista e profanizado no âmbito convocada a se abrir e a se modificar de form a que não
de suas relações com o mundo. Mas se mostra sensível para haja mais lugar para a exploração do hom em pelo homem.
o Mistério do Amor, para o sentido radical do viver, e pode O ideal é gestar uma sociedade na qual todos possam ca­
acolher o inacessível à discursividade da razão. O religioso ber, a natureza incluída. E como estamos longe dela! Aos
e a religiosa, no meio do m undo, deveriam ser um sinal pobres dirigiu Cristo, com predileção, sua mensagem. Por
profético e um sacramento desta dimensão na qual Deus causa de seu elemento questionante, o pobre é por exce­
emerge como Sentido e como a Esperança em plenitude. lência o sacramento de Deus e o enviado de Jesus Cristo.
Constatamos freqüentem ente que, quando um religioso Por causa disso, o lugar do religioso e da religiosa é do lado
ou um a religiosa realmente se tornam seres de Deus, a eles dos pobres. A partir do pobre devem se dirigir a todos os
acorrem as pessoas como a uma fonte de onde jorra uma demais. Especialmente na América Latina, onde a pobreza
água vivificadora. O religioso e religiosa valem não tanto é gritante e escandalosa, se impõe uma releitura da vida
por aquilo que eles fazem, mas muito mais por aquilo que religiosa, com a possibilidade de ser re-inventada como um
são: um sinal de Deus e do Sentido buscado, consciente ou sinal profético e contestador deste tipo de sociedade, cujo
inconscientem ente, por todos. eixo estruturador não é a pessoa humana, mas a mercado­
Qual é o lugar especial do inserim ento religioso no ria, o mercado e a produção de bens e serviços materiais.
m undo? Exatam ente lá onde o m undo é questionado e
onde ele se sente escandalizado e, por isso, lá onde experi­ Somente rechaçando a pobreza e fazendo-se pobre para
m enta seus limites e sua possível transcendência. O pobre protestar contra ela, poderá a Igreja (e com muito mais
ocupa esse lugar. O pobre não é apenas o carente de bens razão a vida religiosa) pregar algo que lhe é próprio: a po­
materiais. É antes de tudo o empobrecido, aquele que foi breza espiritual”, quer dizer, a abertura da pessoa e da his­
feito injustamente pobre por mecanismos de exploração e tória ao futuro prometido por Deus. Só assim ela poderá
exclusão social. A existência do pobre é má consciência cumprir, honestamente e com possibilidades de ser escu­
para a sociedade porque ele é um subproduto de sua ri­ tada, a função profética de denúncia de toda a injustiça
queza e de seu arranjo. Diante do pobre a sociedade é que atente contra o ser humano e de anúncio libertador de
uma real fraternidade humana... Para a Igreja latino-ameri­
cana (e para a vida religiosa) essa é hoje uma ineludível e
urgente prova de autenticidade de sua missão.7

A partir da im portância da experiência de Deus do


religioso e da religiosa, podemos criticamente perguntar: C on clu sã o
A vida religiosa, como instituição, coloca onde sua preocu­
pação fundamental? Em iniciar os religiosos e as religiosas
nas tradições, nas piedades, nas constituições e nas regras
de suas organizações ou na criação de uma atmosfera favo­
rável a uma autêntica experiência de Deus? Sem essa ex­
periência de Deus no seguimento de Jesus Cristo, a obser­
vância da regra e dos caminhos de perfeição constitui an­

A
o termo de nossas reflexões um a coisa deve ter fica­
tes um martírio inglório do que a expressão concreta da
do clara: a experiência de Deus não constitui um luxo
experiência de Deus.
só de alguns. É a condição indispensável para toda a vida de
fé. Toda religião assenta sobre uma experiência de Deus.
Sem ela os dogmas são andaimes rígidos; a moral, uma coura­
ça opressora; a ascese, um rio seco; a prática religiosa, um
desfiar m onótono de gestos estereotipados; a devoção,
um estratagem a para com bater o m edo; e as celebra­
ções, uma ostentação vazia, sem a graça da vida interior.
Aquele que experim entou Deus penetrou no reino
da mística. A mística não assenta sobre o extraordinário,
154
mas é a transfiguração do ordinário. O místico é aquele
que se faz sensível ao outro lado da realidade. É aquele
que capta o mistério (de mistério vem mística) que se re­ N otas
vela e vela em cada ser e em cada evento da história pessoal
e coletiva. E o capta porque aprendeu a ser sensível ao
invisível aos olhos, mas sensível ao coração atento. Por isso,
o místico autêntico não tem segredos a contar ou confi­ 1. C o m o aparece D eus n o pro cesso d e v id a 'MORTE- ressur '
dências a fazer. Ele vê Deus em todas as coisas enquanto RE1ÇÃO DA LINGUAGEM
está sem pre em busca de um Deus sempre maior do que
B o ff, L. O evangelho do Cristo cósmico. Petrópolis, Vozes, 1970. p. 57-63.
Aquele que ele já encontrou. Porque Deus perpassa toda a M erton, T. Zen e as aves de rapina, São Paulo, Cultrix. p. 74.
realidade, pode, por isso, ser percebido e experim entado Veja a fundam ental obra de K u it f .k , H. M. Gott in Menschengestalt. Eine
nas mais diferentes situações da vida e em cada detalhe da dogmalisch-hermeneiUische St udie über die Anlhrojxrmorphismen der Bibel. Mu­
vida pessoal e do universo. nique, Kaiser Verlag, 1967.
Contado por D. T. Suzuki, em M e r t o n , op. cit., p. 124.
Experimentar Deus não é pensar sobre Deus. É sentir
Deus a partir do coração puro e da mente sincera. Experi­ 2. M ate as im a g e n s , e D eus aparecerá
m entar Deus é tirar o mistério do universo do anonimato e Serm o 52. n. 16: PL 38, 360. Cf. S a n t o A g o s t in h o . De Trinitale. lib. 8, cap.
conferir-lhe um nome, o de nossa reverência e de nosso 8, n. 12: “Putas quid est Deus? Putas qualis est Deus? Quidquid finxeris,
non est; quidquid cogitatione com prehenderis, non est. Sed ut aliquid
afeto. Experimentar Deus é desenvolver a percepção bem- gustu accipias, Deus caritas est. Caritas est qua diligimus.
aventurada de que, na radicalidade de todas as coisas, Deus, Lubac, H. de. Sur les chemins de Dieu. Aubier, 1956. p. 203.
universo, pessoa hum ana são um só mistério de enterneci­ Idem , ibidem, p. 124-5.
m ento e de am orosidade que irrom peu em nossa cons­ Sobre a problemática filosófica das categorias imanência, transcendência
e transparência, veja: B o f e , L. Das Sakramentale D enken. Legitimität
ciência, fez história, ganhou sua linguagem e culminou na und Grenzen einer sakralen Denkweise. Ein: Die Kirche ah Sakrament im
alegre celebração da vida. Horizont der Wellerfahrung. Paderborn, 1972. p. 123-81.
Le Milieu Divin. Paris, 1957. p. 162. 3 . Q ue é ex - per i - ê n c ia ?
Rehm ,M. Das Bil Gottes im Alten Testament. Würzburg, 1951; E ic h r o d t , W.
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Tavenir du chrislianisme. Paris, Aubier, 1970. p. 157-88; L a d r i è r e , J. TECNO'CIENCIA
L ’a rliculalion du sens. Paris, 1970. p. 191-242; D e w a r t , L. O futuro da fé São
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na teologia hoje. Em: Perspectiva Teológica 1. 1969. p. 15-24: o m elhor
estudo de todos quantos aqui se citaram; A lm e id a , L. M. A experiência
fundam ental de Deus. Em: Cadernos Beneditinos 11. 1973. p . 5-26; G o m es, 6 . COMO APARECE DEUS NA MODERNA COSMOLOGIA
C. F. Experiência de Deus e m onaquismo hoje. Em: Cadernos Beneditinos.
op. cit., p . 2749; V az, H. A experiência de Deus. Em: Grande Sinal 27. 1 São Paulo, Ática, 1995.
1973. p . 483-98; B o ff , L. & B e t t o , Frei. Mística e espiritualidade. Rio de 2 Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1992.
Janeiro, Rocco, 1994; B o ff , L. Espiritualidade: caminho de realização. Rio
de Janeiro, Sextante, 2001; B o f f , L. Resgate da m ística e da espiri­ 7. COM O APARECE ÖEUS NO MUNDO OPRIMIDO
tualidade. Em: A voz do Arco-Íris. Brasília, Letraviva, 2000. p. 145-204;
L e lo u p , J.-Y. A montanha no oceano. Meditação e compaixão no budismo e no da A m é r ic a La t i n a
cristianismo. Petrópolis, Vozes, 2002; G u t i e r r e z , G. Beber do próprio poço.
Itinerário espiritual de um povo. Petrópolis, Vozes, 1985; C a s a ld á lic .a , P. & 1 Veja os dois estudos de A r r o y o , G. Pensamiento latino-americano sobre
V ic.il, J. M. Espiritualidade, de libertação. Petrópolis, Vozes, 1994. subdesarrollo y dependencia externa. Idem , Consideraciones sobre el
159
subdesairollo de A m érica Latina. Em: Fe cristiana y cambio social en liber 1, cap. 6: “Deus to tus intra extraque, superem inens et internus,
América U lina. Salamanca, 1973. p. 305-22; 323-34 onde resum e, com circumfusus et infusus. Deus, supra quem nihil, extra quem nihil, sine
fatta bibliografia, as principais teorias e autores que interpretam a quo nihil est. Deus, sub quo totum est, in quo totum est, cum quo
situação da América Latina. Veja os aspectos mais globais em W a i .ler - totum est”; S a n t o A c o s t in h o . In Psalmum 130, n. 12: PL 37, 1712: Intus
s t e in , I. Elfuluro de la civilizctción capitalista. Barcelona, Içaria & Antrazyt D eus altus est et spiritualiter altus; nec pervenit anim a ut contingat
1997. eum , nisi transient se”; SÂo G r e g ö r io , o Grande. Moralia in Job, lib. 2,
cap. 12, n. 20: “Ipse m anet intra om nia, ipse extra om nia, ipse infra
2 Veja os dados em A r r u d a , M. Qual trabalho para qual sociedade, vol. II,
capítulo I. Petrópolis, Vozes, 2002. om nia. Et superior est per potentiam et inferior per sustentationem ,
exterior per m agnitudinein, interior per subtilitatem. Sursum tegens,
* I a n n i , O. O labirinto lalino-nmrriiano. Petrópolis, Vozes, 1995. deorsum continens, extra circumdans, interius penetrans. N ec alia ex
Inácio L u la d a (org.). O custo Brasil. Mitos e realidade. Petrópolis,
S ilva , L u ís parte superior, alia inferior; aut alia ex parte exterior, atque ex alia
Vozes, 1997; B o e f , L . Depois de 500 anos que Brasil queremos. Petrópolis, interior; sed unus id em q u e totus u b iq u e p raesid en d o su stin en s,
Vozes, 2000. sustinendo praesidens, circum dando penetrans, penetrando circum ­
> P e t r a s , J. 8c V e i.tm ey e r, H. Brasil depois de Cardoso. A desapropriação do país.
■ dans”; L w a r d in , Hilderbert de. Carmina Miscellanea. 71: PL 171, 1411:
Petrópolis, Vozes, 2001. “Alpha et O m ega, m agne D eus... Super cuncta, subter cuncta, extia
cuncta, intra cuncta, nec inclusus, extra cuncta, nec exclusus, super
h G eral. Brasil: rasgos generales cle la evolución rcciente. Em: Estúdio cu n cta, n ec elatu s, sub ter cu n cta n ec sub stractu s. S u per totu s,
Económico de América Latina y Caribe 1998-1999. Santiago, 1999. praesidendo; subter totus, sustinendo; extra totus, com plectendo; intra
1 Análise da “modelo” brasileiro. Rio de Janeiro, 1972. p. 77. totus es, im plendo; intra nunquam coarctaris, extra nunquam dilataris,
8 M a r c u se , H. Eros y Civilizaeión. México, Ed. Mortiz, 1965. p. 83. super nullo sustentaris, super nullo fatigaris.”
9 Nuestra idea de Dws (T eologia abierta para el laico adulto 3). Buenos R ahner, op. cit., p. 166-7.
Aires-México, 1970. p. 50. Bofe, L. O destino do homem e do mundo. Petröpolis, 1974. p. 12-23.
10 L u b a c , o p . c it., p . 12 5.

Veja-se a bela íiase de Santo Agostinho: “Cum absens putatur, videtur, 9. A EXPERIÊNC1A CRISTA DE DEUS
cum praesens est, non videtur”, De videnda Deo (Epist. 147 ad Paulinam),
cap. 6, n. 18, PL 33, 604. Le Dieu, desjyremiers chrétiens. Paris, Seuil, 1955; P e z e r ii ., D. Le
G r a n t , R. M.
12 P untf .l , o p . c it., p . 22 -3 .
Dieu de Jésus Christ. Em: N ’avons-nous pas le même Père? Paris, Le Chalet,
1972. p. 111-29; S c h ie r s e , F. J. Der Gott Jesu, ein neuer Gott? Em: Wort
und. Wahrheit 26. 1971. p. 197-203; K essler , H. Der neue, erlösende Gott
8. C o m o D eus e m e r g e n a c a m in h a d a p e s s o a l Jesu. Em: Erlösung ab Befreiung. Düsseldorf, 1972. p. 74-95; B ia n k , J. Jesus
von Nazareth. Herder, Geschichte und Relevanz, 1972. p. 58-68; R a h n e r ,
1 Esta idéia da diafania e transparência de Deus no m undo é bem docu­ K. & T h Üsin g , W. Christologie - systematisch und exegetisch. Herder, 1972. p.
m entada na tradição teológica e mística: S a n t o H il á r io . De trinilale, 28-33, 133-40; G u il l e t , ]. Jésus devant sa vie el sa mort. Paris, 1971. p. 221-42,
B o f f , L. Jesus Cristo Libertador. Petrópolis, Vozes, 1972; S o b r in o , J. Jesus, o nitiva, sen d o que todas as exp licações posteriores não passam de
Libertador. Petrópolis, Vozes, 1994. tentam es para m elhor exprim ir em conceitos um que ou tio aspecto
2 B o ff, L. Foi Jesus um revolucionário? Em: REB 31. 1971. p. 97-1 18 , onde parcial do processo da revelação”. Mysterium Salutis, op. cit., p. 85.
se estuda a bibliografia desde o fim do século passado até 1971; G o n ­ op. cit., p. 101-7.
13 S c h ie r s e ,
ç alves , L .Jesus e a contestação política. Petrópolis, Vozes, 1974; H e n g e l , M.
' 4 Para um aprofundam ento mais técnico do mistério da Santíssima Trin­
Eigentum und Reichtum in der frühen Kirche. Aspekte einer früchrisllichen dade veja: B o f f , L. Santíssima Trindade, sociedade, e libertação. Petrópolis,
Sozialgeschichte. Sttugart, 1973. p. 31-9.
Vozes, 1985; e sua formulação mais popular: Idem . A Santíssima Irin-
3 J erem ias , J. U s paraboles de Jesus. Paris, 1964. p. 194-9. dade é. a melhor comunidade. Petrópolis, Vozes, 1988.
4 M e s te r s , C. Jesus e o povo: qual foi a libertação que ele trouxe para o 13 R a h n e r , K. O Deus trino, fundam ento transcendente da história da
povo de seu tempo? Em: Palavra de Deus na história dos homens, vol. 2. salvação. Em: Mysterium Salutis, II/I. Petrópolis, Vozes, 1972. p. 304.
Petrópolis, 1971. p. 135-81.
i <> V a n D en B e r g , A. A Santíssima Trindade e a existência hum ana. Em:
3 S a m a in , E. O discurso-program a de Nazaré Lc 4,16-19. Em REB 34. REB 33. 1973 p. 62948.
1974, núm ero de junho.
>7 Passio Sancionem Scilitanorum. M unique, L ateinische M ärtyrerakten,
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h N ie d e r w im m e r , 1960. p. 25.
Christologie (Stuttgarter Bibel-Studien 57). Stuttgart, 1972. p . 145-58.
7 Je re m ia s , J. Teologia dei Nimm Testamento,vol.1.Salamanca,1974.p. 87; 10. A EXPERIÊNCIA DE D E U S NA VIDA RELIGIOSA
Id. A bba. Em: Abba, Studien zu r neutestam enllichen 'Theologie und
Zeitgeschichte. Göttingen, 1966. p. 15-82.
1 P auk VI e. as religiosas. São Paulo, Paulinas, 1968. p. 87.
8 M ester s , op. cit., p. 157.
2 D o c u m e n t o da CLAR. Vida segundo o Esfnrilo nas comunidades religiosas da
9 J er em ia s , o p . cit., p . 13 8. América iMlina (CRB 9). Rio de Janeiro, 1973. p. 17-23.
10 R ö m e r , K. J. Esperar contra toda esperança. Rio de Janeiro, CRB 11, 1973, 3 D o c u m e n t o , op. cit. A vida religiosa hoje na Igreja (CRB 10). Rio de Janei­
p. 20. ro, 1973. p. 46-7; Idem, El proyecto de la vida religiosa. Em: Vida religiosa
11 S c h ie r sf ., F. J. A revelação trinitária neotestam entária. Em: Mysterium en el mundo secularizado (CLAR 10). Bogotá, p. 51-5.
Salutis, II/I. Peti ópolis, 1972. p. 77-118; Duquoc, C. Le dessein salvifique 4 B o f f , L. A natureza espiritual do religioso. Em: Grande Sinal 26. 1972. p.
de la révélation de la Trinité en Saint Paul. Em: Lumière et Vie, 29. 1956. 257-63.
p. 67-94; L avalettf ., H. de. Dreifaltigkeit. Em: LThK 111. 1959. p. 543-9.
3 M e r t o n , op. cit. A recuperação do paraíso, p. 121.
1■Com muita razão nota Schierse: “Devemos sem pre opor-nos ao equí­
(i B o f f , L. A estrutura antropológica dos votos: um voto em três. Em:
voco intelectualístico, com o se Jesus mesmo tivesse fornecido à doutri­
Grande Sinal 27. 1973. p. 499-511.
na ciistã apenas indícios fracos pouco claros, ao passo que a verdade
g en u ín a e plena definida pela Igreja posterior. Na verdade vale o 7 G utif .rrf.z , G. M. Teokgía de la liberación. Bogotá, 1971. p. 371-2.
contrário: Jesus revelou, por sua palavra e obra, toda a verdade defi­
162
SUGESTÕES DE LEITURA

A m a r ... a p e s a r d e t u d o . E n c o n tr o com M arie de S olemne


(Jean-Yves Leloup)
Jean-Yves Leloup nos convida a dar um passo consciente em dire­
ção a uma vida plenamente assumida. Fala-nos daquilo que está
dentro de nosso ser, no mais profundo de nós - o amor - e vai
lançando luzes para permitir que cada aspecto aflore, que tomemos
consciência e que nos rendamos à proposta de mudança que a vida
nos faz. Considerando nossa vida tal qual ela se apresenta, o autor
nos induz a buscar nosso caminho pessoal, nossa resposta pessoal
que sempre encontra pleno sentido no amor.

A ARTE DA ATENÇÃO. PARA VIVER CADA INSTANTE EM SUA PLENITUDE


(Jean-Yves Leloup)
Jean-Ives Leloup nos propõe um remédio para enfrentar o estresse
dos nossos dias: a atenção. E ela que nos faz sair do inferno que é a
ausência do amor, o esquecimento de nós mesmos, o esquecimen­
to do Ser. E a atenção que nos levará a viver o instante em sua pleni­
tude, ou seja, a estarmos presentes no m om ento presente, re-
descobrindo o sentido da escuta e da comunicação com o Real.
T r a n s p a r ê n c ia s d a e t e r n id a d e maneira leve e de fácil compreensão, que mostram que a vida é
(Rubem Alves) simples e leve; que a felicidade está dentro de cada um de nós; que
podemos ser agentes de nossa vida e não reagentes; que não somos
Como um mestre da palavra, Rubem Alves relata, nesta coletânea os donos da verdade; que devemos ver as pessoas além das aparên­
de crônicas, passagens e experiências vividas, nas quais Deus, a cias e cultivar valores... cultivar tudo o que é nobre e contribui para
religiosidade, o amor, a beleza e o sentido da vida estão sempre que o mundo esteja em paz.
presentes. Seu texto flui com uma simplicidade de rara beleza,
inspirado por uma memória poética e reflexões cotidianas, apre­ P a r a q u e m in h a v id a s e t r a n s f o r m e 2
sentando a espiritualidade sob uma nova ótica e tornando a sua (Maria Salette/Wilma Ruggeri)
leitura obrigatória àqueles que buscam ampliar seus horizontes.
As autoras vêm uma vez mais, através das histórias deste segundo
O n d e e x ist e a m o r , D e u s a í e st á
volume do livro Para que minha vida se transforme, ampliar nossa
visão de mundo que se inicia a partir do olhar que estendemos à
(Leon Tolstói) nossa vida. A leitura destas histórias simples e populares leva-nos a
Tolstói, autor clássico russo, famoso por seus grandes romances, interpretar a vida de maneira diferente, a compreender que na
merece ser divulgado também como autor de belíssimos contos vida não há dificuldades, apenas lições.
espirituais. São histórias criativas, cheias de imaginação, ricas em
ensinamento e que tocam o nosso coração ao nos apresentarem S e m s e g r e d o s e c e m cha v es pa r a q u e s u a v id a se t r a n s f o r m e
situações reais, personagens que têm vida própria, uma visão de (Maria Salette/Wilma Ruggeri)
mundo rica, colorida, com sabor de realidade. No estilo simples, direto e objetivo que caracteriza as autoras, este
livro reúne textos curtos, práticos, todos eles nascidos das expe­
P a r a q u e m in h a v id a s e t r a n s f o r m e
riências do dia-a-dia. Visa levar o leitor a refletir sobre sua própria
(Maria Salette/Wilma Ruggeri) vida, a descobrir que nasceu para ser feliz e que para isso, como
Histórias que devem ser lidas ou contadas no dia-a-dia e que se afirmam as autoras, não há segredos - apenas chaves que abiem
destinam a todos os que estão à sua volta: crianças, jovens e adultos, portas a inúmeras possibilidades, permitindo que sua vida se trans­
parentes e amigos... São histórias simples e populares, escritas de forme.

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