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A transparên
CATALOGAÇÃO NA FONTE DO
DEPARTAMENTO NACIONAL DO LIVRO
B673c
BoíF, Lconarclo
Experim entar Deus: a transparência de todas as coisas / Leonardo BoíF.
-C am pinas: Verns, 2002.
p .; 13 x 18 cm
ISBN 85-87795-29-5
LEONARD«
1. Deus - Adoração e amor. 2. Vida cristã. I. Título.
CDD: 231.7
Revisão
Aurea G. Tullio Vasconcelos
Sabino Ferreira Affonso
C apa
S u m á r io
Adriana Miranda
André S. Tavares da Silva
Projeto Gráfico
André S. Tavares Silva
3. Q u e é ex - p e r i - ê n c i a ? ...................................................................... 3 9
4. A EXPERIÊNCIA TÍriCA b) Deserto como busca do paraíso........................... 145
DO NOSSO MUNDO M ODERNO........................................ 45 c) A consagração religiosa como expressão da
radicalidade da experiência de D eus................ 147
5. C o m o a pa r e c e D eus n o m u n d o
DA T E C N O -C IÊ N C IA .................................... 51 d ) Experiência de Deus na fraternidad e.............. 148
e ) Experiência de Deus na inserção no m undo
6. C om o a pa r e c e D eu s n a m o d e r n a c o s m o l o g ia ...... 63 do pobre e do excluído......................................... 150
7. C o m o a pa r e c e D eus n o m u n d o o p r im i d o C o n c l u s ã o ................................................................................................. 1 5 5
d a A m é r ic a L a t i n a ......................................................................... 7 3
N o t a s ............................................................................................................. 157
8. C om o D eu s e m e r g e n a c a m in h a d a p e s s o a l .............. 89
a) Deus como experiência da bondade
e do senüdo radical da vida.................................... 92
b ) Deus como experiência do vazio da vida 97
c) Deus como experiência da plenitude da vida .. 98
9. A EXPERIÊNCIA CRISTÃ DE DeUS.................................. 105
A
palavra experiência é uma das mais discutidas e difí
.ceis de nossa tradição
* ocidental. Não poderemos
r aqui
^
desdobrar todo o leque de seu rico significado.1 Restringir-
nos-emos à perspectiva essencial que nos permite articular
Deus como experiência dentro de nossa história pessoal e
coletiva.
Talvez a etimologia da própria palavra ex-peri-ência nos
forneça a primeira achega à sua compreensão. Ex-peri-ência
é a ciência ou o conhecimento (ciência) que o ser huma-
no adquire quando sai de si mesmo (ex) e procura com dogm ática e fundam entalista, portanto manifesta um sa
preender um objeto por todos os lados (peri). A experiên ber não veri-ficável, que não sub-siste nem re-siste em con
cia não é um conhecimento teórico ou livresco. Mas é ad tato com a realidade experimentada.
quirido em contato com a realidade que não se deixa pe
; netrar facilmente e que até se opõe e resiste ao ser hum a A ciência que resulta da ex-peri-ência não é m era sensa
no. Por isso em toda a experiência existe um quociente ção de um objeto. E a síntese de toda um a série de aborda
, forte de sofrimento e de luta. gens do objeto (perr. “ao redor de”, “em torno de”). Já Aris
tóteles notara muito bem que a experiência (empeina) não
,, Ao apropriar-se da realidade, domesticando-a, o ser resulta de um a percepção isolada, mas constitui um a sín
hum ano aprende. A experiência resulta do encontro com
tese de muitas percepções e combinações reunidas, naqui
o mundo, num vai-e-vem incessante, encontro que nos per
lo que possuem de comum, dentro de um modelo esque
mite construir e tambcm destruir representações que ha
mático (Met. 980b). Pela experiência o objeto se faz cada
víamos recebido da sociedade ou da educação. O encon
vez mais presente dentro de quem quer conhecer, na me
tro é sempre enriquecedor, pois suscita nossa fantasia, for
nece materiais para novas conexões, base para representa dida em que ele se abre mais e mais ao objeto e d estuda de
ções e idéias diferentes acerca da realidade. O conheci diferentes ângulos. Um médico experim entado é aquele
m ento que resulta desse embate é precisamente o que cha que se confrontou muitas vezes com a mesma doença sob
mamos de experiência. Ela constitui um a riqueza que só os mais diferentes sintomas, sob formas e circunstâncias as
quem passou por ela pode comunicar. Ela lhe confere au- mais diversificadas a ponto de não mais se surpreender ou
tor-idade, precisam ente a autoridade de um a pessoa ex se enganar. Ele conhece simplesmente. Não tanto porque
perim entada. O saber é um saber veri-ficável que se fez estudou em livros - isso também -, mas porque esteve às
verdade concreta e vital. Abertura, despojamento de pre voltas, concretam ente, com a doença e conheceu-lhe os
conceitos e de idéias-feitas são condições indispensáveis à sintomas. O modelo que elaborou da doença, com binan
experiência. Fechar-se à experiência é negar-se ao questio do experiência vivida com ciência dos livros, é um modelo
nam ento, à chance de enriquecim ento e revela atitude testado e veri-ficado.
Já vimos, da palavra ex-peri-ência, o sema peri (ao redor ficados e testados com a realidade. Podem se confirmar;
de). Falta-nos analisar o sema ex. Ex é um a pre-posição lati mas podem também ser destruídos, corrigidos e enrique
na que significa, entre outros conteúdos, “estar orientado cidos. Experiência envolve todo esse processo doloroso e
para fora”, “exposto a”, “aberto para”. Temos, por exem criativo.
plo, as palavras: ex-clamação, ex-posição, ex-istência. Neste
sentido, ex ex-prime um a característica fundam ental do Resumindo, podemos dizer que experiência é o modo
ser hum ano como ex-istência. Ele é um ser que ex-iste vol como interiorizamos a realidade e a form a que encontra
tado para fora (ex), em diálogo e em com unhão com o mos para nos situar no m undo junto com os outros. Assim
outro ou com o mundo. Daí ser a ex-peri-ência não apenas entendida, a experiência deve, pois, ser distinguida da vi
um a ciência, mas uma verdadeira cons-ciència. O objeto se vência. A vivência é a situação psicológica, as disposições
manifesta à consciência, segundo as leis estruturais dessa dos sentimentos que a experiência produz na subjetivida
consciência. A ex-peri-ência nunca é sem pre-su-posições. de humana. São as emoções e valorações que antecedem,
A consciência tem já pre-su-posições, que são posições to acompanham ou se seguem à experiência dos objetos que
madas historicam ente ou herdadas da cultura dentro da se fazem presentes no interior da psique humana. Vivência''
qual estamos inseridos. A consciência não é vazia, mas toma não é sinônimo de experiência. É conseqüência e resulta
modelos de interpretação do passado, da sociedade atual do da experiência na psique humana. Ela pertence ao fe
e da própria cam inhada pessoal. Esses m odelos povoam nôm eno total da experiência, mas este é mais amplo e pro
sempre a consciência. Quando a pessoa sai de si (ex) e vai ao fundo do que aquele, a vivência.
encontro dos objetos, ela carrega toda essa carga. A expe Se experiência é o modo como nos situamos no mun
riência contém, pois, um elemento subjetivo (a ex-istência) do e o m undo em nós, então ela possui o caráter de um
e um elem ento objetivo (os objetos). Nesse encontro de horizonte. Horizonte é um a ótica que nos permite ver os
ambos, na modificação que se opera tanto na consciência objetos, um focal que ilum ina a realidade e nos perm ite
como nos objetos, é que se estrutura a experiência. Os mo descobrir os distintos objetos den tro dela, nom eá-los,
delos já presentes na consciência são confrontados, veri ordená-los no rigor de um a sistematização. Por exemplo,
atualm ente na América Latina, estamos nos habituando a
ver tudo sob a ótica da libertação ou da opressão, da inclu
são ou da exclusão dos processos globais: a pedagogia, a
teologia, a pregação, os sacramentos, os sistemas políticos e
os projetos econômicos. Perguntamo-nos quase instintiva
mente: Até que ponto essa doutrina liberta ou m antém o
cidadão marginalizado e excluído? Até que ponto essa op
A EXPERIÊNCIA T ÍPIC A
ção econôm ica reforça a inserção no processo de globa D O N O SSO M U N D O M O D E R N O
lização de form a subalterna e assim aprofunda o regime
de dependência ou até que ponto rompe com ele e liber
ta historicamente? A libertação é um horizonte, um a ótica,
um a experiência que nos faz descobrir os objetos na sua
dimensão de libertação ou de opressão, de inclusão ou de
exclusão.
O
modo como os seres humanos se fizeram presentes
no m undo e fizeram o m undo presente neles va
riou ao longo da história. O homem mítico interpretava
m undo dentro de outras categorias, diferentes das nossa
Tinha outra experiência. Da mesma form a o hom em da
metafísica clássica experimentava o m undo diferentem en
te, como uma hierarquia de entes dentro de uma ordem,
presidida e culminada pelo Ente supremo e eterno. Qual é
o específico de nossa experiência de m undo?1
O típico de nosso mundo é o saber cada vez mais minu da na consciência. Na verdade, a própria ciência se deu
cioso e certo (certeza não é sinônimo de verdade!). Tudo é bem conta de seu estatuto herm enêutico próprio, quer
objetivado, isto é, feito objeto do saber. O saber lhe confere dizer, de seu alcance e de seus limites. C onhecer não é
segurança, porque saber é poder. Poder é subjugar todas as reduplicar. A experiência é sem pre feita dentro de um
coisas aos interesses do ser humano, de uma classe, de um modelo prévio e de perguntas previamente colocadas. Con
país, de uma cultura, de um sistema político e econômico. forme as perguntas, vêm também as respostas. O modelo
Esse saber objetiva tudo: Deus feito objeto do saber teológi científico prévio já seleciona o que se deseja conhecer. Só
co; o próprio ser humano, objeto de estudo de numerosíssi verificamos aquilo que procuramos. Daí dizer-se que os da
mas ciências; o universo e a Terra, objetos máximos da pes dos científicos não são rigorosamente dados científicos, mas
quisa científica. Desse saber nasceram as ciências e sua apli
são feitos através de nossos inevitáveis modelos. Em razão
cação concreta, a técnica. Elas se consideram eminentemente
disso, podemos e devemos dizer que a objetividade cientí
como ciências experimentais e objetivas. O nosso m undo é
fica inclui a subjetividade hum ana, as opções sociais e os
e se entende como m undo técnico-científico, artefato da
manipulação dos seres humanos. Não admite nenhum a for interesses do grupo. É sempre o ser hum ano que faz ciên
ça numinosa e misteriosa limitante. Tudo quer desvendar; cia. E o faz com tudo aquilo que é, com interesses bem
de tudo quer conhecer as leis de funcionamento; experi definidos e com um sentido que confere ao seu trabalho.
menta e controla criticamente a experiência até poder esta Isso determ ina as perguntas, marca os modelos de análise
belecer uma ciência exata e segura. O conjunto dessas op e orienta a direção de seu interesse científico.
ções e processos constitui a assim chamada sociedade do co De qualquer forma a nossa experiência do m undo é
nhecimento, da informação e da comunicação. m arcada pelo caráter científico-técnico. Isso diferencia o
Já se ultrapassou a ingenuidade herm enêutica de um nosso tempo de outros tempos da história humana. Contu
tipo de pensar científico que se entendia a si mesmo como do, d en tro desta experiência do m undo, apontou um
pura objetividade. O pensam ento e a ciência, pensava-se, elem ento im portante para o nosso tem a da experiência
nada mais são do que o reflexo da realidade experimenta de Deus. A ciência da objetividade científica envolve o ho
mem que entra na determ inação daquilo que deve ser A pergunta pelo sentido da vida é inarredável. Ela,
analisado e pesquisado, marcando a pesquisa com o senti como notamos acima, já está implícita e latente dentro da
do que ele lhe dá. Numa primeira dimensão, o ser huma própria ciência e da técnica. O ser hum ano pesquisa e trans
no se preocupa prim ordialm ente em dar um a explicação forma o m undo porque vê sentido nisso, porque se realiza
aí, porque consegue expressar dim ensões latentes nele.
aos fenômenos que analisa. Ela se processa com o recurso
Que sentido o ser hum ano busca realizar e viver quando
às causas imanentes verificáveis do próprio fenômeno. Dessa
dialoga técnico-cientificamcnte com a realidade? A análise
forma constrói o edifício científico e a possibilidade de sua
desse questionam ento nos abre para o sentido originário
utilização para transformar o m undo pela técnica. Esse com
de Deus, presente também dentro do m undo m oderno.
plexo é um artefato humano, fruto do exercício da capaci
dade do espírito.
Num segundo momento, mais fundamental que o pri
m eiro da ex-plicação, o hom em se pergunta pelo sentido
dessas manifestações humanas. A ciência e a técnica são
um modo de o homem se situar no m undo e o m undo no
hom em . Que significado possuem? Que visam eles? Que
procura o hom em com tudo isso? Pergunta-se pelo senti
do, que é mais do que uma ex-plicação científica. A per
gunta pelo sentido abrange a totalidade do fenôm eno cien
tífico. Como dizia com acerto um dos homens mais atentos
aos propósitos da ciência, Ludwig Wittgestein: “Mesmo quan
do tivermos respondido a todas as possíveis questões cientí
ficas, perceberem os que nossos problem as vitais nem se
quer foram tocados.”"
C o m o aparece D eus
no MUNDO
DA TEC N CTCIÊN CLA
D
eus não aparece em nosso m undo como um fenô
meno. Se tal acontecesse, ele também seria objeto
de análise e de ciência. Mas não seria o Deus divino d
Mistério, senão parte deste m undo objetivável, portanto
um ídolo (um objeto do m undo diante do qual nos pros
tramos e adoramos). Não sendo fenômeno, a ciência, com
razão, prescinde da hipótese Deus, como fator ex-plicativo
da realidade experimental. Buscar a Deus no nível do fe Todo o saber e todo o poder estão sustentados, por
nôm eno significa buscar nada e, se achar, achar um ídolo. tanto, por um Não-Saber e por um Não-Poder. Que é esse
Deus não surge explicitado e tematizado aí. Ele está, no Não-Saber e esse Não-Poder? Não é aquilo que chamamos
m undo técnico-científico, totalm ente ausente. Foi para o de Mistério? A ciência emerge, portanto, de um Mistério.
exílio. Retraiu-sc de forma completa. Mas essa retração deu Ela está à mercê de uma força e de um vigor que a levam a
chance para que aparecesse o ser hum ano no cenário da cam inhar cada vez mais célere, exacerbando sua vontade
história (a historicidade a que nos referíamos anteriorm en de tudo conhecer e tudo domesticar. Mas não pode do
te) e tudo o que ele pode em termos de saber, de poder e mesticar e apreender dentro das malhas de suas ciências e
de manipulação do captável por seus sentidos, ampliados de suas técnicas o De O nde e a Origem de seu poder e de
pelos aparatos tecnológicos. seu saber.
Já aqui se anuncia um a pergunta incôm oda para o Como dizia a sabedoria da antiga índia: “A força pela
espírito científico: De onde vem o vigor e a força do saber, qual o pensam ento pensa, não pode ser pensada.” A lín
do conquistar e do dominar? O ser hum ano se surpreende gua pode falar sobre todas as coisas, mas não pode falar a
tomado por esse instinto de saber e de poder. Responder força pela qual fala. O olho pode ver todas as coisas, mas
que isso vem cla natureza é dar um a resposta científica, não consegue ver a si mesmo. O espelho apenas nos dá
mas que não sacia a pergunta. Porque podemos perguntar um a imagem do olho, não o olho mesmo. Se quebro o
adiante: E de onde o tem a natureza? Das energias cósmi espelho que espelha m eu olho, não quebrei com isso o
cas que atuam a partir do vácuo quântico, sempre saturado meu olho. Que é esse olho que tudo permite ver e não se
de energia? E essas energias provêm de onde? Poderemos deixa ver? Que é esse Mistério sem nome? Que é esse Não-
levar ao infinito as perguntas e as respostas evasivas. No fi
Saber?
nal o ser hum ano deverá, humildemente, reconhecer: “Não
sei!” Ao responder assim, pode se considerar absolutamen Não chamaram todas as religiões e todos os místicos ao
te honesto. E o máximo que a perspectiva científica permi Inefável que se dá e se retrai em nossa existência, de Deus?
tirá dizer, mantendo-se dentro de seus limites científicos. Deus não é a palavra para dizer o Não-Palavra? Não diz o
salmo: “Em tua luz, Senhor, vejo a luz”? Por isso dizia o assim no m undo técnico-científico: velado, olvidado e si
Sábio: “Nomear o Tao é nom ear a Não-Coisa... O Tao é um lenciado. Mas como o sol e como a raiz ele está presente,
nom e que indica sem definir. O Tao está para além das sendo a força e a vida da vontade de saber e de poder.
palavras e para além das coisas. Não se exprime nem por
Para quem conseguir realizar semelhantes reflexões,
palavras nem pelo silêncio. O nde não existem nem mais o mundo, de repente, começa a se transformar num gran
palavras nem o silêncio, o Tao é apreendido.”1 de sacramento. Apesar de todo o seu aparato técnico, ele
O Deus-Mistério está no m undo técnico-científico, mas rem ete e aponta para um a realidade fundante que o su
retraído, olvidado, silenciado. Porque não se fala dele não porta. Não só algumas coisas do m undo técnico-científico
significa que não esteja presente ou seja negado. Ele está nos en-via-m. para Deus, mas tudo se torna via e nos convi
lá no pudor do silêncio. Deus é como a raiz de uma árvore. da para a via-gem para Deus - tanto as positividades quan
Vemos a árvore. Admiramos sua fronde. Comemos de seus to as negatividades, tanto as conquistas humanizadoras da
frutos. Estudamos sua natureza. Aquilo que não é visto na técnica quanto suas manipulações inumanas. Uma e outra
superfície da terra, a raiz, isso dá vigor e vida à árvore. A são suportadas pelo mesmo fundamento. Isso não significa
raiz não aparece à primeira vista. Ela está recolhida no si que Deus é responsável pelo mal no m undo técnico. Deus,
lêncio da terra. Quando comemos os frutos e descansamos já vimos, não está presente como um a causa segunda e
à sombra da árvore, não nos lembramos da raiz - mas é dela como um fenômeno. E o homem que causa a poluição e
que vem a seiva e, com a seiva, a vida. Deus é essa raiz e essa monta mecanismos de exploração globalizada. A força pe
seiva oculta. Deus é como o sol que brilha lá fora na nature la qual ele faz isso não é dele, mas lhe foi dada. E ele abu
za. Da sala iluminada pela luz do sol, não vemos o sol. Ao sou dessa força, por isso a responsabilidade cabe ao ser hu
enxergarmos, ao trabalharmos e ao movermo-nos à luz do mano. Ao invés de sentir-se en-via-do de Deus e dar-se conta
sol dentro da sala, raramente recordamos o sol. Ele é olvi de que ele não é o absoluto de si mesmo, atribui a si o
dado e silenciado. Nem por isso deixa de brilhar sobre aque poder fazer e o poder destruir. Não percebe que está à
le que dele se esquece menos ou mais do que sobre aquele mercê de Algo que não é ele e que o transcende continua
que dele se lembra e o nomeia em sua vida. Deus aparece mente. Por isso não age conforme os apelos que vêm do
Mistério, através de sua consciência, da racionalidade e da assim como o animal. Este possui órgãos especializados em
fraternidade, mas obedece à voz de si mesmo e de sua função de certos objetos que satisfazem suas necessidades.
desordenada vontade de auto-afirmação. Aquele, contu O animal possui um m undo circun-stante que é o seu habitat.
do, que conseguir vencer a tentação que o mal no m undo O ser hum ano, à diferença do animal, não está aberto para
técnico representa, para esse, o nosso m undo opaco e isso ou para aquilo do m undo, mas simplesmente para o
hominizado, onde só aparece o ser hum ano e seu traba m undo em sua totalidade.
lho, também se trans-figura e se torna diá-fano para a Raiz Contudo - e aqui aparece algo de novo - o m undo e a
que secretamente o vivifica e para o Sol que indiretamente cultura técnico-científica não satisfazem o impulso de aber
o ilumina: Deus. tura do homem. Nele há sempre uma plusvalia e um exces
Anteriormente lançamos a pergunta e a deixamos no so de impulso e de paixão que o deixam existencialmente
ar: Que sentido o ser hum ano busca realizar e viver quan sempre insatisfeito. Por isso está sempre elaborando novos
do se relaciona técnico-cientificamente com a realidade? mundos, excogitando novas interpretações, inventando no
O que se revela? A atividade técnico-científica revela quem vos métodos de conhecimento da realidade, criando formas
é o ser humano. Ele é, por excelência, um ser aberto para de sociabilidade e também contestando modelos sociais. Que
o m undo. Biologicamente é um ser-carência; não possui significa isso? Significa que sua abertura para com o m undo
nenhum órgão especializado; se quiser sobreviver, precisa é um a abertura total. Ela se concretiza no m undo junto com
trabalhar. Pelo trabalho transforma o m undo e cria a cultu outros, mas não se exaure nessa concreção. O ser humano é
maior do que o mundo. Nele há uma ânsia infinita. Nele
ra. A ciência e a técnica constituem as formas mais refina
arde um princípio-esperança que o impulsiona sem pre a
das de relacionam ento do ser hum ano para com o m un
criar e a se re-situar continuamente no mundo, sonhando
do, fazendo-o cada vez mais sua posse na satisfação de suas
no sono e na vigília com mundos cada vez mais humanos e
necessidades e da criação de sentidos de beleza e de arte.
fraternos até projetar utopias de suma felicidade e realiza
O m undo científico-técnico é a concretização da aber ção. O ser humano, homem e mulher, é um projeto infini
tura do ser hum ano. Mas ele não está aberto ao m undo to. Eis o que significa transcendência e imanência do ser
hum ano. Enraizado (imanência), se abre ao largo espaço Assum indo nossa historicidade (epocalidade), afir
infinito (transcendência). mando-a efetivamente, começaremos a apreender o senti
do originário de Deus que surge do coração e da latência
Q ue m otor é esse que o aciona para um a abertura dessa mesma historicidade. Deus então não está fora e sem
total? Se o ser hum ano é abertura infinita que alcança para o m undo; nem se confunde com o m undo. Mas em erge
além do m undo e da cultura, qual é seu correspondente como o fundam ento e o sentido escondidos do m undo
adequado? Só o infinito sacia um a ânsia infinita. A palavra técnico-científico. E um Deus real e vivo que está junto de
Deus exprime o infinito da abertura infinita do ser hum a nossa caminhada histórica. Ele aparece como aquele pon
no. Essa palavra só possui sentido se expressar o correspon to de convergência para onde tendem incansável e incons
dente da total abertura do homem. cientemente todos os nossos esforços.
O m undo técnico-científico, quando analisado na sua A ânsia infinita, por mais infinita que seja, só encontra
dinâmica interna, nos leva a colocar o problema de Deus. A finitos e só cria, na sua práxis transformadora, finitos. Quan
abertura para o mundo, encarnada na transformação técni to mais cria e exacerba seu saber e poder, tanto mais per
ca, é um mom ento que concretiza a abertura total do ser cebe que o infinito de sua ânsia não é factível nem fruto de
humano, sob a qual se esconde a abertura para aquilo que seu trabalho. Essa realidade vai revelando cada vez mais o
chamamos Deus. Além de um sentido para o próprio ser infinito para o qual a pessoa tende, infinito que não pode
hum ano na tarefa de assenhorear-se da natureza, a ciência ser reduzido ao ser hum ano ou a uma categoria humana.
e a técnica possuem um sentido mais profundo: elas signifi Vai aparecendo cada vez mais aquilo que não é hum ano,
cam a busca secreta, inconsciente e insaciável de um a Reali mas que é mais do que o humano. Emerge a dimensão do
dade Suprema que é mais do que a domesticação do m un Mistério como abertura total de compreensibilidade e de
do. Só percebe isso quem se engaja profundamente dentro futuro. As religiões, especialmente o cristianismo, em pre
deste mundo, quem não teme a mundanidade do mundo, garam o nome Deus para designar esse “Mistério supremo
quem tenta pensar radicalmente e até o fim aquele sentido e inefável que envolve nossa existência”, como diz o Concí
que está latente dentro da tarefa científico-técnica. lio Vaticano II (Nostra Aetate, n. 2).
O sentido presente na cientificidade de nosso m un para ele. Ele não é mais o mesmo na sua profunda opaci
do, enquanto a tarefa do saber científico e do poder técni dade. Ele se torna revelador de Deus e articulador do Sen
co implica um sentido realizado pelo ser hum ano, signifi tido. Ele começa a nos aparecer trans-parente para Deus.
ca, na sua profundidade, a presença do Sentido por exce Em tudo isso Deus se vela e re-vela, se dá e se retrai e vem
lência, isto é, a presença, retraída e silenciada, de Deus. É misturado com todas as coisas. Acolher a Deus que assim
essa presença do Sentido dentro do nosso modo próprio nos visita é abrir-se para a dimensão da fé. E crer. E, cren
de sentir o m undo que impossibilita um a linguagem do do, dizemos um sim radical ao Sentido latente descoberto
absurdo radical do ser. Toda compreensão absurda da rea no m undo em que vivemos.
lidade é rigorosamente contraditória porque tem que pro
var a não-absurdidade do absurdo. Com isso afirma um sen
tido.2 Deus não pode jamais ser banido nem do m undo
riem da linguagem. Ele se faz presente no próprio ato de
; querer bani-lo.
Ao perguntarmos, como o fizemos acima, pelo senti
do do m undo técnico-científico, não procurávamos aquilo
que não tínhamos encontrado. A reflexão nos mostrou que
já estávamos dentro do Sentido; só podíam os perguntar
porque já tínhamos sido surpreendidos e envolvidos pelo
Sentido mesmo. A reflexão apenas trouxe à memória aquilo
que estava dentro dela, mas vivia esquecido; fez-nos recor
dar que a luz provém do sol e que a árvore vive de uma raiz.
Não criamos o sol nem inventamos a raiz. Eles estavam sem
pre lá. A partir dessa experiência de Deus em contato com
o nosso mundo, podemos olhar com um a ótica diferente
60
6
C o m o a pa r ec e D eus
NA M O D E R N A C O SM O L O G IA
U
m dos campos de conhecimento que mais se desen
volveram a partir dos meados do século XX é segu
ram ente o da m oderna cosmologia. A cosmologia narra a
história do nascimento e do desenvolvimento do universo,
a partir dos muitos conhecimentos que acumulamos da as
trofísica, da física quântica, das ciências do caos e da com
plexidade, da ecologia, da psicologia, da m oderna antro
pologia. Esses conhecimentos vêm articulados com o passa-
63
do da humanidade, com as grandes tradições espirituais e grito dos pobres', podem os sumariar, da seguinte forma, os
religiosas e com os vários saberes elaborados pelas várias passos do teatro cósmico:
culturas. Tudo isso vem enquadrado dentro de uma visão
cvolucionista do universo. Daí surge uma nova imagem do Inicialmente havia um pontozinho quase imperceptí
universo, que m udou profundam ente nossa percepção das vel, im pregnado de energia originária. N ada existia, nem
coisas, do ser hum ano e também nossa experiência de Deus. espaço, nem tempo, nem matéria organizada. Num deter
Somos seres históricos, que um dia começamos e ainda não m inado mom ento, sem que saibamos o porquê, aquela quie
estamos prontos. Estamos todos em gênese, abertos para o tude prim ordial se quebrou. O correu um a inimaginável
futuro. Deus emerge de dentro dessa experiência cosmo- explosão. Tudo foi lançado em todas as direções, sob calor
lógica como o Futuro do mundo, como a Grande Promes de bilhões de graus e em incontrolável velocidade. Fótons
sa para o coração humano, como o Grande Atrator que nos se irradiaram , inaugurando o processo de expansão que
chama lá na frente. ainda está em curso. A energia originária se desdobrou nas
quatro forças que sustentam tudo: a gravitacional, a eletro
A nova cosmologia parte de um fato, talvez o mais sig
nificativo da história das ciências: a identificação da data de magnética, a nuclear fraca e a forte. Surgiram os primeiros
nosso nascimento. Foi captada, vinda de todas as partes do seres, os seis tipos de quarks que se estabilizaram e forma
universo, uma radiação cósmica de fundo (-3 graus Kelvin). ram os prótons e nêutrons. Três m inutos após a grande
Trata-se de um raio fraquíssimo, um a espécie de ruído explosão (big-bang), formaram-se os primeiros núcleos de
derradeiro, eco da grande explosão primordial, de onde átomos. Surgiu a primeira síntese, o hidrogênio e o hélio,
se originaram todas as coisas. É o famoso big-bang. Analisan encontráveis em todo o espaço cósmico. Após esses três
do-se a radiação das galáxias mais distantes, calculou-se que minutos, formaram-se grandes nuvens de gases. Após dois
essa incomensurável explosão tenha ocorrido há 15 bilhões a três bilhões de anos, elas se condensaram e se resfriaram,
de anos. E a nossa idade, pessoal e de todo o universo. Sem dando origem às grandes estrelas vermelhas. Em seu inte
entrar em detalhes e dispensando a fundam entação teóri rior ocorreram formidáveis interações, perm itindo o sur
ca, coisa que fizemos em nosso livro Ecologia: grito da Terra, gim ento de elem entos químicos mais pesados que o hi
drogênio e o hélio, imprescindíveis para a form ação da mais adequada, pois ela sugere o vazio e o nada. Mas a inten
matéria do universo e da vida, como o carbono, o silício, o ção é constatar que, com o irromper do big-bang, se manifes
magnésio, o oxigênio, o níquel, o ferro e outros. Essas gi tou um a fonte abissal de energia, o vácuo quântico. Efetiva
gantes vermelhas explodiram e se transformaram em super mente, alguns preferem chamá-lo de abismo alimentador de
novas. Elementos pesados foram ejetados ao espaço inter tudo (all-nourishing abyss) porque se trata de um vácuo sa
estelar e deram origem às estrelas de segunda geração, turado de energia ilimitada. Dele tudo sai - ondas de ener
como o nosso Sol, os planetas, os satélites e os corpos mate gia, partículas elementares - e a ele tudo retorna. Algumas
riais. Esses elementos formaram as galáxias, as moléculas, energias se estabilizam e aparecem como matéria, outras
as células, as águas, os dinossauros, os papagaios, os cavalos formam campos energéticos ou mórficos e então são cha
e os seres humanos. Todos somos inter-retro-conectados, madas de função de onda. Mas em todo esse processo se
form ando o grande sistema do universo, construído por verifica um a minuciosa calibragem de medidas, sem as quais
aqueles elem entos (cerca de cem) que se form aram em o universo e nós mesmos não estaríamos aqui para falar disso
bilhões de anos de trabalho cósmico. O universo é mais tudo. Quer dizer, para que existisse o céu sobre nossa cabe
ça e nós pudéssemos estar aqui, foi necessário que todos os
que o conjunto de todos os seres e energias existentes; é o
fatores cósmicos, ao largo dos 15 bilhões de anos, tivessem se
conjunto das relações que envolvem todos os seres e os fa
conectado, se equilibrado e convergido. Sem essa sinfonia,
zem interdependentes uns dos outros.
jamais teria surgido a complexidade, a vida, a consciência e
Um dia estivemos todos juntos, com o virtualidade, a nossa própria existência. Tal compreensão supõe que o
naquele núcleo primordial; em nossos elementos básicos, universo seja carregado de propósito e intencionalidade, im
fomos forjados nas estrelas, depois na Via-Láctea, no siste plica num Agente infinitamente inteligente por detrás da
ma solar e na Terra. Somos todos parentes e irmãos. Te ordem universal, apesar de todo o caos e das dizimações que
mos a mesma origem e, seguramente, o mesmo destino. estigmatizaram o universo e a Terra.
Os cosmólogos referem-se não apenas ao big-bang, mas Essa ordem fascinou cientistas como Einstein, Bòhm,
também ao vácuo quântico. Vácuo náo seja talvez a palavra Hawking, Swimme e outros. A consciência de Deus quer
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expressar essa ordem suprem a e dinâmica, sempre feita a Deus. Deus é sempre Mistério e Incognoscível. Mas Ele pode
partir do caos. Deus estava primeiro no universo, em nossa ser intuído pela razão devota e pode ser sentido pelo cora
galáxia, em nosso sistema solar, em nosso planeta, forman ção. Então, Deus foi Aquele que colocou tudo em marcha e
do ordens a pardr da desordem. E, porque estava lá, pôde, tudo alimenta. Portanto, Deus emerge não fora do processo
num dado m om ento da evolução, emergir na consciência cosmogênico, mas como um a exigência dele.
dos seres humanos. Mas não basta dizer que Deus está na raiz da existên
A hipótese do big-bang e do abismo alim entador de cia de todas as coisas. O utra questão importante é: Por que
tudo supõe que o m undo teve início e que um a Energia exatam ente nós e o universo existimos? Que Deus quer
poderosa o m antenha continuam ente no ser. Quem deu expressar com a criação? Responder a isso não é preocupa
o impulso inicial? Quem sustenta o universo como tudo e ção apenas da consciência religiosa, mas da própria ciên
cada coisa para continuarem a existir e a se expandir? O cia. Stephen Hawking, em seu famoso livro Uma breve histó
ria do tempo'2, revela a intenção de sua pesquisa cosmológica,
que havia antes do big-bang? O nada? Se havia o nada, como
que é conhecer o que Deus tinha em m ente ao criar o
surgiu algo? Do nada não vem nunca nada. Se, apesar do
inteiro universo. Sucintam ente podem os dizer que o sen
nada, apareceram seres, é sinal de que Alguém os chamou
tido do universo e de nossa própria existência consciente é
à existência e os alimenta perm anentem ente em seu ser.
sermos um espelho no qual Deus vê a si mesmo. Cria o
Talvez com modéstia e precaução, em respeito ao rigor universo com o desbordam ento de sua plenitude de ser,
científico, possamos responder: antes do big-bang não havia de bondade e de inteligência. Cria para se auto-entregar a
nada do que agora existe. Porque, se existisse, deveríamos algo distinto dele. Cria para fazer outros participarem de
perguntar: De onde veio? O que podem os sensatam ente sua superabundância. Cria o ser hum ano com consciência
dizer é: Existia o Incognoscível, vigorava o Mistério. Sobre o para que ele possa ouvir as histórias do universo, possa cap
Mistério e o Incognoscível, por definição, não se pode dizer tar as mensagens dos seres da criação, dos céus, dos mares,
literalmente nada. Ora, ocorre que o Mistério e o Incog das florestas, dos animais e do próprio processo hum ano e
noscível são os nomes pelos quais as religiões chamaram a religar tudo à Fonte originária de onde procedem.
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O universo e cada ser dentro dele se encontram em relação. Ele comparece como o Futuro absoluto, o Ponto
gênese. Não acabaram de nascer. Por isso vêm carregados Ômega de realização de todas as promessas presentes na
de virtualidades ainda não realizadas. O universo e especial criação. Como tudo tem a ver com tudo em todos os pontos
m ente o ser hum ano representam um a prom essa e um e em todas as circunstâncias, tudo tem a ver com a Fonte
futuro. A tendência de tudo é poder realizar-se e mostrar originadora de tudo. Todas as coisas comungam entre si e
as potencialidades que carrega dentro. Por isso, a expan com ungam com Deus. Deus é um Deus-comunhão. Essa
são significa tam bém criação. Deus se m anifesta dentro constatação servirá de base para entendermos depois a ex
desse processo, anim ando, atraindo e fazendo convergir. periência cristã de Deus como comunhão de Pessoas divinas
Ele é o Ponto Omega, o grande Atrator de todas as ener que se fazem presentes dentro do processo da evolução.
gias e de todas as formas de matéria para um a culminância
na qual a promessa se transforma em realidade e a virtua
lidade em ridente concreção.
Como nom ear esse Deus-Mistério-Incognoscível a par
tir de nossa compreensão do universo em expansão? O pri
m eiro que nos ocorre é chamá-lo de Energia Suprem a,
consciente, ordenadora, sustentadora, amorosa. Podemos
compreendê-lo como Paixão infinita de comunicação e ex
pansão, pois o universo é cheio de movimento em equilí
brio, criando o tempo, o espaço e todos os seres na medida
em que se dilata indefinidamente. Deus irrompe como Es
pírito que perpassa o todo e cada parte, porquanto tudo é
sutilm ente interdependente e apresenta um a ordem que
continuam ente se cria a partir da desordem inicial e que
se abre para formas cada vez mais abertas e superiores de
70
C o m o a pa rece D eus
N O M U N D O O P R IM ID O
d a A m é r ic a L a t in a
O
m undo da tecno-ciência a que acenamos na parte
anterior constitui o horizonte mais visto de nossa exis
tência, situada na América Latina. Nossa historicidade abor
da cientificamente e não mais mítica ou metafisicamente
o m undo. Usamos de todas as formas de tecnologia para
agilizarmos as forças produtivas e acumularmos bens e ser
viços, em bora injustamente repartidos. Dentro desse hori-
zonte mais vasto se articula, historicamente, um outro, aque A América Latina comparece como um continente subde
le sob o qual vivemos na América Latina. Como ele se rea senvolvido e retardatário em relação aos países opulentos
liza entre nós? Antes de mais nada, vale constatar que pre do hemisfério norte. Uma reflexão sócio-analítica mais vi
dom ina na gente de nível popular um a interpretação re- gilante constata que esse subdesenvolvimento é o sub-pro-
ligioso-mítica do m undo. Tudo isso possui seu inestim á duto do desenvolvimento desses países, que têm interesse
vel valor e representa um a dimensão perm anente de todo político em nos manter, por força, no sub-desenvolvimen-
ser hum ano, pois o hom em técnico-científico tam bém é to. Vivemos num verdadeiro regime continental de depen
un sauvage et primitif nas estruturas fundam entais de seu dência e de captividade. Somos periferia dos grandes cen
saber. As várias experiências que fez em contato com o tros metropolitanos de decisão que se situam em Nova York,
m undo - a mítica, a metafísica e agora a científica -, não Londres, Paris, Bonn e não em Brasília, Buenos Aires, San
devem ser interpretadas diacronicamente. Elas são janelas tiago ou Cidade do México.
da alma hum ana pelas quais vemos a multiforme paisagem Essa m anutenção opressiva no subdesenvolvimento é
da realidade. Devem pois ser interpretadas sincronicamente resultado de cinco séculos de colonização, neocolonização
com o estruturas atuais de nossa m ente, pelas quais nos e hoje globocolonização. Somos atrelados a um sistema glo
orientamos no mundo. Tal reflexão se faz im portante para bal de relações econômico-sociais, hoje globalizadas, que não
fazermos justiça à realidade que vivemos no continente la controlamos e que nos dita o que devemos produzir, o que
tino-americano. consumir e o que exportar. Não é aqui o lugar para deta
Entretanto, a singularidade é também para nós o es lharmos a crítica a esse sistema de convivência hum ana e
pírito científico-técnico. Mas ele é vivido na América Lati de relacionamento com os bens de produção e consumo.1
na sob a forma de um drama perverso. O saber científico e Certo é que seu espírito e as motivações predom inantes
o poder técnico não são entidades inocentes e neutras. Nem centralizadas na busca do lucro, do proveito e do interesse
revelam apenas a forma como o ser hum ano dialoga com a individual, assentados na propriedade privada dos meios
realidade. Mas, historicamente, foram e são usados como de produção, no papel hegem ônico do dinheiro-capital,
instrum ento de dominação e de opressão de outros povos. na livre empresa, na comercialização do trabalho do ho
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mem, na sistemática depredação dos recursos escassos da anual de 47% da população mais pobre do mundo. A con
natureza e na mercantilização de tudo, são terrivelmente seqüência dessa injustiça que clama ao céu faz com que
inumanos e geram um a qualidade de vida extrem am ente 850 milhões de pessoas passem sistematicamente fome e
pobre, anêmica e violenta. A organização do poder se arti sobrevivam na insegurança alimentar; um terço destas não
cula de tal forma que corrobora continuamente o fortale chega aos quarenta anos. A contradição não se situa mais
cimento das minorias ricas sobre as maiorias pobres. A ex entre leste-oeste, vale dizer, entre capitalismo e socialismo,
ploração ou, pelo menos, o uso do homem pelo outro ho mas entre o norte opulento e o sul miserável. Os dados da
mem, assume, muitas vezes, formas desapiedadas com alta superexploração de um lado sobre o outro são aterrado
taxa de iniqüidade social. res. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimen
to, a que já nos referimos, dava conta de que em 1990 os
Para não sermos abstratos, arrolaremos alguns dados.
fluxos do norte para o sul foram da ordem de 54 bilhões
Dos cerca de seis bilhões de pessoas existentes hoje, 1,3
de dólares na forma de investimentos, empréstimos e aju
bilhão vivem com menos de um dólar diário e mais de dois
das. Ao passo que as transferências do Terceiro M undo para
bilhões com apenas dois bilhões de dólares, segundo da
o Prim eiro equivaleram a quinhentos bilhões de dólares
dos do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
no mesmo ano. E as proporções até o presente só têm au
(PNUD) do ano 2000. Os bens e serviços são pessimamen
mentado.2 A América Latina está enchafurdada nesse labi
te distribuídos. Os 20% mais ricos da população mundial
rinto histórico que nunca se resolve.3
consomem 93% de todos os produtos e serviços, enquanto
os 20% mais pobres consomem apenas 1,4%. O fosso entre No Brasil, os dados são também dramáticos. Os 10%
uns e outros aum enta ao invés de dim inuir. A diferença mais ricos concentram 50% da riqueza nacional; os 50%
entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres do m undo mais pobres detêm apenas 10%; 40% da população brasi
cresceu de 30 a 1 em 1960, para 61 a 1 em 1991 e para 78 leira vive abaixo da linha de pobreza; e cinqüenta milhões
a 1 em 1999. Os 225 indivíduos mais ricos do mundo, dos de brasileiros não conseguem ter um a alimentação suficien
quais sessenta são norte-americanos, têm uma riqueza com te. O Brasil, pelo olhar imparcial da ONU, está entre os
binada de mais de um trilhão de dólares, igual à renda últimos lugares do m undo com referência ao índice de
Desenvolvimento Hum ano.4 Esse achatamento dos salários finição, é inalcançável, porquanto em transformação cada
encontra sua contrapartida na extrem a concentração da vez mais rápida. Com acerto observou Celso Furtado, o
renda em reduzidíssima parcela da população. Entre 1998 m elhor economista brasileiro:
e 1999 a proporção de pobres aum entou de 32,7% para
33,9%, segundo o IPEA. O Brasil, sempre batendo recor A experiência já demonstrou que, se se aumenta o esforço
des, em matéria de pobreza e desigualdade, m antém 55,6 para andar mais rápido e reduzir a distância do alvo perse
milhões de brasileiros vivendo com menos de cem reais guido, a deformação estrutural se acentua, pois uma acu
por mês. Cerca de três milhões tornaram-se pobres no ano mulação mais intensa em benefício de uma parte da popu
da desvalorização do real em 1998.5 Relativamente a esses lação amplia o fosso que existe entre as condições de vida
dados, temos que 56% da população se encontram na fai da minoria beneficiada e as da massa, fosso que é a essência
xa da marginalidade absoluta (capacidade de consumo res mesma do subdesenvolvimento. Cabe inferir, portanto, que
a melhoria efetiva das condições de vida da massa da popu
trita à alimentação básica) e 75% da população na faixa da
lação dos países do Terceiro Mundo, particularmente dos
marginalidade relativa que consiste na capacidade de con
de grande dimensão demográfica, somente será alcançada
sumo não superior ao estrito atendim ento das prim eiras
por outros caminhos. A índia nunca será uma Suécia de
necessidades.1’ O m odelo brasileiro diretam ente beneficia um bilhão de habitantes, nem o Brasil uma reprodução dos
pequena m argem da população, que tem suas riquezas Estados Unidos.7
enorm em ente aumentadas. A participação no produto so
cial, teoricamente aberta a todos, é feita capilarmente por
Esses parcos dados ilustram a elevada taxa de iniqüi
apenas 5% da população.
dade hum ana que o sistema capitalista comporta. Nem se
O desenvolvimento não é definido em termos de in quer arrolamos o desastre ecológico, em nível mundial, que
dependência e auto-sustentação a partir das próprias for está provocando danos sobre todos os ecossistemas e o siste-
ças, mas em termos de aproximação ao paradigma dos paí ma-Gaia. Algo deve estar profundam ente errado na opção
ses opulentos do hemisfério norte, paradigma que, por de por semelhante sistema global, que se instaurou e está se
globalizando em todos os recantos da Terra. Essa situação “Estão mal batizados”, com enta Marcuse, “enquanto acei
faz um a provocação terrível para a experiência de Deus. tam e obedecem ao evangelho libertador somente num a
Como se revela Deus em sem elhante situação? Dissemos form a altam ente sublimada - que deixa a realidade sem
anteriorm ente que Deus emerge a partir da história que liberdade como estava antes.”8
vivemos. Sobre ele não temos um a ciência previam ente
construída aplicável à nossa situação. Que face mostra Deus J. L. Segundo, teólogo uruguaio e um dos críticos mais
dentro de nosso m undo inumano? lúcidos do caminho da evangelização na América Latina,
fazia uma constatação também dolorosa:
Há que considerar a imagem de Deus vinculada ideo
logicamente pelo sistema. Justifica a situação. O sistema ca
Ao revelar o sistema capitalista - no decurso de seu desen
pitalista apresenta a Deus como aquele Ser Supremo que
naturalm ente estabelece as classes, onde haverá sem pre volvimento - toda a sua dimensão de dominação inumana,
ricos e pobres. Prega um Deus que manda observar as leis o cristão não encontra na experiência de sua vida social
da natureza, entendendo-se a fome pela vantagem pessoal, nenhum elemento que lhe sim para pensar o Deus que se
a concorrência e a livre empresa como decorrentes da lei revelou em Jesus Cristo. Mais ainda, seu ajuizamento do
natural. Anuncia um Deus que m anda obedecer a ordem sistema social o leva necessariamente à crítica de uma no
estabelecida, não se perguntando se essa ordem não pode ção de Deus em que se projeta a falsa imagem criada por
rá ser, como efetivamente está sendo, ordem na desordem uma ideologia de dominação. Nesse sentido podemos di
e fruto do egoísmo de grupos de interesse. Trágica para a zer que nunca como hoje tem sido tão difícil conceber exis-
fé se tom a a situação quando nos damos conta de que os tencialmente o Deus cristão.'1
próprios conceitos fundamentais do cristianismo foram as
similados como suporte justificador do sistema de opres Não obstante isso, observamos: quem é o Deus cristão
são, como humildade, obediência, honestidade, paciência, não o sabemos a priori, senão assumindo os desafios dessa
carregar a cruz de Cristo, pobreza, renúncia, amor incondi situação de captividade. Dentro dela se revelará um rosto
cional, etc. Freud dizia que os cristãos estavam mal batizados. novo do Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo.
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vezes mais crer nessas coisas que pronunciar vosso nome.
Deus se faz presente na América Latina por um a du
Fora delas é impossível que eu alguma vez vos encontre e
pla ausência extrem am ente angustiante. A dependência
aqueles que as tomam por guia estão sobre o caminho que
opressora, a marginalidade de milhões, a miséria hum ilhan
os conduz a vós.”111
te, a ganância insaciável de uns poucos, a violência dos tra
ficantes de drogas e armas despertam em nós sede de jus
tiça, fome de participação, ânsia de fraternidade e desejo O Deus que assim aparece é o Deus inversus. Ele emer
imenso de criação de estruturas sociais que impeçam para ge do contraste. Q uanto maiores forem as trevas, m aior
sem pre a exploração do hom em pelo hom em . Porque será o resplendor da Luz. Mas essa Luz nos julga e nos con
entrevemos a justiça, sofremos com a injustiça estrutural. dena. Não permite que fiquemos inativos face às injustiças
Porque vivemos na ânsia da solidariedade, penamos sob o que clamam ao céu e face à miséria que Deus não ama e
regime de discriminações. Porque estamos banhados pelo por isso não quer.
amor, nós nos debatemos com a desumanização das rela A segunda ausência, mais dolorosa que a primeira, tor
ções sociais. A justiça, a solidariedade, o am or estão presen na também Deus presente pelo contraste. É a ausência de
tes na ausência deles como fato histórico. Não é porven Deus concreto, vivo e verdadeiro naqueles que usam em
tura Deus o símbolo lingüístico para dizermos a justiça, o seus lábios o nome de Deus e o veneram em seus templos.
amor, a participação, a com unhão, a solidariedade? Deus O cristianismo é a religião por excelência do continente
só possui sentido existencial se for o pólo de referência da subdesenvolvido. Deus é nomeado, venerado, suplicado na
justiça, do am or, da fraternidade hum anos. Admiravel publicidade oficial da vida. Mas a fé em Deus e em Jesus
mente o exprimiu o francês H. de Lubac, um dos maiores Cristo não chegou à sua plena explicitação cristã. Ficou
teólogos do mundo: muito presa ao modelo da religiosidade arcaica. Nela os
deuses querem ser servidos pelos seres humanos. Estes fo
. Se eu falto ao amor ou se falto à justiça, afasto-me infalivel- ram feitos para servir a Deus. A fé cristã, como se articulou
> mente de vós e meu culto não é mais que idolatria. Para de form a definitiva e escatológica no cam inho de Jesus
crer em vós, devo crer no amor e crer na justiça, e vale mil Cristo, afirma que Deus não quer ser servido nele mesmo
sem o ser nos outros. Servir o outro, no qual está Deus, é o mo se designa cristianismo. Na verdade este últim o, na
imperativo de Jesus Cristo e a novidade da experiência cris práxis concreta da experiência da fé, se nega a si mesmo,
tã de Deus. E fácil servir diretamente a Deus - essa ação não embora continue a servir-se de toda a linguagem e temática
com prom ete ninguém . Servir o próxim o em quem Deus cristã. Aquele que nega o cristianismo sociológico na Amé
está nos compromete porque o próximo não é uma abstra rica Latina, porque foi usurpado pelo poder estabelecido
ção, mas é alguém situado num m undo onde pode haver como sua legitimação ideológica, mas busca a justiça, a par
miséria, injustiça gritante e egoísmo deslavado. Amar o pró ticipação e a libertação, está mais próximo do cristianismo
ximo pobre e doente, hum ilhado e explorado, nos com teológico e do Deus vivo e verdadeiro do que aquele outro
promete e nos obriga a tomar posição. Só quem ama o ou que professa a Deus e Jesus Cristo e assume toda a ortodo
tro ama a Deus; só quem se engaja em sua libertação é que xia católica, mas fechou os olhos e endureceu o coração à
serve ao Senhor da história; “quem não ama seu irmão a dolorosa marginalidade de milhões, à exploração instituí
quem vê, não é possível que ame a Deus a quem não vê” da em sistema e à repressão aceita como legal.
(IJo 4,20). Por aí se entende a identidade que João estabele
Estas afirmações, escandalosas para o status quo religioso
ceu entre o amor a Deus e o amor ao próximo (cf. IJo 4,20s).
e social, não nos devem causar estranheza. Estão na melhor
O cristianismo vivido geralm ente na América Latina tradição jesuânica e profética. Quando Cristo quis explicar
não fez essa virada tipicamente cristã. O Deus venerado e quem era o próximo, quando se admirou da fé de um seu
proclamado é antes um ídolo do que o Deus vivo que in ouvinte e quando quis explanar o que é a prontidão obe
terpela. Por isso se presta para sacramentalizar um a situa diente, não tomou exemplos dentre as pessoas piedosas ou
ção inum ana e abafar, com a usurpação do nom e sacros dentre as de sua religião revelada, mas tomou pessoas fora
santo - Deus, reservado ao Mistério que penetra toda a desses quadros oficiais. Citou o herege samaritano, a mulher
realidade -, a consciência, incapaz de se distanciar critica pagã siro-fenícia e o estrangeiro centurião romano. Há uma
m ente da situação e de detectar sua estrutura opressora. negação do cristão que é um a forma de resgatar o sentido
Daí não podermos identificar o cristianismo teológico com originário e divino do cristão. Estas reflexões, parece-nos, se
o cristianismo sociológico, isto é, com aquele que a si mes fazem urgentes e necessárias no contexto latino-americano,
dada a manipulação ideológica a que está sujeito o cristianis Deus num a m era categoria antropológica. Contrapor hori
mo pelas elites dominantes. zontalismo a verticalismo é objetivar e hipostasiar fora da
vida aquilo que na vida concreta vem sempre junto. Com
, Deus não aparece apenas na ausência." Em nosso con isso torna-se o cristianismo abstrato e, por conseguinte, his
texto humano de subdesenvolvidos se configura também um toricamente ineficaz. A vida mesma, a libertação, quando
rosto positivo de Deus. Ele emerge a partir do processo de afirmadas radicalmente e assumidas com toda a responsa
libertação efetivo, do engajamento para superar estruturas bilidade, mostram a dimensão vertical e horizontal, a ima
injustas, a começar por aquelas mais difíceis de serem supe nência e a transcendência. Q uando captadas juntas, elas
radas, que são as mentais. Ai aparece o significado originário nos abrem para a transparência de Deus no coração de
de Deus. No seio dessa diligência começa a aparecer, como
nossas lutas.
num a clareira, a força que sustenta o engajamento, a luz
que ilumina a obscuridade das opções e o sentido de todos Portanto, só quem se entrega de corpo e alma a servi
os sacrifícios; começa a emergir Aquilo que é maior do que ço do próxim o, hum ilhado e ofendido, começa a perce
nós, que nos impulsiona como sede de justiça, fome de soli ber um a dimensão que transcende o próximo e a ele mes
dariedade, angústia de fraternidade e que se constitui como mo. Dá-se conta de que está envolto por um a energia po
pólo de referência de nossos anseios. Quando tal experiên derosa que o circunda, o penetra, o transcende e lhe pos
cia irrom per e tiver a capacidade de nos sustentar, então sibilita a tarefa do am or social, do engajamento e da liber
em ergiu aquilo que chamamos Deus e experim entam os tação. Aí se verifica a verdadeira transcendência e o orto
Deus em sua dia-fania histórica. Se isso não acontecer, então doxo verticalismo: emerge o Mistério que nós chamamos
Deus de fato não tem realidade existencial, porque não tem D eus.12
relação com o ser hum ano e com suas buscas. Ele está aí, A esse Mistério podem os nom ear, no balbucio reve
mas sua presença não é captada e vivenciada. rente e no pudor santo, podem os chamá-lo por aquele
Entregar-se, portanto, à tarefa da libertação não é re nome que resume todos os nosso anseios: Deus libertador,
duzir o cristianismo a um mero horizontalismo e traduzir Deus vivo e vivificador, Deus da ternura dos humildes e da
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iracúndia sagrada contra as injustiças que assassinam seus
filhos e filhas. Reverenciamo-lo como Aquele que nos apon
ta para o futuro. Amamo-lo como a nossa esperança. A Ele
nos agarramos como a força do combate e o consolo no de
samparo da repressão. Essas são todas palavras humanas que
estão no dicionário, mas querem fazer presente Aquele que
nenhum dicionário pode conter e nomear, o Mistério de C o m o D eus em er g e
Deus, experim entado no concreto da vida e no contexto N A C A M IN H A D A PESSOAL
das tribulações de nosso continente latino-americano.
D
as reflexões que articulamos até aqui, deve ter fica
do claro que Deus não constitui um objeto entre ou
tros diretam ente experienciável. Deus em erge da radica-
lidade da experiência do mundo. O discurso sobre Deus é
um discurso qualificado sobre o mundo, um discurso sobre
o mundo enquanto nos apercebemos que ele não é a última
instância, mas vem sempre remetido e suportado por algo
que se ilumina dentro dele, mas que não é ele. Concretiza-
mos essa abordagem mostrando como Deus surge dentro tir, mas fica no nível das vivências subjetivas do mistério de
da experiência de nosso m undo técnico-científico e de nos Deus. Deus não é “visível”, nem “audível” nem “acessível”
sa realidade latino-americana e brasileira oprimida. só na experiência mística. Se assim fora, Deus seria o privi
légio e o luxo de alguns iniciados e não o sentido que
A pessoa hum ana vive circunstanciada dentro desse pervade toda a existência, por mais cotidiana que se apre
duplo horizonte. No entanto, ela não se deixa enquadrar sente. Daí poder-se experimentar Deus sempre e em qual
simplesmente dentro desse m undo acima descrito. Possui quer situação, a partir do mom ento em que atingirmos a
sua caminhada pessoal. E um a síntese única e própria da profundidade da vida, lá onde ela mostra um a abertura
história. Nisso reside sua sacralidade e dignidade. É uma e absoluta que ultrapassa todos os limites e que, por isso, com
única. Faz a sua experiência do m undo e, no coração dele, parece como o Transcendente em nós.
do mistério do mundo, isto é, de Deus.
Como se faz essa experiência de Deus na cam inhada
Esta experiência de Deus na dia-fania do m undo1, não pessoal? Pode existir um a espécie de mistagogia, quer di
nos cansamos de repeti-lo, não é uma vivência de um objeto zer, uma via de iniciação? Aqui pisamos terra virgem. “Ca
ou uma experiência ao lado de outra experiência. A expe minhante, não há caminho! O caminho se faz caminhan
riência de Deus não deve ser imaginada como uma experiên do”, dizia o poeta espanhol Antonio Machado. Como não
cia de ver um pôr-do-sol e, ao lado disso, como a experiência podemos substituir ninguém nem viver a vida de alguém
de um a dor de dente.2 Se assim fora, Deus seria um fenô outro, também aqui ocorre algo semelhante: cada qual, na
meno do mundo. Deus não é encontradiço em nenhum a cam inhada de sua existência, deverá fazer a experiência
parte. Daí insistirmos que Deus só se torna real e vivo se da raiz que lhe alimenta a vida. Podemos, contudo, acenar
emergir da radicalidade da experiência do mundo, como para a seriedade da vida e con-vocar para descobrir Aquilo
sentido, como mistério que suporta o mundo, como força que já está presente, embora de forma oculta, em sua vida.
libertadora dentro de nosso engajamento por mais justiça Talvez alguém se dê conta de que aquilo que experimenta
e hum anidade. Nem a experiência de Deus consiste em na vida nunca foi verbalizado em termos de experiência
ter visões, audições e enlevos místicos. Tudo isso pode exis de Deus. Sobre Deus, imagina bem outra coisa, pode ser
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até de forma errônea. Apesar dessa possível falsa interpre cotididanas, porque possuímos uma confiança não reflexa
tação, devemos dizer que Deus realm ente pode ser expe- nem tematizada na bondade da vida. Esta é dramatizada
rienciável por aqueles que nem presum em isso. Mas eles pelo caos existencial, pela traição do amigo, pela mentira,
experimentam o mistério da vida, o sentido profundo que pelo ódio, pelas doenças e, finalmente, pela morte. Mas
a pervade, o secreto apelo para um Mais em tudo o que apesar de tudo não desistimos de viver, de nos levantar cada
sentem, vivem e fazem. Sob essa experiência se esconde m anhã e recomeçar o dia-a-dia. Há uma dimensão gratifi-
aquilo que deciframos como sendo Deus. Os acenos aqui cante na vida, que, apesar das contradições, não pode ser
esboçados não pretendem descrever um a experiência de destruída. E verdade que não podemos defini-la exatamen
Deus, apenas chamar a atenção para um possível caminho te nem circunscrevê-la a algumas situações privilegiadas.
a ser aberto no qual Deus pode irromper. Sempre que pretendem os apanhá-la, ela nos escapa, pois
sua estrutura é a gratuidade e o seu puro acontecer. E por
causa dela que continuamos a viver, mesmo no meio das
a) D eus c o m o e x p e r iê n c ia d a b o n d a d e piores desgraças, o que deslegitima qualquer tentativa de
E DO SENTIDO RADICAL DA VIDA suicídio. O suicida, em seu gesto extremo, busca um senti
do que a vida lhe nega e que ele, através da morte, presu
Deus emerge do coração da vida, dizíamos anterior me encontrar. Por isso, para ele, a morte não é um proble
mente. Ele vem misturado com as coisas. Ele é a interpre ma, mas uma solução. O absurdo absoluto representa uma
tação última daquilo que o ser hum ano experim enta em contradição lógica. A afirmação do absoluto absurdo não
sua radicalidade. Mas não só aí emerge Deus. Como Ele passa de um desejo impossível. A afirmação de um absur
está sempre presente em tudo, então Ele se comunica tam do absoluto não pode ser absurda. Deve fazer sentido. Logo
bém na banalidade da existência. Aí também se concretiza há sempre um superavit de sentido em tudo o que fazemos
o sentido originário da vida e, por isso, de Deus. Todos e pensamos. E assim é porque vigora uma bondade de base
fazemos, por exemplo, a experiência da bondade radical no universo e da vida. Essa bondade da vida nunca pode
da vida.3 Entregamo-nos confiantes ao trabalho e às tarefas ser totalmente destruída nem negada. Ela não é outra coi
sa senão Deus mesmo, em ergindo dentro da experiência do sobre o descoroçoam ento e se im põe a luz sobre o
hum ana. negrum e das trevas. E por causa do sentido que transcen
de as finalidades imediatas e supera os sentidos captáveis
A partir daí podemos dizer: atrás da dúvida e da nega que o ser hum ano sem pre retom a a cam inhada da pró
ção de Deus que todavia possam existir, há uma outra dúvi pria história e consegue suportar a m onotonia do cotidia
da mais radical ainda: Existe Alguém que me aceita total no e o aparente vazio da rotina do dia-a-dia. Na verdade,
mente assim como sou? Quem nega a Deus, não nega tan esta se encontra saturada de um sentido latente, sentido
to a existência de uma Última Realidade, mas a possibilida que a faz suportável. Deus deve ser pensado a partir dessa
de de ser aceito. Afirmar a Deus é acolher implicitamente experiência do sentido. Ele é aquela Luz na qual vemos a
Alguém m aior que me aceita e que me ama. E este Al luz. Deus em erge nas palavras da prostituta quando diz:
guém é o derradeiro consolo e o sentido fundamental de “Reze por mim, padre, para que tudo dê certo. Vou tra
todo o viver. balhar mais um pouco, vou ainda me vender por um ano.
Essa bondade fundam ental do viver se apresenta Depois, já devo ter pago m eu apartam ento. Vou ser mu
com o experiência de sentido. Não criam os o sentido. lher de um hom em só. Vou ter meu marido, meus filhos.
Vou am ar e sofrer. Mas irei am ar e sofrer como gente.
Q uando perguntam os pelo sentido, já nos descobrim os
Deus é Pai e vai me ajudar a sair desta vida de miséria.”
dentro dele. Somos carregados por ele ao assumirmos com
Quem fala assim, fala a partir de um profundo sentido.
seriedade as pequenas e grandes coisas da rida, a rotina
Para aquele que entende, é Deus que assim faz a sua
do cotidiano, a convivência com o outro, a responsabilida
parusia na rida dessa pessoa.
de da profissão. Apesar de todas as frustrações, apesar do
desm oronam ento de todas as seguranças, apesar da des O favelado trabalha duro para ganhar o salário míni
truição de todas as máscaras, apesar do inevitável abando mo. E tido por um zero econômico e social. Os filhos se
no e traição de valores vitais, apesar de toda a imensidão multiplicam. Crescem por aí como bichinhos. Ele sente-se
das negatiridades humanas, triunfa o sentido sobre o ab açulado pela pobreza extrema. Apesar da miséria inumana,
surdo, vence a convicção da ordem fundam ental do m un tem um senso de dignidade que transluz no m odo como
recebe o outro. Não perdeu a religião, a alegria de viver, a b) D eus c o m o e x p e r iê n c ia d o v a z io d a v id a
sensibilidade pela necessidade do vizinho doente, a dimen
são da solidariedade humana. Há nele uma sabedoria que Não experimentamos a cada m om ento nossa fragili
escola alguma, a não ser a da vida, pode comunicar. “Deus dade? Tudo o que fazemos e construímos, mesmo com a
fez o m undo bem feito”, diz ele. “Fez de um jeito que, um m elhor boa vontade e pureza de coração, é fugaz. Pode
dia, todos serão realmente iguais. Fez um a coisa que nin estragar-se ou ser mal compreendido. Nossa harm onia in
guém pode comprar. O milionário compra o que deseja e terior está sempre por se elaborar. Nunca é uma conquista
vai para onde quer. Deus inventou uma coisa que faz com que nos satisfaça plenamente. No fundo de todo o nosso
que todos sejam iguais e que ninguém pode comprar. Isso agir palpita sempre uma ansiedade que nenhum psicana
ele manda de graça: a morte. O milionário pode comprar lista pode erradicar, pois ela é ontológica. Há uma última
um caixão de jacarandá. Mas ele também m orre e é enter solidão que fere o coração de existência. Regiões e mo
rado num palmo de terra, igualzinho ao mais pobre dos mentos de nossa vida existem em que ninguém pode estar
pobres. Deus fez tudo bem feito, com a invenção da mor ao nosso lado. E jamais poderá estar. Devemos assumir sozi
te. Por ela todo o m undo é feito igual e irmão. Quer quei nhos, num a radical e solitária responsabilidade, o destino
ra, quer não.” Poder falar assim é viver a partir de um a de nosso caminhar. A finitude que sentimos só é possível a
dimensão de profundidade. A alegria lhe advém. A sensi partir daquilo que não é finitude. Só a partir do ilimitado,
bilidade pelo outro e o senso de solidariedade acontecem sentimos nossa limitação. Só quem vive a liberdade sofre
na vida desse favelado. Não é Deus que se manifesta? Deus com a escravidão. Quando sentimos e sofremos o limite, já
não aparece exatam ente nessa dimensão? A nossa obje- estamos tam bém para além dele. Surpreendem o-nos no
tivação de Deus como um Ente Supremo impede-nos de horizonte aberto do infinito. Estamos sem pre enquadra
ver essas manifestações da vida hum ana com ad-vento e dos num a situação dada, mas ao mesmo tempo nos auto-
e-vento divinos. Mas devemos habituar-nos a experimentar transcendemos e nos superamos a nós mesmos. Somos eter
Deus que nasce assim dentro da vida hum ana - mesmo a nos protestantes face a tudo o que encontram os à nossa
mais banal. volta ou que nós mesmos temos construído. A experiência
de nosso limite, de nosso muro, de nossa fragilidade, num a dente do amor. Se observarmos bem, o que amamos quan
palavra, de nossa imanência, nos con-voca para a experiên do amam os outra pessoa? E algum a coisa determ inável
cia do ilimitado, da abertura total e do absoluto. Esta expe como a beleza, a inteligência, a meiguice, a bondade, a
riência é condição daquela. Não é porventura a infmitude, sintonia com nós mesmos? Mas, se assim fora, não amaría
o ilimitado, o absoluto o nome que damos ao Mistério que mos a pessoa, mas alguma coisa da pessoa. Na verdade,
se anuncia dentro dos quadros de nossa vida? Não é a dia- amamos a misteriosidade da pessoa, misteriosidade que se
fania sofrida de Deus que detectamos? manifesta em tantos gestos e em tantas dimensões identi
ficáveis, mas que também deixam sempre a ser descoberta
a realidade intrigante da pessoa amada. Esse mistério é vivo
c) D eus c o m o e x p e r iê n c ia d a p l e n it u d e d a v id a e pessoal, transcende totalmente as determinações e con-
creções da pessoa. Por que a linguagem dos namorados se
Não fazemos a experiência do am or como experiên aproxima da linguagem do divino, nas juras de amor eter
cia daquilo que acontece em nós, mas que é maior do que no, de absoluta fidelidade e entrega irrestrita? Não é por
nós? Sentimo-nos amados pelo outro num a absoluta gra que o que está em jogo no amor é o mistério do amor, o
tuidade, gratuidade que acolhe nossa fragilidade e aceita fascínio da transcendência viva, isto é, Deus mesmo? O amor
nossa profunda limitação que, de per si, poderiam matar o hum ano é revelação, mais ainda, é com unicação desse
am or ou tirar as razões para o outro continuar amando. E, Amor maior. A pessoa é o lugar e a manifestação encarna
contudo, acontece o amor. Não amamos também nós de da do Deus do amor e do amor de Deus e seu e-vento de
um a form a que não pode ser justificada por um funda doçura na história dos homens. Quem é Deus na sua últi
m ento racional, acolhendo a historicidade e a pequenez ma profundidade, só podemos apreendê-lo a partir da ex
do outro, suas negatividades, o fato absoluto de que ele periência do amor. Dessa experiência deu prova o Novo
Testamento ao afirmar que “Deus é am or” (IJo 4,8).
passou pelo nosso caminho e se deu o milagre do encon
tro? Ninguém preparou nada. Ninguém marcou a encru Por isso o amor faz a dolorosa experiência: o tu huma
zilhada. E contudo existe o milagre do encontro surpreen no não é a última instância; ele não satisfaz a exigência do
O
. /
coração por um Tu absoluto. O tu hum ano se ordena ao medida que vai caminhando, também se vai abrindo o ho
Tu absoluto; é sua presença sacramental; é figurativo de rizonte da pergunta e se vai construindo a autodefmição
um outro Amor. O tu hum ano deve juntar-se ao eu amado pessoal.
e, juntos, colocar-se na direção do Tu absoluto. Então o
amor se tom a perfeito, porque morre para si mesmo a fim A experiência última do homem não é mais homem;
de ressuscitar num Amor maior, que é o próprio Deus. é a experiência daquilo que transcende o homem; é a ex
periência do Mistério. Cada homem, por mais pecador e
Deus emerge também em toda a experiência do ou miserável que seja, não pode apagar a Transcendência que
tro. Diante do outro não estou diante de um objeto que se torna transparente em seu semblante. Ele é sempre maior
posso logo enquadrar em algum esquema. Não há ficha do que todos os seus crimes; maior do que todos os seus
que possa captar totalmente a pessoa hum ana. Ela nunca arroubos de am or e de mística. Nele flui uma torrente de
se ajusta adequadam ente a um a situação nem pode ser bondade, palpita um a profundidade misteriosa, irrom pe
definida a partir de suas circun-stâncias. No fundo, cada um além que constitui a perm anente diafania de Deus no
pessoa é uma pessoa, única e irrepetível. Ela, pela sua sim mundo. Por isso, o ser hum ano assoma como o maior sacra
ples presença, significa um a convocação para a Transcen mento de Deus. Eis de onde provém toda a sacralidade da
dência viva. O ser humano, já o dissemos tantas vezes, re pessoa humana; daí toda a sua respeitabilidade; daí a iden
presenta um projeto infinito e um mistério aberto sobre o tidade afirmada por Cristo entre o am or ao próximo e o
inteiro universo. Esse mistério não é o resíduo do ainda am or a Deus. O am or não é m andam ento m eram ente
não conhecido ou pesquisado. Mas é exatam ente aquilo voluntarístico: assim é porque Deus simplesmente o quer.
que antecede a todo o conhecim ento e se mostra ainda Deus o quer porque ele é o mais im portante que existe. E
m aior após todo o conhecim ento. Que é o ser humano? o ser hum ano é o lugar de sua aparição e realização privile
Não é uma pergunta cuja resposta se exaure pela aborda
giada e consciente.
gem da ciência. Trata-se de uma questão existencial e não
teórico-crítica. Por isso cada qual deve responder por si Já há muito que biólogos renomados como Hum berto
mesmo, ao longo da cam inhada da própria existência. À M aturana e Fritjof Capra vêm afirmando a base biológica
do amor. Ele se encontra na estrutura de toda realidade, nos diante de Deus, também experim entado como Misté
que é sem pre urdida de relações, de cooperação, de co rio de sentido, de luz e de enternecimento.
m unhão e de inclusão. O am or é aquela força que tudo Poderíamos alongar-nos indefinidam ente na análise
liga e re-liga e que permite que as coisas formem um cos de situações existenciais, nas quais transparece a realida
mos e não permaneçam no caos. Portanto, o amor possui de divina. Todas essas experiências, que se dão na cotidia-
um fundam ento ontológico: sua inclusão na estrutura da nidade da vida, são, na verdade, articulações da única ex
própria realidade objetiva. No ser humano, esse dado obje periência unitária, articulações daquilo que nós cham a
tivo se transforma num projeto assumido com consciência mos Deus. Deus, portanto, não vem de fora, nem se dá
e em plena liberdade. Através do amor, Deus mesmo conti somente em situações privilegiadas da vida, mas está sem
nua se auto-doando e fazendo história dentro da história pre presente na trama de toda a existência. Emerge, tor
humana, pessoal e coletiva. Amando o outro, na radicalidade, na-se ad-vento e e-vento.
estamos amando a Deus. “Se viste a teu irmão, então viste a
Pode haver m om entos de absoluta gratuidade nos
Deus”, disse um dos primeiros teólogos cristãos, Clemente
quais não se pergunta mais: sabe-se que Deus aconteceu
de Alexandria (Stromateü 1,19), ainda no século segundo.
na vida. Irrom pe um a harmonia, uma derradeira quietu
A experiência de Deus no ser hum ano deve, sempre de interior, um a unidade de todas as coisas, ligadas a uma
de novo, superar a tentação de uma compreensão fechada única raiz de onde vivem, ex-istem e sub-sistem. Podem
da realidade humana. Seguramente o ser hum ano é aqui acontecer momentos assim na vida. Talvez após um longo
lo que dele podemos saber, detectar, analisar, decifrar com processo catártico; após penosas crises; quem sabe, no co
o auxílio da observação pessoal ou com o recurso ao apara ração de uma vida alienada e pecaminosa. Deus pode emer
to das ciências. Mas nesse esforço permanece algo não dito, gir não mais como pergunta nem como resposta ao questio
não analisado, não decifrado no dito, no analisado e no nar irrequieto do coração. O ser hum ano experim enta,
decifrado. Essa sobra representa a misteriosidade inalcan- então, sua grandeza infinitamente maior do que aquela do
çável da realidade humana. Ela funda a base para colocarmo- cosmos; sente-se o sacerdote de toda a criação; agradece o
102
fato de poder viver; dá graças e canta loas em nom e de
tudo e de todos; pode então invocar o Mistério que experi
menta: “Senhor, apesar de toda pequenez, posso deixar
que tudo penetre em mim, posso distender-me para o mais
distante do universo. Num momento posso tomar tudo em 9
minhas mãos e tudo te oferecer como num a missa cósmi
ca, louvar-te como o Senhor, dar-te graças porque posso A EXPERIÊNCIA
dar graças e dizer: Aconteça o que acontecer, das profun c r is t ã d e D eu s
dezas de meu nada e do fundo dos infernos, não deixarei
de te louvar e eternam ente te agradecer.”
Se isso acontecer, saiba, então, que Deus terá irrom
pido em sua vida. Ele há de lhe ser mais real do que sua
própria realidade humana; há de existir mais seguram en
te do que você mesmo existe. Pois armou tenda em você o
Absoluto. Revelou-se o que lhe concerne definitivamente
e lhe dá o sentido de todo o viver. É nessa oportunidade À té aqui tentamos articular a experiência de Deus que
que você talvez faça a experiência mais gratificante da vida: J lkSe ('tétua na vida humana. Não se falou propriam en
sentirá a necessidade de agradecer e saberá a quem diri te ainda da experiência cristã de Deus. Há um a experiên
gir-se: a Deus. cia tipicamente cristã de Deus? Ou melhor: Como se mos
trou o Deus do Mistério no caminho de Jesus Cristo, funda
mento do cristianismo?
Muito abstratamente podemos dizer: no cristianismo
articulou-se a experiência do Mistério como história do Misr-
105
tério. O Sentido não ficou di-fuso, pro-fuso e con-fuso dentro amor do homem de Nazaré são o perdão e a aceitação de Deus
da realidade. Ele armou tenda entre nós e se chamou Jesus mesmo. Nele transcendência divina e imanência hum ana se
Cristo (cf. Jo 1,14). O Mistério é tão radicalmente Mistério que encontram, fazendo que ele seja transparente a Deus.
pode, sem perder sua identidade, fazer-se carne e história.
Essas afirmações podem significar um escândalo para
Ele pode subsistir totalmente num Outro diferente dele. Se
todas as filosofias e teologias apofáticas, vale dizer, aquelas
assim não fora, não mostraria sua onipotência nem seu cará
que negam qualquer valor às nossas afirmações acerca de
ter de Mistério. Então, sendo vida, ele pode morrer. Fazen
Deus. Parecem blasfemas para quem afirma a total não-ob-
do-se morte, ele pode viver. Ele pode, sendo impalpável, fa
jetividade do Mistério; soam idolátricas para quem afirma a
zer-se palpável; sendo invisível, fazer-se visível; sendo Criador,
absoluta transcendência do Mistério sem possibilidade de
fazer-se criatura. Diz o apóstolo João: “O que ouvimos, o que
se acercar à nossa condição im anente. Contudo nos per
vimos com nossos olhos, o que contemplamos e o que as nos
guntamos: Sabemos o que é o Mistério? O Mistério se dá no
sas mãos apalparam tocando o Verbo da Vida - [...] Vida
compreensível e no incompreensível, no além e no aquém,
eterna que estava com o Pai e nos foi manifestada - o que
na história e na superação da história. Isso significa: perten
vimos e ouvimos vo-lo anunciamos...” (I Jo 1,1-3).
ce ao Mistério fazer-se totalm ente outro dele mesmo. O
A fé cristã, como mostra esse texto joaneu, testemunha Totalmente Outro do Mistério é sua kénose, vale dizer, sua
a história de Deus que, sendo Infinito e Transcendente, se auto-negação e humilhação. Isso é fazer-se criatura, escravo;
fez finito e imanente como uma parte de nosso mundo. Ce de escravo, um crucificado; de crucificado, um condenado
lebra a absoluta auto-comunicação de Deus; canta a radical aos infernos. Esse foi o caminho de Jesus Cristo, foi o cami
proximidade do Mistério; alegra-se com a benignidade de nho do Deus inversus (cf. F1 2,6-8). Com isso entrou uma nova
nosso Deus. A benignidade, a proximidade e a auto-comuni possibilidade da linguagem religiosa: é a linguagem que
cação são experimentadas como amor irrestrito, bondade sem narra a história deste evento, do evento da doçura e da jovia
limites, perdão pleno e presença misericordiosa de Deus lidade divinas que, por amor ao ser humano, se humilha e
dentro da própria realidade humana. Esta se torna diáfana, vai até o fim (cf. Jo 13,1). Como ocorreu esta história de Deus
transparente. A vida do hom em Jesus é a vida de Deus; o encarnado no mundo?
a) A exp eriên cia de D eu s de Jesus de N a za ré desde 587 a.C. Até 538 a.C., da Babilônia. Até 331 a.C., da
Pérsia. Até 323 a.C., da Macedônia de Alexandre. Até 197
Se Deus em erge de dentro de nosso m undo, como a.C., do Egito dos Ptolomeus. Até 166 a.C., da Síria dos
emergiu de dentro do m undo de Jesus de Nazaré? É situan Selêucidas. Em 64 a.C. cai sob a esfera do imperialismo ro
do Jesus dentro de seu mundo que aparece a originalidade mano. No ano 40 de nossa era, Herodes, filho do ministro
de sua experiência de Deus.1 Certamente o Deus de Jesus idum eu de Hircano, Antípater, por decreto do Senado é
de Nazaré é o Deus da experiência dos pais da fé abraâmica proclamado rei dos judeus. Era um rei pagão, sustentado
do Primeiro Testamento. Mas também é um Deus experi pelo centro, Roma. Essa dependência exterior era inter
mentado de uma maneira profundam ente diversa, porque nalizada pela presença das forças de ocupação, pelos cobra
a encarnação de Deus não visa sancionar o que já sabíamos dores de impostos, pelo partido dos saduceus que faziam o
dele senão revelar-nos definitivamente quem e como Deus jogo da política romana. Mas também pela presença da cul
realmente é em si mesmo. Não podemos olvidar que o mó tura romano-helenística que tornava a opressão mais odiosa
vel últim o da condenação de Jesus não residiu tanto na e aviltante, dado o caráter religioso e segregacionista dos
discordância com os fariseus quanto à interpretação da Lei, judeus. Depois da m orte de Herodes, o reino é dividido
mas pelo fato de Jesus ter apresentado um Deus de amor e entre seus filhos (cf. Lc 3,1-2); posteriormente, ajudéia passa
de perdão, um Pai com características de mãe, portanto, a ser governada por um procurador romano.
devido a uma experiência diferente de Deus. Sócio-econom icam ente, a Galiléia, terra de Jesus e
cenário principal de sua atividade de pregador am bulan
a) Um mundo oprimido interior e exteriormente te, é uma região bem ocupada e trabalhada pela agricultu
ra. A profissão da família de Jesus era a de um téknon que
O mundo em que viveu Jesus de Nazaré era profunda podia significar tanto carpinteiro quanto cobridor de te
m ente oprim ido sob um regime geral de dependência, lhados. Trabalho havia para todos, mas o bem-estar não era
herdada de há muito tempo.2 A Palestina vivia na depen grande. Desconhecia-se o sistema de poupança, de sorte
dência e na periferia dos grandes impérios, praticamente, que um a carestia ou doença m aior provocavam êxodos
rurais em demanda de trabalho. Os diaristas, então, se amon facilmente sinais em todas as coisas, prenunciando a ins
toavam nas praças das cidades (cí. Mt 20,1-15) ou se punham tauração do Reino de Deus e a liquidação de todos os ini
a serviço de um grande proprietário ate saldarem suas dívi migos do povo.
das.3 A lei mosaica que dava ao primogênito o dobro dos A verdadeira opressão, contudo, não residia na pre
demais acarretava, indiretamente, o crescimento de assala sença do poder romano, mas na interpretação legalista da
riados que, não encontrando emprego, se tornavam um religião e da vontade de Deus corroborada especialmente
verdadeiro proletariado, composto de mendigos, vagabun pelos fariseus.4 A lei, que devia auxiliar a encontrar o cami
dos e ladrões. Havia ainda os ricos possuidores de terras, nho para Deus, degenerara com o peso das tradições, das
que espoliavam os camponeses na base de hipotecas e ex
interpretações rabulísticas e das minúcias mesquinhas, numa
propriações por dívidas não pagas. O sistema tributário era terrível escravidão imposta em nome de Deus (cf. Mt 23,4;
pesado e detalhado; havia imposto para quase todas as coi Lc 11,46). Cristo chega a desabafar: “Fico bobo de ver como
sas; sobre cada membro da família, terra, gado, plantas fru
vocês conseguem esvaziar o m andam ento de Deus, para
tíferas, água, carne, sal e sobre todos os caminhos. Herodes,
fazer valer a tradição de vocês” (Mc 7,9)! Tudo era medido
com suas construções faraônicas, em pobreceu o povo de
em termos de lei - quem é próximo e quem não o é, quem
form a extrem am ente sensível.
é puro e quem não o é, quais são as profissões mal-afama-
A dominação estrangeira constituía para o povo uma das - gerando discriminações sociais. Os fariseus observavam
verdadeira tentação para a fé nas promessas e no senhorio tudo ao pé da letra e aterrorizavam o povo, obrigando-o a
de Deus sobre o m undo a partir de Jerusalém. Os vários também observar tudo estritamente. Diziam: “Maldito o zé-
movimentos de libertação, especialmente o dos zelotas, ten povinho que não conhece a lei” (Jo 7,49). Embora perfei
tavam preparar ou até provocar, com a violência, a inter tíssimos, possuíam um a distorção fundamental, denuncia
venção salvadora de Deus. Quanto maior era a dependên da por Jesus: “Não se preocupam com a justiça, com a mi
cia e opressão, mais intensa ainda ardia a esperança e a sericórdia e com a boa fé” (Mt 23,23). A lei, ao invés de
expectativa da intervenção iminente de Deus (cf. Lc 3,15), auxílio, se tom ou uma prisão dourada, mas sempre prisão.
exacerbada pela bizarra fantasia dos apocalípticos que viam Querendo se auto-assegurar cla salvação, o ser hum ano se
fechou sobre si mesmo contra os outros e, por fim, contra o os oprimidos, para anunciar um ano de graça do Senhor”
Deus vivo. Para o fariseu, viva é a Lei e não Deus. Transmi (Lc 4,18-19)/’ Ele grita para todos: “O prazo da espera expi
tia um conceito fúnebre de Deus, pois Ele não se fazia pre rou. O Reino de Deus está aí. Mudem de vida! Acreditem
sente, era como se estivesse morto e tivesse deixado como nesta Boa Notícia” (Mc 1,15).
testamento um amontoado de leis e normas a garantirem
Face a um a situação global de opressão interior e ex
a além-vida no seio de Abraão. Os que viviam à margem
terior, Jesus encontra Deus como total libertação. Reino
dessa com preensão legalística se consideravam perdidos,
de Deus é a palavra-chave que exprime sua experiência.
desesperados e abandonados por Deus e, ainda, socialmente
Deus resolveu intervir e pôr termo a esse m undo sinistro
difamados. Os doentes eram instruídos a interpretar suas
dominado por forças adversas ao hom em e a Deus. Reino
doenças como pecados pessoais ou de seus antepassados.
Triste e verdadeiramente oprimida era a condição hum a de Deus significa o sentido radical para esse mundo, livre
na quando Jesus começou sua atividade pública. do pecado, do ódio, do sofrimento e da morte. A utopia,
objeto de anelo de todos os séculos, agora se realiza como
ridente acontecimento, pois as doenças já estão sendo cu
b) Deus experimentado como libertação
radas (cf. Mt 8,16-17), o luto já se transforma em alegria (cf.
e absoluto sentido
Lc 7,11-17), os elementos da natureza já não são mais inimi
Nesse pano de fundo deprimente e opressor emerge gos (cf. Mt 8,27), os pecados são perdoados (cf. Mc 2,5), os
a figura de Jesus de Nazaré. Dentro dessa situação ele vive demônios são exorcizados (cf. Mt 12,28) e a morte está sen
e experimenta Deus. Como lhe aparece Deus em sua vida? do banida para sem pre (cf. Mc 5,39). Deus, o sentido do
Deus nasce em sua experiência como o Libertador dessas m undo, reconciliado e transfigurado, eis o que a expres
opressões. Sua primeira palavra é de libertação: “O Espí são Reino de Deus quer significar. Por isso “felizes vocês, po
rito está sobre mim, porque me ungiu para proclam ar a bres, porque o Reino de Deus lhes pertence; felizes vocês,
boa-nova aos pobres. Ele me enviou para pregar aos cativos que padecem fome, porque serão fartos; felizes vocês, que
a liberdade, aos cegos a recuperação da vista, para libertar agora choram, por que irão rir” (Lc 6,20-21).
í 12
Não se trata mais de libertações regionais, seja políti trita e minuciosa a estilo dos fariseus? Os evangelhos mos
cas, seja religiosas. A criação toda será libertada em todas as tram duas dimensões de Jesus totalmente paradoxais: uma
suas dimensões. Isso não constitui apenas anúncio proféti extremamente rigorista e outra liberal.b Por um lado, apre
co e utópico; profetas judeus e pagãos de todos os tempos sentam Jesus que em nom e de Deus faz exigências mais
sonharam e pregaram o advento de um novo mundo. Nes duras do que aquelas dos fariseus. Ele é um rigorista: não
se nível do anúncio, Jesus se enfileira na lista dos grandes apenas o matar, mas já o irritar-se faz alguém ser réu de
profetas da hum anidade. Mas não é nisso que reside sua juízo (cf. Mt 5,21-22); não apenas o adultério consumado,
originalidade. Ele realiza utopia. Não diz: “O Reino virá”, mas já o olhar cobiçoso faz alguém adúltero (cf. Mt 5,27-28);
mas “o Reino já foi aproximado” (Mc 1,15; Mt 4,17) e já está “se o olho direito for ocasião de escândalo, arranca-o e joga-
em vosso meio” (Lc 17,21). Ele experimenta Deus presente o para longe; se a mão direita te escandalizar, corta-a e
agindo e ultimando sua vitória final, através de sua procla atira-a para longe de ti” (Mt 5,29-30). Todo o teor do ser
mação e ação de profeta, curador e taum aturgo: “Se eu mão da m ontanha radicaliza as exigências da Lei, levando
expulso demônios pelo dedo de Deus, sem dúvida, o Rei a observância ao nível do impossível para o pobre homem
no de Deus chegou a vós” (Lc 11,20). Ele se experim enta mortal. Por outro lado, os evangelhos mostram um Jesus
agindo em nom e de Deus, porque se sente o mais forte soberano face à lei a ponto de ser considerado laxista pelos
que vence o forte (cf. Mc 3,27). Aqui está a novidade pere piedosos do tempo que se escandalizavam (cf. Mt 13,53-58).
ne de Jesus. Com ele Deus está em nosso meio. Não se incomodava com a observância rigorosa do sába
do; mais im portante que o sábado é a pessoa hum ana (cf.
c) Deus experimentado como Pai e Mãe Mc 2,23-26; Lc 6,6-10; 13,10-17; 14,1-6; Mc 2,27). Ele e seus dis
de infinita bondade cípulos não eram ascetas como os discípulos de João (cf.
Mc 2,18); acusavam-no de glutão e beberrão (cf. Lc 7,34;
Essa presença do Reino exige total adesão. Há que Mt 11,19); critica a distinção de próximo e não-próximo (cf.
estar aberto para o Deus presente. Mas que face possui esse Lc 10,29), porque “próximo é todo aquele de quem eu me
Deus? E ainda o Deus da Lei que cobra a observância irres aproximo, tanto faz se judeu ou pagão, santo ou celerado ,
fulmina, sobranceiro, as leis de purificação: não é o que te da boca de Jesus) e quer dizer “Papaizinho”, linguagem
entra, mas o que sai do ser hum ano que o faz impuro. O familiar e íntima, exprim indo toda a intensidade afetiva
que entra não passa pelo coração, mas passa para o estôma da experiência de Jesus. “Jesus falou com Deus como uma
go e acaba parando na privada (cf. Mc 7,19). Acolhe todo o criança fala com seu pai, cheia de confiança e segura e, ao
mundo, especialmente os que eram considerados pecado mesmo tempo, respeitosa e disposta à obediência.”7 Com
res públicos, como os exatores de impostos, com quem come esse Deus-Pai nos relacionamos com incondicional amor e
(cf. Lc 15,2; Mt 9,10-11), doentes e leprosos (cf. Mc 1,41), uma total entrega. Não basta cumprir a Lei. O amor não conhe
herege samaritana (cf.Jo 4,7). Prefere os publicanos, as pros ce limites; alcança para além das leis; torna estas até absur
titutas e os pecadores aos piedosos e teólogos (cf. Mt 21,31). das, porque o amor não é objeto de legislação. Daí nunca
No Evangelho de João encontramos esta frase libertadora podermos estar satisfeitos no nosso amor para com Deus e
de Jesus: “Se alguém vem a mim, eu não o mandarei em para com o próximo. Somos sempre devedores. Jesus eli
bora” (Jo 6,37). minou de vez a consciência satisfeita de quem presume ter
Como se há de entender este paradoxo: por um lado cum prido todo o dever para com Deus; a consciência de
rigorista e por outro liberal? Se tomarmos a Lei como me estar em dia com Deus e de poder cobrar dele a promessa
dida de julgam ento, não conseguiremos entender o para que fez ao seu povo e aos que o amam. Jesus dizia: “Depois
doxo, porque um elemento exclui o outro. Esses dois as de terem feito tudo o que está prescrito, vocês devem di
pectos opostos só são compreensíveis e revelam sua unida zer: ‘Somos simples empregados; fizemos apenas o que era
de interior se considerarmos a experiência típica que Je o nosso dever’” (Lc 17,10). Eliminou qualquer título de gló
sus fez de Deus. O rigorismo, na verdade, não é rigorismo ria e de mérito perante Deus, quando desclassificou o fariseu
da Lei; é um rigorismo que ajuda a abandonar a absolu- que se gabava de suas boas obras e deu razão ao publicano
tização da Lei e confiar-se a um Deus que está acima e para que batia no peito e apenas dizia: “Meu Deus, tenha com
além da Lei. Jesus fez a experiência de Deus não como juiz paixão de mim que sou um pobre pecador” (Lc 18,13).8
vigilante da Lei, mas de Deus como Pai de infinita bonda Por mais que façamos, somos sempre devedores diante de
de. Abba é a ipsissima vox Jesu (palavra que vem diretamen Deus. O rigorismo de Jesus se entende não a partir da ob-
servância da Lei, mas a partir das exigências do amor que miseri-cor-dioso” (Lc 6,36). Um dos traços mais característi
não suporta, sem m orrer, limites de qualquer natureza. cos da experiência do Deus de Jesus consiste no fato de ele
ser misericordioso. Ser misericordioso significa ter entra
O fariseu é rejeitado porque, fazendo obras boas, dan nhas e um coração sensível como tem um a mãe. Por pior
do esmolas e jejuando, se julga justo. Ninguém deve se que seja seu filho, ela sempre o acolherá e abraçará em seu
reputar justo e bom. Só Deus (cf. Lc 18,19). Diante de Deus, perdão. O que saiu de suas entranhas, jamais será esqueci
somos todos publicanos, isto é, pobres pecadores. Reconhe do e negado. Por isso, as características do Abba, de Deus-
cermo-nos pecadores, nos faz justos; reconhecermo-nos jus Pai, são femininas. Deus-Pai é somente e plenam ente Pai
tos, nos faz pecadores. É o que nos ensina a parábola do quando também é Mãe de infinita misericórdia e bonda
publicano e do fariseu (cf. Lc 18,9-14). O rigorismo não é, de. Isso nos permite que falemos de Deus-Pai-e-Mãe ao nos
portanto, da lei, mas do amor. referirmos ao Deus da experiência de Jesus.
À luz de Deus como Pai amoroso se entende o libera Jesus não é liberal e laxista porque come com os peca
lismo de Jesus. Não se trata de desobediência à lei e anar dores, deixa que os impuros se aproximem dele e porque
quia moral. E a forma do amor que superou as divisões que se detém a conversar com um a pecadora conhecida na
a lei havia introduzido entre puros e impuros, próximos e cidade (cf. Lc 7,36ss). Com essa atitude consciente Jesus quer
não-próximos, bons e maus. O amor é irrestrito: ama tudo mostrar o amor que Deus tem a todos esses mal-afamados.
e todos. Pois é assim que Deus ama: “Ele é bondoso para Ele está amando como o Pai ama, pois ele faz a experiência
com os ingratos e maus” (Lc 6,35). Ele ama indistintamente de am or e bondade do Pai. Seu Deus é o Deus do filho
a todos, pois “faz nascer o sol sobre os maus e bons e faz pródigo (cf. Lc 15,11-32), o Deus que corre atrás da ovelha
chover sobre os justos e injustos” (Mt 5,45). Para o am or não tresmalhada (cf. Lc 15,4-7), o Deus que perdoa os dois deve
há mais puros e impuros, não há mais próximos e não-pró dores que não tinham com que pagar (cf. Lc 7,41-43), o Deus
ximos, não há mais bons e maus. Todos são dignos de amor, do patrão bom que paga bem tanto os que trabalharam
porque Deus fê-los dignos de seu amor. Daí se entende o mais quanto os que trabalharam menos (cf. Mt 20,1-15). Para
apelo de Jesus: “Sede miseri-cor-diosos como vosso Pai é Jesus, pobres não são apenas os economicamente pobres,
mas todos os que sofrem alguma opressão, como as prosti próximo e, ao mesmo tempo, para além deste mundo. Vê
tutas e os doentes crônicos, os que não podem defender- sua ação em todas as coisas e se sente unido a essa ação:
se por si mesmos, os desesperançados, os que acham que “Meu Pai continua a trabalhar até agora, por isso eu tam
não têm mais salvação.9 Todos esses devem sentir Deus como bém trabalho” (Jo 5,17).
Pai bondoso e Mãe misericordiosa que perdoa a culpa e
Essa imediatez da experiência de Deus que nós ante
convida para a com unhão com Ele.
riorm ente chamávamos de transparência de Deus, confe
Jesus não transmitiu um a doutrina sobre a bondade re a Jesus uma visão contemplativa da vida. Ele não lê o
infinita de Deus-Pai-e-Mãe. Ele mostrou essa bondade sen m undo profanam ente, mas sem pre em sua referência a
do ele mesmo bondoso, circulando com os pecadores e Deus que não está ligado a lugares privilegiados, ao tempo,
dando confiança aos desamparados social e religiosamen a ações litúrgicas, ou a orações, mas está presente em todos
te. Não faz isso por puro humanitarismo, mas como tradu os tempos e lugares. Ele empapa a realidade com sua mis
ção concreta de sua experiência de Deus como Pai e amor, teriosa presença. Vê todos os lírios dos campos, as aves do
como graça e perdão. Porque se sente totalmente amado céu, a semente que é semeada, contempla a videira e um
e aceito pelo Pai, ele também aceita e am a a todos: “Se campo cultivado... mas vê na profundidade essas realida
alguém vem a mim, eu não o mandarei em bora” (Jo 6,37). des todas. Elas recordam Deus que veste os lírios dos cam
pos e alimenta os pardais; a semente é a Palavra de Deus;
d) Jesus possuía uma visão contemplativa do mundo Deus é o agricultor, ele é a videira e nós somos os ramos.
Em tudo lê a vontade de Deus, não apenas na Lei e nos
Jesus não se apresenta como um teólogo que reflete e Profetas. Sua experiência de Deus-Pai-e-Mãe presente é
expõe uma doutrina sobre Deus. Ele age com absoluta ime- tão intensa que se abandona inteiramente aos seus cuida
diatez e evidência de Deus. Deus não é fruto de raciocí dos. Ele cuida de seus filhos e filhas, com o comer, o vestir
nios. Nem se chega a ele através de um a iniciação mistagógi- e o morar. Quer libertar as pessoas das preocupações pelo
ca. Deus lhe é transparente, um a evidência experimental, am anhã (cf. Mt 6,24-34).
Podemos dizer que todas as dimensões da vida, positi conexão com este m undo, portanto transparente, no in
vas e negativas, são para ele pro-vocações para remeter-se a terior de um a experiência concreta. A realidade de Deus-
Deus. Ouve, na crônica da época, do desfalque de um ge Pai-e-Mãe em erge quando o ser hum ano se torna capaz
rente de firma e como foi esperto para safar-se bem dessa de descobrir no outro um filho e um a filha de Deus e um
situação penosa (cf. Lc 16,1-12). Isso lhe serve de compara irmão e um a irmã sua. Aqui reside novamente um traço
ção para explicar as ocasiões que nos são oferecidas para característico da experiência de Deus feita por Jesus. Ele
m udar de vida. Um assaltante age de surpresa, sem aviso não usa a palavra Deus sem vinculá-la concretam ente ao
prévio. Essa constatação lhe sugere a vinda repentina do ser hum ano. Os judeus usavam a palavra Deus justifican
Filho do Homem (cf. Mt 24,43-44). As parábolas todas evi do com ela o ódio ao inimigo (cf. Mt 5,43) , as divisões en
denciam como ele sabia tirar um a lição divina dos fatos tre puros e im puros, assim como nos tem pos atuais os
mais corriqueiros da vida. Isso só é possível para quem se fundamentalistas muçulmanos usam Deus-Alá para legiti
dim ensiona contem plativam ente face à vida. Esta não é m ar seu terrorism o contra o O cidente. Deus era usado
vazia nem profana. Ela é penetrada pela presença de Deus- como instância superior em si, a partir da qual julgavam a
Pai-e-Mãe e Amor. Ela não é nem transcendente nem ima existência. Deus para Jesus em erge exatam ente dentro
nente. Ela é transparente para Deus. Jesus vivia a imediatez da vida e no relacionam ento com os outros. Cada pessoa
dessa presença. vale mais do que tudo (cf. Mt 6,26); é mais im portante que
a observância do sábado pela qual o povo eleito acredita
e) Deus-Pai-e-Mãe leva a descobrir filhos va participar da celebração do Sábado que Deus mesmo
e filhas como irmãos e irmãs com seus anjos celebrava nos céus (cf. Mc 2,27); cada pes
soa é mais im portante que o culto (cf. Lc 10,30-37), que o
Como é de fato Deus-Pai-e-Mãe, aparece no relacio sacrifício (cf. Mt 5,23-24; Mc 12,33); vale mais do que espeta
nam ento com as outras pessoas. Jesus não fala de Deus culares objetivos revolucionários (cf. Mt 11,12), mais do que
em si, como um a grandeza metafísica e fora do m undo, ser piedoso e observante das sagradas leis e tradições (cf.
portanto transcendente. Refere-se a Ele sem pre num a Mt 23,23).
Deus quer ser servido nos outros e não tanto em si voluntarismo divino. É assim porque simplesmente Deus
mesmo. Sempre que se fala do am or a Deus, fala-se tam quis. Existe um a razão mais profunda, na ordem mesma
bém do amor ao próximo (cf. Mc 12,31-33; Mt 22,36-39 par.). É do ser: Deus está presente de tal m aneira no mistério do
no am or ao próximo que se decide a salvação. Quando al hom em que am ar o outro já inclui am ar a Deus. Desde
guém pergunta a Jesus o que se deve fazer para lograr a que Deus mesmo se fez um próximo, o amor ao próximo é
salvação, ele responde citando os mandamentos da segun também amor a Deus. À luz disso, entende-se que o amor
da tábua, todos referentes ao próximo (cf. Mc 10,17-22). Je se estenda também ao inimigo. Por pior que seja uma pes
sus increpa os fariseus porque não se preocuparam “com o soa, ela não consegue ofuscar a beleza que encerra, pelo
mais grave da Lei: justiça, misericórdia e boa fé” (Mt 23,23). fato de Deus estar sem pre presente dentro dela. E essa
Isso não é simplesmente humanismo secular, como pode presença divina que faz amável até o inimigo, o ingrato e o
ria parecer à primeira vista. É o único e verdadeiro huma pecador (cf. Lc 6,35).
nismo, de transfundo divino, porque Deus mesmo se identi
ficou com os mais necessitados (cf. Mt 25,31-45), com as criatu
ras mais marginalizadas e desprezadas (cf. Mt 25,35-40). Elas f) Deus continua Pai-e-Mãe
são a epifania de Deus, o lugar onde ele marcou o encontro mesmo no extremo abandono
que significa salvação eterna. A bondade de Deus nada possui do rom ântico que
São João irá traduzir maravilhosamente a unidade do tudo justifica e simplesmente aceita. Antes, pelo contrário:
am or ao próximo com o amor a Deus, presente na prega sua bondade é outra bondade, diante da qual todos somos
ção de Jesus: “Se alguém disser: ‘Amo a Deus’, mas odeia imperfeitos. Apesar de nossa imperfeição, Deus nos aceita
seu irmão, mente. Pois quem não ama seu irmão, a quem e nos ama. Deus, portanto, se mostra onipotente e todo-
vê, não é possível que ame a Deus, a quem não vê. E nós poderoso na força que possui de suportar e de conviver
temos dele este preceito, que quem ama a Deus também com o ingrato e mau (cf. Lc 6,35). Ele serve a toda a huma
ame o irm ão” (I Jo 4,20-21). O fundam ento da identidade na criatura, independentem ente de seu estado moral. Essa
do amor de Deus com o amor ao próximo não reside no bondade de Deus é mais forte que todo o ódio e toda a
injustiça na história e no universo. Jesus, com sua bondade, e bondade. A tentação do Getsêmani perdura até no alto
concretiza a bondade radical de Deus e nos confirma que da cruz: “Meu Deus, m eu Deus, por que me abandonas
ela terá sempre futuro. te?” (Mc 15,34). “Uma teologia que não leva a sério o fato
de que o Filho de Deus se fez homem, homem fraco, ho
Jesus fez a dolorosa experiência do fecham ento de mem mortal, sempre se escandalizará com a ‘desesperan
seus contemporâneos, aprisionados em suas próprias segu- ça’ hum ana de Jesus. Mas sem essa escuridão não se enten
ranças religiosas. Não devemos jamais olvidar o fato de que deria a totalidade da confiança de Jesus no Pai.”10 A deses
foram exatam ente os piedosos que liquidaram Jesus. Em perança não foi a última atitude de Jesus. Ele se despoja
nome de Deus ele veio anunciar e presencializar um a total radicalmente de si mesmo e se entrega totalmente ao Pai:
libertação. Como foi aceito? Foi considerado blasfemo (cf. “Pai, em tuas mãos entrego o m eu espírito” (Lc 23,46). Je
Mc 2,7), louco e fora de si (cf. Mc 3,21), impostor (cf. Mt 27,63), sus não renunciou a um sentido absoluto, mesmo face ao
possesso (cf. Mc 3,22; Jo 7,20), herege (cf. Jo 8,48), subversivo absurdo da morte conferida ao inocente que só amou. Con
(cf. Lc 23,2). De todos os modos foram contra, até decidi
tinuou a confiar e a amar até o extremo (cf.Jo 13,1). A res
rem sua liquidação violenta (cf. Mc 3,6; Jo 5,18; 11,49-50). Je surreição mostrou que confiar assim na absoluta bondade
sus entreviu a morte. Esta lhe pareceu hedionda e absurda do Pai não é sem sentido. A Vida triunfou sobre a morte e
(cf. Hb 5,7), porque significava a rejeição, por parte dos ju
o Amor sobre o ódio. Nisto se revelou totalmente quem é
deus, da oferta libertadora de Deus. Mas enfrentou-se com Deus-Pai-e-Mãe: sua bondade não se deixa vencer por nada;
ela com extrema coragem pessoal.
ele pôde transformar a cruz num caminho e num sinal de
A grande tentação do Getsêmani mostra a profundi libertação. No cam inho de Jesus de Nazaré, na vida, no
dade da angústia de Jesus e, ao mesmo tempo, sua resolu sofrim ento, na m orte e na ressurreição se revelou Deus
ção; “Afasta de mim este cálice; mas não seja o que eu que assim como Ele é. A experiência de Jesus foi o meio dessa
ro, senão o que Tu queres” (Mc 14,36 par.). Mesmo que não revelação. Nela não se revelou apenas o Pai; foi-nos comu
entenda, o Pai o saberá; abandona-se totalm ente à noite nicado o mistério absoluto de Deus, subsistindo como Pai,
escura dentro da qual também está presente o Pai de amor Filho e Espírito Santo. É o que consideraremos agora.
127
b) A revelação d a n a t u r e z a ín t im a de D eus c o m o Essa revelação não se fez, entretanto, do modo que é
COMUNHÃO DE PESSOAS NA EXPERIÊNCIA DE JESUS com um para nós, form ulando proposições verdadeiras e
ensinando verdades conceptuais. O mistério trinitário se
É assente para a fé que foi Jesus Cristo quem revelou o revelou no caminho concreto, na palavra, na atividade e na
mistério central do cristianismo, a Santíssima Trindade, a paixão e ressurreição de Jesus Cristo. A reflexão teológica
com unhão do Pai, do Filho e do Espírito Santo.11 Dada a posterior nos grandes concílios apenas explicitou num a lin
im portância desse mistério, esperaríamos que Cristo nos guagem própria de seu tempo - a da filosofia grega com os
comunicasse numa proposição formal: “Eu vos ensino o mis conceitos de natureza e pessoa - aquilo que já está claro,
tério absoluto de Deus, uma natureza divina, subsistindo em mas num a outra linguagem, no Primeiro Testamento e na
três Pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo.” Nada disso encon gesta de Jesus Cristo.12
tramos no Primeiro Testamento. As poucas fórmulas trini- A natureza íntima de Deus enquanto Pai, Filho e Es
tárias, particularmente Mateus 28,19 (“Ide, pois, fazei discí pírito Santo se fez visível em Jesus de Nazaré. Em sua vida
pulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e podemos ler a realidade trinitária, que não é a comunica
do Filho e do Espírito Santo”), nunca intencionaram ensi ção de um a curiosidade teológica, sem nada com preen
nar formalmente uma doutrina sobre a Trindade. Estão sem dermos dela, apenas que existe, senão que nos é revelado
pre dentro de um outro contexto; neste caso de Mateus algo que tem a ver com a compreensão profunda do uni
28,19, trata-se de um contexto missionário e batismal. Ini verso e do ser hum ano e que, por isso, está ligado à nossa
cialmente o batismo era feito em nom e do Senhor Jesus salvação.
(cf. At 8,16; 19,5; I Cor 1,13-15). Mas os catecúm enos, na
catequese batismal, aprendiam que pelo batismo Deus-Pai a) Como na vida de Cristo se revelou a
enviaria a seus corações o Espírito de seu Filho, a fim de Santíssima Trindade
que pudessem exclamar com toda a confiança: “Abba, Pai”
(G1 4,6; Rm 8,15). Nessa breve fórmula se reúnem todos os Evidentemente não podemos descer a análises minu
elementos reveladores da Santíssima Trindade. ciosas para iluminar o caminho no qual se deu a revelação
trinitária. Basta-nos mostrar a estrutura do processo reve curas e milagres (cf. Mc 2,5; 5,34-36; Lc 17,19; Mc 11,23; Mt 17,20;
lador. As reflexões acima descobriram-nos a intimidade de 21,21; Lc 17,6). Mas nessa fé espelha-se o evento revelador
Jesus com o Pai-e-Mãe. Por uin lado, Jesus vive uma distân da Trindade, especialm ente do Filho em sua dimensão
cia criacional de Deus-Pai-e-Mãe, pois reza, invoca e louva divina. O hom em desamparado e entregue à sua própria
o Pai (cf. Mt 11,27); espera e crê nele com infinita ternura sorte, vítima de doenças ou de possessões, crê em Jesus
expressa pela palavra Abba, Papaizinho. Sente-se, pois, di como quem tem o poder de Deus que sana e salva, res
ferente do Pai e perm anentem ente diante dele. Por ou suscita e perdoa pecados. Jesus por sua vez age com o
tro, vive a experiência de ser Filho: “Tudo me foi entregue quem tem em si autoridade divina. Não suplica para que
por m eu Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho e o Pai faça o milagre; ele age miraculosamente. Percebe-
aquele a quem o Filho quiser revelá-lo” (Mt 11,27; cf. Mc 13,32). se: com Jesus está presente o poder mesmo de Deus. O
Comporta-se como o representante de Deus, assumindo que era impossível ao hom em , com Jesus se torna possí
atitudes só compatíveis com Deus, como perdoar pecados vel (cf. Mc 10,27). A revelação de Jesus com o Filho não
e corrigir ou abolir a Lei. Possui uma consciência messiânica está tanto num a formulação dogmática, mas encontra-se
de tal forma nítida que se entendia como o Libertador e na atividade m esma de Jesus. Jesus age com o Filho de
condicionava a salvação à adesão a sua pessoa (cf. Lc 12,8-10). Deus que representa o Pai e está sempre em com unhão
Ele age não só em lugar de Deus, senão que tom a palpável íntim a com o Pai.
Deus mesmo, sua bondade e perdão. Sua intimidade com
Na atuação do Jesus terrestre se revelou também a ter
Deus-Pai-e-Mãe era tão profunda que São João podia mais
ceira Pessoa da Santíssima Trindade, o Espírito Santo. Em
tarde deixar o próprio Jesus dizer: “Eu e o Pai somos um ”
bora quase nunca fale do Espírito (exceto os textos joaneus
(10,30). Nota-se, pois, uma identidade e uma diferença com
o Pai. O Filho revela o Pai. e apenas uma vez em Mc 3,28-30), Cristo aparece nos evan
gelhos como um carismático, cheio do Espírito, desde o seu
O Pai, por sua vez, revela o Filho. Este assume, como prim eiro m om ento de existência (cf. Lc 1,32-38.42-44). E
dissemos, atitudes divinas. Ele exige fé em sua pessoa. É sobre ele que o Espírito desce em forma corporal (pom
verdade que essa fé está quase sem pre relacionada com ba) e o consagra para a missão libertadora (Mc 1,9-11 par.).
Não é Jesus que escolhe o caminho: o Espírito o impele a unidade e a diferença do único mistério do Pai, origem
para o deserto (cf. Mc 1,12) e o leva a fazer milagres, curas e de toda a salvação. Ele enviou seu Filho para, na força do
gestos libertadores: “Se é pelo Espírito de Deus que expul Espírito Santo, libertar a criação. Ao lado do Pai está sem
so os demônios, então é sinal de que chegou a vós o Reino pre o Filho. Junto com o Pai e o Filho está o Espírito Santo
de Deus” (Mt 12,28). A virtude divina (Espírito) que opera como presença e realidade, perceptível até pelos sentidos,
va em Jesus é cham ada de exusía (soberania) ou dínamis pois se vêem pobres ouvindo a boa notícia de sua liberta
(poder) (cf. Mc 1,22-27; 2,10; 5,30; 6,2-15; 9,39; 12,24; Lc 5,17). ção, mudos falando, doentes sendo curados e mortos, res
E um a força que sai de Jesus, surpreendendo a ele pró suscitados, tudo isso na força do Espírito de Jesus.13
prio: “E logo Jesus percebeu em si mesmo que saíra dele
Será obra imensa da reflexão teológica dos séculos III
um a força {dínamis), voltou-se para o povo e perguntou:
e IV criar um a linguagem adequada para a cultura greco-
‘Quem tocou minhas vestes?”’ (Mc 5,30; Lc 8,46). Lucas co
latina, base de nossa cultura ocidental, que expressasse o
m enta que “todo o povo procurava tocá-lo, pois um a for
que se realizou na experiência de Jesus de Nazaré vivo,
ça saía dele e curava a todos” (6,19). Essa força que é Je
m orto e ressuscitado. A experiência da fé contem plou o
sus, mas que ao mesmo tem po age independentem ente
Pai, viu o Filho e saboreou o Espírito Santo, auto-comuni-
dele, isso é a revelação daquilo que depois, no Primeiro
cando-se por e em Jesus. Chamou aos Três de Deus. Com
Testam ento, se cham ou de Espírito Santo como Espírito
isso não quis m utiplicar Deus, mas m ostrar o caráter de
de Jesus. Verifica-se também aqui um a identidade e um a
diferença. com unhão, presente na realidade divina. A Igreja antiga
não se apercebeu logo dos problemas que estavam aí im
À luz da experiência da ressurreição de Jesus e do plicados, especialmente como combinar a unidade com a
surgimento de fenôm enos pneumáticos nas primeiras co trindade. Sem a pretensão de aprofundar a questão, im
munidades cristãs, a Igreja nascente explicitou mais e mais porta reter esta constatação: a experiência da fé não partiu
essa revelação da Santíssima Trindade, feita na vida e na da unidade de Deus. Experimentou a diversidade em Deus.
obra de Cristo. Particularmente São Paulo e São João viram Viveu Deus como família, como com unhão e inter-retro-
35
relação cie Pai, Filho e Espírito Santo. Venerou os Três como Três sempre vêm juntos e se encontram eternam ente en
Deus. Não especulou ainda em termos concisos o relacio trelaçados. Em outras palavras, dizer Trindade é dizer rela
nam ento entre eles. ção. Como disse o Papa João Paulo II, quando esteve pela
prim eira vez na América Latina em 1979, em Puebla, no
O credo elaborado nos concílios ecumênicos de Nicéia
México: “A natureza íntim a de Deus não é solidão, mas
(325) e Constantinopla (381) encontrou fórmulas que se
com unhão, porque Deus é família, é Pai, Filho e Espírito
tornaram depois dogmas. O dogma básico acerca da San
Santo.” Esse entrelaçamento foi expresso pela tradição teo
tíssima Trindade reza assim: em Deus há uma única natu
lógica pela palavra grega pericórese que significa “a inter-retro-
reza divina que subsiste em três Pessoas realm ente distin
tas: Pai, Filho e Espírito Santo. Essa formulação abstrata não relação entre as Pessoas divinas”. Elas são distintas para po
quer exprimir outra coisa senão aquilo que Jesus experi derem se relacionar. E essa relação m útua é tão profunda
mentou: que estava sempre em com unhão com o Pai, se e radical que elas se uni-ficam. Elas ficam um só Deus-co-
sentia Filho amado e que agia e falava com uma Força que munhão, um só Deus-amor, um só Deus-relação.
o tomava, o Espírito Santo. Precisamos superar a terminologia tradicional com a
O im portante não é afirmar os divinos Três. Isso até qual se pretendia expressar a natureza íntima de Deus. Ela
pode nos levar a uma heresia, vale dizer, a um erro na com é, para nossos ouvidos contem porâneos, demasiadamente
preensão da fé, a heresia do triteísmo, como se houvesse formal e abstrata. No nível da experiência de fé diríamos
três deuses. A centralidade se encontra na relação entre de forma mais simples c compreensível: Deus que está aci
eles. As próprias palavras já supõem relação. Assim, não ma de nós e que é nossa origem chamamos de Pai-e-Mãe
existe pai simplesmente. Alguém é pai porque tem filho. eternos; Deus que está conosco e que se faz companheiro
Ninguém é filho simplesmente. É filho porque tem pai. de cam inhada se cham a Filho; e Deus que habita nosso
Espírito, no sentido originário, significa sopro. Não há so interior como entusiasmo e criatividade se chama Espírito
pro sem alguém que assopre. O Espírito é o sopro do Pai Santo. Como se depreende, não são três deuses, mas o
para o Filho e do Filho para o Pai. Como se depreende, os mesmo e único Deus-comunhão que atua em nós e nos
insere em sua rede de relações. Dentro de nós se realiza a b) A experiência da Santíssima Trindade
eterna relação de amor e de comunhão entre Pai, Filho e em nossa experiência humana
Espírito Santo. D eus-com unhão está sem pre nascendo
dentro de nós. Por isso somos seres de comunhão e um nó Asseverávamos anteriorm ente: a revelação do misté
perm anente de relações. No início de tudo está a comu rio trinitário não é um a curiosidade; diz-nos algo de defini
nhão dos divinos Três. tivamente im portante sem o qual não realizaríamos nem
compreenderíamos de m odo radical nossa própria hum a
Mas compreendamos bem essa afirmação. Não signifi nidade. K. Rahner, um dos maiores teólogos católicos do
ca que a comunhão é apenas uma realidade nossa. Não. É século XX, afirmava com acerto:
antes de tudo a realidade divina, pois Deus se manifestou
assim como ele mesmo é, vale dizer, como com unhão de
A Trindade para nós não é puramente uma realidade que se
Pessoas.14 Deus é concretamente Pai, Filho e Espírito San
possa apenas exprimir doutrinariamente. A Trindade mes
to. Não é prim eiro um a unidade de natureza que depois
ma ocorre em nossa existência', como tal, ela própria nos é dada,
se desdobra em trindade de pessoas. Isso constituiria a he
independentemente do fato de a Escritura nos comunicar
resia modalista, segundo a qual as divinas Pessoas seriam
sentenças a seu respeito. Essas sentenças, ao contrário, são
apenas três modos de dizer a mesma coisa, sempre idênti
dirigidas a nós, justamente porque nos foi concedida essa
ca a si mesma. A doutrina da Trindade afirma a diferença
realidade mesma, acerca da qual se proferem as sentenças.15
entre as Pessoas. Uma não é a Outra. Mas Elas estão sem
pre e eternam ente em com unhão entre si. Por isso nada
pré-existe à Trindade. Ela é a Realidade Última e absoluta Dito num a linguagem mais simples: antes de estar em
mente originária. Desde toda a eternidade Deus borbulha nossa cabeça e em nosso coração, a Trindade, o Pai, o Filho
em ser, em am or e em com unhão como de um a única e o Espírito Santo existiam em si e para si. E, ao criarem,
fonte misteriosa que somente existe na forma de três rios passaram seu jogo de relações para todo o universo e para
realm ente diferentes que comunicam a mesma água e se todas as coisas inter-retro-relacionadas entre si. Por isso, à
chamam Pai, Fillho e Espírito Santo. sem elhança do Deus-Trindade-Com unhão, as coisas são
sempre umas pelas outras, com as outras e para as outras. pela paixão e principalmente pelo amar. Eis a revelação do
Exatamente assim explica Santo Agostinho, o grande teólo Espírito Santo em nós.
go da reflexão trinitária, as relações entre as divinas Pessoas: Tanto a expressão de si mesma como verdade quan
“Cada uma das Pessoas está em cada uma das outras, e todas to o am or fluem incessantemente do fundo misterioso da
em cada uma, e cada uma em todas, e todas estão em todas, pessoa, fonte de todos os gestos de com unicação e ex
e todas não são senão um único Deus” (Dg Trinitate, VI, 10, 12). pressão. Esse fundo misterioso é a aparição do Pai em nossa
Então porque as Pessoas divinas existiam antes, podem estar existência.
em nós e m orar dentro de nós.
Ora, não dizemos que o Pai é por definição Aquele
Se, de fato, é assim, poderem os então experim entar que não tem origem, o Invisível do qual tudo pro-mana?
a Santíssima Trindade? Lógico que podem os experim en Tal realidade se reflete no mistério da pessoa, ela mesma
tar a Santíssima Trindade! Experimentamos a Trindade San pura gratuidade do estar-aí, mas da qual e-manam todas as
tíssima através daquilo que a teologia chama de vestígios expressões. O Filho é a Palavra, por essência a revelação do
trinitários inscritos na criação e na existência hum ana.11’ Pai, aquele que torna o Pai visível (cf. Jo 14,9). O reflexo do
Já consideramos a experiência de Deus-Trindade-Comu- Filho em nós é a palavra e a inteligência pelas quais se reve
nhão no processo cósmico da criação. Não precisamos voltar a la a profundidade da nossa personalidade. O Espírito San
ela. Queremos, sim, nos restringir à experiência da Trindade to é o Sopro do Pai e do Filho, o Amor que enlaça os dois.
na existência humana. Esta se apresenta como uma unidade- Esse amor se reflete em nosso amor que inunda nossa von
fonte originária. Continuamente ela está se revelando, abrin tade e que nos impulsa para a união com a pessoa amada.
do-se como inteligência e verdade de si mesma, comunicando- Conhecim ento e am or são distintos no ser hum ano,
se por palavras, por gestos e por todo um universo simbólico e contudo, constituem a unidade fundam ental da pessoa,
expressivo. Eis a manifestação do Filho em nós. porquanto não é a inteligência que conhece, nem a vonta
Em seguida, a vida é dotada de vontade que se mani de que ama, mas a pessoa que conhece e ama. A inteligên
festa pela decisão, pela capacidade de realizar um projeto, cia é inteligência, mas em sua última radicalidade é figura-
tiva da Inteligência do Pai que é o Filho. A vontade é vonta unidade do mistério de Deus, bem como a unidade do
de, mas num sentido profundo é tam bém figurativa da mistério da pessoa.
Vontade do Pai e do Filho que é o Espírito Santo. Fazer a A fé cristã não é uma religião de mistérios, mas de um
experiência radical da pessoa é fazer a experiência daque único mistério: do mistério da auto-doação de Deus à cria
la realidade que a Trindade significa: o mistério absoluto ção, especificamente, ao ser hum ano, como Fonte, como
sem origem, acima de nós (Pai), que se aproxima de nossa V erdade e com o Amor. Urge recuperar a sim plicidade
existência para cam inhar conosco (Filho) e que habita originária do cristianismo.
dentro de nós dando-nos força, luz e amor, fazendo que
tudo seja vivido em com unhão com a Trindade, com os No ano 180 o m ártir Speratus respondeu ao cônsul
outros e com o universo (Espírito Santo). Saturnino que lhe perguntara o que era o cristianismo: “Si
tranquillas praebueris aures tuas, dico mysterium simpli-
Atenção: não deduzimos a Santíssima Trindade do ser citatis.”17 Traduzindo: “Se mantiveres os ouvidos atentos, re
hum ano. Pelo contrário, tentam os com preender o ser velar-te-ei o mistério da simplicidade.”
hum ano a partir da Trindade. Ela é a fundante, o ser hu
mano é fundado. Aí ele se des-velou como manifestação e Que é esse mistério da simplicidade? Mistério da sim
sacramento da própria Trindade dentro da criação. Cada plicidade foi o nome inicial do cristianismo para testemu
Pessoa divina se auto-comunica e se revela ao ser hum ano nhar o Deus-Comunhão que entrou em nossa história como
assim como cada uma é: a auto-comunicação do Pai como Pai-e-Mãe amorosos, que nos entregaram seu Filho encar
Útero e Fonte da qual tudo promana; a autocomunicação nado em nossa miséria na força e no entusiasmo do Espíri
do Filho como Inteligência, Verdade e Manifestação do to vivificador. A experiência verdadeira e profunda de Deus
Pai que se reflete no homem-inteligência, como verdade e nos convence de quanto esse mistério divino é simples e
desvelamento do mistério da pessoa; a auto-comunicação como simples não deve ser nosso relacionamento com ele.
do Espírito Santo como Amor e Sopro do Pai e do Filho se É, no fundo, a experiência radical de nós mesmos, aberta e
configura no hom em -vontade como am or e vontade de possibilitada por Deus mesmo. Radicalmente somos feitos
unificação com o todo e com cada ser. Tudo isso constitui a Deus por participação.
A EXPERIÊNCIA DE Ü E U S
NA V ID A RELIGIOSA
A
o termo de nossas reflexões um a coisa deve ter fica
tes um martírio inglório do que a expressão concreta da
do clara: a experiência de Deus não constitui um luxo
experiência de Deus.
só de alguns. É a condição indispensável para toda a vida de
fé. Toda religião assenta sobre uma experiência de Deus.
Sem ela os dogmas são andaimes rígidos; a moral, uma coura
ça opressora; a ascese, um rio seco; a prática religiosa, um
desfiar m onótono de gestos estereotipados; a devoção,
um estratagem a para com bater o m edo; e as celebra
ções, uma ostentação vazia, sem a graça da vida interior.
Aquele que experim entou Deus penetrou no reino
da mística. A mística não assenta sobre o extraordinário,
154
mas é a transfiguração do ordinário. O místico é aquele
que se faz sensível ao outro lado da realidade. É aquele
que capta o mistério (de mistério vem mística) que se re N otas
vela e vela em cada ser e em cada evento da história pessoal
e coletiva. E o capta porque aprendeu a ser sensível ao
invisível aos olhos, mas sensível ao coração atento. Por isso,
o místico autêntico não tem segredos a contar ou confi 1. C o m o aparece D eus n o pro cesso d e v id a 'MORTE- ressur '
dências a fazer. Ele vê Deus em todas as coisas enquanto RE1ÇÃO DA LINGUAGEM
está sem pre em busca de um Deus sempre maior do que
B o ff, L. O evangelho do Cristo cósmico. Petrópolis, Vozes, 1970. p. 57-63.
Aquele que ele já encontrou. Porque Deus perpassa toda a M erton, T. Zen e as aves de rapina, São Paulo, Cultrix. p. 74.
realidade, pode, por isso, ser percebido e experim entado Veja a fundam ental obra de K u it f .k , H. M. Gott in Menschengestalt. Eine
nas mais diferentes situações da vida e em cada detalhe da dogmalisch-hermeneiUische St udie über die Anlhrojxrmorphismen der Bibel. Mu
vida pessoal e do universo. nique, Kaiser Verlag, 1967.
Contado por D. T. Suzuki, em M e r t o n , op. cit., p. 124.
Experimentar Deus não é pensar sobre Deus. É sentir
Deus a partir do coração puro e da mente sincera. Experi 2. M ate as im a g e n s , e D eus aparecerá
m entar Deus é tirar o mistério do universo do anonimato e Serm o 52. n. 16: PL 38, 360. Cf. S a n t o A g o s t in h o . De Trinitale. lib. 8, cap.
conferir-lhe um nome, o de nossa reverência e de nosso 8, n. 12: “Putas quid est Deus? Putas qualis est Deus? Quidquid finxeris,
non est; quidquid cogitatione com prehenderis, non est. Sed ut aliquid
afeto. Experimentar Deus é desenvolver a percepção bem- gustu accipias, Deus caritas est. Caritas est qua diligimus.
aventurada de que, na radicalidade de todas as coisas, Deus, Lubac, H. de. Sur les chemins de Dieu. Aubier, 1956. p. 203.
universo, pessoa hum ana são um só mistério de enterneci Idem , ibidem, p. 124-5.
m ento e de am orosidade que irrom peu em nossa cons Sobre a problemática filosófica das categorias imanência, transcendência
e transparência, veja: B o f e , L. Das Sakramentale D enken. Legitimität
ciência, fez história, ganhou sua linguagem e culminou na und Grenzen einer sakralen Denkweise. Ein: Die Kirche ah Sakrament im
alegre celebração da vida. Horizont der Wellerfahrung. Paderborn, 1972. p. 123-81.
Le Milieu Divin. Paris, 1957. p. 162. 3 . Q ue é ex - per i - ê n c ia ?
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159
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situação da América Latina. Veja os aspectos mais globais em W a i .ler - totum est”; S a n t o A c o s t in h o . In Psalmum 130, n. 12: PL 37, 1712: Intus
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1997. eum , nisi transient se”; SÂo G r e g ö r io , o Grande. Moralia in Job, lib. 2,
cap. 12, n. 20: “Ipse m anet intra om nia, ipse extra om nia, ipse infra
2 Veja os dados em A r r u d a , M. Qual trabalho para qual sociedade, vol. II,
capítulo I. Petrópolis, Vozes, 2002. om nia. Et superior est per potentiam et inferior per sustentationem ,
exterior per m agnitudinein, interior per subtilitatem. Sursum tegens,
* I a n n i , O. O labirinto lalino-nmrriiano. Petrópolis, Vozes, 1995. deorsum continens, extra circumdans, interius penetrans. N ec alia ex
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S ilva , L u ís parte superior, alia inferior; aut alia ex parte exterior, atque ex alia
Vozes, 1997; B o e f , L . Depois de 500 anos que Brasil queremos. Petrópolis, interior; sed unus id em q u e totus u b iq u e p raesid en d o su stin en s,
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> P e t r a s , J. 8c V e i.tm ey e r, H. Brasil depois de Cardoso. A desapropriação do país.
■ dans”; L w a r d in , Hilderbert de. Carmina Miscellanea. 71: PL 171, 1411:
Petrópolis, Vozes, 2001. “Alpha et O m ega, m agne D eus... Super cuncta, subter cuncta, extia
cuncta, intra cuncta, nec inclusus, extra cuncta, nec exclusus, super
h G eral. Brasil: rasgos generales cle la evolución rcciente. Em: Estúdio cu n cta, n ec elatu s, sub ter cu n cta n ec sub stractu s. S u per totu s,
Económico de América Latina y Caribe 1998-1999. Santiago, 1999. praesidendo; subter totus, sustinendo; extra totus, com plectendo; intra
1 Análise da “modelo” brasileiro. Rio de Janeiro, 1972. p. 77. totus es, im plendo; intra nunquam coarctaris, extra nunquam dilataris,
8 M a r c u se , H. Eros y Civilizaeión. México, Ed. Mortiz, 1965. p. 83. super nullo sustentaris, super nullo fatigaris.”
9 Nuestra idea de Dws (T eologia abierta para el laico adulto 3). Buenos R ahner, op. cit., p. 166-7.
Aires-México, 1970. p. 50. Bofe, L. O destino do homem e do mundo. Petröpolis, 1974. p. 12-23.
10 L u b a c , o p . c it., p . 12 5.
Veja-se a bela íiase de Santo Agostinho: “Cum absens putatur, videtur, 9. A EXPERIÊNC1A CRISTA DE DEUS
cum praesens est, non videtur”, De videnda Deo (Epist. 147 ad Paulinam),
cap. 6, n. 18, PL 33, 604. Le Dieu, desjyremiers chrétiens. Paris, Seuil, 1955; P e z e r ii ., D. Le
G r a n t , R. M.
12 P untf .l , o p . c it., p . 22 -3 .
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und. Wahrheit 26. 1971. p. 197-203; K essler , H. Der neue, erlösende Gott
8. C o m o D eus e m e r g e n a c a m in h a d a p e s s o a l Jesu. Em: Erlösung ab Befreiung. Düsseldorf, 1972. p. 74-95; B ia n k , J. Jesus
von Nazareth. Herder, Geschichte und Relevanz, 1972. p. 58-68; R a h n e r ,
1 Esta idéia da diafania e transparência de Deus no m undo é bem docu K. & T h Üsin g , W. Christologie - systematisch und exegetisch. Herder, 1972. p.
m entada na tradição teológica e mística: S a n t o H il á r io . De trinilale, 28-33, 133-40; G u il l e t , ]. Jésus devant sa vie el sa mort. Paris, 1971. p. 221-42,
B o f f , L. Jesus Cristo Libertador. Petrópolis, Vozes, 1972; S o b r in o , J. Jesus, o nitiva, sen d o que todas as exp licações posteriores não passam de
Libertador. Petrópolis, Vozes, 1994. tentam es para m elhor exprim ir em conceitos um que ou tio aspecto
2 B o ff, L. Foi Jesus um revolucionário? Em: REB 31. 1971. p. 97-1 18 , onde parcial do processo da revelação”. Mysterium Salutis, op. cit., p. 85.
se estuda a bibliografia desde o fim do século passado até 1971; G o n op. cit., p. 101-7.
13 S c h ie r s e ,
ç alves , L .Jesus e a contestação política. Petrópolis, Vozes, 1974; H e n g e l , M.
' 4 Para um aprofundam ento mais técnico do mistério da Santíssima Trin
Eigentum und Reichtum in der frühen Kirche. Aspekte einer früchrisllichen dade veja: B o f f , L. Santíssima Trindade, sociedade, e libertação. Petrópolis,
Sozialgeschichte. Sttugart, 1973. p. 31-9.
Vozes, 1985; e sua formulação mais popular: Idem . A Santíssima Irin-
3 J erem ias , J. U s paraboles de Jesus. Paris, 1964. p. 194-9. dade é. a melhor comunidade. Petrópolis, Vozes, 1988.
4 M e s te r s , C. Jesus e o povo: qual foi a libertação que ele trouxe para o 13 R a h n e r , K. O Deus trino, fundam ento transcendente da história da
povo de seu tempo? Em: Palavra de Deus na história dos homens, vol. 2. salvação. Em: Mysterium Salutis, II/I. Petrópolis, Vozes, 1972. p. 304.
Petrópolis, 1971. p. 135-81.
i <> V a n D en B e r g , A. A Santíssima Trindade e a existência hum ana. Em:
3 S a m a in , E. O discurso-program a de Nazaré Lc 4,16-19. Em REB 34. REB 33. 1973 p. 62948.
1974, núm ero de junho.
>7 Passio Sancionem Scilitanorum. M unique, L ateinische M ärtyrerakten,
K. Jesus. Göttingen, 1968. p . 53-70; E r n s t , J. Anfänge der
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Christologie (Stuttgarter Bibel-Studien 57). Stuttgart, 1972. p . 145-58.
7 Je re m ia s , J. Teologia dei Nimm Testamento,vol.1.Salamanca,1974.p. 87; 10. A EXPERIÊNCIA DE D E U S NA VIDA RELIGIOSA
Id. A bba. Em: Abba, Studien zu r neutestam enllichen 'Theologie und
Zeitgeschichte. Göttingen, 1966. p. 15-82.
1 P auk VI e. as religiosas. São Paulo, Paulinas, 1968. p. 87.
8 M ester s , op. cit., p. 157.
2 D o c u m e n t o da CLAR. Vida segundo o Esfnrilo nas comunidades religiosas da
9 J er em ia s , o p . cit., p . 13 8. América iMlina (CRB 9). Rio de Janeiro, 1973. p. 17-23.
10 R ö m e r , K. J. Esperar contra toda esperança. Rio de Janeiro, CRB 11, 1973, 3 D o c u m e n t o , op. cit. A vida religiosa hoje na Igreja (CRB 10). Rio de Janei
p. 20. ro, 1973. p. 46-7; Idem, El proyecto de la vida religiosa. Em: Vida religiosa
11 S c h ie r sf ., F. J. A revelação trinitária neotestam entária. Em: Mysterium en el mundo secularizado (CLAR 10). Bogotá, p. 51-5.
Salutis, II/I. Peti ópolis, 1972. p. 77-118; Duquoc, C. Le dessein salvifique 4 B o f f , L. A natureza espiritual do religioso. Em: Grande Sinal 26. 1972. p.
de la révélation de la Trinité en Saint Paul. Em: Lumière et Vie, 29. 1956. 257-63.
p. 67-94; L avalettf ., H. de. Dreifaltigkeit. Em: LThK 111. 1959. p. 543-9.
3 M e r t o n , op. cit. A recuperação do paraíso, p. 121.
1■Com muita razão nota Schierse: “Devemos sem pre opor-nos ao equí
(i B o f f , L. A estrutura antropológica dos votos: um voto em três. Em:
voco intelectualístico, com o se Jesus mesmo tivesse fornecido à doutri
Grande Sinal 27. 1973. p. 499-511.
na ciistã apenas indícios fracos pouco claros, ao passo que a verdade
g en u ín a e plena definida pela Igreja posterior. Na verdade vale o 7 G utif .rrf.z , G. M. Teokgía de la liberación. Bogotá, 1971. p. 371-2.
contrário: Jesus revelou, por sua palavra e obra, toda a verdade defi
162
SUGESTÕES DE LEITURA