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RESUMO: A partir da constatação de que várias cantigas da tradição popular estão sendo
alteradas em suas letras por algumas escolas brasileiras, buscamos encontrar nessas alterações
os principais elementos que motivam tal procedimento. Ao contrário do que geralmente
fundamenta os argumentos para as modificações das letras originais, a experiência com
musicalização para crianças, iluminada pela psicanálise, permite-nos identificar em diversas
ocasiões no cotidiano escolar que as cantigas de roda oportunizam para os alunos momentos
de exercício narrativo nos quais a criança pode descobrir a complexidade das relações entre as
pessoas e dos afetos e, nessa medida, construir novas formas de subjetivação que podem
estruturar novas formas de lidar com as dificuldades que daí surgem. O estudo poderá
contribuir ainda para a problematização da questão que aqui se coloca, qual seja, a negação do
patrimônio cultural em favor de um discurso politicamente correto que pretende supostamente
banir as formas de agressividade que as letras originais de cantigas de roda tradicionalmente
carregam. Nesse sentido, pretendemos ampliar o debate em torno das políticas públicas
educacionais em defesa da memória social, em consonância com a definição mais recente da
Unesco (2000) sobre o patrimônio cultural.
∗
Professora da FAM – Faculdade de Americana, mestre em Educação pela FE/ UNICAMP.
∗∗
Professora da Faculdade Network, psicanalista, doutoranda no IEL/ UNICAMP, membro dos grupos de
pesquisa SEMASOMa e OUTRARTE do IEL/UNICAMP.
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Pretendemos, com tal investigação, levantar novas questões que possam contribuir
para a prática do professor em sala de aula e justificar a necessidade de questionar a alteração
das cantigas populares e os argumentos que as motivam tendo como norte o respeito às
manifestações espontâneas das crianças quando, por meio das brincadeiras cantadas, elas
podem construir nas brincadeiras e/ou músicas da tradição – ou em cantigas mais recentes –
formas de conhecer o mundo, enunciar seus problemas e vislumbrar soluções para eles ao
mesmo tempo em que possam estruturar formas de lidar com a angústia que daí surge.
O estudo poderá contribuir para a problematização da questão que aqui se coloca, qual
seja, a necessidade da defesa do patrimônio cultural e o favorecimento do desenvolvimento
de novas interpretações e valorização das canções e suas letras originais, desmistificando
conceitos infundados e preconceituosos em prol do reconhecimento da força das canções e
brincadeiras de roda, contribuindo, dessa forma, para a discussão das políticas públicas
educacionais que, atualmente, tendem a seguir um modelo de um discurso politicamente
correto, em detrimento da memória social.
Muitas alterações nas letras tradicionais das músicas, de domínio publico, são
realizadas por escolas brasileiras que incorporam suas letras modificadas em seu currículo
oficial1 a partir da argumentação de que seu conteúdo traria mensagens agressivas /
angustiantes que incitariam o comportamento destrutivo / depressivo de quem as escuta.
1
Como informa edição 1948, de 22/mar/06 da Revista Veja.
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Abaixo, seguem algumas cantigas tradicionais com sua respectiva alteração que
localizamos em versões usadas em muitas escolas2, em caráter oficial.
2
Idem. Pela internet é possível encontrar vários sites, inclusive de educação, propondo tais alterações.
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A despeito das pesquisas mencionadas, qualquer pessoa pode identificar que as letras
das canções vêm sendo alteradas de forma arbitrária, modificando forçosamente a tradição
folclórica. Esta é uma prática cada vez mais comum nas escolas no país todo.
O que pretendemos discutir no presente trabalho versa em três eixos: as mudanças nas
tradições orais (narrativas populares em lendas, parlendas e cantigas); a questão da
significação (conteúdo) das letras nas cantigas populares e seus efeitos na educação das
crianças e, finalmente, a finalidade das cantigas como um produto cultural.
Propomos abordar as cantigas populares como uma das manifestações das vivências,
reflexões e elaborações da tradição oral, por incluí-las na categoria da produção de sentido
através da palavra – aquela que sai da boca par ao ouvido. Por essa via, Alcoforado (2008)
lembra que autoria de uma tradição popular não é de um único sujeito, como na tradição
erudita: a autoria nas tradições orais, portanto é pública, uma vez que é fruto da recriação de
um sujeito que se apropriou do patrimônio cultural e ao atualizá-lo da memória para fala,
transmite-o de maneira sempre singular. Nesse sentido, o lingüista Roman Jacobson, ao
investigar a estreita relação entre folclore e lingüística, conclui que
É forçoso admitir que em tudo o que se faz (ou se fala) repetidamente, novamente (ou
de novo) há a presença do mesmo mas também de uma novidade: as tradições orais também
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vão, a partir de sua infinita repetição, guardar algo de sua estrutura anterior e, ao atualizar-se
nos falantes, trazer alguma novidade. Nesse sentido, as mudanças são obliteradas porque no
jogo dinâmico de sua presentificação, o passado se perde. Não são essas mudanças que
simplesmente acontecem pela estrutura do funcionamento das tradições orais que colocamos
em questão.
Com relação ao segundo eixo da problematização que nos ocupa – vale lembrar, a
questão da significação (conteúdo) das letras nas cantigas populares e seus efeitos na
educação das crianças – pretendemos realizar uma discussão que inclua a busca dos
motivadores das modificações que, a partir deste momento, nomearemos de arbitrárias.
Encontramos nas letras acima descritas que alguns elementos foram suprimidos e
substituidos, como a morte, o medo e a dor, fazendo-nos supor que seriam considerados
elementos perturbadores que justificariam a mudança em seu texto.
Sabemos que as canções de ninar são geralmente cantadas pelas mães para embalar
seus bebês no momento de ir dormir. Bebês muito pequenos ainda não conseguem realizar a
significação das palavras substiuindo os signos pelas imagens mentais, assim, não conseguem
entender o que é boi da cara preta, muito menos medo de dormir ou medo de careta. O que
embala os bebês é a melodia, o movimento, o ritmo das canções que provoca movimentos
consonantes de seu corpo às paradas, apressamentos e lentidões da cantiga e pela sonoridade
que marca o gesto vocal do cantor que a embala. Nesse jogo linguistico, que Vorcaro (2002:
68) nomeia embalar andante fonte de grande satisfação para a criança que não se atém à
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condição do sentido (cujos efeitos só vão sendo captados a partir da puberdade) mas sim ao
non-sens:
É também o mestre vienense que nos aponta o caminho para entendermos o motivo de
haver uma inflação no sentido das cantigas pelos adultos e, por isso mesmo, justificar para
alguns, a necessidade de mudança: a falta de liberdade para pensar imposta pela compulsão à
lógica da vida acadêmica traz efeitos de repressão aos adultos. No entanto, complementa
Freud, para o homem é muito difícil recusar um prazer sentido, por isso, sempre busca
resgatar o prazer primeiro, aqui especificamente, da liberdade de pensar e daquele sentido no
non-sens vivenciado na infância. Ou seja, para a criança, adeptas à ficção, quanto mais sem
sentido, absurda, mágica, fantástica e radical for a narrativa, melhor. Além disso, Crianças
captam, como Pinochio, rapidamente intenções pedagógicas subliminares nos jogos cênicos
e, portanto, não aderem a ela: se elas farejam que estão diante de um Cavalo de Tróia repleto
de pedagogia, não terão dúvidas em incendiar o engodo. (CORSO; CORSO, 2006:304)
3
Idem.
4
Ibidem.
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Hipótese desenvolvida por Freud, S. (1920) em “Além do Princípio do Prazer”, O.C., vol. XVIII.
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preparar um mundo melhor, justamente quando é e sempre foi, o adulto que prepara o mundo
para chegada da criança!
Vinha (2000) apresenta uma discussão bastante interessante sobre o papel dos
conflitos no cotidiano da escola os quais, enfatiza, não devem ser evitados ou mascarados,
mas sim resolvidos com o diálogo e a troca de papéis que levam a criança a refletir sobre sua
atitude e reconhecimento dos sentimentos do outro. Portanto, é no dia-a-dia, nas situações de
conflito, nas relações diretas com as pessoas que elaboramos o sentimento de repeito e
solidariedade e o espaço da fantasia, do brincar e do cantar são leitos sobre os quais essas
possibilidades de resolução irão se assentar.
Nesse sentido, a cantiga (que geralmente está associada às brincadeiras de roda) como
qualquer outra brincadeira para a criança tem um papel capital em sua estruturação psíquica: é
realizando ativamente o que sofreu passivamente que a criança pode fazer frente às
dificuldades de viver; ao brincar, a criança interpreta a realidade. O brincar, para a crianças,
é o recurso que lhe permite, no mesmo ato, realizar desejos, elaborar situações penosas e Ao
brincar, a criança inverte posições e, ao reviver o vivido, inventa uma nova ordem que lhe
agrada, veiculando sua leitura dos fatos e emendando o que foi recalcado com fábulas e
teorias. (AZENHA, 2008: 67)
É nesse sentido que Lacan em seu décimo segundo seminário7 vai afirmar que a
condição de haver brincadeira é que não haja risco para a criança: é somente quando há
espaço para o jogo de posições dos vários personagens (das brincadeiras, cantigas, lendas,
contos, etc.) em que seu fantasiar ao brincar invente ou adote várias possibilidades de
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Nesse momento, a teorização psicanalítica não dispunha dos conceitos de Real – Simbólico – Imaginário, como
propostos por Lacan e, desta maneira, o real apontado por Freud corresponde ao termo realidade proposto por
Lacan. Apenas muitos anos depois é que Lacan enfatizará que o aquilo que se opõe à fantasia não é a realidade,
mas o real. No entanto, já na Interpretação dos Sonhos (1900), Freud abre caminho para a formulação lacaniana,
diferenciando realidade psíquica de realidade material.
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Seminário não publicado. Cf. Maciel, 2006:29.
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identificações, que a criança pode compor o repertório imaginário de que ela necessita para
abordar os enigmas do mundo e do desejo.(KEHL, prefácio, IN: CORSO, 2006:17)
Desta forma, a teorização que precede bem como nossa experiência com a
musicalização em espaços escolares com crianças, permite-nos admitir que canção “Atirei o
pau no gato”, por exemplo, em sua versão tradicional, pode se tornar um momento
importante na elaboração pela criança de seus próprios sentimentos agressivos – inerentes a
qualquer sujeito: é por poder brincar e cantar (espaço onde não há risco) justamente que à
criança é oferecida a possibilidade de não atuar sua agressividade com seus pares. Em suma,
temos observado que os argumentos utilizados para a modificação das cantigas tradicionais
dizem mais dos fantasmas dos adultos do que da necessidade educativa às crianças. O casal
Corso (2006:304) após a análise de vários contos de fadas, antigos e modernos, concluem que
possam por si mesmas ser responsáveis por eventuais problemas que as crianças venham a
apresentar:
Sozinhas, histórias não induzem à violência, não fazem apelos regressivos que as
retenham na infância, não produzem isolamento social, nem as desligam da
realidade. Se certas crianças apresentam alguns desses comportamentos, é melhor
procurar culpados em outro lugar.
Para (não) concluir as questões em torno desse debate, cabe ressaltar que as
manifestações artísticas e culturais são representações que fazem parte do patrimônio cultural
de um povo e que não estamos pensando em abrir mão da (necessária) educação das crianças.
No entanto, entendemos, conceitos morais, cívicos ou de cidadania podem ser trabalhados de
outras maneiras sem ser a estratégia de um pequeno grupo forjar letras em cantigas da
tradição oral em função do princípio de controle que certas psicologias pretendem atribuir aos
adultos em relação ao desenvolvimento da criança. Melhor seria, ao nosso juízo, que os
educadores pudessem, junto às crianças, criar novas melodias e letras que possibilitassem
veicular valores, conceitos e enigmas construídos pelo grupo em situação educativa, de forma
a considerar as relações humanas em toda sua diversidade.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
AZENHA, C.A.C. O que (não) dizer sobre as crianças e suas brincadeiras. Revista Literal,
Campinas/SP, nº. 11, p. 57-68.
CORSO, D. L.; CORSO, M. Fadas no divã. Psicanálise nas histórias infantis. Porto
Alegre: Artmed, 2006.
FREUD, S. (1905) Os chistes e sua relação com o inconsciente. ESB. Vol. VIII, Rio de
Janeiro: Imago, 2006.
_________ (1907) Escritores criativos e devaneios. ESB. Vol. IX, Rio de Janeiro: Imago,
2006.
KEHL, M. R. Prefácio In: CORSO, D. L.; CORSO, M. Fadas no divã. Psicanálise nas
histórias infantis. Porto Alegre: Artmed, 2006.
WEINBER, M. Será que funciona? Revista Veja. São Paulo, Edição 1948, p.116-117, 26
mar, 2006.