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Memória social: em defesa das cantigas de roda

Ana Maria Paes Leme Carrijo Abrahão∗


Conceição Aparecida Costa Azenha∗∗

RESUMO: A partir da constatação de que várias cantigas da tradição popular estão sendo
alteradas em suas letras por algumas escolas brasileiras, buscamos encontrar nessas alterações
os principais elementos que motivam tal procedimento. Ao contrário do que geralmente
fundamenta os argumentos para as modificações das letras originais, a experiência com
musicalização para crianças, iluminada pela psicanálise, permite-nos identificar em diversas
ocasiões no cotidiano escolar que as cantigas de roda oportunizam para os alunos momentos
de exercício narrativo nos quais a criança pode descobrir a complexidade das relações entre as
pessoas e dos afetos e, nessa medida, construir novas formas de subjetivação que podem
estruturar novas formas de lidar com as dificuldades que daí surgem. O estudo poderá
contribuir ainda para a problematização da questão que aqui se coloca, qual seja, a negação do
patrimônio cultural em favor de um discurso politicamente correto que pretende supostamente
banir as formas de agressividade que as letras originais de cantigas de roda tradicionalmente
carregam. Nesse sentido, pretendemos ampliar o debate em torno das políticas públicas
educacionais em defesa da memória social, em consonância com a definição mais recente da
Unesco (2000) sobre o patrimônio cultural.

Palavras-chave: cantigas infantis, musicalização, psicanálise.


Professora da FAM – Faculdade de Americana, mestre em Educação pela FE/ UNICAMP.
∗∗
Professora da Faculdade Network, psicanalista, doutoranda no IEL/ UNICAMP, membro dos grupos de
pesquisa SEMASOMa e OUTRARTE do IEL/UNICAMP.
2

Acreditamos que as atividades de musicalização com crianças em sala de aula podem


ter um efeito psicoterapêutico e principalmente psicoprofilático na medida em que o professor
apresenta uma intervenção qualitativa que leve os alunos a encontrar maneiras de se expressar
e, com isso, constituir novas formas de subjetivação conquistando auto-realizações a partir do
fazer musical.

No cotidiano das salas de aula, em diversas ocasiões observamos as cantigas de roda


oportunizarem para as crianças – na condição de alunos – a resolução de conflitos que o
ambiente escolar, por sua estrutura, tende a reprimir.

Tendo em vista nossas nossa experiência com a musicalização no espaço escolar,


vimos realizando um levantamento pela Internet e em livros de músicas infantis, de canções
que apresentam suas letras originais alteradas buscando encontrar nessas alterações os
principais elementos que motivam tais alterações.

Pretendemos, com tal investigação, levantar novas questões que possam contribuir
para a prática do professor em sala de aula e justificar a necessidade de questionar a alteração
das cantigas populares e os argumentos que as motivam tendo como norte o respeito às
manifestações espontâneas das crianças quando, por meio das brincadeiras cantadas, elas
podem construir nas brincadeiras e/ou músicas da tradição – ou em cantigas mais recentes –
formas de conhecer o mundo, enunciar seus problemas e vislumbrar soluções para eles ao
mesmo tempo em que possam estruturar formas de lidar com a angústia que daí surge.

O estudo poderá contribuir para a problematização da questão que aqui se coloca, qual
seja, a necessidade da defesa do patrimônio cultural e o favorecimento do desenvolvimento
de novas interpretações e valorização das canções e suas letras originais, desmistificando
conceitos infundados e preconceituosos em prol do reconhecimento da força das canções e
brincadeiras de roda, contribuindo, dessa forma, para a discussão das políticas públicas
educacionais que, atualmente, tendem a seguir um modelo de um discurso politicamente
correto, em detrimento da memória social.

Muitas alterações nas letras tradicionais das músicas, de domínio publico, são
realizadas por escolas brasileiras que incorporam suas letras modificadas em seu currículo
oficial1 a partir da argumentação de que seu conteúdo traria mensagens agressivas /
angustiantes que incitariam o comportamento destrutivo / depressivo de quem as escuta.

1
Como informa edição 1948, de 22/mar/06 da Revista Veja.
3

Abaixo, seguem algumas cantigas tradicionais com sua respectiva alteração que
localizamos em versões usadas em muitas escolas2, em caráter oficial.

Boi da Cara Preta

Versão original Versão modificada Outra Versão


modificada

Boi, boi, boi Boi, boi, boi Boi, boi, boi


Boi da cara preta Boi da cara preta Boi do Piauí
Pega essa menina Pega essa menina Pega essa menina
Que tem medo de careta Que tem medo de careta Que tem medo de
dormir
Não, não, não
Não, a coitadinha
Ela está chorando
Mas é muito bonitinha

“O cravo brigou com a rosa”

Versão original Versão modificada

O Cravo brigou com a rosa O Cravo brigou com a rosa


Debaixo de uma sacada Debaixo de uma sacada
O Cravo saiu ferido O Cravo ficou ferido
E a Rosa despedaçada E a Rosa despedaçada
O Cravo ficou doente O Cravo ficou doente
A Rosa foi visitar A Rosa foi visitar
O Cravo teve um desmaio O Cravo teve um desmaio
A Rosa pôs-se a chorar A Rosa pôs-se a chorar
A Rosa deu um remédio
O Cravo logo sarou
O Cravo foi levantado
A Rosa o abraçou

Atirei o pau no gato

Versão original Versão modificada

2
Idem. Pela internet é possível encontrar vários sites, inclusive de educação, propondo tais alterações.
4

Atirei o pau no gato-to Não atire o pau no gato (to-to)


Mas o gato-to Porque isso (sso-sso)
Não morreu-reu –reu Não se faz (faz-faz)
Dona Chica-ca Ô gatinho (nho-nho)
Admirou-se É nosso amigo (go)
Do berro, do berro Não devemos maltratar
Que o gato deu: Miau! Os Animais
Miau!!!

É fato, também encontramos diversos artigos repudiando a nova prática de mudanças


propostas das letras das canções em função de certos valores e conceitos educacionais.
Críticas e comentários apresentaram leituras diversas sobre o papel das canções na vida do
homem e algumas pesquisas puderam apontar alguns dados que comprovam a não influência
das letras com relação ao comportamento das crianças, afirmando que as mesmas não
influenciam na prática de atitudes de crueldade ou coisa semelhante, como a pesquisa
realizada pela Universidade de Illinois, nos Estados Unidos que perguntou a 3.000 crianças o
que elas concluíam depois de escutar tradicionais cantigas de roda cujos personagens
centrais eram seres assustadores: 83% responderam que nem sequer prestavam atenção à
letra (WEINBERG, 2006), indicando que ritmo e a atividade lúdica envolvidos no episódio
configuram a prioridade no interesse das nas canções. Pesquisadores e educadores brasileiros
- com especial destaque a Lydia Hortélio pelo seu trabalho com crianças, com canções
infantis e com o folclore - afirmam nunca terem observado nenhuma criança maltratar um
gato porque cantou a canção “Atirei o pau no gato.” (idem).

A despeito das pesquisas mencionadas, qualquer pessoa pode identificar que as letras
das canções vêm sendo alteradas de forma arbitrária, modificando forçosamente a tradição
folclórica. Esta é uma prática cada vez mais comum nas escolas no país todo.

O que pretendemos discutir no presente trabalho versa em três eixos: as mudanças nas
tradições orais (narrativas populares em lendas, parlendas e cantigas); a questão da
significação (conteúdo) das letras nas cantigas populares e seus efeitos na educação das
crianças e, finalmente, a finalidade das cantigas como um produto cultural.

Aproximando-nos de nossa primeira questão, o artigo 216 da Constituição Brasileira é


claro ao afirmar que o patrimônio cultural é formado por bens materiais e imateriais, das quais
destacamos as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver, as citações artísticas e as
obras que, individualmente ou em conjunto, portam referência à identidade, à ação e à
memória de diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Nesse sentido, o texto
5

magno brasileiro contempla o dever do Estado em favorecer a criação, a difusão e a


conservação a dessas manifestações culturais através de incentivos diretos e indiretos, para
evitar destruição e avariações, por reconhecer que o patrimônio cultural de um povo é de
fundamental para seu desenvolvimento sustentado, a promoção do bem-estar social, e de
fomentação da cidadania.

Longe de um compromisso purista, estamos cientes de que as narrativas mudam no


decorrer da história assim, como a língua. A esse respeito, Bakthin assevera que

a reflexão lingüística de caráter formal sistemático foi inevitavelmente coagida a


adotar em relação às línguas vivas uma posição conservadora e acadêmica, isto é, a
tratar a língua viva como se fosse algo acabado, o que implica uma atitude hostil em
relação a todas as inovações lingüísticas. (BAKTHIN,1979: 89 apud Gnerre, 1985:
6).

Propomos abordar as cantigas populares como uma das manifestações das vivências,
reflexões e elaborações da tradição oral, por incluí-las na categoria da produção de sentido
através da palavra – aquela que sai da boca par ao ouvido. Por essa via, Alcoforado (2008)
lembra que autoria de uma tradição popular não é de um único sujeito, como na tradição
erudita: a autoria nas tradições orais, portanto é pública, uma vez que é fruto da recriação de
um sujeito que se apropriou do patrimônio cultural e ao atualizá-lo da memória para fala,
transmite-o de maneira sempre singular. Nesse sentido, o lingüista Roman Jacobson, ao
investigar a estreita relação entre folclore e lingüística, conclui que

em ambas as matérias a contribuição individual e coletiva se fazem presentes Como


langue, a obra folclórica é extra-pessoal e existe virtualmente à espera de que um
transmissor venha animá-la, adequando-a pelo uso individual – a parole – a um
universo cultural. Ao referir-se à especificidade da obra folclórica, esse lingüista
chama atenção para a sua funcionalidade pois a sua existência depende de
“uma aceitação por uma comunidade determinada”. Essa aprovação por um
grupo, deixa evidente a necessidade de adaptação da matéria tradicional, sem o que
ficam comprometidas a funcionalidade e comunicabilidade da forma.
(ALCOFORADO, 2008) (grifo nosso)

A autora (apud Nascimento, 2008:17) define, em termos de gênero, o texto oral


tradicional

como produzido por meio de um ato performático, em que um enunciador, o


intérprete do saber da tradição, passa para platéia um texto virtual que traz na
memória, instante em que aspectos da cultura, referências a situações locais,
comentários de circunstantes e visão de mundo do contador são transmitidos através
do registro compatível à diversidade lingüística do enunciador e da região.

É forçoso admitir que em tudo o que se faz (ou se fala) repetidamente, novamente (ou
de novo) há a presença do mesmo mas também de uma novidade: as tradições orais também
6

vão, a partir de sua infinita repetição, guardar algo de sua estrutura anterior e, ao atualizar-se
nos falantes, trazer alguma novidade. Nesse sentido, as mudanças são obliteradas porque no
jogo dinâmico de sua presentificação, o passado se perde. Não são essas mudanças que
simplesmente acontecem pela estrutura do funcionamento das tradições orais que colocamos
em questão.

Nossas interrogações referem-se, portanto, à autoria das modificações ao fato de


alguns educadores autorizarem-se a efetuar mudanças nas letras da tradição oral sem levar em
conta seu aspecto de criação coletiva e pública. Deste modo, nossa interrogação está em
consonância com o que está garantido na Constituição em relação ao Patrimônio Cultural.
Colocada em outros termos, podemos, finalmente, formulá-la da seguinte maneira: as
alterações realizadas nas letras das canções populares – de domínio público – a partir de um
discurso politicamente correto, não estariam colocando em risco o patrimônio cultural
brasileiro ou, no mínimo, apontando uma formulação tendenciosa que implicaria em
desabonar algumas práticas culturais, indicando que nem todas as produções simbólicas de
um povo são válidas ou adequadas?

Consideramos as alterações legítimas quando são próprias das diferentes épocas e


regiões, e as manifestações culturais como aquilo que permite ao homem, dentro de sua
comunidade, contar o seu passado vivendo-o em seu presente e projetando-o em seu futuro.

Com relação ao segundo eixo da problematização que nos ocupa – vale lembrar, a
questão da significação (conteúdo) das letras nas cantigas populares e seus efeitos na
educação das crianças – pretendemos realizar uma discussão que inclua a busca dos
motivadores das modificações que, a partir deste momento, nomearemos de arbitrárias.
Encontramos nas letras acima descritas que alguns elementos foram suprimidos e
substituidos, como a morte, o medo e a dor, fazendo-nos supor que seriam considerados
elementos perturbadores que justificariam a mudança em seu texto.

Sabemos que as canções de ninar são geralmente cantadas pelas mães para embalar
seus bebês no momento de ir dormir. Bebês muito pequenos ainda não conseguem realizar a
significação das palavras substiuindo os signos pelas imagens mentais, assim, não conseguem
entender o que é boi da cara preta, muito menos medo de dormir ou medo de careta. O que
embala os bebês é a melodia, o movimento, o ritmo das canções que provoca movimentos
consonantes de seu corpo às paradas, apressamentos e lentidões da cantiga e pela sonoridade
que marca o gesto vocal do cantor que a embala. Nesse jogo linguistico, que Vorcaro (2002:
68) nomeia embalar andante fonte de grande satisfação para a criança que não se atém à
7

condição do sentido (cujos efeitos só vão sendo captados a partir da puberdade) mas sim ao
non-sens:

O período em que uma criança adquire o vocabulário da língua materna


proporciona-lhe um óbvio prazer de ‘experimentá-lo brincando com ele’, segundo as
palavras de Gross . Reúne as palavras, sem respeitar a condição de que elas façam
sentido, a fim de obter delas um gratificante efeito de ritmo ou de rima (FREUD,
1905:122)

É também o mestre vienense que nos aponta o caminho para entendermos o motivo de
haver uma inflação no sentido das cantigas pelos adultos e, por isso mesmo, justificar para
alguns, a necessidade de mudança: a falta de liberdade para pensar imposta pela compulsão à
lógica da vida acadêmica traz efeitos de repressão aos adultos. No entanto, complementa
Freud, para o homem é muito difícil recusar um prazer sentido, por isso, sempre busca
resgatar o prazer primeiro, aqui especificamente, da liberdade de pensar e daquele sentido no
non-sens vivenciado na infância. Ou seja, para a criança, adeptas à ficção, quanto mais sem
sentido, absurda, mágica, fantástica e radical for a narrativa, melhor. Além disso, Crianças
captam, como Pinochio, rapidamente intenções pedagógicas subliminares nos jogos cênicos
e, portanto, não aderem a ela: se elas farejam que estão diante de um Cavalo de Tróia repleto
de pedagogia, não terão dúvidas em incendiar o engodo. (CORSO; CORSO, 2006:304)

O prazer do non-sens compõe o infantil que para a psicanálise, é imperecível. Rastros


desse prazer da infância, exemplifica Freud3, não raro, encontramos adultos que, logo depois
das palestras oficiais dos congressos, já em situação de descontração, na cadeira de
expectador se sentem novamente na situação de aprendiz, distorcem em non-sens o que
acabaram de descobrir pelos renomados palestrantes, numa espécie de compensação oferecida
ao novo acréscimo em sua inibição intelectual4!

Finalmente, chegamos à discussão sobre a finalidade das cantigas como um produto


cultural. Bem sabemos que nada garante a felicidade humana mas, a partir da psicanálise,
podemos conferir às histórias e brincadeiras infantis um momento privilegiado para pensar e
ver a realidade, ampliando os recursos simbólicos da criança e, conseqüente, a ampliação das
formas de subjetivação que permitem enfrentar os problemas que as afligem:

Um grande acervo de narrativas é como uma boa caixa de ferramentas , na qual


sempre temos o instrumento certo para a operação necessária, pois determinados
consertos ou instalações só poderão ser realizado se tivermos a broca, o alicate ou a
chave de fendas adequados. Além disso, com essas ferramentas, também podemos
criar, construir e transformar os objetos e os lugares.(idem:303)

3
Idem.
4
Ibidem.
8

A brincadeira e os jogos, devido à compulsão à repetição, tem estatuto de modalização


do desejo, ensina Freud5, uma vez que o domínio do jogo permitiria à criança fazer frente à
falta da plenitude sempre buscada (e jamais alcancada) pelo desejo. Nesse sentido, a proibição
é o que permite ao sujeito desejar. Colocar acento no sentido das músicas infantis pode se
revelar uma prática “educativa” equivocada, onde “o tiro sai pela culatra”: se podemos
admitir que o prazer que as cantigas evocam são pelo ritmo e o de brincar e não pelo seu
sentido (significação) e que os efeitos de sentido são capturados apenas a partir da
adolescência, a modificação de tais letras podem funcionar como um álibi a mais para a
rebeldia. Vale a pena citar Freud:

Muito mais poderosas são as restrições impostas à criança durante o processo


educacional, quando se a introduz no pensamento lógico e na distinção entre o que é
falso e verdadeiro na realidade; por essa razão a rebelião contra a compulsão da
lógica e da realidade é profunda e duradoura. Mesmo o fenômeno da atividade
imaginativa pode ser incluído nessa categoria [rebelde]. O poder de crítica aumenta
tanto na derradeira infância e no período da aprendizagem, estendida além da
puberdade, que o prazer do ‘nonsense liberado’ só raramente ousa se manifestar
diretamente. Ninguém se aventura a dizer absurdos. Entretanto a tendência
característica dos rapazes em dizer absurdos ou idiotices parece-me diretamente
derivada do prazer no nonsense.[...] Igualmente, mais tarde, os estudantes
universitários não prescindem destas demonstrações contra a compulsão da lógica e
da realidade, cujo domínio, entretanto, percebem crescentemente mais intolerante e
irrestrito. Muitas das brincadeiras verbais dos estudantes fazem parte dessa reação.
Pois o homem é um ‘incansável buscador do prazer’. (FREUD, 1905: 123)

Assim, o movimento do desejo pelo embalar das cantigas – pura aventura na


linguagem, em que várias e bizarras narrativas se incluem – facilita a plasticidade emocional,
tornando quem as ouve mais capaz de reagir adequadamente às situações difíceis.

Vejamos um exemplo. A canção “O Cravo e a Rosa” modificada parece indicar para


a criança uma necessidade imediata – e sempre possível – de acordo, reconciliação ou
reparação. No entanto, sabemos que a vida é repleta de impossíveis, de brigas,
desentendimentos e os conflitos e muitas dessas situações – ou todas – estão presentes na
escola. A alteração da letra parece indicar que a resolução do conflito deveria estar explícita
na canção evitando, assim que a criança deixe de sentir a necessidade de se reconciliar nos
momentos de desentendimentos com o outro. Estes são sentimentos necessários e nobres nos
relacionamentos. No entanto, será que o individualismo presente no cotidiano atual é fruto de
nossas relações aprendidas nas canções e suas letras? Certamente que não. De fato, não
podemos compartilhar dessa visão ingênua que atribui às crianças a responsabilidade por

5
Hipótese desenvolvida por Freud, S. (1920) em “Além do Princípio do Prazer”, O.C., vol. XVIII.
9

preparar um mundo melhor, justamente quando é e sempre foi, o adulto que prepara o mundo
para chegada da criança!

Vinha (2000) apresenta uma discussão bastante interessante sobre o papel dos
conflitos no cotidiano da escola os quais, enfatiza, não devem ser evitados ou mascarados,
mas sim resolvidos com o diálogo e a troca de papéis que levam a criança a refletir sobre sua
atitude e reconhecimento dos sentimentos do outro. Portanto, é no dia-a-dia, nas situações de
conflito, nas relações diretas com as pessoas que elaboramos o sentimento de repeito e
solidariedade e o espaço da fantasia, do brincar e do cantar são leitos sobre os quais essas
possibilidades de resolução irão se assentar.
Nesse sentido, a cantiga (que geralmente está associada às brincadeiras de roda) como
qualquer outra brincadeira para a criança tem um papel capital em sua estruturação psíquica: é
realizando ativamente o que sofreu passivamente que a criança pode fazer frente às
dificuldades de viver; ao brincar, a criança interpreta a realidade. O brincar, para a crianças,
é o recurso que lhe permite, no mesmo ato, realizar desejos, elaborar situações penosas e Ao
brincar, a criança inverte posições e, ao reviver o vivido, inventa uma nova ordem que lhe
agrada, veiculando sua leitura dos fatos e emendando o que foi recalcado com fábulas e
teorias. (AZENHA, 2008: 67)

Em 1907, Freud procura diferenciar o brincar do fantasiar e coloca como sinônimos os


termos brincar e jogar. Com relação à distinção que opera entre brincar e fantasiar, Freud
afirma que a criança distingue perfeitamente brincadeira da realidade e leva muito a sério essa
atividade, enfatizando que “a antítese do brincar não é o que é sério, mas o que é real”
6
(FREUD, 1907:135). Para Freud, o que diferencia o brincar do fantasiar é justamente a
ligação que a criança realiza entre seus objetos e situações imaginadas com as coisas visíveis
e tangíveis no mundo. Na fantasia, não haveria essa ligação.

É nesse sentido que Lacan em seu décimo segundo seminário7 vai afirmar que a
condição de haver brincadeira é que não haja risco para a criança: é somente quando há
espaço para o jogo de posições dos vários personagens (das brincadeiras, cantigas, lendas,
contos, etc.) em que seu fantasiar ao brincar invente ou adote várias possibilidades de

6
Nesse momento, a teorização psicanalítica não dispunha dos conceitos de Real – Simbólico – Imaginário, como
propostos por Lacan e, desta maneira, o real apontado por Freud corresponde ao termo realidade proposto por
Lacan. Apenas muitos anos depois é que Lacan enfatizará que o aquilo que se opõe à fantasia não é a realidade,
mas o real. No entanto, já na Interpretação dos Sonhos (1900), Freud abre caminho para a formulação lacaniana,
diferenciando realidade psíquica de realidade material.
7
Seminário não publicado. Cf. Maciel, 2006:29.
10

identificações, que a criança pode compor o repertório imaginário de que ela necessita para
abordar os enigmas do mundo e do desejo.(KEHL, prefácio, IN: CORSO, 2006:17)

Desta forma, a teorização que precede bem como nossa experiência com a
musicalização em espaços escolares com crianças, permite-nos admitir que canção “Atirei o
pau no gato”, por exemplo, em sua versão tradicional, pode se tornar um momento
importante na elaboração pela criança de seus próprios sentimentos agressivos – inerentes a
qualquer sujeito: é por poder brincar e cantar (espaço onde não há risco) justamente que à
criança é oferecida a possibilidade de não atuar sua agressividade com seus pares. Em suma,
temos observado que os argumentos utilizados para a modificação das cantigas tradicionais
dizem mais dos fantasmas dos adultos do que da necessidade educativa às crianças. O casal
Corso (2006:304) após a análise de vários contos de fadas, antigos e modernos, concluem que
possam por si mesmas ser responsáveis por eventuais problemas que as crianças venham a
apresentar:

Sozinhas, histórias não induzem à violência, não fazem apelos regressivos que as
retenham na infância, não produzem isolamento social, nem as desligam da
realidade. Se certas crianças apresentam alguns desses comportamentos, é melhor
procurar culpados em outro lugar.

Para (não) concluir as questões em torno desse debate, cabe ressaltar que as
manifestações artísticas e culturais são representações que fazem parte do patrimônio cultural
de um povo e que não estamos pensando em abrir mão da (necessária) educação das crianças.
No entanto, entendemos, conceitos morais, cívicos ou de cidadania podem ser trabalhados de
outras maneiras sem ser a estratégia de um pequeno grupo forjar letras em cantigas da
tradição oral em função do princípio de controle que certas psicologias pretendem atribuir aos
adultos em relação ao desenvolvimento da criança. Melhor seria, ao nosso juízo, que os
educadores pudessem, junto às crianças, criar novas melodias e letras que possibilitassem
veicular valores, conceitos e enigmas construídos pelo grupo em situação educativa, de forma
a considerar as relações humanas em toda sua diversidade.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

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