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Aula 1
PARTE I
Por que expor(-se)?
Em primeiro lugar, é preciso perguntar-se: por que expomos obras de arte? Por
que relacionamos de maneira causal imediata a produção de obras de arte a um
determinado efeito, ou seja, a exposição? Seria fruto da mera vontade do(a) artista de
exibir a si e sua produção ou estaria relacionado a certa forma de existência da arte?
Na apresentação desse módulo de estudos, afirmamos que a destinação da
produção artística à esfera pública estava inscrita em certa ideia de arte desde a era
moderna. Nessa passagem localizada por volta do século XV, podemos reconhecer
transformações fundamentais nos modos de produção, circulação e recepção da
produção artística em direção daquilo que viria a ser denominado arte, propriamente, e
de seus exemplares, as obras de arte. O filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940)
caracteriza essa passagem como a oscilação entre dois modos distintos de recepção da
obra de arte, ou seja, um jogo entre dois polos aos quais denomina valor de culto e valor
de exposição.
A produção artística, num sentido largo, se inicia com imagens que servem ao
culto, desde os primeiros registros aos quais temos acesso nas paredes das cavernas
até as imagens acessíveis apenas a sacerdotes no interior de um templo, ou as estátuas
que permaneciam cobertas durante quase todo o ano e eram exibidas em alguma
ocasião particular e mesmo as peças escultóricas ou de estatuária que não podiam ser
vistas por observadores posicionados no piso térreo em uma catedral medieval, por
exemplo (BENJAMIN, 2012). Supõe-se que os bisões e alces, com frequência,
desenhados ou gravados em paredes de câmaras profundas num complexo de cavernas,
seriam instrumentos mágicos e, ainda que seus contemporâneos pudessem vê-los, sua
destinação seria para o sagrado. Algo da mesma natureza ocorre no contexto dos ritos,
dos monumentos funerários, templos e catedrais: o caráter simbólico das imagens e sua
suposta capacidade de agência presidiriam suas produções. O fiel da balança, nesses
casos, pende para o valor de culto, embora também sejam recepcionadas enquanto valor
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Salão de 1699, Grande galeria do Louvre. Nicolas Langlois (1640-1703), gravura, 1700.
Museo Ferrante Imperato, Dell'Historia Naturale, gravura em metal, Nápoles, 1599. Fonte:
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/f/f3/RitrattoMuseoFerranteImperato.jpg.
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Kunst und Raritätenkammer, Frans Francken II, óleo sobre madeira, 74 x 78 cm, 1636. Fonte:
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/04/Frans_Francken_%28II%29%2C_Kunst-
_und_Rarit%C3%A4tenkammer_%281636%29.jpg.
Vista da Galeria 43 no início dos anos 1920, antes da reformulação empreendida por Alexander Dorner.
Fonte: Staniszewski, 2001, p. 18.
progressiva das artes por meio de uma concepção cronológica e espacial que favoreceria
tal percepção do acervo a que denominou atmosphere rooms, que poderíamos traduzir
mais adequadamente como “salas temáticas” dotadas de certa “atmosfera”.
O objetivo das salas temáticas seria evocar certo “espírito” de cada período de
modo a produzir a sensação de imersão no visitante. As galerias da Renascença eram
brancas ou cinzas para enfatizar o interesse do período pelo espaço geométrico e pela
perspectiva. Nas galerias do Barroco italiano, as paredes foram cobertas com veludo
vermelho e as pinturas colocadas em molduras douradas. O esquema cromático das
galerias Rococó era composto por tons de rosa, dourado e branco perolado
(Staniszewski, 2001, p. 20). Ainda de acordo com Dorner, as impressões sensíveis
produzidas por essa ambientação deveriam ser enquadradas por informações textuais
que explicassem a proveniência, o tema e as particularidades estilísticas de cada obra,
fatos históricos e conquistas estilísticas de cada período para que os desdobramentos
da arte fossem “revelados” como uma sequência consistente de estilos que se somam
uns aos outros de modo a denotar um suposto “avanço do espírito humano no campo
das artes plásticas” (DORNER apud LÖSCHKE, 2013, p. 28). Dorner concebeu, portanto,
as exposições como representações evocativas de determinadas percepções em uma
linha do tempo progressiva.
Galeria da Renascença italiana depois de sua reorganização. Fonte: Löschke, 2013, p. 31.
Galeria do Barraco holandês depois de sua reorganização. Fonte: Löschke, 2013, p. 31.
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Ilustração de pôster impresso em papel colorido e afixado nas portas entre as salas de exposição do
Landesmuseum, Hanover. Original em alemão traduzido para o inglês por Löschke, 2013. Fonte: Löschke,
2013, p. 34.
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As exposições desde fins dos anos 1910 até a década de 1960, foram pródigas
nesse tipo de arranjo. As vanguardas artísticas, muitas vezes imbuídas da tarefa de
construir a obra de arte total, ou seja, de espraiar os limites da arte na vida cotidiana de
modo a integrá-las, e as experimentações efervescentes do design como disciplina foram
seu combustível. Inovações tecnológicas, os meios de comunicação de massa, o advento
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Vista da exposição "0.10: a última exposição futurista", em Petrogrado, 1915. Sala com trabalhos
suprematistas de Malevitch. Fonte: https://www.researchgate.net/figure/Figura-3-Exposicao-010-a-ultima-
exposicao-futurista-em-Petrogrado-1915_fig3_304579200.
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Marcel
Duchamp, Milha de fio, First papers of surrealism, Whitelaw Reid Mansion, Nova York, 1942. Fonte:
https://www.tate.org.uk/research/publications/tate-papers/22/duchamp-childhood-work-and-play-the-
vernissage-for-first-papers-of-surrealism-new-york-1942.
Sala
Surrealista, Galeria Art of this Century, de propriedade de Peggy Guggenheim. Nova York, 1942. Projeto
de Frederick Kiesler. Fonte: https://alchetron.com/The-Art-of-This-Century-gallery#the-art-of-this-
century-gallery-69bfe490-6883-40f4-900a-aaa64c83349-resize-750.jpeg.
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Entrada da Galeria Iris Clert durante a abertura da exposição “The Void” (O vazio), de Yves Klein, Paris,
28 abr. 1958. Fonte: http://www.yvesklein.com/en/photographies/view/458/entrance-of-the-galerie-iris-
clert-during-the-opening-of-the-void-exhibition/.
The Specialization of Sensibility in the Raw Material State of Stabilized Sensibility (O isolamento da
sensibilidade num estado de matéria-prima estabilizado pela sensibilidade pictórica) - exposição "The
Void", 28 abr. - 12 maio 1958. Fonte: http://www.yvesklein.com/en/oeuvres/view/642/the-specialization-of-
sensibility-in-the-raw-material-state-of-stabilized-sensibility-exhibition-of-the-void/.
A jornada da arte até o “cubo branco” (O’DOHERTY, 2002), como ficou conhecido
o espaço pretensamente “neutro” das galerias de arte desde o modernismo, é reveladora
de práticas e visões sobre a arte e sobre o mundo. O que buscamos mostrar até esse
ponto é o lugar das exposições como construções discursivas sobre a arte, a prática
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artística e a história. Nesse enredo, iluminamos a proto existência de uma figura muito
bem conhecida no ambiente de arte da contemporaneidade: o (a) curador(a). É sobre ela
que nos deteremos em nossa próxima seção.
PARTE II
É claro que esses sistemas assumem características particulares, não são tão claramente
delineados ou não ocorrem com o pleno desenvolvimento de suas instituições a cada instância de
sua aparição. É possível até que seja esse o caso em sua localidade. De todo modo, reconhecer e
compreender o funcionamento desse sistema em seu meio cultural é fundamental para a atuação
profissional do(a) artista. Neste módulo, nosso foco será sobre a instância de reflexão crítica, mais
precisamente, a curadoria.
Ouvimos com frequência que vivemos num mundo hiperpopulado por imagens e
informação: notícias, filmes, vídeos, lives, debates, redes sociais, anúncios, emojis,
figurinhas, selfies, lugares, arte, pratos de comida, plantas, roupas, casas, carros,
bicicletas, animais de estimação, família, amigos(as), viagens e mais um sem número de
imagens, imagens e mais imagens. Sobreviver a tudo isso não seria possível se não
fizéssemos escolhas, se não selecionássemos o quê, quando e como ler, ver e ouvir, se
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não organizássemos toda essa informação de modo a torná-la manejável por nós
mesmos. Assim tratamos as notícias que nos chegam por newsletters, podcasts, filmes
em plataformas de streaming, vídeos em plataformas de compartilhamento. Para os(as)
mais organizados(as), tudo devidamente salvo numa playlist ou marcado para “assistir
mais tarde”.
Pense agora numa tarefa corriqueira para professores e professoras no exercício
de suas funções em qualquer nível de ensino. A partir de uma ementa ou diretrizes
curriculares, selecionam temas, conteúdos, autores, imagens e os organizam numa
sequência didática a ser apresentada para um público de estudantes. Grosso modo, tais
atividades de seleção, organização e apresentação dos mais diversos conteúdos – dos
filmes aos vinhos, das artes visuais aos espetáculos de dança e à literatura –, segundo
determinados critérios, constituem os fundamentos mais básicos do que denominamos
curadoria.
No campo da arte, contudo, esse profissional alcançou tamanho destaque e
prestígio na contemporaneidade que, por vezes, os sentidos e as funções da tarefa que
exerce num sistema de arte se tornam exacerbados. Como vimos nos exemplos
anteriormente apresentados, a atividade curatorial foi – e, em muitos casos, ainda é –
desempenhada por diretores de museu, artistas, críticos, historiadores, conservadores,
professores etc., mesmo antes da existência da figura do(a) curador(a) como atividade
profissional nos sistemas de arte. A designação profissional, propriamente, surge na
década de 1960 e a atividade atinge sua maturidade no âmbito da arte internacional na
década de 1990, momento em que, como sintoma dessas transformações, as
extravagantes listas de personalidades mais influentes do mundo da arte passaram a
estampar curadores e curadoras em seu topo.
Marcos históricos do aparecimento da curadoria como prática profissional são
exposições como When attitudes become form, realizada na Suíça, em 1969, e em que
o curador Harald Szeemann, efetivamente, aborda a prática expositiva como estratégia
discursiva. Nessa exposição, Szeemann apresentou a produção de 69 artistas,
explorando o conceito operatório de “anti-forma” na arte contemporânea, sob o título Live
in Your Head: When Attitudes Become Form (Works – Concepts – Processes – Situations
– Information), algo como, Ao vivo em sua cabeça: Quando as atitudes se tornam formas
(Conceitos – Processos – Situações – Informação), em português.
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Live in Your Head: When Attitudes Become Form (Works – Concepts – Processes – Situations –
Information), Kunsthalle Bern, Berna, Suíça, 22 mar. - 27 abr. 1969. Vista da exposição: Mario Merz, Robert
Morris, Barry Flanagan e Bruce Nauman. Fonte: https://www.contemporaryartdaily.com/project/live-in-your-
head-when-attitudes-become-form-works-at-kunsthalle-bern-bern-7880.
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Gary B. Kuehn, Keith Sonnier, Alan Saret, Bill Bollinger, Walter de Maria e Eva Hesse. Fonte:
https://www.contemporaryartdaily.com/project/live-in-your-head-when-attitudes-become-form-
works-at-kunsthalle-bern-bern-7880.
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Outro evento que merece atenção, é o JAC – Jovem Arte Contemporânea, uma
mostra anual, ocorrida entre os anos de 1967 e 1974, no Museu de Arte Contemporânea
da Universidade de São Paulo (MAC-USP). Na edição de 1972, Walter Zanini, historiador
da arte, professor universitário, crítico, curador e primeiro diretor do MAC USP (1963-
1978), atento ao debate contemporâneo e às formas de arte conceitual, planejou uma
mostra de arte de caráter processual. O museu foi dividido em 84 “lotes” heterogêneos –
“quadrados, circulares, curvos, ao lado de colunas, com pé-direito alto ou contornando
as fachadas de grandes janelas…” (ZANINI, 2010, p. 188) – e que foram distribuídos por
sorteio a cada um dos(as) artistas inscritos mediante proposta escrita de ocupação. A
exposição em processo acontecia ao mesmo tempo em que os projetos eram realizados:
na proposta do artista grego Jannis Kounellis, dois pianistas se revesavam tocando Va
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pensiero, de Verdi, durante todo o tempo, enquanto os (as) artistas adaptavam seus
projetos, permutavam espaços e desenvolviam sobretudo instalações, performances e
ações colaborativas em meio ao público visitante, ecoando a questão cara à Zanini do
“museu como foro em oposição a museu como templo” (ZANINI, 2010, p. 190).
VI Jovem Arte Contemporânea, MAC-USP, São Paulo, 1972. Catálogo da exposição. Fonte:
http://www.mac.usp.br/mac/conteudo/biblioteca/jac/1972.pdf.
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VI
Jovem Arte Contemporânea, 1972. Vista da montagem dos projetos dos artistas. Fonte:
http://www.mac.usp.br/mac/EXPOSI%C7OES/2013/zanini/galeria.htm.
Com isso não queremos dizer que a curadoria seja uma atividade negativamente
orientada ou mera intermediária. Até mesmo porque as relações entre curadores(as) e
artistas ocorre, na maioria das vezes, de modo mais orgânico e retroalimentado, na forma
de acompanhamento e discussão da produção. É claro também que as escolhas de
curadores e curadoras, responsáveis pela seleção e veiculação de artistas e suas
produções em exposições, feiras de arte, mostras internacionais, galerias, coleções
públicas e particulares, publicações etc. têm reflexos diretos sobre as carreiras desses
últimos, os (as) artistas, bem como sobre a fixação dos valores negociados nessa
circulação. Contudo, é preciso também lembrar que boa parte do que é produzido em
termos reflexivos no campo da arte está relacionado à atividade organizadora, crítica e
mediadora realizada por curadores e curadoras, em seus exemplos mais promissores, e
na medida em que essa produção fomenta também os campos da crítica, da história e
da teoria da arte, por exemplo.
Mas, em que consiste efetivamente a tarefa ou função do(a) curador(a) de arte?
Quais são os fundamentos dessa prática e como é possível avançar nas problemáticas
envolvidas no desempenho de suas tarefas? Começaremos pelos fundamentos.
Invocando a origem etimológica do termo (curare), o professor e curador Cauê
Alves identifica o (a) curador(a) de arte como “aquele que está incumbido de cuidar, zelar
e defender os interesses do artista e dos trabalhos de arte” (ALVES, 2010, p. 43). Na
prática, Alves define o (a) curador(a) como o (a) “profissional que organiza, supervisiona
ou dirige exposições, seja em museus ou nas ruas, em espaços culturais ou galerias
comerciais” (ALVES, 2010, p. 43). Para a também professora, crítica e curadora Glória
Coelho, a prática curatorial consiste num medium, ou seja, em um meio:
uma disciplina que depende de uma intenção crítica, de um projeto”, acrescentando que
“toda exposição exige um teor propositivo ou de contestação” (Lagnado, 2008, p. 9-10).
É neste sentido que a autora considera que as mostras de natureza panorâmica são
insuficientes para configurar uma reflexão curatorial. Lagnado estabelece também o que
denomina como “mínimas normas” relacionadas à tarefa do(a) curador(a):
Por fim, Lagnado sumariza: “É chamada de curadoria a exposição que rompe com
o marasmo e o dejà-vu, que propõe uma reorganização do mundo das imagens”
(LAGNADO, 2008, p. 14).
Mostras como as bienais de São Paulo, por exemplo, têm encaminhado suas
propostas nessa direção, a exemplo das edições curadas por Paulo Herkenhoff,
conhecida como a “Bienal da Antropofagia” (24ª Bienal de São Paulo, Um e/Entre outro/s,
1998), por Lisette Lagnado (27ª Bienal de São Paulo, Como viver juntos, 2006), e a atual
edição, sob a curadoria-geral de Jacopo Crivelli (34ª Bienal de São Paulo, Faz escuro
mas eu canto, 2021).
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Núcleo Histórico da 24ª Bienal, com vista para as obras de Albert Eckhout e Séculos XVI-XVIII, Mameluca,
Mulher Africana, India Tupi e Índia Tarairiu. Curador-geral: Paulo Herkenhoff.
27ª
Bienal de São Paulo, Como viver juntos, 2006. Curadora-geral: Lisette Lagnado.
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34ª Bienal de São Paulo. Faz escuro mas eu canto. Curador-geral: Jacopo Crivelli.
Revisão
Para elaborar um projeto curatorial de qualquer natureza ou abrangência, é preciso ter em mente que
a proposta será tanto mais potente quando apontar uma questão e propor uma reflexão sobre a obra
de um(a) artista ou de um grupo de artistas – seja sobre as linguagens artísticas, contrastes e
semelhanças de toda a ordem, relações com obras próximas e distantes, o tempo em que vivemos etc.
Elabore-a de fato como um problema de pesquisa e proponha sua abordagem à questão. Desse modo,
a exposição começa a se construir como uma tese proposta, fundada sobre argumentos visuais, teóricos
e conceituais, e colocada sob o escrutínio público.
Anotações
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