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LITERATURA E LINGUAGENS ARTÍSTICAS

Professora Doutora Celina Martins

Écfrase – O império do olhar,


proposta de caracterização de Emilie por Hakim
em Relato de um Certo Oriente de Milton Hatoun

n.º 2017120 Laura Alba Moniz Gouveia


Resumo
Iniciando-se com uma reflexão acerca da descrição, da retratação e do processo
ecfrástico para justificar as asserções aqui contidas, esta análise incide sobre a
caracterização de Emilie aos olhos do seu filho Hakim e como a écfrase se constitui na
interpretação resultante desta leitura. Referem-se alguns aspectos relativos ao olhar de
Emilie sobre Hakim e o que este representa para ela. A reflexão acerca dos retratos que
esta lhe envia e o retrato descritivo que este fornece ajuda a formar uma definição da
personalidade fragmentada desta. Asserções que só se tornam possíveis através das
pistas variadas que esta narração fornece e que desvendam o segredo de este ter sido
amado como imagem, como espectro e também como ponte com o passado ausente e
para sempre perdido, num processo em que a écfrase se apropria de outros recursos
imagéticos.

Palavras-chave: écfrase, Emilie, Hakim, Milton Hatoum, retrato, espectro

Abstract:

Starting with a reflection about the concept of description, portrayal and photography
and on the ekphrastic process so as to justify the assertions herein comprised, this
analysis focuses on characterizing Emilie as seen by her son Hakim and on how the
ekphrasis is built as such from the reading and the resulting interpretation. Some
features concerning Emilie’s view on Hakim and what he represents to her. The
reflection on the photos she sends Hakim and the descriptive portrayal he supplies helps
to build a definition on Emilie’s shattered personality. These assertions only become
possible by means of the various clues this narrative offers – they unveil the secret of
Hakim’s having been loved as image, spectre and also as bridge to an absent and forever
lost past through a process in which the ekphrasis takes over other imagistic tools.
.
Key-words: ekphrasis, Emilie, Hakim, Milton Hatoum, portrait, photograph, spectre
O propósito desta reflexão tem como objectivo caracterizar Emilie e a sua
relação com o filho predilecto, e através do olhar de Hakim e do processo ecfrástico
resultante das suas leituras das fotografias que a mãe lhe envia e da comunicação que
mantém com esta ao longo de mais de duas décadas, definir a real ligação desta mãe ao
filho. Importante e indissociável desta narrativa a 5 vozes, é o processo mental de
Emilie, na forma como vê o filho introduzindo a ideia de filho como imagem que evoca
outra imagem: a do irmão falecido. Num jogo de ecos de eventos e reflexos que se
cruzam entre capítulos este texto acaba por colocar a myse en abyme ao serviço da
écfrase, sendo o processo de interpretação da mise en abyme em si mesmo uma forma
de interpretação e reverberação ecfrástica.

O romance é formado por 8 capítulos numerados, sem título.


“[...] com estrutura fragmentada, o livro apresenta uma história composta por diversos
relatos autônomos que se integram e se completam. Estas falas são proferidas na voz
de cinco narradores, sendo um destes encarregado do trabalho de recolha e de
“costura” dos depoimentos e histórias. Como resultado tem-se um livro surpreendente,
engenhado de forma a lembrar a tradição oral dos narradores orientais: histórias dentro
de histórias, no estilo de As mil e uma noites - obra referida no romance.” (Bortoluzzi,
2009:31)

No primeiro capítulo encontra-se uma carta da “criança que chorou a morte da


outra criança.» e que só é assim referida no capítulo oitavo. (Hatoum,1991:207) O
segundo capítulo é uma carta do filho de Emilie, Hakim, dirigida à narradora anónima
relatando-lhe memórias de infância. No terceiro capítulo temos um relato dirigido à
primeira narradora e escrito por Gustav Dorner que refere a última manhã do irmão de
Emilie e a última fotografia que lhe tirou. No quarto capítulo encontra-se um registo do
marido de Emilie, sobre o seu passado e vinda para o Brasil, recolhido do Gustav
Dorner, num dos inúmeros cadernos em que recolhia notas. No quinto capítulo segue-se
ao testemunho de Dorner, uma carta de Hakim. No sexto capítulo, a primeira narradora
regressa, descrevendo pormenorizadamente ao irmão biológico o seu passeio por
Manaus e encontro com Gustav Dorner. O sétimo capítulo contém o testemunho de
Hindié Conceição, a melhor amiga de Emilie. O oitavo capítulo encerra este périplo de
tentativa de desfragmentação da narradora que recolheu as memórias fragmentadas pelo
tempo e pelos vários testemunhos. Aqui é narrada a sua desfragmentação e
internamento num hospital psiquiátrico. O conjunto é uma recolha endereçada ao irmão
biológico, logo o formato final é epistolar.
A história de Emilie nasce a partir da curiosidade da primeira contadora deste
livro. Pouco se virá a saber dela, o seu nome jamais é pronunciado. Ela é alguém cuja
memória se esbateu, e dentro de si ecoam ecos de um «inferno» ao qual regressa
dividida. A sua busca é interpretável como desejo de encontrar-se e definir-se,
desfragmentar-se através da recuperação da memória da vida de Emilie.
O primeiro capítulo fala do seu regresso a Manaus, após anos de ausência, fica
na casa da mãe biológica, mas a sua intenção é visitar Emilie, mãe adoptiva. Dirige-se
ao irmão biológico, ausente em Espanha, com quem fez um acordo: recolher e registar
testemunhos. Estes amalgamam-se na sua mente, tal como a narrativa e os lenços que
produziu e que acabam for se transformar numa imagem que se assemelha a um rosto, o
seu e o de Emilie.
“Emilie, como já sabemos, migrou do Líbano para o norte do Brasil ainda jovem, e
antes de se sedentarizar em Manaus passou pela cidade do Recife. Tornou-se mãe de
quatro filhos biológicos: Hakim, Samara Délia e outros dois que são inominados ao
longo de toda a narrativa. Tal como os filhos que não são identificados, o mesmo se
procede com o esposo da matriarca – a ele não é dada nenhuma nomeação. Além
destes, a família era composta pela sua neta, Soraya Ângela, filha de Samara Délia, e
pelos netos adotivos (às vezes eles eram referenciados como filhos), um homem, que
residia em Barcelona, e uma mulher, também inominada, que é justamente quem
regressa à Manaus com o intuito de rever a mulher que os adotou.” (Silva,2017:23)

A narradora anónima no dia do seu regresso defronta-se com cenas do


quotidiano de uma cidade dividida, suja e caótica onde impera a miséria e personagens
insólitas vagueiam. Observa o lado proibido da cidade, ultrapassando um limiar que
antes lhe fora vedado, observa as transformações e degradação da cidade e acaba a
per(seguir) uma figura insólita na cidade.

“[...] uma cena rompeu o torpor do meio-dia. O homem surgiu não sei de onde.
Tinha a aparência de um fauno. Era algo tão estranho naquele mar de mormaço que
decidi dar alguns passos em sua direção. Nos braços esticados horizontalmente, no
pescoço e no tórax enroscava-se uma jibóia; em cada ombro, uma arara, e no resto do
corpo, atazanados com a presença da cobra, pululavam cachos de saguis atados por
cordas enlaçadas nos punhos, nos tornozelos e no pescoço do homem.” (Hatoum,
1991:125-6).

Deste episódio resulta uma associação das câmaras fotográficas a ciclopes que
ilustra o seu estado de entidade fragmentada e também serve de pista de decifração
desta narrativa de Milton Hatoum como fotográfica. O Ciclope que Ulisses enganou,
durante o seu périplo de 10 anos pelo Mediterrâneo, pergunta-lhe como se chama.
Ulisses responde: “Ninguém”. E como esta personagem, tal como Ulisses se encontra
em construção, esta narradora fragmentada, tem como tarefa um percurso de recolha de
testemunhos de Hakim e outros narradores acerca de Emilie para se definir através de
uma viagem que começou em 1954, no território da sua infância, mas que investiga o
tempo que Emilie viveu, anterior a ela e também o que aconteceu durante a sua
ausência. a sua viagem é a recuperação do passado de Emilie, como se para se encontrar
tivesse de redescobri-la ou espelhar-se na matriarca.
“Voltar à casa de Emilie é tocar “a esfera da infância” (Hatoum, 1991: 217),
ressuscitar pedaços de um paraíso perdido e revitalizar-se com o magnetismo de uma
mulher que constitui a força unificante de uma família de seres em trânsito entre dois
espaços geograficamente e culturalmente distintos: o Oriente do Líbano distante e o
Ocidente do Brasil, vivido no norte do Amazonas.” (Martins,2018:72)

Este processo, embora abarque todo o texto, acaba por desviar a atenção para o
filho de Emilie, Hakim. O texto fornece-nos pistas de compreensão da relação entre
Emilie e o filho biológico Hakim.
A análise ecfrástica das várias narrações e descrição fotográfica e imagética
entre o primeiro narrador anónimo, no feminino, e o segundo narrador, filho da
matriarca Emilie, é motivo central de uma viagem de análise que se inicia com um
regresso e remete, para a temática das viagens de regresso às origens em alguma
literatura:
“Não mordi a isca da inovação formal que significa apenas um exercício de estilo. Na
verdade, muita coisa do que se diz inovador é algo que já foi feito. Por exemplo, afirmar
que um texto não linear é inovador é uma piada. A Ilíada não é linear, nenhum romance
de Balzac caminha em linha reta. [...] Quando escrevo, olho para a nossa tradição e para
alguns livros que conheço das literaturas do Ocidente e do Oriente. Vejo a tradição
como um patrimônio da humanidade.” (Hatoum (2006) apud Barreiro,Pires & Pires,
Simões:143)

Regressar a si mesmo, regressando para alguém – A Odisseia de Homero, em


que o herói se reúne com a memória e tradição do seu passado, representado por
Penélope, encerrando um périplo de conhecimento e auto-descoberta que só se
completará em Ítaca e no segredo do seu leito. Regressar por vingança – O Conde de
Monte Cristo de Dumas em que o herói, Edmond Dantès, que se autonomeou, revisita o
passado movido pelo desejo de vingança ou prestar gratidão e de se afirmar depois do
degredo e da traição. Regressar por amor – desejo de regressar e a viagem de regresso
às raízes e ao amor são gorados pela morte, como é o caso de Paul et Virginie, romance
de Bernardin de Saint-Pierre. Regressar para partilhar vivências, sem poder fazê-lo,
como no romance de Milan Kundera, A Ignorância – o muro que separa quem ficou de
quem partiu e se recriou. Regressar para se reconstruir, como é o caso da narradora
anónima de Milton Hatoum em Relato de um certo Oriente, ou percorrer interiormente
os trilhos de descoberta e reconstrução de si como identidade consciente em L’enfant de
sable ou Noite Sagrada de Tahar Ben Jeloun e como se vem a verificar no texto de
Hatoum, também se pode regressar ao passado, falar dele a vida inteira, sem
efectivamente ver ou compreender o que nos escapou o que é quase o mesmo que
regressar a uma narrativa cujo desfecho se adia para prolongar a possibilidade de
permanecer-se vivo, como em As mil e uma noites (Martins,2018:85).
Em todos os casos, o regresso é sempre uma viagem sobre a memória e o seu
legado. O regresso é viagem de antecipação, de reconhecimento, de verificação, cujo
resultado serve para confirmar, revalidando-a, a memória, ou para reajustar a percepção
que se tem desta ou de factos, ou lugares geográficos de que esta se impregna, e neste
caso, em Relato de Um Certo Oriente, assiste-se ao regresso de alguém que não é
nomeado, presumindo-se que seja porque anda à procura do seu centro, de um lugar
dentro de si, que lhe pode ser proporcionado pela revisitação da matriarca, Emilie,
figura que é central na vida dos personagens nesta história. Neste romance de Milton
Hatoum vários testemunhos se sucedem:

“[...] os narradores inserem-se no modelo de Xerazade: trata-se de movimentar o


passado através do trabalho da memória, implicando o deferir da morte. A narradora
inominada do Relato terá que transcender a morte simbólica associada ao sofrimento
psíquico, vivido na clínica onde esteve internada. Escrever é um acto terapêutico em
que narrar significa recriar o presente. Escrever as lembranças do passado com base
nos depoimentos dos narradores é um acto de catarse que permite à narradora a
reinvenção de si e a recriação positiva do presente. (Martins:2018:85)

Esta proposta de reflexão funda-se no processo de construção da narrativa em


que:
“Não parecem ser gratuitas as escolhas do autor do romance: a mescla cultural que une
europeus, árabes, índios e a população manauara caracteriza, justamente, uma
comunidade cindida, diversa em suas crenças, costumes e religiões. O caráter também
fragmentário do romance, com sua estrutura de “colagem”, entrecortado no tempo e
no espaço, harmoniza-se com as personagens e com os narradores: as culturas
indígena e árabe caracterizam-se pelo registro não-escrito, pela tradição oral, onde os
mais velhos transmitem o legado cultural aos mais novos por meio de crenças, de
lendas, de causos, renovando tradições que subsistem pela memória (e inventividade)
daqueles que contam.”(Bortoluzzi,2009:33).
O processo ecfrástico resultante da leitura constitui-se como descrição que
engloba processos na leitura da imagem ou da descrição, conceito que evoluiu ao longo
dos séculos e neste caso esse processo é entendido como uma fusão de conceitos no
diálogo entre artes: o efeito imagético que os retratos provocam no seu destinatário e
que conclusões se podem retirar do estudo dos elementos presentes nessa imagem que
emerge da narração.

“Foi necessário esperar pelo dealbar do século XVIII e, de uma forma sistemática, pelo século XIX,
para que o termo fosse associado à descrição de obras de arte, sobretudo no que respeita ao mundo
bizantino. Já nos anos 50 do século XX, Léo Spitzer importou o vocábulo para a literatura comparada,
desvinculando-o da antiga aceção restrita do campo da literatura e da arte antiga. A sua definição
de ekphrasis é clara: «the poetic description of a pictorial or sculptural work of art». A partir
desta data, a atenção dos críticos voltou-se para este exercício de retórica e, ao mesmo tempo,
figura de pensamento; mas foi na década de 90 que o termo ocupou um lugar proeminente no
universo dos estudos literários.” (Tarujo,2018:120-121)

O livro, tal como qualquer obra de arte, é construído como «objecto visível»,
transformando-se em «imagem» mental que por sua vez provoca múltiplas leituras e
evocações no último interlocutor da missiva imagética: o leitor.

“[...]e considerando um objeto descrito real, assiste-se a uma dupla intertextualidade: a que
une o texto escrito a outros e a que o aproxima do seu referente visual. É evidente que esta
situação exige do leitor uma atenção redobrada para que a possa compreender corretamente.
Associado a esta situação considerada dupla, não se pode descurar o efeito que a obra
provoca no recetor. Neste sentido, a ekphrasis terá de ser vista a um nível mais profundo
que a afasta da simples descrição referencial. O fito do poeta não é apenas acumular no seu
poema uma série de informações; pelo contrário, pretende desencadear sensações no
recetor.” (Tarujo,2018:123)

Num mundo e numa época em que o diálogo entre artes se miscigena e a obra é
produto de múltiplas influências, múltiplas «consciências» conceptuais, a sua produção
jamais se desvincula do seu propósito comunicativo, e a sua concretização expõe-na,
tornando-a objecto-imagem, quando esta nos seus fundamentos, na sua génese é já
construída e concebida como tal. Neste processo dialogante, em que tanto leitor – o que
possui o objecto-livro – como o interlocutor no universo textual – lêem e compreendem
o que se está a passar narrativamente com base na sucessão de imagens que resultam da
leitura. Fora da moldura exterior do livro encontra-se uma camada que se sobrepõe ao
conjunto narrativo-ficcional. É o processo de interpretação derivante da sobreposição de
leituras pelo destinatário final que é o leitor. Nenhum texto se escreve mudamente.
Existe para ser visto e esta imensa imagem fragmentada em numerosas partes exige do
leitor a descrição final: enveredar por um processo de revelação, produzindo
entendimento.

“É uma evidência a relação da palavra escrita com o mundo das imagens. Esta aproximação, nem
sempre amigável, perdura desde a Antiguidade. A figura de Horácio é, por isso, incontornável quando
surgem trabalhos consistentes acerca da origem da teoria das relações entre as artes. A sua obra
intitulada Epístola aos Pisões, considerada uma autêntica ars poetica por Quintiliano (inst. or., VIII, 3),
dá realce à correspondência entre a poesia e a pintura.” (Tarujo,0000:124)
Para chegar a Emilie e fazer uma incursão na sua mente considera-se a possibilidade de
transformar Hakim, seu primogénito, em imagem e a partir daí interpretar o que este representa
para a matriarca, partindo de uma questão colocada por Tarujo (2018):

“Que tipo de objetos artísticos poderão ser matéria da ekphrasis? Apenas os que são
representativos de uma realidade ou qualquer outro, como uma ponte, uma coluna, ou
até uma pintura abstrata? Poderemos considerar a descrição de um objeto que pertence
ao mundo natural como ekphrasis?” (Tarujo,2018:121))

Assim introduz-se nesta reflexão o conceito de ser humano objectificado, como


imagem, logo, ultrapassando a esfera do simplesmente humano e familiar, alvo de
afecto maternal, para imagem que possui um poder de evocação sobre o observador.

“[...] cabe aqui referir que a ekphrasis, pelo menos como a entendemos hoje, não tem de se
referir obrigatoriamente a um objeto artístico real. Não será necessário pesquisar muito para
chegar à conclusão de que o famoso escudo de Aquiles é fruto da fantasia fértil de Homero,
sendo o termo «fantasia» tido no seu sentido etimológico grego (visio em latim).”
(Tarujo,2018:123)

Sobretudo quando esse observador, neste caso Emilie, se caracteriza por atribuir
significados a objectos ou seres em seu redor e se serve da sua capacidade de criar
cenários a que se associa, por exemplo, no caso da tartaruga Tálua, mimetizando-se com
esta. Sálua, tão longeva quanto Emilie, que foi apropriada pelo seu olhar, provavelmente
desde que a neta Soraya Ângela desenhou na sua carapaça o seu nome
(Hatoum,1991:17), e é entendida como duplo de Emilie. É a própria Emilie que se
funde com a tartaruga, como representação de si:

“Uma manhã encontrei-a sentada perto do tanque, esfregando com palha de aço a carapuça
de Sálua e tapando com cera de abelha as fissuras e buracos provocados pelas colisões com
outros animais e pelas brincadeiras perversas de filhos, netos e enteados; depois ela lustrou
o casco com uma flanela embebida em resina de madeira e largou o quelónio na prainha de
areia que terminava no tanque habitado por dezenas de filhotes. Sem olhar para mim,
exclamou: “Sálua é meu espelho vivo.” (Hatoum,1991:200)

A sua percepção do poder da imagem, ou do seu poder de evocação, é também


explicada através dos retratos que envia a Hakim, para descrever, sem narrar, o decorrer
da vida familiar em Manaus e o seu estado de espírito, além de acontecimentos festivos
ou fúnebres.
O resultado da leitura-recepção deste texto-imagem-retrato de Emilie, em
Relato de um Certo Oriente, de Hatoum, é assim uma espécie de écfrase matrioskica,
pelo conjunto de ecos narrativos e imagéticos que se espelham, formando linhas que
cruzam o tempo, recuando ou avançado, ou melhor, esta narrativa pode ser entendida
como sendo a moldura-quadro que alberga vários quadros imagéticos que produzem
efeitos ecfrásticos, em última análise, no interior da narração através dos vários relatos
apresentados.
“Por exemplo, os autores da progymnasmata consideravam como objeto da ekphrasis a
pragmata, isto é, as ações. Inclusivamente, os artistas que se dedicavam à pintura de cenas
mitológicas ou religiosas tinham a clarividência de que as suas obras iriam ser
contempladas por um tipo de espectadores que se socorrerão da narração que surge
associada à única cena representada na obra. E este processo é também materializado pela
ekphrasis.” (Tarujo,2018:123)
Outros efeitos visuais que vão para além do seu simbolismo usual. Além disso,
para melhor ilustrar esta reflexão pode-se referir o caso das personagens-narradores que
criam quadros com as suas descrições de ambientes cujo resultado é uma fotografia
escrita, como se se estivesse a descrever um momento efémero, e uma invisível câmara
mental se deteve para criar por palavras igualmente o desenho de um quadro, na
ausência de uma câmara fotográfica.
“A sua construção poética revela uma plasticidade, um apelo visual muito intenso —
formulação verbal ekphrástica em que o olhar é constantemente convocado. [...]
[...] é, obviamente, fulcral a questão da relação entre a imagem e o texto que se tornou,
atualmente, tão importante que somos autorizados a falar da linguagem como pintura ou da
pintura como linguagem.
[...] Quando falamos de literatura e artes plásticas e da sua relação, está em causa um aspeto
basilar sem o qual todo o exercício ekphrástico periga. Referimo-nos à possibilidade que a
escrita literária tem de poder figurar. O texto literário passa, assim, a ser considerado uma
arte verbal que possui capacidade mimética.” (Tarujo,2018:126)

O uso da linguagem descritiva, colorida, com cambiantes de lua e sombra, sol e


luz, ilustra este processo dialogante da escrita como «escudo de Aquiles», em que o
descrito é objecto ou se transforma em objecto vívido e vivido por ser imagético e
dinâmico. Um outro aspecto deste conjunto ecfrástico é a inclusão da fotografia, do
retrato, do desenho, como elemento central que constitui este universo fotográfico de
Relato de um Certo Oriente que procura induzir a unidade neste todo fragmentado que
é, nesta narrativa, formado por oito partes, misto de recursos imagéticos e visuais de que
resulta a écfrase.
Dentro da moldura desta imponente écfrase matrióstica, universo fragmentado
de imagens e descrições que provocam outras tantas ilações e ecos, temos os limiares de
fragmentação em busca de unidade: a busca de unidade no objecto de inquirição da
narradora-interlocutora anónima, Emilie.

“[...] o sujeito, que outrora possuía uma identidade unificada e estanque, passa por um
processo de fragmentação, constituído por várias identidades às vezes contraditórias e não
resolvidas. As identidades configuram diferentes direcções, implicando que as
identificações estejam em constante deslocamento.” (Martins,2018:71)

A maior parte da narração de Hakim não omite factos ocorridos: mas estes não
são «julgados» pela emissão de juízo de valor em relação a Emilie, mas a
«visualização» final, pelo receptor final, permite, como numa fotografia, ou numa janela
que se abre, ver efectivamente e ajuizar, e finalmente concluir. Sem que o narrador
Hakim defina uma leitura posterior à sua própria leitura, esta é fornecida à narradora
anónima como testemunho, para que esta possa recuperar tanto os anos em que esteve
ausente, como a vida de Emilie antes de esta a ter adoptado, e assim, fornecer toda a sua
recolha, feita de várias maneiras ao irmão biológico que reside em Espanha.
Neste caso, todo o processo narrativo em Relato de um Certo Oriente, apela à
perspicácia mental e visual do leitor: em Hakim o nomear se transforma num acto
reflectido, calculado e não inocente, assim como o contrário: narrar, sem dizer, um
processo que pode ocultar definições e juízos de valor, conscientes ou não, jamais
pronunciados “textualmente”.

“Segundo Virgínia Woolf, um escritor sempre se questionará sobre a melhor forma de fazer
transportar o Sol para a sua página, ou como conseguir que o leitor veja a Lua enquanto ela
se eleva no horizonte, apenas com recurso a uma ou duas palavras, conseguindo um efeito
máximo, mas com recursos mínimos.” (Tarujo,2018:119)

As implicações deste «não dizer» podem ser encontradas em Hakim e na forma


como refere o nome da mãe, raras vezes dizendo «mãe».
Este diálogo entre artes em que a écfrase é rainha, processo de construção visual,
de formação de um quadro no cenário do texto, ou sucessão e sobreposição de quadros,
e processo de descrição pela exibição de imagem, é o natural evoluir da narrativa que
tradicionalmente se apropriava do seu grande instrumento de nomeação-descrição da
realidade para criar uma narração fotográfica e vívida, despoletando reacções, na
ausência de uma realidade pictórica, ou imagem, reprodução, concreta, como o objecto
descrito, ou a imagem, desenhada. O processo inverte-se no caso da narração do
objecto-fotografia: quando a fotografia se transforma em mensagem, em epístola, que
substitui o processo manuscrito sobre o papel e fornecendo uma representação de
espaços: “As fotografias são tanto uma interpretação do mundo como as pinturas e os
desenhos” (Sontag,2012: 15).
Milton Hatoum eleva ao grau máximo de complexidade o discurso de leitura,
visual e narrativa, do processo ecfrástico e também a reflexão do leitor sobre o campo
complexo do olhar fragmentado e do olhar interior.

“[...]Relato de um certo Oriente é a escrita dos espelhamentos: a trama é uma longa


carta “a compilação abreviada de uma vida” (Hatoum, 1991: 218) que a narradora
escreve para si no sentido de se debruçar sobre os seus distúrbios, a instabilidade da
sua identidade como descendente de imigrantes, os meandros de certos vazios e as
ruínas da casa da infância. [...] É graças à narração de Hakim que o leitor toma
conhecimento do poder transfigurador de Emilie, ao cumprir um ritual de iniciação,
quando ensina a língua árabe ao seu filho primogénito numa perspectiva sagrada
(Martins,2018:73)

No Livro de Ester, texto bíblico, que data do tempo em que a palavra era de
ouro, sólida e efectiva e materializante, ir apenas ver o rei, sem nada pedir em troca,
significou apropriação imediata pelo olhar e gesto estratégico. A protagonista desta
narração, no meio de várias que foram chamadas pelo rei, que banira a primeira
mulher,Vasti, por desobediência, não podendo valer-se apenas da beleza, vale-se do
despojamento material e consegue, por lhe ser permitido visitar-olhar o rei apropriar-se
deste (e do reino). Todas as pretendentes eram convidadas a ver o rei Assuero e como
compensação podiam pedir o que desejassem: todas pediam algo material. Apenas Ester
aproveita o momento para não pedir, dirigindo toda a sua atenção para Assuero, dirige o
«o olhar» e este sente-se «visto» e assim Ester se distingue das outras e, pela economia
de construção de um discurso estratégico de intenções que não é verbalizado, torna-se
rainha.

“Chegando pois a vez de Ester [...] para ir ao rei coisa nenhuma pediu [...] E ela
alcançou perante ele graça e benevolência, mais do que todas as virgens: e pôs a coroa
real na sua cabeça, e a fez rainha em lugar de Vasti.” (Vários,1968:527)

Deste modo, o olhar da fotografia, o possuir a imagem e integrá-la como parte


de si, é importante para a matriarca-mãe desta narrativa de Milton Hatoum – ver
constitui uma forma de posse com uma profusão de variantes e mostrar também o é
quando afirma ter os olhos do filho dentro de si: «A última frase que me disse no
finzinho daquela tarde (antes que a casa mergulhasse na azáfama do crepúsculo com a
chegada de parentes e amigos que participavam do jardim e da jogatina ao redor do
narguilé) foi. “Guardo dentro de mim os teus olhos» (Hatoum, 1991: 137)
O olhar de Emilie sobre o filho é apropriação: é como uma câmara que regista
momentos em frente a um espelho resultando o processo numa apropriação mútua,
numa fotografia mental. Deste modo “Uma fotografia passa a ser uma prova
incontroversa de que uma determinada coisa aconteceu” (Sontag, 2012: 14) e que se
torna permanente, cristalizada no tempo. Produto de uma viagem entre culturas, numa
época em que se banalizara o uso da fotografia para registar memórias, Emilie é mestra
no mostrar sem ter de descrever, no evadir explicações, no encenar e no ocultar, tendo
um “quarto só para si” como Virginia Woolf. Emilie está consciente do efeito
comunicativo das fotografias e da perpetuação da memória.

“Quando o acontecimento tiver acabado, a fotografia ainda existirá, o que confere ao


acontecimento uma espécie de imortalidade (e importância) que de outro modo não
teria.” (Sontag, 2012: 20).
“A força de uma fotografia consiste em conservar disponíveis instantes que o fluxo
normal do tempo imediatamente substitui.” (Sontag, 2012: 112).

Através das fotografias que envia ao filho escreve um diário visual que este
interpreta, vivendo a experiência familiar à distância de momentos efémeros que
expõem mudanças, emoções e revelações não verbalizadas em que tem a tarefa de unir
os retratos que são momentos e mensagens para criar um fio evolutivo da vida familiar
em Manaus, e desfragmentar a zona de silêncios entre cada retrato que lhe é enviado:
“Cada família constrói, através da fotografia, uma crónica de si mesma, uma série
portátil de imagens que testemunham a sua coesão” (Sontag, 2012: 17), assim como
cada ser humano que, na modernidade, coleciona peças de si, em forma de imagem para
se certificar que conservará a memória em acervo.

Assim no processo da écfrase, de interpretação da imagem, existe uma extensa


zona de «silêncios» a preencher nesta narrativa, de «ecos» que a percorrem (Martins,
2018), no seu deliberado processo de articulação, ilações, evocação de dados, e
interpretação, (re)interpretação, de memória, comportamentos, atitudes, e logo, esta
imagem, esta fotografia que constitui este texto, tem de aqui ser também interpretada – e
descrita.
“Vivemos um período nostálgico, e a fotografia promove intensamente a nostalgia. A
fotografia é uma arte elegíaca, uma arte crepuscular. A maior parte dos temas
fotografados são pelo simples facto de serem fotografados, afectados pelo pathos.
Todas as fotografias são memento mori. Fotografar é participar na mortalidade,
vulnerabilidade e mutabilidade de uma outra pessoa ou objeto. Ao selecionar e fixar um
determinado momento, cada fotografia testemunha a inexorável dissolução do tempo.”
(Sontag, 2012: 23-24).

Pois para se compreender a écfrase é necessário revelar o que a imagem


provocou, ou poderia ter provocado, e saber se efectivamente o autor conseguiu através
dessas brumas de silêncios imagéticos provocatórios, que na verdade reverberam nos
recessos da mente pelas ondas de efeitos que produzem e aos quais se pode regressar
inúmeras vezes.

“As fotografias podem ser mais facilmente memorizadas do que as imagens em


movimento, pois não são um fluxo, mas frações precisas de tempo. A televisão é uma
corrente de imagens indiscriminadas, em que cada uma anula a precedente. Cada
fotografia é um momento privilegiado convertido num pequeno objeto que se pode
conservar e olhar repetidamente” (Sontag, 2012: 16)

Contar essa história centrada na fotografia e no processo de écfrase que


provoca, pois a foto não define, sendo surda e muda como Soraya Ângela – é a sua vista
e observação que a transforma em significado – mostra mas não diz, levando-nos ao
plano da imaginação e escrita mental de uma narrativa paralela por parte do leitor:

“A literatura, hoje, é uma arte para poucos. E quando você escreve, deve saber que o
diálogo com o leitor faz parte de uma história, de um processo.” (Hatoum (2006) apud
Barreiro,Pires & Pires, Simões: 142-143)

O que permite assim a (re)construção de uma caracterização que partindo do


domínio do texto explícito, que é a descrição dentro da narração ficcional, permite
descobrir o alter ego ou o outro ser não definido das personagens ou o plano de verdade
que não se efectiva na narração pura e concreta do texto construído, nem da fotografia,
do retrato, da pintura, mas que é função do leitor. Há necessidade de interpretar a
imagem, ou remetê-la a uma irremediável solidão, se não for olhada e interpretada. “Os
temas são livres, mas a literatura revela sua força através da linguagem, da forma. [...]
porque a literatura indaga e questiona, sem responder diretamente às questões de uma
época.” (Hatoum,2006 apud Barreiro,Pires & Pires, Simões: 142). Pela voz de Milton
Hatoum, consegue-se perceber o processo de escrita que é o pano de fundo que cria a
interpretação nesta reflexão sobre Relato de Um Certo Oriente e o seu propósito de
mostrar sem ajuizar e deixar esse papel para o leitor “porque cada livro faz um pacto
com o leitor”(Hatoum (2006) apud Barreiro,Pires & Pires, Simões: 145)

Em conclusão, Emilie, uma mulher fragmentada e o filho que idolatrou desde o


nascimento, amado tanto pelo pai e aparentemente amado pela mãe. Emilie, a «mãe» de
todos os indigentes, dividida entre um egoísmo e apegamento às dádivas de gratidão dos
pobres que ela ajuda, contraditória, dividida entre dois idiomas – o do seu país natal e o
do Brasil. Dividida entre a culpa e um conceito de superioridade que tem de si. Dividida
na educação dos filhos «inomináveis» e revoltados que jamais se sentiram amados.
Dividida na maneira como trata empregadas e trabalhadores e a prole indesejada dos
filhos abusadores. Moralmente cega, mas privilegiando a imagem. E idolatrando Hakim
que um dia se despede para regressar apenas perante o prenúncio da sua morte,
comunicado subtilmente pelo tio Emílio.

“Chegou também com um pouco de esperança, pois tio Emílio, discreto e comedido,
evitou falar a verdade ao sobrinho. [...] e implorou a presença dele antes do pôr-de-sol
daquela sexta-feira. Tio Hakim concordou sem insistir em falar com Emilie, sabendo
que a mãe andava meio surda [...].” (Hatoum,1991:37)

A primeira impressão que provoca o relato de Hakim, no testemunho que


fornece à primeira narradora, é que amou a mãe e um dia desistiu de permanecer em
Manaus, perante as contradições e desumanidade a que assistira, e se foi embora para
prosseguir os estudos. Distanciou-se, embora esporadicamente trocasse correspondência
com Emilie. As missivas de Emilie são silenciosas, sem texto. Ao longo de mais de 25
anos envia fotografias de cenários que Hakim irá interpretar, introduzindo na narrativa a
écfrase. As fotografias enviadas por Emilie são “incitamento ao devaneio” (Sontag,
2012: 24).
“Enviou-me fotografias durante quase vinte e cinco anos, e através das fotos eu
tentava decifrar os enigmas e as apreensões de sua vida, e a metamorfose de seu
corpo. Soube da morte do meu pai ao receber uma fotografia em que ela estava
sentada na cadeira de balanço ao lado da poltrona coberta por um lençol branco, onde
meu pai costumava sentar-se ao lado dela nas manhãs dos domingos e feriados.”
(Hatoum, 1991, p. 104).

É surpreendente, no entanto, que no final de uma narrativa em que vários


testemunhos preenchem espaços relativos à caracterização de Emilie o seu nome seja
repetido numerosas vezes pelo filho predilecto. Raras vezes diz «mãe» ou minha «mãe»,
embora quando se refere ao pai o nomeie como pai. Assim, Hakim irmana-se com a
narradora desfragmentada, relatando através dos fragmentos superiores que constituem
esta narrativa epistolar a identidade também ela fragmentada de Emilie, a sua memória,
o progresso da sua vida, para tentar preencher os espaços na mente de alguém que anda
em busca de unidade, tal como Emilie fizera com a tartaruga que compara a ela mesma.
Hakim, irmana-se ou equipara-se, sem o dizer, a todos os que não são consanguíneos de
Emilie e que falam desta. O seu relato é despojado de definições, de juízos de valor, e
críticas, a não ser quando estes são proferidos por terceiros, e “Embora o primogénito
venere a imagem da mãe, ele é capaz de ter um olhar de distanciamento que aponta para
as incongruências de Emilie, construindo uma identidade crítica dentro do lar.”
(Martins,2018:75)
O facto de falar da mãe como Emilie, ou é fruto da transcrição do seu discurso
pela narradora anónima, ou permite entrever o mal-estar que é causa desse
distanciamento. Este nunca é referido, a sua ausência é um enorme eufemismo de que
talvez Hakim não tenha consciência ou não queira enfrentar. Mas, do que a vida ensina,
a linguagem dos afectos é fonte de aprendizagem e de conhecimento intuitivo. A
linguagem dos silêncios também. Em algum recanto da sua mente existe a consciência
de não ter sido efectivamente amado como filho, mas como outro: o irmão de Emilie
com quem se parece.
Deduz-se assim que a idolatria e cumplicidade de Emilie com este filho é
norteada pela memória do irmão que se suicidou a quem presta uma homenagem anual,
vestindo-se a preceito, e usando uma flor vermelha por detrás da orelha criando um luto
luxuoso e requintado para ir atirar uma fotografia do irmão na água do rio. Os retratos
que envia ao filho são uma espécie de encenação:

“A outra fotografia, tão diferente daquela, enquadrava Emilie no centro do pátio cercado
por um jardim de Delícias. Quase tudo naquela imagem me remetia à tarde já remota em
que lhe anunciei minha decisão de partir. Identifiquei o mesmo vestido de seda pura com
florões negros bordados à mão, que se ajustava ao seu corpo ainda esbelto, e também ao
luto que lhe impunha a morte recente do marido. [...] Ao olhar para a foto, era impossível
não ouvir a voz de Emilie e não materializar seu corpo no centro do pátio [...] Porque era
a revelação de um momento real e de uma situação palpável o que mais me impressionava
na fotografia. [...] A voz e a imagem me fazem recordar um mundo de desilusões, onde
um rosto sombrio se cobre com um véu espesso enunciando uma morte que já iniciara.”
(Hatoum, 1991, p. 105).

Esta descrição, entendida como imagem, permite-nos ver outra Emilie, porque
“a fotografia proporciona um sistema único de revelações, ou seja, que nos mostra a
realidade como nunca a tínhamos visto mostrar a realidade” (Sontag, 2012: 119,
sublinhado da autora). Tal como afirma o duplo fragmentado de Emilie, a primeira
narradora deste romance, sobre a sobreposição de lutos:
“Talvez, por isso, o pesar doloroso que nos envolve, não sabemos discernir se é fruto
da perda de alguém ocorrida ontem ou há muito tempo, de modo que outros corpos
sem vida reaparecem com intensidade na nossa memória, ampliando o seu horizonte
melancólico.” (Hatoum,1991:206)

Neste caso a encenação e o ritual são proporcionados pela última fotografia de Emir,
que foi tirada por Gustav Dorner, o último a falar com Emir em vida e que por
desfocagem, uma vez que se mimetiza com a sua câmara, sendo o seu olhar um olhar de
ciclope:

“Observava a flor entre os dedos de Emir, e talvez por isso tenha me escapado sua
expressão estranha, o olhar de quem não reconhece mais ninguém. Lembro que o
convidei para almoçar no restaurante francês; ele apenas emitiu um som apagado,
palavras enigmáticas que eu interpretei como uma recusa ao convite; mas percebi que
ele queria se desvencilhar de mim e do mundo todo, que a orquídea a brotar de sua
mão era o motivo maior de sua existência. [...] Emir se esquivava de tudo, ele tinha
um olhar meio perdido, de alguém que conversa contigo, te olha no rosto, mas é o
olhar de uma pessoa ausente. Além disso, aqueles passeios me intrigavam, caminhar
pelas ruas das pensões baratas, do hotel dos Viajantes, caminhar sem parar, sem ver
ninguém [...] A vida de Emir parecia se reduzir a esses passeios matinais [...]”
(Hatoum, 1991, p. 61-2).

O que confere alguma legitimidade em se concluir que na mente de Emilie se


sobrepõem duas pessoas quando olha para o filho: o próprio filho e Emir, o irmão.
Emilie, quase em fim de vida, refere as suas parecenças a Hindié demonstrando que na
sua mente Emir e Hakim se fundiram, mas com distorções.

“Depois falava no teu tio Hakim, que ficou homem sem que ela conhecesse o rosto do
homem, pois saíra de Manaus com pouco mais de vinte anos, e desde então enviara-
lhe retratos e cartas, mas tudo isso vale menos que uma rápida troca de olhar. Me
mostrava um retrato de Hakim e perguntava: «Não é a cara do Emirzinho?» E meio
afobada, meio aflita, ela mesma respondia: «Se parecem como duas pérolas de um
mesmo colar». (Hatoum,1991:202)

“Nos três últimos dias, de terça a quinta, me contou uma enxurrada de sonhos em que
sempre participavam Emir e Hakim, depois me pedia para ler as cartas do filho
ausente, enquanto ela mirava os retratos de ambos no álbum aberto repousado no colo.
O irmão, morto ainda jovem, era muito parecido ao filho que foi morar no sul; e
olhando para as duas fotos juntas, a semelhança chegava a incomodar: pareciam sorrir
o mesmo sorriso. Comentando os sonhos, ela repetia com uma voz crédula: «Quantas
vezes não nos encontramos, os três dentro de um barco descendo o rio ao encontro do
mar». e quase todos os sonhos repetiam um só, que ela tornava a contar, sempre
contemplando os retratos e me dizendo, pedindo: «Leia Hindié, leia as cartas de
Hakim.»” (Hatoum,1991:203)

Daqui depreende-se que na origem da sua predilecção esteve sempre o irmão


morto, Emir. Um filho sabe quando não é amado e este distanciamento através da
menção ao nome de Emilie em vez do tratamento por «mãe» permite compreender o seu
sofrimento e a sua partida e a tentativa de mostrar na sua narração a pessoa que foi
Emilie, tentando despojar o que escreve de emoções e aparentando uma postura de
sublimação da mãe. Uma mãe que desdobrando o filho em Emir, no processo de envio
de retratos, assim como na maneira como presta homenagem ao irmão, lançando
fotografias no rio acaba por usar a fotografia como “um inventário da mortalidade”
(Sontag, 2012: 74) ou tentativa de recuperar a comunicação com ambos, tanto Emir
como Hakim, mas a suspeita do espectro de Emir sobre Hakim permanece.
Tudo isto porque “As imagens unem o que na realidade é descontínuo” (Sontag,
2012: 171). E para além da fotografia, como objecto enviado ao filho, ou reprodução da
foto do irmão lançada ao rio, a imagem resultante é a tentativa de Emilie de unir o que
não pode voltar a unir – a memória e a repetição servem-lhe de amparo, mas a realidade
é flagrante e inalterável. O seu comentário “O meu querido teve de cruzar o oceano e
morar em outro continente para poder um dia regressar”. (Hatoum, 1991, p. 123) é um
sintoma da sua capacidade de ilusão e distorção da realidade.
Hakim eventualmente regressa a Manaus, mas demasiado tarde, ao fim de mais
de 25 anos para descobrir que a casa está fechada. E quando chega a comitiva de quem
acompanhou ao funeral percebe que esta já foi sepultada. O luto e a saudade que Hakim
expressa de forma inflamada é um pesar duplo – do filho que já estava de luto por
saber-se outro aos olhos da mãe e pela efectiva morte da mãe que não deixara de amar.

“Nada mais havia a fazer senão entregar-se sem pena e receio à dor que ele
dissimulava com esforço, compartilhou com os outro o luto e a saudade, só que de
uma maneira exagerada, quase feroz, a ponto de deixar Hindié Conceição tremendo da
cabeça aos pés [...] Fiquei tão surpresa com a reação de tio Hakim, que não notara a
chegada de amigos de Emilie, atraídos pela claridade, pelas portas escancaradas e pela
voz de um filho que magnetiza a atenção dos outros ao evocar sua mãe.”
(Hatoum,1991:39)

O seu testemunho inicial à primeira narradora, sobre a mãe, incide em primeiro


lugar sobre o relógio que esta negociara e que representava um segredo. A propósito do
segredo do relógio e da atitude evasiva de Emilie revela-se a versão de que este estaria
indissoluvelmente ligado a “uma passagem obscura da vida de Emilie”
(Hatoum,1991:42) que Hindié Conceição conta a Hakim. Após separação dos pais que
haviam emigrado para o Brasil, e ainda no Líbano, Emilie refugia-se num convento em
Ebrin. Emir, o irmão que mais tarde se vem a suicidar no Brasil, “armou o maior
escândalo ao saber que sua irmã aspirava à vida do claustro» (Hatoum,1991:42-43).
Encontra-a “toda vestida de branco e o rosto delimitado por um plissado de organdi”
(Hatoum,1991:43). Dissuade a irmã usando um revólver e “ameaçando suicidar-se caso
ela não abandonasse o convento.” (Hatoum,1991:43).
Este episódio “Foi um golpe terrível na vida de Emilie.” (Hatoum,1991:43) mas
o relógio que batia as badaladas do meio-dia quando chegara ao convento perpetua-se
na memória de Emilie como «aquele momento diáfano da sua vida» em que
«comparava a sucessão de sons às mil vozes secretas das badaladas de um sino que
acalmam as noites de agonia e despertam os fiéis para conduzi-los ao pé do altar, onde o
arrependimento, a inocência e a infelicidade são evocadas através do silêncio e da
meditação» (Hatoum,1991:43) e «pensando encontrar entre as nuvens aplastadas contra
o fundo azulado e brilhante a caixa negra com uma tampa de cristal[...]»
(Hatoum,1991:43)
A grande descrição dos seus momentos de êxtase espiritual oculta um segredo –
o relógio apesar do simbolismo dedicado ao Sagrado e à sua fé que explicou a Hindié,
serve de cofre onde Emilie protege a verdade e a culpa. Emilie sobrepõe camadas de
versões de factos pensadas e construídas, incapaz de enfrentar a realidade ou de declará-
la..
Emir e Hakim são duplos um do outro, ecos um do outro, ambos espectros
distantes; Emir evocado por Emilie através de Hakim, e Hakim como eco de Emir na
mente de Emilie. Hakim é uma imagem para Emilie. Ele mesmo fotografia em carne e
osso do tio morto e é tratado por esta como espectro, idolatrado como imagem de um
Deus invisível. Foi educado pela mãe, iniciado nos seus segredos, como espectro do
país natal, o Líbano, mas também espectro de culpa pela morte do irmão ao qual se
sobrepõe o espectro do imenso afecto que nutria por este, e finalmente este, evocado
pela presença do filho. Quando Hakim lhe comunica a sua partida, a pretexto de
prosseguir os estudos, esta fala na língua materna. O idioma árabe, embora ligado às
suas origens, cria uma barreira com os restantes irmãos, tal como a predileção da mãe
por si os divide e revolta. Mas para Hakim, isso é sinal de entendimento, de
comunicação. «Ela não falava para proibir, condenar ou censurar, mas para que eu
sentisse com toda a intensidade, como uma explosão detonada só dentro de mim, a dor
da separação». (Hatoum, 1991: 92).
Hakim é um espectro para Emilie – religa-a ao Líbano e à sua língua materna e
recupera a imagem do irmão morto, Emir, que a sua teimosia em arrancá-lo de Marselha
leva ao suicídio. O ritual do retrato que ela atira à água e da flor vermelha na orelha são
imagens distorcidas do passado que ela transforma em ritual. Pode-se inclusive aventar
que enviar fotografias ao filho, sem uma carta manuscrita, é equiparável a atirar retratos
ao rio. Ela manda retratos ao filho, mas ao mesmo tempo manda-os ao espectro de Emir
que é a sua grande culpa e o real objecto da sua idolatria.

“Como consequência da expropriação de um território, posteriormente ocorre a


apropriação árdua de outro pelo exilado, que geralmente adia por toda a vida o retorno
ao seu local de origem e a recuperação dos laços nele cultivados outrora. Estes se
tornam condenados a permanecerem como espectros, uma vez que serão eternamente
requisitados como lembranças afetivas de um lugar deixado para trás.” (Silva,2017:44)

A sua tendência para a evasão e ilusão levam à crença de que Emilie sabe o que
está a fazer. Do mesmo modo que se desdobra em dois idiomas, que se desdobra como
mãe extremosa e permissiva, mas desdenha os netos indesejáveis que resultam da
violação das empregadas pelos seus «inomináveis» filhos, do mesmo modo que usa dois
pesos e duas medidas para lidar com questões praticas do quotidiano como alimentação
familiar e alimentação de trabalhadores.

“[...] para Hakim, Emilie possuía dois mundos dentro de si: o mundo visível, a sua
Manaus; eo mundo que latejava em sua memória, o seu Líbano. E entre eles se dividia.
Vagava rotineiramente pelos lugares da memória e da memória saía para adentrar no
espaço- tempo do seu presente.” (Silva,2017:44)

Seria incorrecto considera-la ingénua e inconsciente dos processos que ela


mesma inicia. Hakim afirma que foi combinado entre os dois a troca de cartas e as de
Emilie na forma de retratos. Claramente o pacto foi sugerido por esta.
O que sucede posteriormente à leitura de Relato de Um Certo Oriente é a
indecisão entre definir Emilie e as personagens em seu redor que se apresentam
fragmentadas por razões históricas ou pessoais que se prendem com a realidade das suas
vidas, mas que colocam Emilie no centro das suas vidas.
Emilie é produto de uma realidade interior dividida e de uma realidade exterior
que a afecta ainda mais: a divisão linguística, o ter de integrar a cultura de um novo país
sem perder o centro, e ao mesmo tempo aprender um novo idioma para poder
comunicar; as disparidades sociais, em que a posse de património implica a
aprendizagem do altruísmo, nem sempre conseguida, paralela à necessidade de
preservação, para sobreviver; o viver dividido que se transmite aos educandos e que os
irá fragmentar; o conflito gerado por crenças espirituais e ter de conviver com a
realidade da culpa e do pragmatismo na administração da experiência de vida em que
confluem a segregação, o elitismo, um sentimento de privilégio classista, e um percurso
interior minado pelo passado e intransigência e sobretudo, para usar uma definição de
Zygmunt Bauman, pautado por uma espécie de Cegueira Moral, de que só se dá conta
com o decorrer do tempo.

Pensar nas representações identitárias forjadas em Relato de um certo Oriente é,


portanto, pensar nas diversas relações que foram estabelecidas no espaço doméstico e
em outros lugares além deste.
E o que de imediato sobressai na obra é que a casa em que vivia o clã de Emilie surge
fortemente marcada por uma múltipla inscrição cultural. [...]
Os imigrantes se dispersaram pelo Brasil, embora tenham se concentrado fortemente
na região sul e na região norte do país; lugares que, nessa época, estavam
respectivamente vivenciando os faustos da economia do café e da borracha.
(Silva,2017:21)

A dificuldade de Emilie em gerir afectos e o receio de perder os filhos


distanciando-se ou demitindo-se do seu papel de educadora, julgando-se detentora de
superioridade moral e espiritual, mas nunca dando a conhecer a sua verdadeira face:

“Tive a mesma curiosidade [...] desde sempre. Perguntei várias vezes à minha mãe por
que o relógio e, depois de muitas evasivas, ela me pediu que repetisse a frase que eu
pronunciava ao olhar para a lua cheia. Devia ter uns três anos quando apontava para o
céu escuro e dizia «é a luz da noite.» Foi a explicação oblíqua que Emilie encontrou
na minha infância para não falar de si.” (Hatoum,1991:42)

Emilie acaba por se dividir em várias versões contraditórias de si mesma pois os


seus comportamentos e atitudes variam de acordo com o contexto e são regidos por um
manual cujas regras apenas ela conhece ou por uma bússola desnorteada pelo ímpeto.
A sua mente fragmentada e comportamento fragmentado buscam a união em fim
de vida. De herança, deixa filhos, amigos e vizinhos abandonados, todos eles, incluindo
Hakim, a uma solidão que nunca compreenderam, mesmo quando era viva e que os
divide e estilhaça, e a uma memória que jamais esquecerão. E também, como Hakim, o
leitor poderia dizer: « –Posso passar o resto da minha vida falando do passado»
(Hatoum,1991:41).
REFERÊNCIAS

Bortoluzzi, Demetrius (2009). Leitura de Relato de um Certo Oriente, de Milton


Hatoum. Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Francismar Barreto, Maria Isabel Edom Pires, Mônica Kalil Pires, Sara Freire Simões
(2006). “Entrevista com Milton Hatoum”. Estudos de Literatura Brasileira
Contemporânea, nº. 28. Brasília, julho-dezembro de 2006, pp. 141-147.

Hatoum, Milton (1991). Relato de Um Certo Oriente. Edições Cotovia

Martins, Celina (2018). “Identidades Fragmentadas na Ficção de Milton Hatoum” in


Pensar Diverso, Revista de Estudos Lusófonos.

Silva, Tahys Lima (2017.) A fragmentação identitária da narradora (in) salvável, de


Relato de Um Certo Oriente, de Milton Hatoum. Universidade Federal de
Pernambuco, Recife
Sontag, Susan (2012). Ensaios sobre fotografia, Lisboa, Quetzal.
Tarujo, Luís Miguel (2018). “«As palavras do olhar»: Ekphrasis em Fernando
Guimarães” in Textualidade e memória: permanência, rotura, controvérsia
(Ed. John Greenfield e Francisco Topa)., Edição: CITCEM – Centro de
Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória

Vários (1968). A Bíblia Sagrada em Português, Sociedades Bíblicas Unidas, Lisboa

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