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Bicentenário do 2 de Julho: conheça a história da Independência do Brasil na Bahia

De como um exército popular expulsou os portugueses do Brasil e consolidou a


independência do país Gabriela Amorim

Quem mora no Recôncavo e capital sabe: desde o dia de São João até inícios de agosto, chove
quase diariamente na região. Mas, no 2 de Julho de 1823, o dia amanheceu ensolarado. Feito tão
importante que mereceu figurar na primeira estrofe do Hino da Bahia. Sob o sol brilhante do 2 de
julho chegou a Salvador, vindo de diversas cidades do Recôncavo, o Exército Pacificador, um
exército popular formado por negros libertos e escravizados, indígenas e mestiços pobres na
batalha que selaria o fim do domínio português em terras brasileiras.
Ao contrário do que aprendemos nos livros de história, a Independência do Brasil não se deu
exatamente no Grito do Ipiranga, as batalhas pela consolidação dessa independência se
seguiram ainda por quase um ano até o 2 de julho de 1823. E é por isso que a Bahia comemora
hoje o Bicentenário da Independência do Brasil na Bahia.
“Esse ato, digamos assim, simbólico [do 7 de Setembro] não foi seguido por todas as províncias
do Brasil naquele momento. É o caso da Bahia, que vivia uma tensão significativa”, explica o
professor Paulo de Jesus, professor de História da Bahia na Universidade Federal do Recôncavo
da Bahia (UFRB).
Ele conta que, então, havia um grupo de grandes comerciantes que desejavam a continuidade de
Império português colonizando o Brasil; do outro lado, senhores de engenhos, proprietários de
terra, pequenos comerciantes e alguns médicos e advogados defendiam a separação definitiva.
Estes setores, no entanto, provavelmente não lutaram no Exército Pacificador.

Apagamento do povo

O professor Paulo de Jesus explica que só há bem pouco tempo a formação popular do exército
passou a ganhar mais visibilidade na história oficial. “É muito pautado pelas lutas sociais,
sobretudo o movimento social negro, que estes outros sujeitos passaram a ser reconhecidos e
divulgados publicamente”, afirma.
Régia Mabel da Silva Freitas, pós-doutora em Educação pela USP, doutora em Difusão do
Conhecimento pela UFBA e pesquisadora de Relações Raciais, aponta o racismo como base
para essa tentativa de apagamento. “Existe um total apagamento na historiografia brasileira do
heroísmo do povo no 2 de Julho, porque a branquitude não tem interesse em reconhecer os
legítimos Pretagonistas Ancestrais: povos indígenas, escravizados, escravizadas, libertos e
libertas”, acrescenta.
Neste sentido, as figuras da cabocla e do caboclo nos desfiles do 2 de Julho não são mera
alegoria, mas sim a representação dessa presença popular nas batalhas que levaram à
Independência do Brasil. “Nós tivemos homens e mulheres negros, mestiços e indígenas que
participaram de maneira decisiva das lutas. Nós tivemos destacamentos formados
especificamente por indígenas; batalhões constituídos por mestiços e por negros”, ressalta Paulo
de Jesus.
Ele explica que pessoas negras escravizadas fugiam de seus senhores e se alistavam no
chamado Exército Pacificador para tentar com isso alcançar a Liberdade. Pós 2 de Julho, muitas
dessas pessoas buscaram o governo para que reconhecesse sua liberdade. Mabel Freitas
destaca que foi graças à engenhosidade do Quartel Popular da Inteligência Baiana que vencemos
as batalhas em Salvador, Cachoeira, Inhambupe, Itaparica, Feira de Santana, Maragogipe, Santo
Amaro, São Félix, Santo Antônio de Jesus, Valença e em tantos outros municípios.

Os sertanejos no desfile lembram que não foi só em Salvador que as batalhas pela Independência se desenrolaram na Bahia /
Manu Dias/GOVBA

“É inacreditável que em pleno 2023 as pessoas ainda desconfiem da veracidade do brilhantismo


de Maria Felipa, uma marisqueira negra itaparicana que liderou mais de 40 vedetas, dentre elas
Brígida do Vale, Joana Soaleira e Marcolina, que surraram com cansanção os marotos e atearam
fogo nos navios portugueses”, diz.
Menos conhecida do que a atuação de Maria Felipa e Maria Quitéria, heroínas do 2 de Julho,
foram as chamadas “Caretas do Mingau”, de Saubara. “É inaceitável que a astúcia delas não seja
sequer mencionada nos livros didáticos; contribuindo, assim, para a perpetuação de uma
educação hegemônica, eurocentrada, pautada, como sempre, nas falácias colonialescas”,
ressalta a pesquisadora Mabel Freitas.
As Caretas do Mingau foram um grupo de mulheres que se vestiam com lençol branco e chapéu
de palha e carregavam panelas para assombrar as tropas portuguesas com gritos e chocalhos,
enquanto levavam comida, armamento e informações para os filhos, irmãos e maridos que
compunham o Exército Pacificador. “É preciso reconhecer que o povo foi protagonista neste
nosso 2 de Julho”, defende a pesquisadora.

Apagamento das lutas

Mas por que não aprendemos toda a história da independência nas escolas? O professor Paulo
de Jesus destaca que há um interesse em fazer crer que esse processo se deu sem conflitos,
“com Dom Pedro I montado num cavalo branco, num alto de uma colina de espada em riste,
dizendo Independência ou Morte”. A omissão de tantas batalhas e mortes, de acordo com ele,
serviu à criação da imagem de uma nação pacífica.
Mabel de Freitas destaca o papel de mulheres da capital e do interior nas lutas pela
independência e também seu apagamento dos relatos oficiais / Arquivo pessoal“Interessa a uma
elite dirigente, a determinados grupos políticos que prezam por uma conciliação eterna, desde
que mantidos os seus privilégios”, complementa. E, assim, se omitiu de uma história oficial os
sacrifícios impostos à cidade de Salvador, por exemplo, cuja população foi expulsa pelo exército
português que causou intenso terror aos seus moradores.
Mabel Freitas lembra que essas batalhas não se deram apenas em Salvador, só na Ilha de
Itaparica foram quatro assaltos ininterruptos. E foi também na ilha, em 07 de janeiro de 1823, que
se iniciou a derrota portuguesa. “É importante destacar que nós, baianas e baianos, guerreamos
de 19 de fevereiro de 1822 até o dia 02 de julho de 1823, quando ocorreu a batalha final”,
ressalta.
Essa série de batalhas foi aos poucos minando o experiente exército português que já havia
inclusive enfrentado as tropas de Napoleão em solo europeu. Além disso, cercados pelo Exército
Pacificador que se espalhou pelas cidades do Recôncavo ao redor da capital, o exército europeu
sofreu com a fome e a falta de armamentos.

De acordo com alguns historiadores e historiadoras, foi assim que, na famosa batalha de Pirajá,
por volta de novembro de 1822, o exército português, com 2.000 homens, foi derrotado pelo
exército brasileiro com cerca de 1.200 pessoas. “E é importante que a gente perceba que uma
parte desses combatentes do Exército Pacificador não tinha nenhuma experiência de guerra”,
destaca Paulo de Jesus.
O professor da UFRB defende ainda que a Independência só se consolidou de fato devido à
participação do povo, principalmente, da população negra, mestiça, indígena e pobre. “Eu
sinceramente espero que, um dia, o 02 de Julho seja feriado nacional e não apenas estadual”,
finaliza Mabel Freitas.

Mabel Freitas destaca o papel de mulheres da capital e do interior nas lutas pela independência
e também seu apagamento dos relatos oficiais - Arquivo pessoal
As mobilizações do 08 de março neste ano na Bahia tiveram como tema o bicentenário da
independência do Brasil na Bahia e o protagonismo das mulheres baianas nas batalhas e
levantes que levaram à definitiva derrota de Portugal em 02 de Julho de 1923. Nesta entrevista,
conversamos com Régia Mabel da Silva Freitas sobre essas mulheres, algumas cujos rostos e
histórias começam a ser resgatados do apagamento histórico e outras tantas que ainda sequer
chegamos a conhecer.
“As mulheres participaram ativamente nas lutas pela independência, todavia lamentavelmente a
historiografia brasileira pouco relata essa salutar narrativa da bravura feminina. Em primeiro lugar,
insta salientar que participar de uma guerra não é “só” empunhar armas e derramar o sangue dos
adversários; afinal ativismo político não é só matar e morrer. Assim, no mínimo, elas deram
continuísmo ao provimento do lar com a ausência de seus respectivos cônjuges. Ademais, graças
à inteligência, destreza em distintas áreas e coragem, muitas mulheres contribuíram para a nossa
libertação atuando nos bastidores, contudo só exaltamos nominalmente três famosas heroínas –
Joana Angélica, Maria Quitéria e Maria Felipa – que se expuseram em trincheiras bélicas. A sóror
sexagenária Joana Angélica bravamente defendeu o Convento da Lapa da invasão de
portugueses que entraram para capturar os soldados brasileiros e, mesmo sendo um sacrilégio
matar uma freira, foi brutalmente assassinada. Maria Quitéria, conhecida entre o Batalhão dos
Periquitos como Soldado Medeiros, vestiu-se com a roupa de soldado do cunhado, alistou-se e
guerreou com muita engenhosidade na montaria e no manejo de armas. A astuta negra Maria
Felipa, liderando mais de quarenta vedetas – mulheres sentinelas –, enfrentou as tropas lusitanas
levando os soldados portugueses até a praia e, quando todos estavam despidos, achando que
mais uma vez realizariam o tão corriqueiro estupro colonial, receberam uma surra de cansanção –
folha que provoca ardência e coceira na pele – enquanto outras mulheres e também outros
homens incendiavam as naus em pleno mar.
Inúmeras mulheres anônimas de distintas cidades baianas também contribuíram para a nossa tão
almejada emancipação na triunfal batalha de Cachoeira além de Caetité, Chapada Diamantina,
Denodada Vila de Itaparica, Maragogipe, Nazaré das Farinhas, Santo Amaro, São Francisco do
Conde entre outros municípios. Gostaria muito de arrolar a plêiade feminina na qual a verve
libertária pulsou com fervor, contudo são ainda nomes e rostos desconhecidos na nossa
historiografia nacional. Consigo, entretanto, destacar além da natural de Feira de Santana Maria
Quitéria e da itaparicana de Gameleira Maria Felipa, três vedetas que lutaram bravamente
lideradas por ela lá nessa Ilha mais formosa do Brasil, a saber: Brígida do Vale, Joana Soaleira e
Marcolina.

Quadro Alegoria ao 07 de Janeiro de 1823 de Mike Sam Chagas / Reprodução/Mov. Viva Ilha

Urge que os atos históricos – e principalmente os feitos heroicos – sejam finalmente


apresentados numa perspectiva decolonial refutando a métrica colonialesca que é caucasiana,
classista, heteronormativa, homo/transfóbica, misógina, racista e sexista. Não cabe mais
perpetuar narrativas nas quais múltiplos grupos sociais – como as mulheres e, em especial, nós,
as mulheres negras – sejam ainda invisibilizados e estereotipados sem o legítimo reconhecimento
de que com muita maestria constituímos a brasilidade. De “mulher arruaceira” à “habilidosa
combatente” e de “preta raivosa” à “destemida candace”, o caminho é árduo e longo para essa
necessária quebra de paradigma que finalmente reconhece a importância da nossa beligerância
feminina para exitosos episódios da história. Desejo que, a partir de agora, todas, todes e todos
conheçamos, divulguemos e aplaudamos o quadro “Alegoria ao 07 de janeiro de 1823”, do
Professor Mike Sam Chagas, da Escola de Belas Artes, da Universidade Federal da Bahia, que
inspirado (desta vez!) pela realidade, retrata indígenas, negras e negros como ícones
Pretagonistas Ancestrais que nos livraram da tirania portuguesa em Itaparica, uma bela Ilha da
Bahia de Todos os Santos, Orixás, Voduns e Inquices.

Nós não escolhemos “esquecer “a presença das mulheres na nossa história ,visto que não nos foi
dada a oportunidade de realizar essa seleção. A triagem proposital que conscienciosamente não
difundiu a importância da genialidade feminina para as vitórias bélicas na nossa historiografia
brasileira foi realizada anteriormente e, quando chegou até nós, meramente, socializou-se uma
história na vilania do prisma patriarcal, composto por toques requintados de androcentrismo,
proferida por vozes hegemônicas do sexismo, que se deliciam com o gosto amargo da misoginia
e exalam na atmosfera o lamentavelmente tão naturalizado odor fétido de machismo estrutural.

https://www.brasildefatoba.com.br/2023/07/02/2-de-julho-conheca-a-historia-da-independencia-do-brasil-
na-bahia

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