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DOI: 10.18468/estcien.2017v7n2.

p21-31 Artigo de revisão de literatura

Formação ou produção de professores/as para a educação de


jovens e adultos?

Paula Cabral1 e Samira de Moraes Maia Vigano2


1 Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista UNIE-
DU/FUMDES/SC. Orientadora Pedagógica do Programa Institucional de Apoio Pedagógico aos Estudantes – PIAPE/UFSC, Brasil.
E-mail: paulica15@hotmail.com
2 Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista UNIE-
DU/FUMDES/SC. Orientadora Pedagógica do Programa Institucional de Apoio Pedagógico aos Estudantes – PIAPE/UFSC, Brasil.
E-mail: samirammvigano@gmail.com

RESUMO: As discussões no campo da formação de professores/as têm apontado para a neces-


sidade de rupturas com modelos prescritivos, isso requer pensar o processo formativo a partir
de uma outra concepção. Desse modo, este artigo busca debater aspectos referentes à forma-
ção de professores/as, a fim de problematizar se esta ocorre levando em consideração as es-
pecificidades de cada modalidade e dos sujeitos que lá estão, ou se acaba por ser uma produ-
ção em massa de profissionais que atendam várias modalidades de educação, sem percepção
das singularidades de cada uma delas. Objetiva-se pensar como o binômio experiência e trans-
formação pode contribuir para a reflexão sobre outras possibilidades de formação, ou de pro-
dução dos/as professores/as para a Educação de Jovens e Adultos (EJA). Ampara-se teorica-
mente em Arroyo, Benjamim, Haddad, Larrosa e Nóvoa. Percebe-se que a produção de profes-
sores/as precisa ter como referencial um mundo ambivalente, cuja proposição de normativi-
dades para a contingência parta de quem vive. Para tanto, exige-se rever no próprio processo
educativo, as relações que se tecem com elementos como o tempo, espaço, corpo, linguagem,
técnica, entre outros.
Palavras-Chave: Formação; Produção; Professores/as; Educação de Jovens e Adultos.

Training or production of teachers for education of youth and adults


ABSTRACT: The discussions in the search field of teacher training have pointed to the need for
breaks with prescriptive models, but that requires think about training from other concep-
tions. This article seeks to discuss aspects related with teacher training to problematize
whether this formation occurs taking into account the specificities of each modality and of the
subjects that are there, or if it turns out to be a mass production of professionals who attend
various modalities of education, without perception the singularities of each one of them. The
objective is to think how the binomial experience and transformation contributes to the reflec-
tion about other possibilities of formation, or production of the teachers for the Education of
Young and Adults (EJA). The theoretical basis are researchers as Arroyo, Benjamim, Haddad,
Larrosa and Nóvoa. It is possible to perceive that the production of teachers has to have as
reference an ambivalent world, whose proposition of norms for the contingency departs from
those who live. For this, it is necessary to review in the educational process itself the relation-
ships that build with elements such as time, space, body, language, technique, among others.
Keywords: Training; Production; Teachers; Education of Youth And Adults

1 CONTEXTO INICIAL rentes à formação de professores/as, de


modo a problematizar se essa formação
Este artigo busca debater aspectos refe- ocorre levando em consideração as especi-

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ficidades de cada modalidade e dos sujei- a experiência e transformação na formação


tos, ou se acaba por ser uma formação em ou produção da docência na EJA.
massa de profissionais que atendam várias
modalidades de educação, sem percepção 2 A FORMAÇÃO DE PROFESSORES/AS PA-
das singularidades de cada uma delas. RA A EJA: elementos políticos e legais
As discussões no campo da formação de
professores/as têm apontado para a neces- A trajetória da EJA é fortemente marcada
sidade de rupturas com modelos prescriti- pela sua marginalização por parte do Esta-
vos, o que requer pensar uma formação a do, pelos jogos de interesse e ao mesmo
partir de uma outra concepção “que situe o tempo por lutas vinculadas aos movimentos
desenvolvimento pessoal e profissional dos sociais que geram disputas ou correlações
professores/as ao longo dos diferentes ci- de forças no âmbito das políticas públicas
clos da sua vida”. (NÓVOA, 1999, p. 09). educacionais, como demonstram os estu-
Portanto, faz-se necessário encontrar di- dos de Haddad (1987, 2002), Haddad e Di
nâmicas formativas que valorizem a siste- Pierro (2000), Benite et al. (2010), Sartori
matização dos saberes próprios, assim co- (2010; 2011), entre outros.
mo, a capacidade de transformar a experi- A formação de professores/as para atua-
ência em conhecimento para formalização ção nessa modalidade da Educação Básica
de um saber profissional de referência. também se caracteriza por essa dinâmica,
Nessa perspectiva, pretende-se pensar mediante a imposição de modelos formati-
como o binômio experiência e transforma- vos pautados pela lógica da escolarização
ção pode nos ajudar a refletir sobre outras do ensino regular da idade obrigatória, mas
possibilidades de formação, ou de produ- que encontra mecanismos de resistência a
ção, dos/as professores/as para uma moda- tais determinações. Tais contradições po-
lidade específica da Educação Básica – a dem ser melhor compreendidas diante da
Educação de Jovens e Adultos (EJA). fecunda história da EJA, como salienta Ar-
Ao se buscar o campo da EJA como base royo (2005, p. 30-31):
para os estudos compreende-se que essa
modalidade possui especificidades distintas Um olhar apressado sobre essa história
das demais e, por esse motivo, deve ter tende a ver apenas na EJA um campo in-
uma formação própria para os professo- definido, descoberto ou aberto a todo ti-
res/as que nela atuam. Desse modo, no de- po de propostas, de intervenções as mais
correr dessa reflexão serão levantados pon- desencontradas [...]. Porém, essa leitura é
parcial apesar de ter sido a que se impôs
tos que possam contribuir para pensar so-
no imaginário da formulação de políticas,
bre tal processo formativo. Para tanto, este da didática, da organização escolar e até
artigo se organiza em três eixos: o primeiro do recontar de nossa história da educa-
analisará a formação de professores/as pa- ção. A EJA sempre aparece vinculada a
ra a EJA, contextualizando os elementos um outro projeto de sociedade, um proje-
políticos e legais; o segundo é um diálogo to de inclusão do povo. Foi sempre um
entre a educação, formação e a produção dos campos da educação mais politiza-
de professores/as; e, por último, um exercí- dos, [...] não fechado e nem burocratiza-
cio reflexivo a partir de considerações sobre do, por ser um campo de possíveis inter-

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venções de agentes diversos da socieda- com as quedas na procura pelas licenciatu-
de. ras registradas desde a década de1990, pe-
los mais diversos motivos, como a baixa
No movimento político brasileiro, dos remuneração e as más condições de traba-
anos 1990, diante das mobilizações de edu- lho aos professores/as.
cadores e dos movimentos sociais no con- Nesse contexto, o amparo à Formação de
texto da abertura política do país, a pro- Professores/as para EJA se encontra no inci-
mulgação da Lei de Diretrizes e Bases da so VII do art. 4º da LDBEN 9394/96, em que
Educação Nacional (LDBEN 9394/96) se con- está estabelecida a necessidade de atenção
figura como um marco importante na for- e respeito às características específicas dos
mação de professores/as para a EJA. Sua trabalhadores matriculados nos cursos no-
importância tem relação com o reconheci- turnos. Parece então clara a necessidade da
mento da EJA enquanto modalidade educa- exigência de formação específica para do-
cional, a partir de demandas diversas dos cência na EJA, conforme expõe o Parecer
sujeitos que a buscam. CEB/CNE 11/2000: “[...] trata-se de uma
Ainda diante das orientações sobre a formação em vista de uma relação pedagó-
formação docente no âmbito das políticas gica com sujeitos, trabalhadores ou não,
públicas educacionais, em 2002, são institu- com marcadas experiências vitais que não
ídas as Diretrizes Curriculares Nacionais pa- podem ser ignoradas” (BRASIL, 2000, p. 58).
ra a Formação dos Professores/as da Edu- Além disso, o referido Parecer que insti-
cação Básica, que visam promover uma i- tui as Diretrizes Curriculares Nacionais da
dentidade aos cursos de licenciatura e a EJA chama atenção para o vínculo que se
seus estudantes, futuros professores/as. estabelece na relação entre estudantes e
Por meio das quais são redefinidos os prin- professores/as, este é determinante para
cípios de reelaboração dos cursos de licen- evitar a evasão e manter a permanência na
ciatura que passaram a ter pressupostos EJA, assim como para os processos de ensi-
como: o ensino visando à aprendizagem do no-aprendizagem. Portanto, se compreende
aluno; o acolhimento à diversidade; o exer- que na EJA o respeito à opinião, à trajetória
cício de atividades de enriquecimento cul- de vida, à cultura e aos saberes dos sujeitos
tural (BRASIL, 2002). estudantes, não só os mantém nos espaços
Cabe mencionar ainda o Decreto nº educativos, mas possibilita a continuidade
6.755, de 29 de janeiro de 2009 que institui do processo de escolarização.
a Política Nacional de Formação de Profis- É importante destacar que embora exis-
sionais do Magistério da Educação Básica, tam políticas que revelem ordenamentos
ao passo que disciplina a atuação da Coor- jurídicos que assegurem ou reconheçam a
denação de Aperfeiçoamento de Pessoal de importância da formação de professores/as
Nível Superior (CAPES) no fomento a pro- para a EJA, se percebem poucas iniciativas
gramas de formação inicial e continuada. que dão conta de articular tais dispositivos
Essa política é implementada buscando a- ao que se vivencia nas redes de ensino e
tender demandas da educação pela forma- nos espaços de escolarização nessa modali-
ção de professores/as. Um dos aspectos dade.
que fundamentam essa política tem relação Ao tomar como referência para essa dis-
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cussão os elementos político-legais, consi- A partir dessa abordagem, buscou-se es-


dera-se importante ampliar nossas compre- tabelecer relações com alguns teóricos no
ensões sobre o processo de formação ou campo da filosofia contemporânea na in-
produção dos professores/as da EJA, no tenção de pensar elementos da formação
sentido de pensar possibilidades para um de professores/as que contribuam com um
processo de formação não universalizado e processo de produção de subjetividades, a
que possam dar conta da diversidade de partir do par conceitual experiência e trans-
oferta da modalidade no campo da educa- formação.
ção. Pois, ao assegurar garantias em termos
de formação observa-se que as políticas em 3 EDUCAÇÃO X FORMAÇÃO OU PRODU-
geral, quase sempre, definem padroniza- ÇÃO DE PROFESSORES/AS: (im) possibili-
ções para unificar tais processos formativos. dade de experiência na relação com o
Os processos de formação de professo- mundo
res/as, numa perspectiva de produção do/a
professor/a, poderiam ser pensados a partir Nesse exercício de refletir sobre a forma-
de questões que nos permitam conhe- ção de professores/as precisamos pensar
cer/compreender: quem são esses profis- que ela se articula a um projeto de educa-
sionais inseridos no campo da EJA? O que ção da modernidade. A este respeito A-
os levou a escolher a EJA como espaço de gamben (2008), Benjamin (1994, 2000,
trabalho? Como os/as professores/as da 2009) e Larrosa (1994, 2002) discutem so-
EJA compreendem seu trabalho pedagógi- bre a impossibilidade de se realizar experi-
co? Quais representações possuem de seu ência diante de um modo de viver normati-
próprio trabalho? Como reconhecem os zado/normalizado pela racionalidade cientí-
espaços onde estão inseridos? Quais rela- fica imposta pela sociedade moderna. Há
ções constituem com os profissionais que uma espécie de destruição da possibilidade
trabalham e com os estudantes da EJA? de experiência e isso se demonstra pela
Como esses elementos se revelam nas prá- própria vida do homem moderno, uma vida
ticas dos professores/as e nas imagens que ao mesmo tempo individualizada, massifi-
produzem de si? cada, na qual os sujeitos não se afetam
Parte dessas questões exige compreen- mais pelas relações com os outros, com os
der a dimensão profissional e a formação espaços ou com seu próprio trabalho.
de professores/as considerando as experi- Essas mudanças também estão vincula-
ências, os acontecimentos, os diálogos teci- das na modernidade às relações que se es-
dos com os pares e, além disso, aspectos tabelecem com o tempo, pois este passa a
pessoais – anseios, expectativas, crenças, ser cronometrado, assim como os espaços
representações, relações interativas – e dos tornam-se esquadrinhados de forma a im-
próprios “modos de ser e estar na profissão, por uma configuração da vida que tem por
na sala de aula [...], pois faz falta integrar base a disciplina, o controle e a formatação
estas dimensões no quotidiano da profissão do corpo. Para assegurar a legitimidade
docente”, fazendo com que elas sejam par- desse modo de produção de vida, as verda-
te essencial de cada um/a como professor/a des se consolidam na modernidade como
(NÓVOA, 1999, p. 11). representações do real, um único real que
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pode (ilusoriamente) ser apreendido e ao cault (2010) chama a atenção para a dife-
mesmo tempo representado pela lingua- rença entre legalidade e legitimidade. Para
gem. ele a relação jurídica não dá conta de regrar
Nesse contexto, o sujeito passa a ter uma relações humanas, pois só a palavra verda-
relação instrumental (alienada) com a pala- deira e a política poderiam, numa perspec-
vra e com o próprio conhecimento. Essa tiva democrática, “orientar essas relações a
concepção burguesa/representacional da partir do tripé parresía, isegoria e isonomia”
linguagem para Benjamin (1994) impede a (FOUCAULT, 2010, p. 147), ou seja, a expe-
experiência, a criação e a expressão. Para riência da política e da democracia só se
ele a linguagem precisa ser compreendida daria a partir também de exercícios de rela-
como produção do mundo, pois a produção ção de poder.
de si se dá linguisticamente. A linguagem Portanto, para o teórico o ordenamento
não é o retrato do real em si e não pode jurídico (que nada garante) e a prática polí-
apreender inteiramente o mundo no intuito tica são complementares e não ocorrem em
de representá-lo. decorrência de um ou de outro, isso signifi-
A partir da compreensão entre a lingua- ca: somos fruto do que fazemos e do pre-
gem e as relações na vida moderna, Benja- sente em que vivemos. Isso contradiz a no-
min (1994) e Larrosa (2002), destacam co- ção contemporânea de que o bom cidadão
mo se desenvolvem os fluxos de informa- se adapta ou cumpre normas, nessa linha
ções e os seus reflexos no cotidiano das para Foucault (2010) toda prática de poder
pessoas, dinâmica que perpassa os contex- comporta uma possibilidade de resistência.
tos escolares e de formação docente. As Isso auxilia a pensar na possibilidade de um
informações na modernidade se ampliam processo de produção de professores/as
em termos de volume e acesso, e estão por que coloque sob análise as imposi-
toda a parte, mas já não carregam mais as ções/regula-mentações sobre seu próprio
marcas de quem as produz. Como tudo po- trabalho.
de ser previsivelmente controlado, verifica- Tal compreensão nos exige pensar a edu-
do e diagnosticado. O poder da ciência mo- cação e a própria produção de professo-
derna ajuda a fortalecer discursos de ver- res/as num projeto maior de formação hu-
dade criados pelas próprias informações. mana, reconhecendo seu caráter provisório,
Além disso, o projeto moderno pressu- imprevisível e de convívio com a incerteza.
põe que o sujeito possua uma essência, a Refletir sobre as possibilidades de produção
de cidadão com direitos, pois todos agora dos professores/as requer pensar o mundo,
são iguais perante a lei e por meio de apa- as relações, os direitos e a normatividade
ratos jurídicos todos/as terão seus direitos numa perspectiva de contingências e da
assegurados. É preciso refletir sobre como imanência rompendo com a noção de es-
essas noções implicam um projeto de edu- sência, por isso nessa compreensão, que se
cação, de escola ou formação de professo- contrapõe ao projeto moderno de educa-
res/as. ção, o mundo e a norma precisam se consti-
Em O governo de si e dos outros, obra tuir como produções permanentes.
que contempla uma análise dos elementos Como destaca Larrosa (2002) a vida hu-
que compõem a democracia grega, Fou- mana sempre tem um resto, algo à margem
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que não pode ser controlado e aí se encon- sua experiência, desencorajando as gera-
tra um desafio: positivar ou não esse resto. ções mais jovens de fazerem suas próprias
A formação do sujeito na escola moderna experiências. Essa ideia, de que as gerações
se pauta pela lógica do assujeitamento, mais velhas carregam o valor/peso da tradi-
contudo “a produção das subjetividades ção e por isso detém certa autoridade, para
pode se dar na produção de si com liberda- os autores poderia significar a morte do
de, há nesse caso uma ambivalência no movimento tradição/com-servação versus
conceito de governo de si – e dos outros – quebra/ruptura, como também da experi-
em que o poder se constitui como dispositi- ência enquanto dimensão constitutiva do
vo relacional e não vertical” (LARROSA, homem conferindo falta de sentido à pró-
1994, p.39). pria vida.
Nesse contexto, pode contribuir a reto- Entretanto, o cuidado de si pode ajudar a
mada de um dos conceitos trabalhados por tecer não mais uma relação sem vínculo
Foucault (2004, 2010, 2011) – o cuidado de entre quem fala e quem ouve, na qual
si – que significa cuidar tanto do corpo quem fala (professor/a ou formador/a de
quanto da alma, principalmente da alma professor/a) fala de um saber do mundo
como essência e algo ativo no indivíduo, o para que o outro (aluno/a ou professor/a
cuidado de si implica num conjunto de prá- em formação) aprenda. Nesse sentido, a-
ticas sistemáticas. proximações a uma produção de professo-
A verdade moderna só prevê conhecer o res/as, a partir do binômio experiên-
mundo de modo objetivo, mas isso pouco cia/transformação, se distancia dessa lógica
diz sobre o que somos, na medida em que o ao passo que se desenvolve numa perspec-
sujeito surge como produto da disciplina, tiva formativa em que aquele que fala, fala
construído a partir de técnicas de individua- de si e nesse movimento ajuda o outro a
lização e procedimentos de totalização, que conhecer a si.
repercutem no apagamento de qualquer Como expõe Foucault (2010), para que
vestígio de subjetividade na produção do alguém aprenda a cuidar de si há uma rela-
humano. Por isso o cuidado de si se refere à ção assimétrica, ninguém nasce pronto,
abertura da alma para o outro (saber ouvir), pois nos constituímos no processo de pro-
assim, nessa relação, o outro passa a fazer dução de si. No entanto, essa relação só se
parte de mim, pois do outro é tomado o consolida se houver a permissão do outro,
que é importante para se viver. em que ele se produz como sujeito singular,
Pensar o cuidado de si e do outro ajuda a por isso essa compreensão traz um outro
pensar sobre o projeto hegemônico de edu- modo de produção das relações humanas.
cação da modernidade, principalmente a Cabe questionar quais articulações pode-se
partir das instituições escolares, suas dinâ- fazer sobre as relações entre os sujeitos
micas e da formação para docência. inseridos no contexto escolar, e, principal-
Essa discussão permite retomar a des- mente como as formações de professo-
construção, com base nos escritos de Ben- res/as trabalham o cuidado de si e do outro
jamin (2009) e Agamben (2008), da noção ao pensar relações entre professores/as-
de que a velha geração apresenta o mundo professo res/as, estudantes-estudantes,
aos mais jovens, e assim, repassa também professores/as-estudantes (entre outras)?
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Para Foucault (2004) esse movimento de de formação se definem numa perspectiva
retorno a si não é individualista, pois “é unilateral. O/a professor/a é quem faz o/a
preciso durante toda a vida, voltar os olhos, aluno/a aprender a partir de procedimen-
a atenção, o espírito, o ser por inteiro en- tos, técnicas e estratégias previamente de-
fim, na direção de nós mesmos” (FOU- finidas. Nessa lógica só existe trabalho so-
CAULT, 2004, p. 254), ou ainda, “o movi- bre a aprendizagem, isso acaba com ele-
mento a ser feito há de ser então o de re- mentos ligados ao ensino.
tornar a este centro de si para nele imobili- Logo, o foco está no que se deve ensinar
zar-se”, o que vai levar à “converter-se a si, (pré-definido antemão) e como ensinar, o
a fazer a volta em direção a si mesmo” que leva a uma negligência de questões
(FOUCAULT, 2004, p. 255). Aqui a conversão maiores em relação ao projeto de formação
aparece como possibilidade de resistência, humana (reconhecimento dos sujeitos) e a
como algo que está sempre sendo produzi- educação. Diante disso, cabe indagar: os/as
do, uma prática permanente sobre si mes- professores/as possuem como obrigação
mo que também se revela como exercício fazer com que todos/as aprendam? E para
de liberdade. O sujeito livre que cuida de si isso, simplificamos o que ensinamos? Faz
estabelece relações horizontais com os ou- sentido que o/a professor/a facilite a a-
tros e nessa relação afeta e é afetado pelo prendizagem para a autonomia? É possível
outro. Foucault (2004) critica, portanto, a pensar num processo educativo que afete
essencialização do sujeito e a busca externa aos professores/as e demais sujeitos inseri-
como única possibilidade da produção de si, dos nos contextos escolares? Ou ainda, é
a ele interessa compreender como ao longo possível pensar na produção de professo-
da história se produziram diferentes modos res/as nessa relação entre experiência e
de subjetivação que na modernidade estão transformação?
marcados pelo assujeitamento. Essa discussão envolve questionar tam-
Nesse sentido, a escola e os espaços de bém o papel da escola, ou melhor, o papel
produções de professores/as podem surgir da escola como possibilidade de realizar
como lugar de reinvenção permanente, experiência. O/a professor/a tem experiên-
rompendo com o que se apresenta na his- cia na/da escola? A experiência se apresen-
tória da educação em relação às promessas ta como possibilidade de produção do/a
eternamente não cumpridas da moderni- professor/a?
dade, tecendo modos de fazer que trans- Nóvoa (1995) apresenta reflexões nesse
formem as impotências em potências. sentido e busca entender algumas dessas
questões a partir das seguintes articulações:
4 NO VIÉS DE UMA CONCLUSÃO: a experi- o desenvolvimento pessoal – a partir da
ência e a transformação na formação ou na produção da vida do/a professor/a, o de-
produção de professores/as senvolvimento profissional – com base na
produção da profissão docente – e o desen-
O/a professor/a tem sido entendido co- volvimento organizacional/institu-cional –
mo gestor/a, facilitador/a, comunicador/a tendo por referência a produção da escola.
ou até animador/a da aprendizagem, nesse Portanto, torna-se importante estar a-
sentido, seu papel e seu próprio processo tento às práticas pedagógicas em que se
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estabelecem, regulam e modificam as rela- pode ajudar a pensar sobre a produção de


ções do sujeito consigo mesmo e nas quais professores/as como experiências de si nas
se constitui a experiência de si, como escre- quais esses indivíduos podem se tornar su-
ve Larrosa (2002). Mas como seria possível jeitos de um modo particular.
no âmbito das instituições formadoras pen- Todavia, a experiência de si no trabalho
sar na produção do/a professor/a como com narrativas pessoais ou histórias de vida
aquele/a que produz o texto e nisso produz não está necessariamente dirigida à tomada
a si mesmo ou produz transformações so- de consciência, porque será em seu interior,
bre si? com suas regras e no modo de sua realiza-
Mediante essa questão se faz importante ção, que a tomada de consciência como
pensar de modo mais cuidadoso sobre as transformação da experiência de si será
políticas de auto narração - presentes tam- normativamente e praticamente produzida.
bém nas formações de professores/as, que Nesse sentido, para Larrosa (1994, p. 59)
como forma de produção de possibilidade torna-se fundamental, ao pensar a relação
de fazer experiência precisam partir de uma entre a experiência de si e os dispositivos
compreensão na qual o poder atravessa o pedagógicos, analisar a “produção de expe-
discurso, pois as práticas discursivas nas riência de si (autoconhecimento, tomada de
quais se produzem e medeiam histórias consciência ou autorreflexão crítica) no in-
pessoais não são autônomas, estão incluí- terior de um dispositivo (práticas pedagógi-
das em dispositivos sociais e normativos, cas com regras e determinadas formas de
por isso “também são práticas sociais orga- realização)”.
nizadas e constituídas em relações de desi- Na dimensão do autoconhecimento cabe
gualdade, poder e controle” (LARROSA, salientar que ao ver-se, expressar-se, nar-
1994, p. 71). Como salienta Larrosa (2002) é rar-se (sentido dado ao que acontece) ou
preciso refletir a respeito disso, tendo em julgar-se, mesmo que exista um forte con-
vista os poderes que aí gravitam, ou mes- dicionamento para que o sujeito se ve-
mo, os lugares nos quais o sujeito é induzi- ja/expresse/narre/ julgue de determinadas
do a interpretar-se a si mesmo, a constituir formas, ele/a participa, intervém nesses
as regras do discurso que lhe dão identida- atos, não está totalmente determinado
de impondo uma direção. Assim a subjetivi- nessa lógica, o que permite alguma possibi-
dade dos/as professores/as em formação lidade de experiência/transformação no
pode se construir também por meio da im- processo de produção de professores/as.
posição de certos padrões de auto narra- Nesse sentido, é preciso pensar outra
ção. pedagogia que tenha a produção de si como
Para Larrosa (1994, p. 57) “tomar os dis- horizonte, ou seja, a saída poderia estar nas
positivos pedagógicos como constitutivos relações, na produção de si e na materiali-
da subjetividade é adotar um ponto de vista zação do discurso, pois “o que determina
pragmático sobre a experiência de si”, en- um olhar tem uma origem, depende de cer-
tretanto reconhecer a contingência e histo- tas condições e práticas de possibilidade” e
ricidade desses mesmos dispositivos é ado- como todo contingente pode sofrer trans-
tar um ponto de vista genealógico. Portan- formações, pode ser visto de outro modo,
to, a noção de pedagogia em Larrosa (2002) possibilita ensaiar novas formas de subjeti-
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vação e produção de singularidade ou nas tobiográficas (não apenas num sentido pes-
palavras de Larrosa (1994, p. 84) soal, mas geracional), as práticas de escrita
pessoal e coletiva, o desenvolvimento de
Ver-se de outro modo, dizer-se de outra competências dramáticas e relacionais, bem
maneira, julgar-se diferentemente, atuar como o estímulo a uma atitude investigati-
sobre si mesmo de outra forma, não é ou- va em relação à educação, escola e os ele-
tra forma de dizer “viver” ou “viver-se” mentos que tecem as práticas pedagógicas.
de outro modo, “ser outro”? E não é uma Isso significa, também a partir do par
luta indefinida e constante para sermos
conceitual apresentado – experiência e
diferentes do que somos o que constitui o
infinito trabalho da finitude humana, e
transformação – que há uma impossibilida-
nela, da crítica e da liberdade? de de separar o/a professor/a da pessoa
que ele é. Tendo essa compreensão é fun-
A formação de professores/as para atua- damental pensar num processo de produ-
ção na Educação Básica ocorre de modo ção de professores/as, nesse caso para a
considerado generalista, sem levar em con- EJA, que se articule a um projeto maior de
ta todas as especificidades que demandam formação humana, para além da própria
os níveis e modalidades educacionais. Dian- história da constituição cultural e política
te disso, para atuação na Educação de Jo- do sistema educacional brasileiro. Nesse
vens e Adultos (EJA) os professores/as re- sentido, convém realizar um exercício refle-
cebem, quase sempre, uma formação con- xivo que nos possibilite questionar/pensar
tinuada em serviço. A EJA nesse contexto outras possibilidades de produção subjetiva
formativo é apresentada/discutida como dos/as professores/as.
modalidade que precisa romper, de algum Mediante a essa perspectiva, a produção
modo, com as lógicas estruturantes da es- de professores/as precisa ter como referen-
colarização (dita) regular de idade obrigató- cial um mundo ambivalente, cuja proposi-
ria, no intuito de não reproduzir mecanis- ção de normatividades para a contingência
mos que levaram esses sujeitos a desistirem parta de quem vive. Isso exige rever no
da escola em outros tempos de suas vidas próprio processo educativo, as relações que
por dificuldades de acesso/permanência ou se tecem com elementos como: tempo, es-
por conta da rigidez/inflexibilidade de al- paço, corpo, linguagem e técnica.
gumas propostas pedagógicas e dinâmicas Assim, torna-se possível pensar a produ-
curriculares. Essa concepção impõe grandes ção de professores/as da EJA numa escola
desafios para pensarmos um processo de não cronometrada, sem tanta intencionali-
formação continuada de professores/as dade racional, com a compreensão de que a
para a EJA que irrompa com a própria ra- linguagem não comunica conteúdo, mas
cionalidade da formação inicial recebida comunica a comunicabilidade e que permita
para a docência no Ensino Superior e com a relações com o corpo, com o fazer experi-
formação do professor constituída a partir ência para transformações.
de seu trabalho no contexto escolar. Diante disso, convém questionar: é pos-
Nóvoa (1999) sugere, como alternativas sível pensar numa produção de professo-
de formação continuada às abordagens au- res/as enquanto formação/educação hu-
mana? Numa escola que lide com o tempo
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presente? Com os sujeitos que hoje estão Educação de Jovens e Adultos. Brasília, DF:
na escola? Talvez seja viável, ao se tomar a MEC/ CNE, 2000.
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Artigo recebido em 09 de maio de 2017.


Avaliado em 02 de setembro de 2017.
Aceito em 18 de setembro de 2017.
Publicado em 22 de setembro de 2017.

Como citar este artigo (ABNT):


CABRAL, Paula; VIGANO, Samira de Moraes
Maia. Formação ou produção de professo-
res/as para a educação de jovens e adul-
tos?. Estação Científica (UNIFAP), Macapá,
v. 7, n. 2, p. 21-31, maio/ago. 2017.

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ISSN 2179-1902 Macapá, v. 7, n. 2, p. 21-31, maio/ago. 2017

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