Você está na página 1de 2

A carta argumentativa é um gênero discursivo em que o autor do texto dirige-se a um

interlocutor com o objetivo de defender um ponto de vista e, se for o caso, convencer esse
interlocutor a mudar de opinião sobre alguma questão polêmica ou levá-lo a agir de uma
determinada maneira.

Engravidar é um ato egoísta


É provável que minhas palavras incomodem as leitoras da Super que estão folheando
a revista ao lado de seus rechonchudos bebês. Ou mesmo desperte a sanha dos cristãos
mais fervorosos que lembrarão a célebre frase bíblica “crescei e multiplicai-vos”. Acontece
que, quando tal frase foi dita, a humanidade vivia num mundo completamente diferente.
Ainda não havia recenseamento populacional preciso e a Terra parecia pronta para receber
todos que aqui chegassem. Hoje, isso não é mais verdade. Dados internacionais mostram
que há mais de seis bilhões de seres humanos sobre o planeta. O pior é que, em 2050, esse
número deve saltar para nove bilhões. Ou seja: em pouco menos de 50 anos, adicionaremos
no planeta a metade da população que temos hoje – e não custa nada lembrar que levamos
cerca de 100 000 anos para atingir esse número.
Há vários motivos para essa explosão demográfica. Desde a desinformação entre os
mais pobres até a irresponsabilidade de famílias de classe média. Independentemente do
motivo, o fato é que a população cresce em progressão geométrica, aumentando os
problemas sociais e gerando mais violência. Países como a China tentam aplicar o controle
de natalidade. Mas o problema é mundial e precisa ser encarado de frente por todos. Não dá
mais para se esconder atrás de dogmas morais ou religiosos, enaltecendo o dom da
maternidade e o milagre de gerar uma nova vida.
Por motivos que estão mais ligados ao lucro do que a preocupações humanitárias, a
ciência colabora com essa explosão populacional desenvolvendo, a cada dia, métodos de
fertilização artificial. Mas por que, em vez de gerar cada vez mais crianças, não damos
condições decentes às que estão abandonadas ou que são obrigadas a trabalhar em fornos
de carvão? Em vez de promover métodos de fertilização artificial, por que não se promovem
eficientes campanhas de adoção?
Países como o Brasil precisam abandonar posturas hipócritas que dificultam a adoção
internacional. As nações ricas, que têm taxas de crescimento negativo, precisam de
crianças. Já o Brasil, a Índia e a China têm milhares de crianças desamparadas. Por que,
então, não facilitamos o caminho para que elas possam ser criadas por quem tem condições
de dar-lhes uma vida confortável?
Infelizmente, a hipocrisia não é só do governo. É também de boa parte da imprensa e
da população. As mulheres que passam anos fazendo tratamento para engravidar, gastando
até dezenas de milhares de dólares, são consideradas, por boa parte das pessoas,
heroínas. Tudo porque conseguiram gerar uma nova vida. Imagine o quanto seria útil se
todo esse investimento fosse usado para educar crianças que já nasceram.
Depois de conversar com várias pessoas sobre esse tema, costumo ouvir os mesmos
argumentos. O mais enfático deles é aquele que defende o desejo da mulher de gerar uma
vida dentro de si. Não haveria nada, afinal, que substituísse o ato de sentir um novo ser
crescendo dentro da barriga de uma mulher. Mas, ao seguir essa linha de raciocínio, o que a
mulher busca, na verdade, é a auto-satisfação – e não seria exagero dizer que ela estaria
mais preocupada em conquistar esse prazer do que pensando no bebê em si. Outra
argumentação comum é a de que, ao adotar um bebê, não se tem a garantia de saber a
origem da criança. Essa desconfiança parte da tese, sem fundamento, de que o filho de um
criminoso pode se tornar um criminoso, mesmo que cresça cercado de carinho. Pelo que eu
sei, os genes não garantem que alguém será um mau-caráter ou um cidadão exemplar. Até
porque criminosos como Hitler e o “Unabomber” eram filhos legítimos de famílias
consideradas normais.
Se a genética e o desejo de engravidar não justificam o repúdio contra a adoção, é
possível concluir que o que as futuras mães querem é a garantia de que seus filhos terão um
tom de pele próximo do delas. O desejo de engravidar a qualquer custo também tem seu
lado racista. Até mesmo porque boa parte das crianças abandonadas que poderiam ser
adotadas no Brasil são negras.
Num planeta cada vez mais desigual, uma mulher que investe em tratamentos para
gravidez é, de certa forma, uma egoísta – assim como um casal que tem cinco ou seis filhos.
Não têm qualquer preocupação com o futuro do bebê nem com o futuro do planeta. Essa
mulher quer apenas provar para ela e para a sociedade que é capaz de cumprir uma falsa
obrigação moral: engravidar num mundo cada vez mais cheio de gente.
Os artigos publicados nesta seção não traduzem necessariamente a opinião da Super.
GIMENEZ, Karen. Superinteressante, set. 2002. http://super.abril.com.br/ciencia/engravidar-
ato-egoista-443342.shtml

Atividades
1. Identifique, no texto, a opinião defendida pela jornalista.
2. Quais foram os argumentos apresentados pela autora do texto para demonstrar que
sua opinião tem fundamento lógico no mundo em que vivemos?
3. Identifique, no texto, os argumentos utilizados, segundo a autora, para contestar a
posição que ela defende.
4. Quais argumentos o texto traz para contestar essas opiniões?
5. Você deve ter percebido que, ao se manifestar contra o investimento em tratamento
em fertilidade em detrimento da adoção de crianças abandonadas, Karen Gimenez,
em diversos momentos, indica a imagem que tem de mulheres que insistem nessa
postura. Qual é ela?
6. É possível, também, a partir da leitura do texto de Karen Gimenez, construir uma
imagem dela. Qual é?

Você também pode gostar