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e Cunha1
Ricardo Cavaliere
Introdução
Antônio Estêvão da Costa e Cunha (1839-?) é uma das personalidades
educacionais mais destacadas na didática da língua vernácula do século XIX. Sua
trajetória, entretanto, quase nenhuma atenção mereceu dos historiógrafos da gramática
até o momento, não obstante seja objeto de aqueloutro estudo na área da História da
Educação no Brasil (cf. Costa e Cunha, 2008). A importância da obra gramatical de Costa
e Cunha cresce significativamente, do ponto de vista historiográfico, se considerarmos
que seu texto inaugural, o Novo método teorico-prático de análise sintatica (1874),
trazido a lume sete anos antes da publicação da Gramática portuguesa (1911 [1881]), de
Júlio Ribeiro (1845-1890), já revela uma novo olhar sobre as práticas de ensino da língua
vernácula, agora sob o ponto de vista da "anatomia da língua" que fomentou o analitismo
e a descrição detalhada dos fatos linguísticos como premissa para a formação básica do
educando.
Dois aspectos do título desse texto pioneiro de Costa e Cunha merecem especial
observação: a presença do adjetivo “novo”, que certamente se refere à novidade do
método de ensino que Costa e Cunha busca implementar – não ao fato de ser “mais um”
livro sobre o tema - e o substantivo “análise”, um metatermo expressivo na segunda
metade dos Oitocentos, já que passa a empregar-se nos estudos linguísticos por
empréstimo à investigação que então se fazia na área da Biologia e da História Natural.
Tal fato revela nítida presença da Linguística naturalista no horizonte de retrospecção de
Costa e Cunha, conclusão que nos remete, em linha de raciocínio, a atestar a circulação
das novéis ideias sobre evolucionismo linguístico no meio intelectual brasileiro já a partir
do início dos anos 1870.
Não se busca aqui pôr em xeque o pioneirismo de Júlio Ribeiro quanto à introdução
do método científico no Brasil, já que as fontes disponíveis não nos oferecem informação
1 Publicado em Vasconcelos, Maria Lucia Marcondes Carvalho; Batista, Ronaldo de Oliveira; Pereira, Helena
Bonito. Estudos linguísticos: língua, história, ensino. São Paulo: Editora Mackenzie, 2018, p. 185-204.
2
idônea que o justifique2. No entanto, salta aos olhos a evidência de que o paradigma
fundado por August Schleicher (1821-1868) já circulava nas rodas de discussões
linguísticas bem antes da publicação do precioso e pioneiro estudo Traços gerais de
linguística (1880), com que Júlio Ribeiro reduz a letra de forma, entre nós, a
revolucionária visão que então se projetava sobre a língua como organismo análogo ao
dos seres vivos.
Neste cenário riquíssimo, em que borbulhavam novas concepções sobre a língua
como fato biológico e o entusiasmo abria sendas renovadoras do ensino do vernáculo3,
surge o texto de que nos ocupamos neste trabalho, a Gramática elementar portuguesa
(1880) que Antônio Estêvão da Costa e Cunha traz a lume exatamente no mesmo ano em
que Júlio Ribeiro renova os ares da teoria linguística no Brasil com os seus Traços gerais
e a apenas um ano da publicação da Gramática portuguesa (1911 [1881]), do mesmo
Júlio Ribeiro, ainda hoje apontada como a primeira gramática do período científico4 no
Brasil. A escolha desta obra busca aprofundar um pouco, nos limites destas páginas, a
investigação sobre descontinuidade paradigmática na segunda metade do século XIX,
razão por que, tendo em vista o necessário recorte que as limitações nos impõem, optamos
por centrar os comentários na descrição das partes do discurso, já que é essa uma das
áreas da exposição dos temas linguísticos em que mais se evidenciam os movimentos de
ruptura paradigmática. Essa investigação parcial, por outro lado, visa a contribuir para
que se trace o perfil doutrinário de Costa e Cunha à época da publicação da Gramática
elementar e, consequentemente, se estimule a produção de novos estudos sobre este nome
ainda esquecido na história da gramaticografia brasileira.
1. O autor
Antônio Estêvão da Costa e Cunha – na grafia original, Antonio Estevam da Costa e
Cunha - nasceu no Rio de Janeiro em 9 de setembro de 1839, filho de Antônio Severino
2
Sabemos que a Gramática elementar, de Antônio Estêvão da Costa e Cunha , quanto à data de publicação,
antecede a Gramática portuguesa, de Júlio Ribeiro, mas não há certeza de ter sido escrita antes, pois Ribeiro
afirma em seus Traços gerais de linguística, obra publicada em 1880, que usa nessa obra a mesma ortografia
de que se serve em sua gramática. Em outras palavras, é certo que o texto da gramática de Ribeiro já estava
pronto em 1880, embora só tivesse vindo a lume em 1881.
3
Lembre-se necessariamente que, neste momento, o texto mais conceituado sobre descrição do português
era a Gramática portuguesa (1871[1866]), de Francisco Sotero dos Reis (1800-1871), adotada em quase
todas as províncias do Império, cujas bases estão fincadas no paradigma racionalista que nos chegara
sobretudo pela letra de Jerônimo Soares Barbosa (1737-1816).
4
Sobre periodização dos estudos linguísticos no Brasil, leia Cavaliere (2002).
3
5
Além de Costa e Cunha, participaram desta importante iniciativa para a educação primária brasileira os
educadores Augusto Candido Xavier Cony (?-?), Antonio Rodrigues Carneiro (?-?), João da Matta Araújo
(?-?) e Luiz Pedro Drago (1844-?), além do diretor da Escola, o conselheiro Manuel Francisco
Correia(1831-1905), que viria ser senador do Império (Lopes, 2012: 111).
6
Um relato mais detalhado da biografia de Costa e Cunha pode ser obtido em (Costa e Cunha, 2008).
4
em citar suas fontes, tirante uma referência superficial a François Noël (1756-1841), que
não se pode definir se atinente à Nouvelle grammaire française (1845[1823]) ou às Liçons
d’analyse grammaticale (1871), ambos escritos em coautoria com Charles-Pierre Chapsal
(1787-1858).
Dois anos após a publicação da Gramatica portuguesa, de Júlio Ribeiro, Costa e
Cunha lança no cenário acadêmico o Manual do examinando de português (1883), um
texto de caráter descritivo e normativo, conforme ordinariamente se caracterizavam os
trabalhos da época, com evidente pendor didático, cujas referências teóricas nitidamente
remetem à escola histórico-comparativa alemã. Costa e Cunha adverte nas páginas
iniciais de sua obra que uma nova abordagem dos estudos linguísticos se inaugura com a
“sciencia da linguagem”7, que “comprehende a philologia e a glottologia, por alguns
denominada philologia geral”, para mais especificamente adiante asseverar que “a
glottologia (ou glóttica, ou linguistica, ou philologia geral ou comparada) é o estudo
analytico das línguas” (1883:3).
A questão que nos desafia na análise da obra de Costa e Cunha está em coadunar o
Novo método teórico-prático, a Gramática elementar e o Manual do examinando de
português neste cenário conturbado da pesquisa e do ensino da língua vernácula. Alguns
traços da Gramática elementar conferem-lhe nítido perfil conservador – tome-se, por
exemplo, a definição de gramática como “a arte que ensina os preceitos da boa
linguagem” (1880:7) – ou a duvidosíssima (mesmo para a época) asserção de que “a
língua que fallamos é a portugueza, porque os Brazileiros são oriundos dos Portuguezes,
e juntos já formaram uma só nação” (1880:8). Não obstante, Costa Cunha já neste
momento revela postura mais atualizada em comentários de rodapé, entre eles o de que a
gramática geral distingue-se da gramática particular por filiar-se à Filologia e à
Linguística (1880:7).
De qualquer modo, a diferença de amparo teórico entre a Gramática elementar e o
Manual do examinando, saídos a lume no curto segmento de três anos, não se pode
atribuir a uma súbita mudança paradigmática nas convicções linguísticas de Costa e
Cunha. A hipótese mais plausível é de que sua formação já se revelasse consonante com
7
A denominação da gramática como “ciência”, por si só, não caracteriza um texto como do período
científico, já que a variabilíssima concepção de ciência entre os gramáticos conferia ao termo um
indesejável valor polissêmico. Sotero dos Reis, por exemplo, define a gramatical geral como ciência, tendo
em vista seus princípios universais: “a Grammatica Geral é uma sciencia porque tem por objeto a
especulação razoada dos princípios immutaveis e geraes da palavra” (1871[11866]:VI).
7
gramática, no que foi imitado mais tarde por Alcuíno de Iorque8 (735-804) e Elfrico
Gramático (955-1010). Na verdade, o uso do termo remonta à gramática grega da
Antiguidade, mais precisamente a Dionísio da Trácia (170aC-90aC), que atribuía à
etimologia a função de descobrir não propriamente a origem de dada palavra, mas a ideia
ou sentido que dera origem à palavra (cf. Câmara Jr. 1975:17). O interesse pela etimologia
como campo de investigação dedicado à origem das palavras também passou pelos
gramáticos latinos, não obstante não se tenha nesse momento uma parte da gramática
exclusivamente dedicada aos estudos etimológicos9.
O fato notável, à proposta de Costa e Cunha para a gramatização do português, está
justamente na ruptura da concepção orgânica da gramática em ortografia, prosódia,
etimologia e sintaxe. Segundo o gramático carioca, as partes da gramática são a prosódia,
a ortografia, a lexiologia e a sintaxe, proposta que realoca o estudo das partes do discurso,
antes situado no nível primário da sinopse gramatical sob a rubrica da etimologia, para
um nível subsidiário da lexiologia como grande campo de estudo da palavra que “trata da
classificação, fórmas e variantes” (1880:10). A leitura da obra de Costa e Cunha revela
que “formas” refere-se tanto aos elementos mórficos quanto aos fonéticos; “variantes”
diz respeito às flexões. O que vemos aqui, portanto, é uma concepção orgânica do estudo
do léxico que reúne o estudo das classes gramaticais com a sua estrutura fonética e
morfológica, um inequívoco passo adiante na concepção orgânica da língua.
Saliente-se que o emprego do termos lexiologia, salvo melhor juízo, não tem
ocorrência precedente na literatura gramatical brasileira, um dado expressivo quanto ao
vanguardismo de Costa e Cunha. Ademais, no curso da exposição da matéria, nosso
gramático mais uma rompe com a tradição racionalista, que estampa prioritariamente a
ortografia e a prosódia como partes iniciais da gramática, para reconhecer a maior
relevância da lexiologia e da sintaxe como áreas de estudo efetivamente linguísticas
(1880:10):
Pede a ordem natural das idéas que se inicie o ensino pela prosódia, mas a
experiencia tem demonstrado que para os principiantes melhor é começar pela
lexiologia, embora conjunctamente se deem algumas noções das outras partes da
8
A Gramática de Alcuíno, em sua segunda parte, trata da etimologia como parte que que estuda as espécies
de palavras (cf.Gaskoin, 1904:195).
9
As controvérsias etimológicas do latim entre Varrão e Quintiliano são objeto de cuidadosa análise em
Pereira (2000). Sobre o conceito de etimologia na Antiguidade, leia Law (2003:44) e Amsler (1989:15).
9
Grammatica, pois o caminho se torna assim mais plano e desentravado para quem
começa.
O “caminho mais plano e desentravado”, decerto, é o que apresenta o estudo da língua
em sua efetiva descrição sistêmica, para depois cuidar do sistema ortográfico e do sistema
de sons. Há nessa reorganização orgânica da gramática uma sensível aproximação com a
pioneira proposta de Júlio Ribeiro, que submete toda a matéria gramatical ao binômio
lexiologia e sintaxe, conforme se observa nos quadros comparativos abaixo oferecidos:
classificação
lexiologia som
formas estrutura
Gramática sintaxe variantes
prosódia
ortografia
fonética
fonologia prosódia
lexiologia ortografia
taxionomia
morfologia campenomia
Gramática etimologia
léxica
sintaxe lógica
regras de sintaxe
10
Sobre os diversos significados metalinguísticos de etimologia da gramaticografia do inglês, leia Michael
(1970:185).
11
Leia a respeito Cavaliere (2000). A rigor, a inovação de Costa e Cunha está em evitar o uso de etimologia
para designar o estudo das partes do discurso, não propriamente para conferir-lhe um outro papel
designativo na descrição gramatical.
12
Citados na ordem em que aparecem no quadro. A referência completa está na bibliografia.
12
13
Arrolam o substantivo e o adjetivo como espécies dos nomes.
14
Arrolam o artigo e os pronomes entre os adjetivos.
14
15
Sobre a polêmica citação de Soares Barbosa na Gramática portuguesa de Frei Caneca, leia Cavaliere
(2014:68).
16
Nesse aspecto, observarmos a disparidade numérica entre as dez classes relacionadas por Felizardo Fortes
e Costa e Cunha, que remontam à proposta de Port-Royal, e as seis relacionadas por Soares Barbosa.
17
Em estudo recente sobre a Gramática de Felizardo Fortes, Rolf Kemmler (2013) estabelece vínculo
doutrinário entre as teses do gramático brasileiro e as bases da gramática latina, sob inspiração de
Figueiredo (1814) e Lobato (1770).
15
gramaticais desde a tradição de Morais Silva, que o considera um derivado verbal tomado
adjetivamente, à semelhança do que ocorre com os demais particípios latinos (presente e
futuro).
Uma especial referência ao pronome e ao advérbio no quadro que aqui se analisa
revela sua inadmissibilidade em algumas gramáticas racionalistas. A respeito, o próprio
Soares Barbosa não desconfia da presença do pronome e do advérbio como subclasses
respectivamente do adjetivo e da preposição, no que é seguido diligentemente por
Antônio da Costa Duarte.
Em Soares Barbosa lemos (2004[1822]:110):
Quanto aos adverbios, estes são umas expressões compostas,
equivalentes a uma preposição com seu complemento, que costuma ser um
substantivo ou so, ou acompanhado de um adjectivo.
Em Costa Duarte (1877[1829]:97):
Advérbio é uma palavra invariavel, equivalente a uma preposição
com seu complemento, cujas vezes faz com mais precisão, e que se ajuncta
a qualquer palavra susceptível de modificação.
Referências
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17
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