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NICOLAI H ARTMAN N

A FILOSOFIA
...

DO IDEALISMO ALEMAO

Tradução de

José Gonçaives Belo

2.ª edição

FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN J LISBOA


IN TRODUÇÃO
A.. série de filósofos que designamos por « idealistas alemães » ,
a avalancha d e sistemas originais sobre p ondo-se e m catadupas,
o encadeamento rico e imenso das controvérsias literárias, cuj o
conj unto representa para a posteridade a época do « idealismo
alemão » , tudo isto constitui um movimento espiritual que difi­
cilmente se pode equiparar, no que toca a concentração e ele­
vação especulativa, a qualquer outro na História. Começa na
década de oitenta do século XVIII e prolonga-se, nas suas últimas
ramificações, até à metade do século XIX. O seu apogeu recai
no primeiro decénio do século XIX, no qual Fichte, infatigável
crijidor, atinge a maturidade ser.e na do seu desenvolvimento
espiritual , o Schelling precocemente amadurecido publica o s
seus escritos mais significativos e eficientes, e Hegel, avançando
vagarosamente, elabora a concepção fundamental do seu sistema
gigantesco . A capital deste mundo espiritual , fechado em s i
mesmo, é durante mais d e duas décadas a Universidade d e lena,
na qual, desde o primeiro aparecimento de Reinhold (1 787) até
à partida de Hegel de lena ( 1 808) , trabalham, ensinam e permu­
tam animados pontos de vista pessoais os cérebros dirigentes
do movimento . Mais tarde, encontra�se um segundo berço do
movimento na Universidade de Berlim, recentemente fundada,
onde Fichte, Schleiermacher e Hegel desenvolvem a sua actividade.
O que reúne os pensadores do idealismo alemão num grupo
homogéneo , a despeito das oposições e pontos de discussão cons­
cientes, é, em primeiro lugar, a posição do problema comum.
O ponto de partida p ara todos eles é a filosofia kantiana, cuj a
riqueza inesgotável produz sempre novas tentativas de solução
para os problemas propostos . Cada um destes pensadores em
particular estuda-a intensamente, em p rofundidade, procura
suprir as suas carências reais· ou presumíveis , solucionar os
problemas que se levantavam, levar a cabo as tarefas por ela
iniciadas . A meta comum a todos é a criação dum vasto sistema
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de filosofia, rigorosamente homogéneo, baseado em fundamentos


últimos e irrefutá'l'eis . Paira distintamente diante de todos o
ideal daquela « metafísica futura » (« künftige Metaphysik ») para
a qual o pensamento portentoso de Kant tinha só fornecido os
p rolegómenos . Em verdade, não lhes escapava inteiramente que
Kant, nas últimas Críticas, já construíra os alicerces desta meta­
física. Mas as bases não lhes bastam . O sistema deve surgir
duma só peça, numa certeza inequívoca, que realize a sua con­
cepção de filosofia. A direcção em que procu,r.avam este sistema
ideal diferia de uns para os outros, e cada novo estudo torna-se
de facto um novo sistema, embora nos possa parecer que sobre
qualquer oposição prevaleça 'ª íntima afinidade de concepção
filosófica que descobrimos naquelas criações, vistas como os
planos duma posição histórica �fastada. A crença, porém, de
que um tal sistema ideal é possível , de que sej a. acessível à
razão humana, é, de facto, comum a todos eles. Todo o movi­
mento vive sob o signo dum op timismo filosófico j uvenil no
seu vigor e propenso à criação. Todo o cepticismo tem sempre
para estes pensadores o significado duma fase de transição ,
duma instância de exame e reflexão , dum caminho que leva a
uma interiorização mais profunda e ao esgotamento dos pro­
blemas .
Pode p o r isso indicar-se, em geral, como o elemento carac­
terístico das grandes doutrinas idealistas , a marcha unitária
em direcção a um sistema. Não que pensadores anteriores não
se tivessem já esforçado também por alcançar um quadro uni­
tário de conj u.n to ; mas eles não partem do aspecto fechado da
unidade do todo, como também não expõem este formalmente -
ou só lhe dão expressão incompleta. Procuram, em primeiro
lugar, problemas particulares ou grupos de problemas ; uma
construção metodicamente unitária e fundamentalmente cerrada
como a « Ética» de Spinoza constitui uma absoluta excepção .
Os idealistas, pelo contrário, tanto uns como outros, dirigem-se
desde o começo para .a ideia eia totalidade e quase todas as
suas obras contêm um novo es.b oço de sistema; e mais do que
--
um:· iio decurso ulterior do seu desenv � lvi mento illt electual,
transforma o sistema já anter i � rmente -�sboçado . A época pós­
-
-kantiana -coloca-se com isso em manife � ta oposição a Kan t ,
para quem , a despeito da base profundamente metafísica do seu
modo de pensar, a primeira exigência era não tanto o sistema
como, em última análise, a Crítica, enquanto pressuposto do
sistema. Para o espírito da metafísica especulativa, que desper­
tava de novo com o idealismo alemão, havia na simples tarefa
da Crítica, por menos céptica que ela possa ser considerada,
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qualquer coisa de negativo, quer dizer, d e meramente prepara­


tório . A série precipitada dos grandes sistemas que se seguem
a Kant não é um acaso. :t a reacção histórica da sistemática
construtiva contra a crítica destrutiva . Ou, se quisermos assinalar
mais agudamente os contrastes, como os seus próprios represen­
tantes os podiam sentir, é a reacção do sistematismo contra o
criticismo .
Os primeiros pensadores pós-kantianos não se propõem
ainda tanto a transformar como a compreender a verdadeira
teoria kantiana. Que, no princípio, houvesse falta duma tal
compreensão, não é de admirar, por causa da dificuldade que
apresentam as investigações da Crít ica da Razão Pura. A filosofia
popular que predomina na época do racionalismo, que pouco
a pouco se extinguira, não estava à altura desta tarefa. O que
"
o bom senso não podia compreender, tinha de ser considerado
como paradoxo , como ameaça à sua própria autoridade. Quanto
menos se compreendia Kant, tanto mais absurdo devia parecer
o empreendimento da Crítica. A sátira de Fr. Nicolais chegara
a considerá-la como um caminho errado que j á nem a si mesmo
se entendia, e até pensadores mais sérios da escola wolfiana,
como Moses Mendels sohn, souberam extrair dela sàmente o
aspecto negativo, quer dizer, o cepticismo metafísico . Semelhan­
temente a j ulgou Herder na sua Metakritik [ « Metacrítica » ] (1 799) ,
e até nos escritos posi t eriores de Jakob i , que se esforçava s�ria­
mente por compreender Kant, encontramos traços de igua1l es­
pírit o.
O mérito de Reinhold é ter dado o impulso mais decisivo
para p romover uma forma diferente de apreciação de valor.
As suas B riefe über die Kan tische Philosophie [« Cartas sobre
a filosofia kantiana » ] , publicadas em 1 786/87, no Deu tscher
Merku.r [ « Mercúrio Alemão » ] de Wieland, lançaram a questão .
Com decisão acertada, tomou como ponto de partida aqueles
aspectos da teoria kantiana que iam na generalidade mais ao
encontro da compreensão de ·esferas mais amplas, os problemas
morais e religiosos , indicando depois o caminho natural que
ele próprio tinha aberto para a Crítica da Razão Pura. Relatava
na sua exposição a impressão do que sentia espontâneamente
e do que intimamente vivia, como j amais poderia havê-lo feito
Kant com a sua linguagem obj ectiva, cautelosa e ponderada.
Com a divulgação da doutrina kantiana introduz-se, no
entanto , não só a interpretação do seu significado específico,
mas também a tendência de retirar dela certos pontos insatis­
fatório s . O próprio Reinhold faz a primeira tentativa desta
interpretação e torna-se o primeiro continuador da nova teoria.
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Mas o impulso que dele parte era já duplo : por um lado em


dkecção a Kant, por outro lado, para além dele; quer dizer,
acusara a , t endência para se afastar daquilo mesmo sobre que
se debruçara.
Ambas as direcções se reflectem distintamente no desenvol­
vimento subsequente, e são, em parte, os mesmos cérebros
filosóficos que continuam a trabalhar tanto numa como noutra
direcção . Todavia, ambos os movimentos descrevem círculos
muito diferentes que necessitam de considerações separadas .
Direct �mente ligada a Reinhold, surge na última década do
século xvrrr uma série de defensores e adversários da filosofia
crítica, para os quais ainda se trata, em primeiro lugar, de
interpretar Kant e de tomar uma posição cm relação a ele .
Desta série fazem parte Schulze, Maimon, Beck, bem como num
contexto um pouco mais vasto, Jakobi e Bardili. Só poucos anos
mais tarde, mas ainda na mesma década, com o aparecimento
de Fichte, se inicia um movimento novo e mais amplo, cujos
condutores se propõem, com uma atitude independente, o s mais
altos obj ectivos especulativos . Bardili pertence j á em parte a
um movimento, em parte ao outro . À nova corrente, que abrange,
além de Fichte, Schelling e Hegel, também Schleiermacher e
Krause (bem como uma série mais numerosa de adeptos dos
mesmos), vem desembocar em período mais avançado o êxito
literário de Schopenhauer.
A escola dos poetas pré-românticos desempenha um papel
integrador especial neste desenvolvimento filosófico. A sua
influência exerce-se quase ao mesmo tempo que os primeiros
trabalhos de Schelling e em estreita relação recíproca com os
progressos deste filósofo . São principalmente Friedrich Schlegel
e Novalis que se aventuram no campo filosófico e cuj o espírito
leva parq a especulação idealista a sua nostalgia voltada para
'
o infinito e para o irracional . O mesmo se pode dizer de Hol­
derlin, dentro de certos limites. Na mais íntima conexão com
esta nova corrente espiritual encontra-se a influência, que domi­
nara também uma sénie de pensadores anteriores : Pllotino,
Bruno, - Spinoza, Jakob Bõhme. Na estrutura do pensamento
crítico e sistemático age o elemento romântico, panteísta e
místico, a princípio ainda como um corpo estranho, que só
lentamente o impregna e o desvia do seu caminho recto. O Fichte
do período final, o Schelling da fase média, e a elevação filosófica
de Hegel não podem conceber-se sem este factor. Ainda mais
profundamente penetrado por ele é o labor intelectual de
S chleiermacher, que conserva também formalmente uma estreita
conexão com aquele elemento . A viragem que o i dealismo sofreu
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a partir daqui , determinada de um modo racional por Kant,


mostra-se da maneira mais positiva no campo da ética, da
estética e da filosofia da religião . Mas o irracionalismo propria­
mente dito penetra só tarde na última fase de Schopenhauer
e Schelling, a o passo que Hegel, que deve à poesia e à vida
românticas uma grande quantidade de motivos intelectuais ,
nunca desconfia da omnipotência da razão. A evolução de cada
um dos filósofos particulares mostra no conj unto uma série
variada de fases, que se cruzam frequentemente urnas com as
outras , e se condicionam entre si dê maneira diversa. A actividade
dos filósofos considerados isoladamente não se pode separar
cronolàgicamente da actividade dos outro s . O aparecimento dum
pensadqr segue· o dum outro tão de perto, que a sua evolução
pessoal não está condicionada unilateralmente pelos antecessores
ou sucessores , mas , pelo contrário, decorre paralelamente por
meio de influências e oposições recíprocas . Para demonstração
deste facto j unta-se, em apêndice a este volume, um quadro
cronológico das principais obras filosóficas de toda a época
idealista que começa com a Crítica da Razão Pura e termina
com as últimas publicações de Schelling e Schopenhauer. As obras
editadas mais tarde para a posteridade, ainda que. st!j am de
decisiva importância para o quadro total dum filósofo , como
sucede com Fichte e Hegel , não fazem parte deste quadro,
porque nele só se tomam em consideração as obras realmente
publicadas; só estas obras desempenham um papel na trama
dos fios que se entretecem variadamente das influências vivas
recíprocas . Em contrapartida, fazem também parte do quadro ,
para não se omitir nada na visão de conjunto , as obras principais
de alguns pensadores que não contam porventura directamente
para o idealismo, como Fries e Herbart, porque o seu ordena­
mento no tempo, entre as criações do idealismo, é indirectamente
também característico delas. Esta situação histórica representa
para a compreensão do período no seu conj unto uma dificuldade
que não é menos importante . Não é possível compreender a
evolução dum filósofo sem a referir à dum outro . A evolução
do desenvolvimento dum pressupõe já em parte o que pode
seguir-se na exposição do seguinte. Isso tem importância especial
em Schelling , que no início segue muito de perto Fichte e, inclu­
sive, em parte o repete, embora nas suas últimas publicações
ultrapasse temporalmente Hegel, mas que no decurso do seu
labor de quase 50 anos percorre nada menos do que cinco
sis temas cl aramente diferentes. O mesmo é válido dizer-se de
Fichte, que deixou uma enorme quantidade de esboços de sis­
temas diferen tes, reiniciados por ele continuamente. O Fichte
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da fase final não se compreende histàricamente sem Schelling;


. o Schelling da fase média sem os românticos, e o Schelling da
fase final sem Hegel .
Um método que consistisse na exposição histórica de pro­
blemas que renunciasse a uma apresentação uniforme dos filó­
sofos particulares, dominaria imediatamente esta dificuldade .
Todavia, com este método teriam de passar a um plano secun­
dário os traços característicos que continuamente acompanham
o desenvolvimento individual dos diferentes filósofo s . E destes
traços depende precisamente o que, em certa medida, interessa
e é capaz de atrair os epígonos actuais, que partem de perspec­
tivas totalmente diferentes no meio da heterogeneidade da
estrutura intelectual dos idealistas. A exposição presente renun­
ciou, por isso, à sucessiva apresentação histórica dos problemas
da evolução sistemática, quando o quadro homogéneo dos grandes
vultos de pensadores individuais o tornava necessário. Notas
relativas ao que antecede e ao que se segue, procuram compensar
esta falta, evitando a falsa aparência de autonomia do particular,
e lembrando constantemente as múltiplas ramificações dos fac­
tores que o acondicionam. A imagem de conjunto do desenvol­
vimento individual dos problemas é ocasionalmente acrescentada
como complemento .
ÍNDICE

Nota do Editor: até à página 400, o texto d a t rad u ç ão teve a in ter­


venção do Dr. Pedro d a Silva Pereira.

PRIMEIRA PARTE
FICHTE, SCHELLING E O ROMANTISMO 1

P re fác io . 3
In t rodução 7

Capítulo 1
K a n t i a nos e Anti k a n t i a nos 15

1 .0 Reinhol<l: . 15
2 .· Schulze . 23
3 .º Maimon . 28
4.º J. S. Beck 34
5 .º Jakobi 36
6.º Bardilli 42

Capítulo 2
Fichte . . . . • . • . • . . . . . . . 51

l . Vida, evolução filosófica e obras . . 51


2. O Fundamento da Teoria da Ciência . 58
3. A Doutrina da Ciência Teórica . . . 67
4. A Doutrina da Ciência Prática . . . 77
5. A última forma da Doutrina da Ciência . 84
6. A Doutrina Moral . . . . . . . 96
7. Filosofia do Direito e do Estado . 105
8. Filosofia da Hi stória . 133
9. Filosofia da Religião 1 17

Capítulo 3
Schel l i ng . 1 27

1 . Posição histórica, .personalidade, vida e obra . 127


2. A Filosofia da Natureza . . 1 34
3. O I dealismo Transcendental 143
4 . A Filosofia da Identidade . 155
5 . A Filosofia da Liberdade . 1 65
6. A Filosofia da Mitologia e da Revelação . 1 80
Capítulo 4
A Fi l os of i a dos Român ticos . 1 89
1 . Vida e pensamento r o mânt i co . 189
2. O precursor do Romantismo . 1 93
3 . Friedrich Schlegel 200
4 . Héilderlin 217
5. Novalis . . . . 222
6. Schleiermacher . 234
a) Filosofia da. Religião 234
b) Dialéctica 247
e) Doutrina mo ral . . 258

AP�NDICE
Quadro cronológico das principais obras do I dealismo
Alemão . 273
B IBLIOGRAFIA 276

SEGUNDA PARTE
HEGEL . . 285
Prefdcio 287

Capítulo 1
O conceito h�el iano de F i l osofia . . . . . . . 293
1 . Acerca da leitura e compreensão de Hegel . 293
2. He g e l e nós . . . . . . . . . 30 1
. 3 . Hegel e a Ciência do nosso tempo . 313
. 4. Hegel e a Filosofia do seu tempo . 31 8
5. Hegel e a História da Filosofia . 330
6. Vida, formação e esoritos de Hegel . 346

Capítulo 2
A Fenomenologia do Esp írito . . . . . . 355
1. Os começos . . . . . . .
. . . 355
2. Tema e plano da Fenomenologia . 370
3. Fenomenologia da consciência . . 389
4. Fenomenologia da razão . . , 404
5. Fenomenologia do verdadeiro espírito . 413

Capítulo 3
A Ciência da Lógica . . . . . . . . . 433
1 . As categorias do Absoluto . . . . 433
2. Sentido e problema da dialéctica . 446
3. A lei formal da dialéctica . 463
4. Ser, devir e Existência . . . . . 484
5. Finidade e Infinidade . . . . . 493
6. Ser-para-si, quantidade e medida 506
7. Reflexão e essência . . . 517
8. Fenómeno e realidade . . 537
9. Conceito e subj ectividade 544
10. A obj ectividade 551
1 1 . A I deia . . . . . . . 5 59
Capítulo 4
O si stema baseado na Lógica . . . . . . . . . . . . 567
1 . A f i lo s o fi a da natureza e do espírito subj ectivo . 567
· 2. C once i t o e teoria do espírito obj ectivo . 582
3. A, filosofia do direito e da moralidade . 598
4. Filosofia do e st a do e da eticidade 616
5. Filosofia da his tória 633
6. Estética . . . . . . . 648
7. Filosofia da religião . . 659
8. Si s t em a e hi stória da filosofia 667

B I BLIOGRAFIA 671

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