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RS1
Jacqueline Sinhoretto (Doutora em Sociologia - Universidade Federal de São
Carlos. jacsin@ufscar.br)
Introdução
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Paper apresentado no 44º Encontro Anual da ANPOCS, GT 47 – Violência, Punição e Controle Social:
perspectivas de pesquisa e de análise, em dezembro de 2020.
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Este paper é desdobramento da pesquisa “Policiamento Ostensivo e Relações Raciais: estudo comparado sobre
formas contemporâneas de controle do crime” (SINHORETTO et al, 2020), pesquisa em rede realizada por
GEVAC UFSCar, GPESC - PUCRS, NESP - Fundação João Pinheiro e PPGSOL - UnB, com o financiamento do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). Chamada Universal CNPq/MCT
01/2016
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social contemporâneo no continente americano como efeito dos dispositivos coloniais e do
racismo (ALEXANDER, 2012; BYFIELD, 2019). O estudo contribui com o conhecimento das
práticas de abordagem e dos saberes racializados que orientam o policiamento no nível da rua,
como das concepções e saberes que organizam o policiamento ostensivo realizado pelas
Polícias Militares.
1. Metodologia
No Rio Grande do Sul (RS), a pesquisa qualitativa foi realizada a partir de 12 entrevistas
semiestruturadas com oficiais da Brigada Militar de Porto Alegre. Em São Paulo (SP), foram
realizadas 24 entrevistas com oficiais e sub-oficiais indicados pela PMESP, por meio do
Departamento de Educação e Cultura, atendendo a perfis de experiência planejamento e
execução, cor/raça e sexo.
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No RS, os entrevistados foram selecionados a partir da técnica conhecida como bola de
neve ou cadeia de informantes (BIERNACKI E WALDORF, 1981). Esse método permite a
definição de amostra por referência e cadeias de referência. A aproximação com os grupos de
policiais entrevistados se deu pelo conhecimento pessoal entre a equipe e um interlocutor,
considerado central. Após entrevistado, ele indicou um colega, repetindo-se o procedimento até
o 12º entrevistado. A indicação de alguém conhecido para as entrevistas tornou os ambientes
das conversas muito tranquilo e sem constrangimentos, salientando-se, porém, algumas
dificuldades dos policiais de falarem da instituição em que trabalham. Constantemente,
afirmavam os “lados positivos” da BM. Em relação ao perfil dos entrevistados, duas eram
mulheres e o restante, homens; cinco fazem parte do quadro Major, quatro Capitães, dois
Tenentes Coronéis e um Tenente. Dois entrevistados eram autodeclarados brancos, o restante
se autodeclarava negro.
Contudo, não foi possível o acesso a dados quantitativos sobre prisões em flagrante e
letalidade policial no RS. A Secretaria de Segurança transmitiu a existência de obstáculos
intransponíveis para a pesquisa em bases de dados de ocorrências criminais e, sobretudo, a
inexistência de dados de cor/raça dos acusados e vítimas. E, após diversos contatos com as
mesmas respostas reiteradas, a equipe decidiu concentrar-se apenas na análise qualitativa das
entrevistas.
Em SP, o clima foi diferente. A despeito do acesso aos dados quantitativos ter sido
relativamente simples, realizado por meio de ofício com base na Lei de Acesso à Informação,
as bases de dados requerem manipulação complexa e tiveram que ser reenviadas após
verificadas inconsistências na quantidade de casos observadas pelos pesquisadores. No caso
das entrevistas, o processo foi muito mais lento e com barreiras sucessivas a serem
ultrapassadas. Em virtude de uma normativa interna, oficiais e praças não são autorizados a dar
entrevistas a pesquisadores e jornalistas sem autorização dos superiores. Isto inviabilizou a
utilização do método bola de neve a partir de contatos prévios. Mesmo tendo uma rede de
relações com policiais, a equipe em SP precisou recorrer a uma autorização da Secretaria de
Segurança Pública, que encaminhou a demanda ao Comando Geral da PMESP, que finalmente
indicou a Diretoria de Ensino e Cultura (DEC) para atender às demandas da equipe. Nossos
interlocutores afirmavam que esse percurso pela hierarquia era necessário e benéfico, pois com
a autorização superior reduziam-se os riscos de negativas de colaboração nas instâncias
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intermediárias. A partir das indicações da DEC, foram entrevistados oficiais com experiência
no policiamento ostensivo, entre homens (14) e mulheres (2), brancos (11) e negros (4).
Ainda que a maior parte das entrevistas tenha sido amistosa, alguns oficiais demarcaram
sua desconfiança com relação à equipe do GEVAC UFSCar e aos resultados de pesquisas
anteriores. Externaram desconfiança sobre a expertise da equipe no tratamento de dados e
procuravam demonstram familiaridade com métodos de pesquisa. Reiteradamente foi citada
pesquisa realizada pelo Instituto Sou da Paz que teria constatado que não existe racismo
institucional na abordagem policial. Oficiais mais graduados tentavam mostrar conhecimento
de literatura de métodos de pesquisa social em inglês e citaram missões de intercâmbios em
polícias de outros países.
Em relação às entrevistas com praças, a DEC direcionou a equipe para três batalhões.
Foram selecionados o batalhão em área nobre na Zona Sul da cidade de São Paulo, um de área
periférica da mesma região e outro no centro da capital. Essa distribuição atenderia, segundo a
oficial que facilitava o acesso ao campo, a condições do fazer policial muito distintas. Nos
batalhões, o ambiente das entrevistas foi diferente. Sem animosidades e disputas de expertise,
as dificuldades foram relativas à pressão do tempo por parte de quem tinha que cumprir uma
jornada atribulada e ao exíguo tempo para apresentar a pesquisa. Um dos selecionados pensou,
por exemplo, que tinha sido chamado à presença da chefia para receber uma advertência.
Certamente não há como dimensionar o efeito dessa tensão inicial sobre a qualidade da relação
de (des)confiança entre entrevistado e entrevistador. Em termos de perfil, foram entrevistados
5 homens e 3 mulheres, os 8 negros.
Não obstante todos os dilemas relacionados a pesquisar uma instituição fechada ao olhar
externo e muito hierarquizada internamente, é possível estabelecer, mediante a perspectiva
comparada, que os dados obtidos são extremamente ricos para o conhecimento e a reflexão
sobre a importância da suspeição para o trabalho policial, bem como sobre o impacto das
relações raciais sobre o policiamento.
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2. A Brigada Militar - RS e a Polícia Militar - SP: breve histórico
A Força Pública de caráter militarizado, tinha como função assegurar a ordem territorial
e o interesse do Estado, enquanto a Guarda Civil era eminentemente um corpo sem desenho
militar e com missão de auxiliar no policiamento de áreas urbanas. A Força Pública de São
Paulo sempre teve uma forte atuação no cenário político, como parte do braço armado do grupo
dominante local e nacional. O histórico de participação da instituição inclui seu deslocamento
para repressão de revoltas no território nacional, como o caso de Canudos. Além da repressão
aos levantes, há sua participação na “revolução de 1932” e no golpe de 1964.
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A Guarda Civil tinha função de permanecer nas cidades, enquanto a Força Pública podia
ser direcionada para atuações inclusive fora do estado de São Paulo. Durante a ditadura civil-
militar, em 1970, ambas instituições foram fundidas e se tornaram a Polícia Militar do Estado
de São Paulo, responsável pela manutenção da ordem social e pela segurança nacional, como
força auxiliar do Exército.
O vínculo entre corpo e crime é um antigo lugar comum dos estudos da criminologia
racista, especialmente profícua num país em que o “problema da raça” ocupou lugar de destaque
na formação do pensamento social. Inicialmente, no século XIX, ainda na vigência da
escravização das pessoas negras, apresenta-se o diagnóstico de que um país mestiço com forte
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Amadou Diallou foi morto com 41 tiros sem uma motivação plausível em 1999 em Nova York. Rodney King foi
espancado até a morte em 1994 em Los Angeles, mesmo havendo uma gravação das ações abusivas dos policiais,
eles foram inocentados por um júri branco, o que gerou uma grande revolta popular. Abner Louima foi torturado
e sodomizado por 4 policiais em 2001 em Nova York, neste caso a New York Police Department teve que pagar
uma indenização aos familiares (COSTA, 2004). Trayvon Martine, um adolescente de 17 que foi morto em 2012
por um vigilante voluntário que supôs que ele fosse um bandido. Erick Ganer, foi morto por métodos de
estrangulamento em 2014 por policiais, enquanto estava imobilizado repetia constantemente “não consigo
respirar” que mais se tornaria frase de ordem nas manifestações por reforma na polícia. O caso emblemático mais
recente é de George Floyd que foi asfixiado até a morte durante uma abordagem policial na cidade de Minneapolis.
Após cada um destes episódios, manifestações foram deflagradas contra da polícia e suas formas de atuação.
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presença negra estava fadado ao fracasso civilizacional. Em que pese os argumento biológicos
trazidos na edificação de uma hierarquização racial, em um segundo momento, as novas teses
passam a tematizar a superioridade cultural dos povos europeus. Influenciado por Nina
Rodrigues, Arthur Ramos considerou que os hábitos herdados de culturas inferiores seriam
empecilhos para a modernização e o progresso. A positivação da mestiçagem, em torno de
argumentos culturais foi desenvolvida por Gilberto Freyre (1933). É de sua autoria o que viria
a ser reconhecido, durante todo o século XX, como traço distintivo das relações raciais à
brasileira – a democracia racial.
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às taxas de prisões em flagrante e mortos por ação policial em grupos de 100 mil brancos e 100
mil negros residentes no estado paulista.
Assim, desenvolvemos um campo de estudo com base nas representações sociais acerca
da abordagem policial e do policiamento ostensivo presentes nos discursos dos policiais
militares referentes à cidade de Porto Alegre, como já mencionado anteriormente. Pois, mostra-
se indispensável, como coloca Porto (2006), no andar de conhecimento do fenômeno da
violência, a tentativa de entendimento desse fenômeno sem o conhecimento das corporações e
instituições responsáveis por, dentro de um prisma edificado nos moldes democráticos, uma
manutenção da ordem, observando os direitos humanos.
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os eventos que assim são notados como rodeados de medos e violência, trazendo novos tipos
de legitimações de atuação.
A ostensividade do trabalho da Brigada Militar está nas tênues linhas entre o direito de
si mesmos, dos outros e de todos, relacionando-se com a discricionariedade policial, que, em
cada situação, desafia o entendimento de qual prática utilizar, qual a atuação adequada, e, ainda,
o que seria o legal e legítimo, o ético e o tolerado socialmente (MUNIZ & SILVA, 2010). A
polícia possui a capacidade discricionária que necessita, em inúmeros casos, do aval dos
cidadãos. Seria o poder de polícia atrelado à decisão discricionária em relação aos modos e
jeitos de fazer o seu fim de ser.
As relações sociais, nesse campo, produzem violências a partir do medo e da busca pela
construção identitária dos atores sociais, a partir do confronto e da ideia de inimigo e do
“bandido”. Nessa perspectiva, o marcador social raça, em conjunto à área em que determinada
pessoa se encontra e a indumentária que está usando, aproximando-se do debate acerca da ideia
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de racialização, são trazidos como influenciadores na construção do indivíduo suspeito pelo
aparato policial, entendido como “do mal”.
O tema da letalidade policial é o mais espinhoso de todos. Ninguém quer ser acusado
de racista ou de violento. Assim, os policiais reiteram as justificativas institucionais para o
crescimento de pessoas mortas pela polícia nos últimos anos. “Quem escolhe a reação policial
é o criminoso”. “Quem escolhe a intensidade da força policial é quem opta pelo confronto”.
Não houve qualquer espaço nas entrevistas para a discussão de situações de abuso da força. A
defesa corporativa é unânime. Comentam as punições rigorosas aplicadas aos policiais nas
situações em que se constata erro e abuso. E rememoram o assassinato de policiais. Presenciar
a morte de um colega de trabalho é visto como a situação mais tensa que um policial pode
passar. E não há como não se emocionar com os relatos e com as lágrimas que emergem.
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O racismo é visto como um mal, que “infelizmente” ainda está presente na sociedade
brasileira, devendo ser combatida com educação e políticas sociais. O racismo é recriminado
pelos policiais e, por isso mesmo, negado enquanto prática institucional da polícia. Reconhecem
a desigualdade da população negra em relação à branca, o que é visto como injustiça. O que se
nega é o papel da polícia ou das técnicas de policiamento para a produção do quadro de
desigualdade e opressão da população negra.
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Os oficiais enfatizam que os investimentos em mecanismo e ferramentas tecnológicas
tem produzido um distanciando de práticas arcaicas ao ponto de afirmarem que não existe mais
policiamento ostensivo feito na “empiria”. Além disso, mencionam melhorias na segurança dos
agentes da polícia, no controle do policiamento e suas ações, no modo de “enfrentar o crime”,
educar e formar oficiais e praças.
O uso de câmeras fotográficas e filmadoras não é algo novo. Desde crimes que
repercutiram na mídia nacional como a Chacina da Candelária em São Paulo, ou Vigário Geral
no Rio de Janeiro, os aparelhos eletrônicos de captura de imagens surgem como inibidores de
condutas violentas policiais. Com o avanço tecnológico e o surgimento de câmeras acopladas
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em celulares e smartphones, a vigilância popular tem aumentado. Isso, para alguns
entrevistados é tido como algo negativo, pois permitiria que alguns suspeitos respondessem de
forma ríspida e negativa às abordagens. Assim, essa vigilância se configura como um panóptico
no qual policiais estão constantemente preocupados em serem gravados durante suas
abordagens.
Uma entrevistada negra, soldado da PMESP, moradora de uma região periférica de São
Paulo disse que a entrada na corporação muda muito a mentalidade. Os relacionamentos
interpessoais, as afetividades, os tópicos das conversas, os interesses em geral mudam, inclusive
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com afastamento de alguns familiares. Ela narrou a impossibilidade de manter um diálogo pela
ausência de encontrar pontos em comum com pessoas de fora da corporação, até mesmo nas
atividades de “bico”. O horário de folga e diversão é com a família mais próxima e com outros
policiais em eventos, em grupos de whatsapp. Parte da sua família acredita que ela trabalha
como cuidadora de idosos, pois tem medo de sofrer ameaça, o que também contribuir para um
afastamento da rede social de origem.
Recém aposentada, a única coronel mulher negra no estado de São Paulo, contou de sua
infância como filha de praça da PM, em um bairro pobre de uma cidade do interior, e como a
corporação transformou a sua vida e lhe deu uma projeção social. À PM devia tudo, os acessos
que ela teve a lugares e pessoas, oportunidades de exercício do poder. Considera que a farda
faz toda a diferença, pois como policial militar teve um outro tipo de participação social e
tratamento respeitoso. Enquanto que, sem a farda, o tratamento concedido a ela era outro, de
invisibilidade e até discriminatório, seja em restaurantes ou em reuniões com autoridades
públicas, em que sua corporalidade de mulher negra não correspondia às expectativas de uma
gestora pública em cargo de responsabilidade. Neste sentido, reafirmou que a polícia militar
teria lhe concedido uma outra identidade, por sua vez também discriminada.
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Na medida em que o policiamento ostensivo é o centro de todo policiamento – ainda
que o discurso oficial obrigue a declarar que todo o policiamento paulista é “comunitário” –
não se vê na descrição dos policiais sobre o seu trabalho preocupações com ações integradas de
prevenção da violência ou do delito, integração com outras políticas públicas ou discussão
interna sobre dilemas de operar numa sociedade que é reconhecidamente desigual. O trabalho
de polícia é todo focado em dissuasão de crimes patrimoniais. Os exemplos espontâneos
oferecidos em entrevistas sempre enfatizam estes crimes. A grande preocupação da polícia são
os ladrões, especialmente os que andam armados. Não se fala em homicídios, não se fala em
violência doméstica. Neste sentido, o racismo não aparece como um problema que deveria ser
resolvido pela instituição que está preocupada com o crime, sendo que a questão social deveria
ser cuidada pelos políticos.
Considerações finais
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contestado pelas evidências quantitativas obtidas e pelo ponto de vista de policiais negros com
visão crítica.
Parece ser decisiva para a consolidação deste ponto de vista a importância que a entrada
para a polícia adquire na reconfiguração da identidade desses sujeitos. A identidade policial
passa a rivalizar com traços da experiência de vida anterior, e os ressignifica. O espectro de
relações e expectativas se modifica quando a farda modifica a fachada pública com que passam
a interagir. No lugar da invisibilidade e da discriminação que sofriam como negros e periféricos,
o respeito, a admiração e o temor. Assim como as experiências de mobilidade social, o acesso
à educação e a um emprego estável e dignamente remunerado. A ascensão social de
trabalhadores negros nas corporações policiais militares parece um obstáculo cognitivo à
aceitação da existência do racismo institucional nas polícias. Esse é um paradoxo que passa a
fazer parte da vida de policiais negros: as identidades sociais de negro e de policial não são
encaixam facilmente.
Com farda e sem farda as experiências sociais dos policiais negros alteram-se
bruscamente. As experiências narradas ilustram a dificuldade de uma pessoa negra sustentar,
sem a farda, a posição social que ocupa. Inclusive na relação com policiais em exercício no
momento em que estão de folga. Ouvimos várias vezes sobre o receio e os cuidados que
emergem quando os homens negros estão dirigindo seus carros, aquisições compatíveis com
salários de oficiais das polícias, e se deparam com barreiras de fiscalização. Apesar de toda a
negativa anterior sobre práticas racistas no policiamento, os oficiais negros temem as
abordagens quando estão sem farda. Acionam a identidade policial para tentar reverter a
expectativa de constrangimento e até de uma interação agressiva associada à identidade de
homem negro abordado pela polícia.
Não obstante estarem sempre presentes os dilemas entre ser negro e ser policial, a
socialização militar captura o desempenho crítico como uma violação à hierarquia e à
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disciplina, como se pensamentos inovadores e posturas de diferenciação não fossem
condizentes com a identidade policial militar ou fossem uma recusa do pertencimento ao corpo
homogêneo construído pelo militarismo.
Tanto em SP como no RS, o contexto interno das instituições encontra-se mais fechado
a críticas. Ainda que a BM tenha sido mais marcada por projetos de inovação e por experiências
de policiamento comunitário bem sucedidas, nos dois estados, a formação policial vem
mudando, com menor peso atribuído à formação em direitos humanos, sociologia e psicologia.
No caso de SP, a disciplina de Igualdade Racial teve nome e conteúdo alterados para tratar de
amplo leque de diversidades, tendo sua carga horária reduzida.
A prática da filtragem racial não é ensinada nas formações das escolas. Também não é
combatida. Mas ela é aprendida na socialização profissional necessária para o trabalho no
policiamento ostensivo das ruas. A tecnologia de policiamento ostensivo utiliza-se da filtragem
racial para desempenhar uma das suas principais ferramentas de trabalho, que é a suspeição.
Integrantes das duas polícias estudadas, com poucas exceções, relatam a visão
predominante de seu trabalho como “guerra ao crime”. Nesta guerra, seu papel é identificar os
inimigos da ordem social, direcionando seu olhar para o corpo, a vestimenta, as formas de
comportamento e atitudes que caracterizam os tipos sociais que procuraram identificar e deter.
Numa frequência assombrosa, esses tipos correspondem a jovens negros que se vestem com um
estilo que os policiais aprendem rapidamente a estigmatizar. A filtragem racial é uma
ferramenta para antecipar-se ao perigo e adiantar-se ao inimigo. O medo é uma componente
cotidiana, o medo da morte, sempre presente, autoriza escalar o uso da força contra os
suspeitos.
Os policiais costumam afirmar que é o abordado quem define o nível de uso da força
que irão empregar. E essa definição aparece nos relatos relacionada à vestimenta numa
frequência impressionante. São os signos do corpo que definem se uma abordagem será ou não
agressiva. Os policiais afirmam que a cor da pele não é um fator relevante. Também afirmam
que as ocorrências que recebem pelo rádio são transmitidas com a cor da pele significada.
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Contudo, no Brasil, as instituições policiais e os agentes importam o modelo e as tecnologias
deles decorrentes sem importar as críticas feitas por pesquisas científicas e pelo movimento
negro nos países exportadores do saber sobre controle do crime. Selecionam do conhecimento
internacional sobre polícia os elementos que desejam importar, ignorando outros igualmente
disponíveis.
Referências citadas
ALEXANDER, Michelle. The new Jim Crow: Mass incarceration in the age of
colorblindness. The New Press, 2012.
BYFIELD, Natalie P. Race science and surveillance: police as the new race scientists. Social
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FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo Negro Caído no Chão: o sistema penal e o projeto
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RAMOS, Paulo C. "Contrariando a estatística": a tematização dos homicídios pelos jovens
negros no Brasil. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal de São Carlos,
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