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(INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA)

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LEGISLAÇÃO

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MENSARIO

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ANO 1 ABRIL DE 1943 N,o 1
t\ geografia na escola primária
VIDAL DE LA BLACHE

Capítulo IV do livro La Ensefíanza de


la Geografia, da lavra de GrnBs,
LEVASSEUR, S. LUYS y VIJAL DE LA
BLACHE, "La Lectura", Madrí, 1928.

Traduzido para a língua espanhola


por ANGEL RÊGO'

O ensino da geografia na escola: o que é e o que deveria ser. - É ne-


cessário saber orientar-se. - Nações de distância e de extensão, -
O estudo das formas. - Papel das fôrças ativas. - Os climas. - Ob-
servações dos fenômenos naturais. - Adaptação do homem ao solo.
A geografia política. - O mestre deve estudar a geografia local

o ensino da geografia na escola primária, como nas demais esferas, é um


dos ensinos sôbre o qual menos idéias precisas possuímos. Todo mundo sabe
que a geografia faz parte da bagagem da instrução elementar, e pensa que é
fácil a sua explicação e que não exige amplas reflexões. Alguns nomes na ca-
beça das crianças, algumas noções indispensáveis para que o futuro soldado ou
eleitor não pareça demasiado ignorante do seu país. Não é isto tudo o que, no
fundo, sugere à maior parte das pessoas o têrmo geografia? Deveria, penso eu,
sugerir outra cousa distinta. Êste ensino deveria servir para desenvolver e acla-
rar certas idéias no espírito das crianças; deveria associar-se às suas primeiras
impressões e despertar nelas o espírito de observação. Se as reflexões seguintes
, acêrca disso podem ser de alguma utilidade, os leitores o poderão apreciar por
si próprios, comprovando-as com as obtidas pela sua própria experiência. Só
lhes peço uma cousa: que não me considerem como um ideólogo. Levo muito em
conta as condições em que se encontram e as exigências (exames, inspeções, etc.),
de que não se podem livrar. Tão pouco tenho a ilusão de crer que a geografia
possa aprender-se sem algum esfôrço de memória, esfôrço que, afinal de contas,
a idade da criança torna fácil e que pode ser singularmente ajudado, além disso,
pela contemplação dos mapas colocados permanentemente na parede das salas.
Foi assim que, em uma época já longínqua, ficaram gravados indelevelmente
na minha memória os nomes das 12 tribus de Israel. Mas é preciso que estes
nomes despertem idéias, que venham unidos a fatos e, caso possível, também a
imagens. Cousa muito delicada, e sôbre a qual talvez seja útil refletir e ra-
ciocinar ao mesmo tempo.
I
Se eu tivesse que ensinar geografia às crianças de uma escola primaria,
creio que me dedicaria primeiramente a ensinar-lhes a orientar-se. Muitos pro-
cessos existem. É meio dia: a sombra se projeta do lado norte.* O sol sai ou
se põe: observemos que, conforme a época do ano, aparece ou desaparece atrás
de tal casa, tal árvore ou tal objeto. Estes poatos de referências variáveis, mas
contidos num raio determinado, ajudam a fixar, não somente os pontos cardeais,
mas também a marcha das estações, visto que no verão o deslocamento se efetua
para o norte e no inverno para o sul. Ê isso que nos livros de outros tempos se
indicava com os têrmos de "sair e pôr do sol de inverno" e "sair e pôr do sol
de verão".

• Nota da redação: O autor se refere ao hemisfério norte.


TRANSCRIÇÕES DO Míl:S 19

Sabido isso, será um problema fácil para a criança dizer para que ponto
está orientada a escola, ,que direção deve seguir para chegar a ela, em que sen-
tido deve caminhar para chegar ao povoado vizinho. Ademais, estas direções
estão assinaladas nos mapas murais. Acostumamo-nos a situar o norte na parte
alta do mapa e o sul na baixa, disposição completamente convencional, que
freqüentemente não reconheciam os mapas de outros tempos. Convidar-se-á o
aluno para que busque a posição recíproca dos lugares inscritos no mapa. Dirá
também que direção deveria tomar para chegar a tal lugar, afastado, do qual lê
o nome. Mas quanto tempo despenderia em tal trajeto? Eis aqui uma noção
nova que se apresenta e que precisa ser resolvida: a da distância.
A nossa vista se exercita nos limites de um horizonte mais ou menos vasto,
balizado por pontos de referência situados a distâncias diversas em relação à
nossa. Estes são outros tantos têrmos de comparação dos quais mais adiante po-
derémos tirar partido.
Quando a criança saiba, por exemplo, que se caminhasse em linha reta che-
garia a tal ponto ao cabo de 2 horas e que percorreria uma distância de 10 qui-
lômetros, então é o momento de chamar a sua atenção para a escala quilomé-
trica colocada na parte baixa dos mapas. É claro que nos mapas escolares
existe uma desproporção tal entre a realidade e a sua representação, que tôda
a relação sensível escapa à sua inteligência. Mas hoje em dia a carta do Estado
Maior francês está ao alcance de todo mundo. Podei servir-vos da fôlha em
que figura a localidade. Ser-vos-á fácil, graças à sua grande escala, fazer sen-
síveis e claras as relaç~es quilométricas e referi-las a experiências pessoais; e eu
estranharia que a criança, seduzida pelos nomes que alí encontra, não tratasse
de consegui-lo por si próprio.
Proceder-se-ia do mesmo modo para as noções de extensão. Aquí também a
observação necessita de ponto de referência. A criança pode formar uma idéia
completa da extensão de um campo, de uma propriedade, de sua aldeia ou po-
voado, e atribuir um valor sensível aos números que a expressam. Uma simples
multiplicação será suficiente para apreciar do mesmo modo a extensão das
superfícies mais extensas de que terá de ocupar-se durante o curso.
Não julgo necessário insistir mais sôbre o método. Apresenta-se por si
mesmo à inteligência do mestre. Mas, não obstante deslizamos ràpidamente
sôbre essas noções, desdenhando-as, talvez, por julgá-las demasiado elementa-
res. Basta percorrer as minhas lembranças de examinador para ver como estão
esquecidas em nossas escolas. Que equívoco! São entretanto o princípio e a base
de tôda a geografia. É necessário deixar impresso nos nossos alunos o hábito
de que cada vez que se pronuncie o nome de uma localidade sintam a necessidade
e o desejo de saber onde se encontra, em que parte do globo, em que posição
em relação à que êles ocupam, em que condições de extensão e distância em
relação com aquelas que podem apreciar diretamente por si próprios. Muitos
dos preconceitos e idéias falsas dêste mundo procedem de que não sabemos
localizar.
Estas noções nos parecem modestas, porque esquecemos a base científica em
que descansam e os esforços de investigação e de especulação que custaram.
O velho geógrafo PTOLOMEU apresenta como uma das mais sublimes concepções
do espírito humano, a idéia da relação matemática entre os corpos celestes e
as posições de diferentes pontos da Terra.
Com efeito, o espetáculo do céu permitiu levantar o mapa da Terra. Mas
foram necessários mais de quatro mil anos de investigações, de cálculos, de
medidas e de explorações para que hoje em dia possamos assinalar com relativa
exatidão, e graças a instrumentos cujo aperfeiçoamento tardou-se bastante em
alcançar, a posição dos principais lugares. De quando em quando, uma palavra
acêrca disto na classe, e se entre os alunos existe algum com uma inteligência
de qualidade superior, essa palavra bastará para ser recolhida e para que fru-
tifique mais adiante.
20 BOLETIM DO CONSELHO NACIONAL DE GEOGRAFIA

II

o estudo das formas oferece outras dificuldades. Não há nada mais com-
plexo na geografia. O problema das formas é o principal objeto sôbre o qual
se exercem as investigações dos especialistas, inesgotável aos esforços combina-
dos de topógrafos e geólogos. Não se trata de submeter a semelhante prova a
inteligência dos alunos nem confundir o seu cérebro com o desejo de fazer-lhe
demasiado bem. Mas, na inesgotável variedade de formas que apresenta a su-
perfície terrestre, há traços principais, essenciais, com os quais convém fami-
liarizá-los.·· As palavras planícies, montanhas, rios, costas, ilhas, penínsulas,
etc., devem tomar forma sensível para êles; é preciso não contentar-se com
sêcas definições. Mas, como proceder.? Suponhamos que se trata de pequenos
alunos de París, que só conhecem o rio que corre entre os cais e a erva que
nasce entre as pedras do calçamento; claro está que esta ignorância chegará, a
ser muito depressa tão rara como a própria erva nas ruas de París. Ou sejam
alunos de Brie, de Champagne, que na sua vida não viram nem mares nem
montanhas.
Estas palavras por si mesmas não dizem nada, e eu não me atrevo a esperar
que os recursos dos nossos orçamentos permitam multiplicar o bastante as co-
lônias escolares de férias para que possam ilustrar-se de visu. Resta, é ver-
dade, a imagem.
Não é êste certamente um meio que se deva desprezar; deve-se aplaudir tudo
aquilo que desde há algum tempo se vem fazendo sob a forma de álbuns, cartões
postais, etc., para popularizar a vista de paisagens, embora a escolha não se
inspire senão muito raramente num verdadeiro espírito geográfico. Mas mesmo
a imagem precisa ser explicada e interpretada. Não será interessante nem ver-
dadeiramente instrutiva se não corresponde de alguma forma às impressões que
a criança pode receber diretamente, ou às observações que possa realizar nos
arredores com a ajuda do mestre. É isto possível?
Devemos, antes de tudo, fazer observar que por desnuda que uma região
possa aparecer de acidentes do solo, não existe nenhuma em que o relêvo seja
perfeitamente plano e geométrico. Uma colina ou ainda uma ondulação do
terreno, um barranco ou uma simples dobra, são traços que no modelado ter-
restre, por mais uniforme que se suponha, não faltam nunca. A observação pode
efetuar-se com êxito também em formas minúsculas, porque mostram a seu
modo as causas que as formaram e as ações que se exerceram para modelá-las
tal como as vemos.
Estas causas - salvo as que procedem de movimento internos da crosta
terrestre e cujo exame não achamos que deva entrar num ensino elementar -
não têm nada de misterioso e oculto. Podem-se vê-las em ação e surpreendê-las
ao vivo. Ontem, por exemplo, as águas, depois de um grande aguaceiro, correram
sôbre os flancos dêste barranco, arrancando pedaços do terreno e amontoando
seus restos fragmentados em forma de cone ou lóbulos mais ou menos alar-
gados, na base do talude. Estes lóbulos se aproximaram uns aos outros e for-
maram pequenas superfícies onduladas. Algum bloco mais duro foi escavado
pelas águas sem chegar a ser deslocado e permanece sobressaindo do terreno.
Depois desta crise, o solo se.encontra mais ou menos removido e o seu modelado
toma novas formas. Nesta renovação se manifesta o papel das fôrças ativas; a
presença das causas atuais se denuncia nas modificações das superfícies. Alí
existe um princípio de interpretação.
Nada há de rígido nem imutável no desenho que a natureza põe ante nossos
olhos. A água torrencial, que destrói e reconstrói; a água corrente, que descreve
meandros, enlaça ilhas; a água estagnada, cujos bordos formam contornos ca-
prichosos, prodigalizam casos e exemplos de formas e mudanças geográficas. Pro-
duz-se uma encherite e os arabescos que os areais desenham às margens do
TRANSCRIÇÕES DO M1':S

leito do rio mudam de forma; o tanque, aumentado pelas chuvas, inunda suas
margens, desfaz os cabos, rompe os promontórios. Eis aquí outra nova evolução
observada ante os fatos.
O mestre sabe bem que causas, insignificantes na aparência, são capazes,
pela repetição e duração, de transformar montanhas em colinas, golfos em terra
firme. E por isso que o sabe deve fazer apreciar aos demais a importância dos
fenômenos que se sucedem ante nossos olhos. Mas não creio que esta idéia
esteja ao alcance da psicologia da criança; a desproporção é demasiado violenta;
e, ao invés de instruí-la, assombrá-la-ia e a desconcertaria. Em compensação,
o que ela compreenderá perfeitamente são os efeitos imediatos que a água e o
vento, escultores infatigáveis da superfície terrestre, exercem sôbre as formas.
Estas experiências, que ela própria pode fazer e comprovar, podem chegar a
ser o princípio de idéias fecundas. Põem-na a caminho ele investigar as causas.
Ensinam-lhe que as formas do relêvo que tem sob seus olhos são o resultado de
um equilíbrio cuja estabilidade não está assegurada. E o mestre pode tirar daí
mais de uma lição. Se, por exemplo, a imprudência dos homens talasse as al-
ituras, o arroio se converteria em torrente; se na planície cortasse as árvores,
o vento sopraria sem obstáculos e os agentes atmosféricos atacariam com maior
facilidade a superfície terrestre e talvez viriam em seguida os desastres.

III

As grandes reg10es terrestres diferem uma das outras pelo clima. Em nosso
país estamos acostumados a uma ordem dada das estações e às diferenças mar-
cadas que imprimem nas temperaturas; a chuva é um hóspéde familiar dos nos-
sos climas; não nos falta em nenhuma época do ano; porém o faz de uma
maneira desigual nas distintas regiões. Há comarcas em que reina durante todo
o ano uma temperatura quase uniforme; outras, em que as diferenças são ex-
tremas; aquí falta a chuva;. alí, cai periàdicamente durante um espaço mais
ou menos longo do ano. Estas diferenças de clima se traduzem na vegetação, no
regime dos rios e também nas formas do terreno.
É necessário, pois, explicar à criança estes fenômenos dos quais depende a
fisionomia das comarcas. A chuva caída a tempo, que faz reverdecer os prados;
o sol, que no verão faz amarelecer as messes, são espetáculos a que assiste e dos
quais se fala em sua volta; existe entre nossos camponeses um grande número
de refrães e provérbios nos quais a observação rural consignou suas experiên-
cias. A questão está em. que o mestre obtenha proveito para suas lições de geo-
grafiá dêste empirismo local. Para que o aluno compreenda que o encadeamento
de efeitos e de causas que constitue um clima se traduz em certos casos de ma-
neira diferente, é necessário dar-lhe uma idéia do mecanismo a que obedecem
os fenômenos do ar. Temos que arrancar-lhe o preconceito, muito natural, que
o faz crer que as cousas se sucedem de igual modo nas outras regiões segundo
o ritmo a que êle está acostumado; não existe outro meio para penetrar na
análise das causas. E' uma tarefa que exige certo tento, porque é necessário sem-
pre evitar as fórmulas abstratas. Mas, onde se nos apresentam melhores oca-
siões para mostrar ao aluno experiências sensíveis, que no domínio do ar?
Assim, nas antigas mitologias o domínio das mudanças e das transformações
incessantes se personificava em figuras divinas; a natureza, com sua compla-
cência inesgotável é para a ciência física moderna um teatro de experimentação
abundante se nos sabemos valer dos nossos olhos. A névoa ascende pelos vales
durante as horas da manhã; dissipa-se com os raios do sol; mas, à tarde, se
forma uma faixa de nuvens nas vertentes da montanha. Ora, nuvens de formas
e côres diferentes se superpõem na atmosfera; marcham em sentido inverso,
empurradas por ventos diferentes; mas chega um momento em que uma das
correntes, vencida, cede ao impulso da outra; êste é o sinal da chuva. As mo-
dificações da temperatura presidiram a estas mudanças de tempo. Estas mesmas
f'

22 BOLETIM DO CONSELHO NACIONAL DE GEOGRAFIA

temperaturas são regidas pela hora, a pos1çao do sol, a inclinação dos seus
raios, a espessura das camadas que atravessam, ou também pelos ventos, men-
:sageiros ativos que transportam para longe a temperatura e a umidade dos
lugares em que sopram, agentes que produzem mudanças nas diferentes partes
da superfície do globo.
o campo oferece diàriamente semelhantes motivos de observação, e por isso
eu me compadeço do estudante da cidade ... Estes fenômenos, tão interessantes
para a vida rural, lhes são menos familiares. Não vê céu senão aquele que. se
divisa nas ruas. Como bom cidadão, não pensa na chuva, no vento e na neblma
senão por causa das moléstias que lhe causam. Mas como tem o espírito vivo e
a int~ligência desperta, segue-os nas vossas explicações. Observa o_s charcos ~e
água que depois de um aguaceiro se formam nas ruas ou nos pateos; depms
de certo tempo diminuem, e finalmente desaparecem: mais depressa se o ar
está quente do que se está frio, e também mais depressa se está agitado do que
se está calmo. Em que se transformaram essas gotas de água? Mudaram de
estado. Transformadas em vapor dágua flutuam invisíveis no ar. Mas se neste
elas se acumulam excessivamente, isto é, além de um grau variável, que se
chama ponto de saturação, fazem-se novamente visíveis sob a forma de nuvens
e por último, devido ao resfriamento, se convertem outra vez em chuva. Eis aquí
um círculo de transformações que, já com rapidez, já lentamente, faz com que
se sucedam as formas visíveis às invisíveis ou vice-versa. A história de uma
gota de água, primeiro molécula de vapor, que depois se condensa e forma a
nuvem ou a neblina, que se precipita em forma de. chuva e que, finalmente, se
converte em arroio ou rio, se compõe de diversas vicissitudes, cada uma das quais
depende das variações que se produzem no estado da atmosfera.
Mas estas variações podem fazer-se esperar ou também não se produzirem.
A evaporação pode não ir acompanhada de condensação, nem esta de precipita-
ção. Existem regiões nas quais, conforme a direção dos ventos ou o grau calo-
rífico do sol, não se produzem chuvas durante vários meses; outras que se vêem
totalmente privadas delas e outras em que, apesar das brumas e das névoas que as
envolvem, não se efetua a precipitação. A análise dos fenômenos deve facilitar a
explicação destas diferenças e deve ir acompanhada da descrição das regiões.

IV

A coleção das inadvertências geográficas pôde enriquecer-se há vários anos


com um caso bem característico. Ocorreu durante a expedição a Madagascar:
acreditou-se que seria maravilhoso contratar cabilas para empregá-los como
condutores de comboios, e como era de esperar, estes montanheses, de país
sêco, morreram aos montes sob os rigores de um clima quente e úmido, do
mesmo modo que se recrutassem anamitas para servirem na Argélia. Tanto é
assim que, depois de julgarmos que todos os países da Terra se parecem com o
nosso, nosso espírito deve defender-se da outra ilusão, que consiste em imaginar
que todos são diferentes do mesmo.
Efetivamente, existe tal gênero de relações entre uma região e os homens
que nela vivem, que lhes é muitas vêzes difícil chegar a se aclimatarem noutra, ou
pelo menos lhes é indispensável tomar precauções e cuidado. Seus órgãos aco-
modados por uma longa herança a certas condições climatológicas não cumprem
suas funções vitais senão à custa de um esfôrço penoso e, com o tempo, peri-
goso fora do lugar de sua residência habitual; sofrem com o excesso de esfôrco
que se lhes impõem. As enfermidades do fígado, tão comuns nos europeus trans-
plantados para os países tropicais não obedecem a outra causa.
Mas não é sàmente pel.as relações de temperamento fisiológico que o homem
vive arraigado ao solo. Poucas regiões existem na Terra que êle não haja mais
ou menos adaptado às suas necessidades alimentícias. Aquí cria culturas, alí
TRANSCRIÇÕES DO Mf:S 23

procura pastos; e na preferência concedida a estas diferentes formas de vida,


guia-se, não sem uma certa liberdade de eleição, pelas condições físicas da co-
marca. As plantas que escolhe para sua cultura, arroz, trigo, milho, etc., são as
que convêm a determinados climas. Constrói suas casas e se associa, não ao
azar, mas em lugares em que crê encontrar alguma vantagem para suas cul-
turas, para seu comércio, para sua defesa. Inspira-se nas propriedades do terre-
no e nos caracteres do relêvo para o traçado dos caminhos e .vias de comu-
nicação. Sem dúvida alguma o homem não permanece escravo de um rincão
da Terra e nosso estado de civilização o livra cada vez mais de uma sujeição
por demais estreita; mas apesar de tudo, em tôdas as suas obras fica sempre
impresso um cunho mais ou menos profundo da localidade.
Também moralmente, isto é, pelos seus sentimentos, pelos seus hábitos,
pelas suas lembranças, está ligado ao país de origem. Dentre todos aqueles que
êle possa ver ou aos quais a sorte o conduza, sempre há um que, segundo a ex-
pressão do poeta, lhe sorrí mais que os outros. Isto é inexplicável e, no entre-
tanto, é real. Porque tal objeto, tal forma, ou tal imagem particular se apoderou
de tal maneira das nossas lembranças? Não podemos dizê-lo; mas basta que o
mais insignificante pormenor se apresente ante nosso espírito para evocar tudo
o mais. Com tôdas estas cousas escondidas na nossa memória, mas sempre dis-
postas a sair delas, nossa imaginação forma um conjunto, um total; isto é, ao
que sabemos, o que acontece com um homem que todo mundo compreende:
o apêgo ao país, ao torrão.
Por esta razão, no estudo da geografia, o homem e a Terra são dois têrmos
inseparáveis. Uma região influe nos seus habitantes; e o homem por sua vez,
com suas obras, com um poder cada vez maior sôbre a natureza, modifica a fi-
sicnomia da Terra. Como todo soberano, tem a sua côrte formada de plantas e
animais de adoção, que leva consigo. Por isto a América forneceu certas plantas
à Europa, e esta, por sua vez, ao Novo Mundo. À medida que as comunicações
se estendem, reduzindo o obstáculo das distâncias, as divisões políticas aumentam
também de extensão. Hoje em dia assistimos ao desenvolvimento de vastos im-
périos, de imensas colônias, e por falta de uma dominação direta, as relações
comerciais abrangem superfícies quase ilimitadas. O têrmo mundial é um neolo-
gismo nascido das circunstâncias.
A geografia política é por isto, e sàmente por isto, uma aplicação legítima da
geografia. Sua significação se estriba nas relações que existem entre a Terra e
o Homem. Com freqüência nos equivocamos neste ponto; ao meu modo de
ver, é um êrro sobrecarregar êste ensino com dados administrativos ou esta-
tísticos. Arriscamo-nos a que se esqueça a idéia essencial. É preciso reconhecer
que a um cidadão francês lhe é muito útil estar informado sôbre o mecanismo
administrativo e as atribuições dos funcionários; mas êste ensino nada tem de
comum com a geografia.
A geografia política tem por objeto associar intimamente o que eu chamaria
a idéia terrestre com êste sentimento instintivo de curiosidade que o homem ex-
perimenta pelos seus semelhantes. A idéia terrestre comprende. as noções de po-
sicão extensão distâncias, formas, climas, que a geografia ilustra e que devem
er{co1'.porar-se ~os nossos hábitos de pensar. Tratemos de levar em conta o papel
que desempenham estes fatores geográficos nas obras humanas. A variedade
de costumes e maneiras de viver, quando nos são apresentadas sob a forma de
narrações de viagens, nos divertem como curiosidades anedóticas; tomarão porém
um novo sentido se descobrirmos nas circunstâncias que nos rodeiam a sua
razão de ser .
A história política tirará proveito desta aproximação. As nações e os estados
seguem uma evolução, na qual o elemento geográfico opera muitas vêzes sem
que os mesmos agentes o saibam, mas com maior eficácia por ter a seu fft~Or. o
elemento tempo. A natureza não estabelece leis nem forma com antecedenc1a
24 BOLETIM DO CONSELHO NACIONAL DE GEOGRAFIA

os quadros dentro dos quais se move o destino dos Estados. Assinala as condições
e deixa à competição, lei universal dos seres vivos, o cuidado de obter os resul-
tados. Nunca ela foi mais ativa do que agora. Cada dia se manifesta mais vio-
lenta: da Europa à América, da América à Ãsiá. Daí surge a necessidade que
tem cada povo de informar-se seriamente dos recursos próprios que êle traz à
luta. Temos que estabelecer um balanço exato das fôrças que o país ao qual vai
unida a nossa açã,o mundial emprega ou tem em reserva. A França, pela· posição
que ocupa em contacto com os grandes focos de atividade, vizinha de 5 ou 6
Estados diferentes, seria a última das regiões que se subtrairia às leis da com-
petição. Para isto, a geografia é ta!Ilbém uma boa conselheira.

Seja-me permitido terminar estas reflexões com um conselho, que muitos


mestres já põem em prática, e que me foi sugerido pelo seu exemplo. A perfeição
dos livros e dos instrumentos de trabalho serve para facilitar a tarefa do mestre;
tal é o fim e a esperança daqueles que se consagraram a tal obra. Mas nenhum
espírito sensato pensárá que •o livro pode substituir a ação direta e pessoal
do mestre. Se é certo que o ensino da geografia deve despertar o espírito de
observação, apoiar-se em realidades sensíveis, recorrer às impressões e à ex-
periência, êste pro'grama não atribue aos mestres obrigações particulares? Porque
não é sôbre o aluno em geral, ou sôbre uma coletividade abstrata, sôbre a qual
se exerce o seu influxo, senão sôbre as inteligências de crianças formadas em
um determinado meio, plasmadas em certos hábitos. Nesse meio, e valendo-se
dêsses hábitos, é que se encontrarão os exemplos e os pontos necessários de
comparação. Eu lhe direi, pois: "Estude o país onde vai ensinar". Despertarei
o seu interêsse pela sua natureza e pelo seu passado. Sei que tem para isto ini-
ciativas felizes e bons exemplos. Uns prestam bons serviços à meteorologia, com
suas observações constantes da temperatura e da chuva; outros estudam as
rochas e os terrenos; aqueles, a flora; aqueles outros prestam sua atenção ao
passado, descobrem restos arqueológicos, ou investigam nos arquivos e nos do-
cumentos privados o passado histórico do seu povo. Sucedeu-me ver coleções,
ler interessantes monografias, frutos de pacientes esforços. Tenha-se presente
que fazemos trabalho pedagógico trabalhando pela ciência, porque uma e outra
vivem de realidades e observações e se formam na escola da natureza.

~ AOS EDITORES: Êste "Boletim" não faz publicidade remunerada, entretanto registará ou
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ao Conselho Nacional de Geografia, concorrendo dêsse modo para mais ampla difusão da bibliografia
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