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Ensaios

Sartre: a consciência de ser visto


Rafael Trindade
Este trabalho teve orientação da professora
Maria Carolina M. M. Vicente de Azevedo (mc.
azevedo@terra.com.br) e se tornou possível com
o apoio do Pibic Mackenzie/MackPesquisa.
E-mail para contato com o autor:
rafaeltrindade10@gmail.com.

Resumo Abstract
Este estudo pretende investigar a teoria sartreana This study intends to investigate Satre’s theory
sobre o Outro para melhor compreender as about the Other for a better understanding of
relações humanas. Sartre desenvolve em seu human relationships. Sartre develops in his book
livro, “O Ser e o Nada”, a teoria sobre o Outro, “Being and Nothingness” the theory about the
e também o conceito da consciência de ser visto. other, and also the concept of the awareness of
Nela, os conceitos de Em-si e Para-si entram em being seen. In his ontology the concepts For-Itself
uma relação estreita ante o olhar do outro, dando and In-Itself engage an intrinsic interconnection
origem a uma nova forma de manifestação do ser: in relation to the Other’s eyes originating a new
Para-outro. O conceito de Ser-Para-outro implica, way to reveal oneself: For-The-Other. This Being-
primeiramente, em reconhecer sua existência, mas For-The-Other concept implies first of all in the
além de existir como objetidade e poder ser visto, recognition of the existence of the Other who
o outro pode também me olhar, se utilizando, besides existing as subject and able to be seen,
assim, de sua transcendência para me transcender. can also look at me, using his transcendence to
Deste modo, tenho que admitir a possibilidade transcend me. In that way, I have to admit the
de ser transformado em um objeto para o Outro. possibility of being transformed into a subject
Através da consciência de ser visto, passo a ter for the Other. It is through the consciousness
a consciência de existir, assim, através do olhar, of being seen that I develop the consciousness
constituo minha própria essência. of existing therefore through the Other's eyes I
compose my own essence.
Palavras -Chave
Sartre; Outro; Olhar. Key words
Sartre; Other; to look.

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Introdução relação com o Outro, é necessário apresentar uma


análise de dois conceitos básicos de sua filosofia,
Quando Sartre, ainda estudando filosofia
o Em-Si e o Para-si, e depois, com esses conceitos
na École Normale Supérieure, foi introduzido
definidos, daremos prosseguimento à teoria
ao método fenomenológico, Raymond Aron,
sartreana do Outro e finalmente à consciência de
apontando para seu copo, lhe disse "estas vendo,
ser visto.
meu amigo: se tu és fenomenologista, podes falar
deste coquetel, e é filosofia". Simone de Beavoir Referencial Teórico
nos conta que Sartre empalideceu de emoção,
era isso que ele ambicionava há anos, falar do O referencial teórico enfocou obras
concreto, do real, e foi assim que, se utilizando que tratam dos conceitos específicos que
do método fenomenológico, desenvolveu o procuramos abordar como, o outro, a consciência
Existencialismo, conhecida corrente filosófica e a consciência de ser visto. A principal referência
do séc. XX. Sartre publicou sua obra principal, O para o trabalho foi a obra de Sartre, “O Ser e o
Ser e o Nada - ensaio de ontologia fenomenológica, no Nada, Ensaio de Ontologia Fenomenológica”.
fim da segunda guerra mundial, e nele procurava Existe uma grande quantidade de autores que
falar do mundo de uma forma mais clara, realista, tratam da obra de Sartre e do existencialismo,
evidenciando suas contradições e descartando mas demos preferência para Gerd Bornheim,
as abstrações metafísicas que prevaleciam na “Sartre: metafísica e existencialismo”, e Paulo
tradição filosófica até então. Neste livro, Sartre Perdigão, “Existência e liberdade: uma introdução
examina a relação do Eu com o Outro e, mais à filosofia de Sartre”, este, o principal tradutor da
especificamente, sobre a consciência de ser visto. obra de Sartre para o português. Nos dois últimos
É nosso propósito, aqui nesse artigo, expô- autores buscamos embasar conceitos gerais e
la e caracterizá-la de maneira clara, usando, essenciais para a composição do texto e em
assim como Sartre, exemplos do cotidiano e Sartre, buscamos especificamente responder às
evidenciando o caráter existencialista das relações. perguntas deste trabalho sobre o olhar, o outro e
a consciência de ser visto. Também usamos a obra
Esta pesquisa pretende contribuir, com
teatral “Entre Quatro Paredes” e “Jean Genet,
temas desenvolvidos por Sartre, para as discussões
Ator e Mártir”, de Sartre e “Primeiro Fausto”
sobre o olhar, vergonha, orgulho, medo, amor,
de Fernando Pessoa para dar exemplificar os
ódio, temas esses amplamente estudados pela
conceitos expostos.
psicologia. Entendemos que a filosofia de Sartre,
por ser profundamente focada no indivíduo e no Método
mundo que o cerca, tem condições de contribuir
nas discussões que tratam das relações humanas. Esse trabalho foi composto por uma
pesquisa teórica com foco na obra “O Ser
Antes de desenvolvermos a teoria sobre
e o Nada” de Sartre e como bibliografia
a consciência de ser visto é necessário enfatizar
complementar: “Sartre: metafísica e
o caráter acumulativo com que são apresentados
existencialismo” de Gerd Bornheim, “Existência
os conceitos em sua obra, concatenados e
e liberdade: uma introdução à filosofia de Sartre”
desenvolvidos extensamente ao longo da mesma.
de Paulo Perdigão.
Portanto, antes de entendermos como Sartre vê a

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Coleta e análise dos conceitos: primeiro não permite filosofia, não permite nada mais do
definimos sistematicamente os conceitos chaves que é (pois qualificá-lo seria dizer que é mais do
que se integram às idéias gerais e ajudaram na que é). Ele é positivo em si mesmo e nada mais.
exposição de nosso projeto central. Depois, Por isso é difícil falar do Em-si, porque não há
elaboramos a interpretação dos conceitos o que ser dito. O Em-si é o mundo, o mundo
adquiridos. O trabalho foi dividido em duas material, com seus objetos e seus corpos. Toda
partes: Na primeira parte, desenvolvemos a ideia ciência é ôntica e estuda o Em-si, estuda as coisas
da consciência. Na segunda parte, definimos como são e como se manifestam em seu existir.
“O Outro”, “O Olhar” e “a consciência de ser Quando estudamos o movimento de uma pedra,
visto”. Neste segundo momento, vários conceitos usamos fórmulas e temos como resultado nada
essenciais para desenvolvimento do tema já foram além daquela positividade que ela é; por isso seu
esclarecidos e tivemos condições de explorar mais movimento será sempre o mesmo, ela é puro
a fundo o tema do trabalho. A obra principal de existir apreendido.
Sartre, O Ser e o Nada, foi utilizada durante todo
O Em-si não tem segredo: é maciço. Em
o processo como ferramenta principal. Algumas certo sentido, podemos designá-lo como
obras literárias também foram utilizadas para síntese. Mas a mais indiscutível de todas:
exemplificar suas teorias, como, por exemplo, síntese de si consigo mesmo. Resulta,
evidentemente, que o ser está isolado
“Entre Quatro Paredes”, “Jean Genet: Ator e em seu ser e não mantém relação alguma
Mártir”, as duas de Sartre e “Primeiro Fausto” de com o que não é. (Sartre, 1999).
Fernando Pessoa.
Nada se esconde atrás do Em-si, e não há
Resultado e Discussão nada a ser apreendido além dele mesmo. Por isso:
é o que é.
A consciência Apenas uma coisa se diferencia do Em-si:
a consciência. A consciência é Para-si. Se o Em-si
Para Sartre, “Toda consciência é
é pura positividade e deve ser apreendido pelo que
consciência de alguma coisa”, logo, sem mundo,
é, a consciência, ou Para-si, é pura negatividade e
não seria possível haver consciência. Ela é
deve ser apreendido pelo que não é. “se o Em-si
esse deslizar contínuo para a realidade, é esse
é o ser, então o Para-si, sendo fundamentalmente
mergulho na existência. Portanto, a consciência
outro que não o Em-si, só pode ser nada”
faz contraponto com o mundo, gerando assim,
(Bornheim, 2003). O Para-si surge do Em-si,
segundo Sartre, duas manifestações de ser, a
depende dele, é negação direta dele. Como o Em-
saber: Ser-Em-Si e Ser-Para-Si. O ser existe por
si não se relaciona com nada além dele mesmo e
si só, no mundo, e é apreendido por nós. Já o ser
não depende de nada, sua existência é completa,
humano existe, mas pode ser entendido como
pura positividade; mas não podemos dizer o
uma manifestação dupla do ser, um ser cindido.
mesmo do Para-si, porque ele só pode ser definido
Sartre é econômico em sua definição do Em-si:
em relação ao Em-si, não sendo Em-si. O Para-
o Em-si é o que é. “o ser é, o ser é em si, o ser é
si surge através de um distanciamento do Em-si,
o que ele é” (Sartre, 1999). Não há distância do
uma distância “separada por Nada” (Perdigão,
Em-si para com ele mesmo, ele é o que é, um
1995), e é através dessa negação que descobrimos
ser acabado e fechado em si mesmo. O Em-si

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o mundo, olhando-o a distância. O Para-si, nossa é impossível; o Em-si pode existir sem o Para-si,
consciência, descobre o mundo negando-o, ele mas o Para-si não pode existir sem o Em-si.
nega a positividade do mundo para descobri-lo, Essa negação do Para-si é que dá o seu
ele se separa do Em-si para existir como sendo caráter de indeterminação, de ser-que-ainda-não-
nada. “nas coisas não há distância de si para si: é-completo. Estamos em presença do mundo,
não há ‘si’, a consciência é essencialmente essa e só constatamos sua existência porque nos
distância. colocamos a uma distância suficiente para vê-lo
As coisas não têm interioridade, e é (como o leitor se põe à distância do livro para
justamente pela interioridade que o homem se faz lê-lo). E se negamos o mundo para existir nele,
um ser-Para-si.”(Bornheim, 2003). É exatamente significa que somos incompletos, essa é a essência
esse desprender-se do ser que nos faz surgir do Para-si, “ele não é o que é”. A consciência não
como interioridade, é essa distância de nós pode existir por conta própria, ela está presa ao
mesmos que nos revela o mundo, pois somente se ser, mas ao mesmo tempo, ela nega o ser que é
nos descolarmos do ser é que poderemos olhá-lo e se lança no mundo para ser o que ela não é.
a uma distância segura para que esse se revele a Essa é a definição definitiva do para-si: ele não
nós. É por isso que Sartre define nossa existência é o que é e é o que não é. Mas como entender
como ôntico-ontológica, temos esse caráter completamente essa definição? Como saber
duplo, ao mesmo tempo que somos, também não exatamente os limites entre o em-si e o para-si?
somos. Somos nosso corpo, somos nossas reações Já vimos que o Para-si depende do Em-si
químicas, somos nossa contingência no sentido para ser, mas um nunca entra em contato com o
em que temos exatamente esta estatura, este tom outro. Por exemplo, quando sinto dor, não é meu
de pele, esta nacionalidade, mas ao mesmo tempo corpo que sente dor, é minha consciência que se
não somos, porque a consciência nega o que é transforma em consciência (de) dor, o meu corpo
para poder existir; quando me percebo como é o ser-em-si que existe, com suas terminações
brasileiro é porque nego as outras possibilidades nervosas que realizam reações químicas e elétricas
(americano, francês, chinês), quando descubro para alterar meu estado cerebral. Tudo isso é em-
minha altura, é porque me desprendo de mim e si, tudo isso é o que é e nada mais. De onde vem
me vejo a distância para chegar à conclusão que a dor? A dor é meu para-si que toma distância
não tenho nem mais e nem menos altura do que daquilo que é – corpo que sente dor – para ser
a que realmente possuo. Só podemos conhecer o aquilo que não é – corpo saudável, corpo na
mundo negando-o, o ser não se relaciona com o ausência de dor.
mundo porque o ser-em-si simplesmente existe O Para-si nega o presente e se lança no
no mundo. Perdigão esclarece citando Sartre: é futuro constantemente, ele nunca se torna o que
através do nada que o ser vem ao mundo. Através é, é sempre descolado do ser por nada e jogado
do nada que o ser se percebe como sendo o que naquilo que não é. Essa nadificação do ser que
não é. E é por isso que o Para-si depende do traz o conceito de temporalidade à consciência.
Em-si, porque o Para-si nega o Em-si para estar As coisas não têm temporalidade, é por meio da
em presença do mundo, separado por nada; consciência que o tempo existe porque o ser-Em-
essa negação deve provir de uma possibilidade si só pode relacionar-se com ele mesmo. Tempo
absoluta; o contrário, uma afirmação da negação,

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e consciência são uma e a mesma coisa, por busca daquilo que não somos. “assim somos nós:
causa do caráter de negatividade do Para-si, ele se vamos correndo em direção a nós mesmos, o
lança no mundo buscando ser alguma coisa; ele nosso Ser acabado que se encontra no futuro, o
se projeta no futuro para se tornar algo, fugindo nosso ‘Si mesmo’, e somos aquele que não pode
constantemente do passado. Essas seriam as três jamais alcançar-se” (Perdigão, 1995). Por que
dimensões do tempo que foram desenvolvidas o Para-si não pode jamais alcançar-se? Porque
por Heidegger e ampliadas posteriormente por senão já não seria a nadificação de algo, mas se
Sartre: o passado, que é o que é, definitivo e converteria num Em-si, sendo que sua própria
pleno; nesse sentido, assemelhando-se ao Em- definição é ser-o-que-não-é. Nesse sentido, só há
si. O passado é o Para-si convertido em Em- uma maneira do Para-si transformar-se em Em-
si, porque é fixo e não pode ser mudado, nem si: na morte. Quando morremos, somos puro
negado de forma alguma. “O passado é um em-si para os outros, não mais nos lançamos no
Em-si que carrego atrás de mim [...] conversão futuro para sermos o que não somos, somos pura
total do Para-si em Em-si” (Perdigão, 1995). facticidade, corpo inerte; nesse momento, o Em-
O presente, que é nada, separado pelo futuro si alcança o Para-si em sua busca incansável. Mas
e pelo passado por um instante inapreensível, enquanto somos vivos, vivemos da falta, vivemos
onde supostamente encontraríamos o Para-si, se para nos completarmos. Esse é o “projeto
buscando constantemente; mas o para-si se lança fundamental” do Para-si, completar-se, ser Para-
no futuro, mesmo estando preso ao presente; o si-em-si. Para isso, fazemos o que Sartre define
Para-si está separado do presente por um nada como: circuito da ipseidade (do latim ipse: “si
de distância, porque se nega e se nadifica para ser próprio”, ”a pessoa”).
o que ainda não é: o futuro. O futuro é apenas No circuito de ipseidade, nos lançamos
uma possibilidade para o Para-si, o para-si busca para o futuro (aquilo que não somos) para
o futuro, as possibilidades, o que ainda não é. constatar a falta daquilo que somos no presente,
Essa relação se dá perpetuamente, o futuro existe e, assim, podermos negar o presente para suprir
como possibilidade como vir-a-ser, e , logo após essa falta. Tudo parece muito paradoxal, mas
acontecer, se torna imediatamente passado, Em- pode ficar claro com um exemplo: Quando me
si. sento em frente a uma partitura em branco, e
O corpo, como vimos, faz parte do Em- penso em compor uma música, me nego no
si, e portanto, contém todas as marcas do futuro presente (partitura inacabada, inspiração que
que tornou-se passado. É impossível negar o será usada, música a ser feita) para me afirmar
corpo, ele está ai, inegavelmente faz parte de no futuro (música terminada, notas no papel). O
nossa contingência e representa tudo aquilo que circuito de ipseidade é esse processo do Para-si
somos, mas não estou fechado em meu corpo, de fazer-se projeção no futuro para dar sentido às
meu para-si se desprende dele e procura ser algo suas ações no presente. O presente por si só, sem
(porque não é nada). Sartre define isso como o relação alguma no futuro, não traz sentido algum,
“perseguidor perseguido” porque nosso em-si é somente quando quero fazer uma música, tenho
está constantemente correndo atrás do Para-si, vontade de escrever uma música, que posso dar
está transformando tudo em Em-si, em passado. sentido às minhas ações . Mas a música em si não
Fugimos constantemente de nós mesmos em existe, ela é o que busco ser (o ser que não sou).

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E sou eu que dou sentido a ela; a partitura em do qual não poderíamos escapar. Não sei da
branco na minha frente seria indiferente se eu não existência do Outro através da objetividade,
tivesse as noções de harmonia para compor uma conheço-o através da intuição. Sei que ele existe,
música, ou se não tivesse inspiração e vontade de sei que por trás daquele que vejo existe, assim
compô-la. O mundo é indiferente em si mesmo, como eu, outro Para-si, outro ego, mesmo que
minha consciência, que se desprende de mim e se não possa vê-lo ou prová-lo eu o afirmo. Tenho
joga no mundo, é que da essência às coisas. Até certeza que não estou sozinho no mundo por
mesmo o ato de compor pode ter um sentido meio da intuição.
diferente dado por minha consciência. Se for um
“(...) se devo duvidar da existência de
músico contratado para compor uma sinfonia, Pedro, meu amigo – um dos outros
mas estiver sem inspiração, meu trabalho será em geral -, na medida em que esta
uma “obrigação”, algo que “devo fazer”; mas existência está, por princípio, fora de
minha experiência, é preciso duvidar
se, ao contrário, faço isso por alguém que estou também de meu ser concreto, de minha
apaixonado, então farei uma música “por amor”, realidade empírica de professor dotado
“para conquistar minha amada”. ”Em todos os de tais ou quais inclinações, hábito e
caráter. Não há privilégio para meu eu:
meus gestos, minha consciência projetiva serve
meu Ego empírico e o Ego empírico do
de mediadora entre duas situações objetivas” outro aparecem ao mesmo tempo no
(Perdigão, 1995). mundo; e a significação geral de ‘Outro’
é necessária à constituição de cada um
Estas constituem as principais diferenças
desses ‘egos’” (Sartre, 1999)
do Em-si e do Para-si. O Em-si é o que é, o corpo,
o passado, o definitivo. O Para-si é a consciência, Deste modo, pulo as provas da existência
aquilo pelo qual o nada vem ao mundo, o futuro, do outro, porque negá-lo seria o risco de negar a
o vir a ser, ou, em uma frase: “aquilo que não é o mim mesmo, para compreender o que é o outro
que é e é o que não é”. Por meio destes conceitos, e como interagimos com ele. “O outro é aquele
agora esclarecidos, temos ferramentas para que me exclui sendo si mesmo, aquele que excluo
entender o que acontece quando nos encontramos sendo eu mesmo.” (Sartre, p. 306), só posso
com o outro, quais são as implicações desse conhecer o outro como não sendo eu mesmo,
encontro, quais as transformações que se dão como sendo aquele que não sou. Meu Para-
nessas duas formas de manifestação do Ser. si conhece o outro como não-sendo-eu, como
sendo outro Para-si (do qual não tenho acesso)
A Consciência de ser visto separado de mim. Portanto, assim como eu, ele
Para melhor entendermos os processos também está aí, no mundo, se construindo, ele
que ocorrem quando há a consciência de ser visto, também possui sua própria contingência, mas,
vamos analisar o olhar. Para termos a consciência ainda assim, num primeiro momento, apreendo o
de ser visto precisamos, antes, ter consciência de outro como sendo um objeto, um Em-si.
um olhar sobre nós. Vejamos esse exemplo: digamos que um
Sartre não procura provar a existência do pianista toque toda terça-feira num restaurante,
outro, para ele, esse fato é um fato concreto, uma quando ele chega lá, abre suas partituras e começa
certeza, do contrário cairíamos num solipsismo a tocar. Como mencionamos anteriormente, seu
circuito de ipseidade, o Para-si que se joga no

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futuro, está fechado em si mesmo no sentido de como seus braços e suas pernas, o outro que me
terminar-a-música-sem-errar, lembrar-daquela- olha não se define por sua retina, ou seu nervo
passagem-complicada. Ele está ciente dos clientes óptico, isso apenas dá suporte para seu olhar.
que estão jantando, está ciente de que são pessoas O olhar é muito mais que isso, está além disso.
comuns, como ele, que estão à procura de um jantar Captar um olhar é mais que captar um objeto-
agradável, mas ele os ultrapassa, os transcende olhar, é transcender o olho para ter consciência
definindo-os como ouvintes, como aqueles- de ser visto. O olhar me remete a mim mesmo,
dos-quais-depende-meu-couvert. O que isso não no sentido de Para-si, não no sentido daquele
significa? Nosso músico nega a eles a existência que é o que não é e não é o que é, mas no sentido
como seres reais? Ele os vê como marionetes, de ser-no-mundo, ter-de-ser-alguém. O outro faz
como robôs? Num primeiro momento, sim. essa mediação entre mim e eu mesmo; de certa
Apesar de saber que existem pessoas por detrás, forma, é através do outro que passo a existir no
ou por debaixo, de suas peles e roupas, ele não mundo no modo de ter-de-ser. Por isso a analogia
os “vê” como tais. Tudo gira ao seu redor, é ele com a hemorragia, porque o outro me transforma
quem dá as regras do jogo, todas as distâncias são em objeto, passo a ser algo, não mais sou aquilo
suas distâncias no sentido de que este piano é o que não sou, definição primordial de Para-si, não
piano que ele toca, a música é a música que ele mais me lanço no futuro; o outro me capta com
proporciona, os ouvintes são seus ouvintes. Mas, seu olhar e me prende em mim.
se posso observar o outro, e sei que o outro é um Corro constantemente esse perigo, sou
ser como eu, isso significa que o outro também escravo do olhar do outro, e através de seu olhar
pode observar-me. Nesse momento toda minha passo ao mesmo nível dos objetos do mundo1.
maneira de ser se transforma, “se há em verdade Ser visto constitui-me como um ser sem defesa
um Eu para o qual o outro é objeto, é porque para uma liberdade que não é a minha. É mais
há um Outro para quem o Eu é objeto” (Sartre, como uma solidificação, uma estratificação; fico
1999). É nesse momento que o ser-Para-outro congelado perante um olhar. ”Se me olham,
se manifesta, através do olhar do Outro. Porque tenho consciência de ser objeto” (Sartre, 1999), e
da mesma maneira que posso olhar o outro e é apenas o outro que me permite captar-me como
defini-lo através de minha subjetividade, sei que tal. Através de meu Para-si não posso deixar de
o outro pode olhar-me e definir-me através de me lançar no futuro e me negar no presente, fujo
sua subjetividade. Nesse momento, sou um ser- constantemente de meu Em-si, mas através do
Para-outro, sou objeto do olhar de outra pessoa, olhar do outro, quando tenho consciência de ser
ele me vê como objeto no mundo, ele dá suas visto, meu ser-Para-si escorrega para o mundo,
distâncias para mim, o jogo inverte e ele passa a meu Para-si cai no mundo e eu não sinto isso, eu
dar as cartas do jogo. Sartre define isso como uma sou isso. E não importa o que o outro me diga
forma de escoamento de meu mundo para fora que sou algo, não posso ver-me como tal, não
de mim, uma “hemorragia interna; é o sujeito que posso ver-me como Em-si, mas sei que o outro
a mim se revela nesta fuga de mim mesmo rumo me capta assim. Portanto, através do Outro capto
à objetivação” (Sartre, 1999). a última estrutura de meu ser. “Meu ser-Para-
Mas o outro que me olha não é seus outro é uma queda através do vazio absoluto em
olhos, seus olhos fazem parte do Em-si, assim direção à objetividade” (Sartre, 1999).

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É preciso deixar claro que o ser-Para- movimento dos dedos nas teclas do piano para
outro não deriva do Para-si. Existe três maneira ser (ao modo de não ser o que é e ser o que não
de existência do ser: Em-si, Para-si e ser-Para- é) aquele-que-não-erra-a-música. Nesse momento
outro. Elas são independentes, e no caso das ele se utiliza do circuito de ipseidade, seus
duas primeiras, independentes da existência de movimentos presentes só têm sentido porque ele
um terceiro para existir. Mas o ser-Para-outro se lançou no futuro; “aquilo que não é” é o que
necessita de Outro para existir, não do Para-si. dá sentido ao seu presente. Mas ele erra. Então,
Prova disso é que somo Para-outro antes mesmo imediatamente, alguém na plateia olha para ele.
de sermos Para-si. Quando nascemos já éramos Subitamente seu ser se esvazia e cai na realidade,
Em-si e Para-outro, já no útero de nossa mãe o outro o temporaliza, o joga no presente (que
éramos Para-outro: ganhamos um nome e fomos ele negava) fazendo-o ser. O outro nega sua
vistos no ultra-som. É nesse sentido que sou Para- transcendência para jogá-lo no real, transforma
outro, existo no mundo, o outro me olha e me faz todas as suas possibilidades, para ele, o músico
existir no mundo. A partir de então, constituímo- é simplesmente aquele-que-errou. Para o Outro,
nos e interiorizamos o outro em nós de modo que, não há diferença entre o músico que erra e um
num dado momento, o olhar do outro cai sobre disco riscado, os dois são apenas objetos, sem
nós sem que necessariamente esteja lá. Então, ao transcendência alguma. Então, se dá a vergonha.
ouvir um barulho atrás de mim, sentirei que estou A vergonha é esse apreender-se no
sendo olhado, e me darei conta de meu ser-Para- mundo, à deriva, para que o vejam. Ter vergonha
outro. Posso me virar e descobrir que não havia é, com efeito, ter vergonha de si para alguém, é
ninguém, nesse caso, o meu ser-Para-outro era escorregar para fora de mim para ser apreendido.
menos real do que se houvesse alguém? Não, diria Com a vergonha passo a viver, e não conhecer, a
Sartre, através da consciência de ser visto, tenho situação de ser-visto, perco-me de mim. O outro,
consciência de mim no mundo, através dela passo quando me olha, passa a dar suas distâncias, seus
a existir como facticidade, mesmo que o outro valores, sua transcendência; por isso me constituo
não esteja lá de fato, essa terceira maneira de ser como objeto, sou objeto sobre fundo do mundo
(Para-outro) já se realizou. Num sentido mais de outrem. Minha transcendência é transcendida,
amplo, podemos dizer que, para os religiosos, o fico alienado. O outro é um lugar inacessível onde
conceito de Deus é um Outro constantemente não posso entrar, como um buraco negro onde
presente, que nos observa e no julga. Posso tudo entra e nada sai. Sartre nos trás a ideia de
sentir-me constantemente observado por Deus e escoamento porque não posso reaver o que me
sentir minhas possibilidades e referências todas a foi tirado com o olhar do outro, está perdido
partir de um ser superior. dentro dele. Mas ao mesmo tempo, é esse olhar
Sartre expõe três modos de captar meu que me remete a mim como aquele-que-errou,
ser-Para-outro: a vergonha, o orgulho e o medo. é necessário esse olhar para poder constituir-se
Para expor esses sentimentos, voltaremos ao essa essência, porque o Para-si não pode definir-
exemplo do músico: ele abre uma nova partitura se. Com efeito, o Para-si nem se via tocando, ele
e se dá conta de que está em face de uma música estava se jogando constantemente no futuro, ele
muito difícil. Então, começa a tocá-la ao modo negava o presente para ser aquele que acertava
de tocar-sem-errar, ele transcende as notas e o a música inteira até o último acorde. Mas de

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alguma forma, o Para-si não pode constituir- ele é nada. Também não poderia conhecer-me
se, a música era muito difícil, os acordes eram através do Em-si, ele é fechado nele mesmo, não
muito complicados, seus dedos (Em-si) não se relaciona com nada além dele mesmo.
acompanharam a velocidade do andamento da O orgulho é segundo modo de reconhecer
música. Ele errou, e nesse momento, toda sua meu ser-Para-outro. Ele deriva da vergonha, no
transcendência se desvaneceu e ele caiu como sentido em que me sei visto pelo Outro e que me
chumbo na realidade ao ser olhado pelo Outro. encontro no mundo como objeto para ser visto;
A vergonha é apenas o sentimento mas, nesse caso, o orgulho assume a postura
original de ter meu ser do lado de fora, oposta: suponhamos que nosso já citado músico
comprometido em outro ser e, como tal, agora toque de maneira sublime e maravilhosa
sem qualquer defesa, iluminado pela luz
aquela música difícil que dissemos anteriormente
absoluta que emana de um puro sujeito;
é a consciência de ser irremediavelmente e no fim receba uma salva de palmas esfuziante.
aquilo que sempre fui. (Sartre, 1999). Como não se sentir orgulhoso numa situação
dessas? Ele se levanta e faz uma reverência,
A vergonha é a porta pela qual temos
agradecendo o reconhecimento. Ele se sente
condições de formular um juízo sobre nós
orgulhoso, mais do que isso, ele é orgulho. De
mesmos no mesmo sentido que formulamos
que modo isso difere da vergonha? Num sentido
juízos sobre objetos, porque, através do Outro,
original, nada. Ele vive a mesma situação, mas
tenho condições de aparecer como objeto a mim
de maneira oposta. Ao se sentir orgulhoso, ele
mesmo. É o conhecimento que vem do outro,
também é apreendido no mundo, ele também é
na forma de juízos, que possibilita-me conhecer-
olhado, também é alienado de seu Para-si, mas ao
me. O saber que vem do outro é o fator principal
modo de músico-talentoso, de grande-pianista. A
para formar o conceito de mim mesmo, na forma
diferença essencial é que, nesse caso, ele quer ser
de Em-si. Na obra “Saint Genet: ator e mártir”,
aquilo que dizem que ele é, resigna-se com sua
Sartre descreve a metamorfose que se dá com
condição. Tem orgulho de ser o que é, mesmo
a palavra vertiginosa: ladrão. “A vergonha do
que seja Para-outro; nega sua transcendência,
pequeno Genet descobre para ele a eternidade:
que é nada, para afirmar-se como aquilo que é
é ladrão de nascença, será assim até a morte.
Para-outro. Veste a carapuça que lhe dão, mas
[...] Genet é um ladrão: essa é a sua verdade, a
põe essa carapuça sobre nada, porque nunca
sua essência eterna” (Sartre, 2002). A vergonha
será o que quer ser. Nega seu vir-a-ser para
provém do contato com o outro, o contato com
perder-se nesse Em-si que lhe foi dado. Mas essa
o olhar, e o olhar sobre Genet o condenou a ser
situação não pode sustentar-se, o Para-si se joga
algo, no sentido de ter-de-ser. Genet não podia ser
constantemente no futuro, se desprende e foge do
mais nada além de ladrão, ele se tornou a essência
Em-si o tempo todo. Só podemos ser aquilo que
dessa palavra. A vergonha o jogou no mundo e
somos na morte, quando o Para-si é finalmente
ele foi engolido pela essência que lhe deram.Se
alcançado pelo Em-si e, somente nesse caso,
existisse apenas eu no mundo, todas as distâncias
somos plenamente objeto, mas deste modo já não
partiriam de mim, todas as essências viriam de
podemos nos revelar como sujeito.
mim, mas eu não saberia quem sou, porque o
Para-si não pode voltar-se para si mesmo, afinal, Por meio do conceito do orgulho, Sartre
tem condições de desenvolver um importante

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estudo sobre a vaidade, a sedução e o amor. Nos Outra vez, vemos que o olhar do
dois primeiros casos me mostro como objeto Outro também pode cair sobre nós sem que o
positivo, me construo e me apresento como queiramos, dando a nós uma essência, contrária
Em-si, e utilizo isso como “moeda de troca” a que queremos. Sartre também mostra bem isso
para ganhar a admiração do Outro, para tentar em sua obra “Entre Quatro Paredes” onde Inês
seduzi-lo ou fazê-lo me admirar. Seguindo esse afirma:
raciocínio, poderíamos dizer que “pela sedução,
“Você é um covarde, Garcin, porque
busco constituir-me como uma plenitude de eu quero que você seja um covarde.
ser e fazê-lo reconhecido como tal.” (Sartre, Eu quero, compreende? Eu quero! No
1999). Reduzo-me à simples facticidade, mesmo entanto, veja que fraquinha eu sou:
um sopro. Sou apenas o olhar que está
sabendo que não sou isso, para me mostrar vendo você, o pensamento incolor que
melhor do que sou realmente e assim conquistar está pensando em você” (Sartre, 2005)
o Outro. Procuro me afirmar e me limitar ao meu
Inês procura dar uma essência a Garcin,
ser-Para-outro. O mesmo acontece com o amor,
transformá-lo em Em-si, tudo isso com o olhar,
porque este “é o projeto de fazer-se amar” (Sartre,
que mostra o ser-Para-outro. Logo em seguida
1999); quando amo alguém, busco o amor dessa
Inês afirma “Eu estou vendo vocês, vendo vocês!
pessoa, busco transformar-me numa totalidade–
Eu sozinha sou toda uma multidão!” (Sartre,
objeto; quero, aos olhos do Outro, ser melhor
2005), Inês sabe da força que seu olhar tem
do que sou. Mas não podemos nos manter como
sobre Garcin, e é isso que o faz dizer a frase mais
ser-Para-outro indefinidamente, esta postura
importante da peça: “O inferno são os outros!”
fatalmente acarretará num fracasso. O orgulho e
(Sartre, 2005)
seus derivados (amor, sedução) estão fadados ao
fracasso porque não somos Em-si. O medo é o terceiro modo de captar meu
ser-Para-outro. Consideremos agora que após
“o conflito é o sentido originário do ser-
mais uma noite tocando no bar, nosso músico
Para-outro [...] se partir-mos da revelação
inicial do outro como olhar, devemos se dirija para sua casa. Ele passa por uma rua
reconhecer que experimentamos nosso escura pelo caminho e então escuta um barulho
inapreensível ser-Para-outro na forma no beco ao lado. Ele sente medo, seu corpo se
de uma posse. Sou possuído pelo outro;
o olhar do outro modela meu corpo em
enrijece, suas pupilas se dilatam e sua freqüência
sua nudez, causa seu nascer, o esculpe, cardíaca aumenta. O medo é mais que as reações
o produz como é, e vê como jamais o fisiológicas proporcionadas pela adrenalina que é
verei. O outro detém um segredo: o
liberada pela supra-renal. Tudo isso está no nível
segredo do que sou. Faz-me ser e, por
isso mesmo, possui-me, e essa possessão do Em-si: é o que é. Tudo isso são reações que
nada mais é que a consciência de me não dizem respeito a nada além delas mesmas;
possuir. E eu, no reconhecimento de o seu corpo não se importa se a adrenalina foi
minha objetidade, tenho a experiência de
que ele detém essa consciência. Atitude liberada por medo ou por uma injeção aplicada
consciência, o outro é para mim aquele por um médico porque as condições químicas
que roubou meu ser e, ao mesmo tempo, só se relacionam com elas mesmas. Também
aquele que faz com que ‘haja’ um ser que
podemos dizer que o seu ser-assaltado, seu Para-
é o meu.” (Sartre, 1999)
si, que nega a realidade para se jogar num futuro

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sendo assaltado, não é seu medo. O que constitui outro independe dessas experiências, e é ela, ao
o medo é o fato de saber que se possui um corpo contrário que as torna possíveis” (Sartre, 1999).
que pode ser ferido, saber que se corre um perigo Sei que o outro existe, não posso duvidar disso;
real de ser assaltado porque se está no mundo; é sei também que assim como posso apreender
seu ser-Para-outro que se manifesta através do o outro como objeto sobre fundo do mundo,
olhar-do-ladrão e que se percebe como vítima. também posso ser apreendido por ele através do
Saber da existência do Outro, e saber que se olhar e isso o torna “o mediador indispensável
existe para esse outro, é isso que dá medo, o fato entre mim e mim mesmo” (Sartre, 1999). Ante o
de se descobrir no mundo, um mundo onde um olhar do outro, o Para-si corre o risco de perder-
possível agressor transcende sua transcendência. se de sua liberdade essencial, esse lançar-se ao
E este possível ladrão não está mais à distância, futuro. Mas é parte dele ser essa incógnita, o
ele está aí. Ao ouvir o barulho no beco ao lado, é que o define é, precisamente, não ter definição,
possível sentir o olhar do ladrão sobre si, é possível “não-ser-o-que-é-e-ser-o-que-não-é”. O homem
sentir sua transcendência transcendendo nossa deve superar sua transformação em objeto para
transcendência e nos dando a essência de homem- apropriar-se de seu projeto fundamental. O Para-
com-dinheiro ou como homem-indefeso; somos si não pode ser determinado pelo exterior, já
objeto para este outro que nos dá suas utilidades. vimos como sua tentativa de transformar-se em
O mundo nos supera e nos encontramos no meio Em-si é impossível, e, portanto, deve prosseguir
dele, indefesos. Através do medo, nos damos com sua busca, responsabilizando-se por ela.
conta de nossa fragilidade e nossas limitações e
o olhar do outro não faz nada além disso: limitar Conclusão
nossa liberdade frente aos nossos possíveis. Uma Se na filosofia de Sartre o Para-si é esse
possível derivação do medo é o ódio. Em face constante se lançar no futuro, essa fuga do que se
de um mundo que nos ultrapassa e nos ameaça, é, Em-si, para o que se não é, então só podemos
podemos negá-lo odiando-o. O ódio é a tentativa entender o ser-Para-outro como o fracasso do
de negação do mundo, ou melhor, a tentativa de Para-si, que se torna algo, passa a ter a definição
negação do Outro. Se é o Outro que me traz o que o Outro lhe dá. O perseguidor-perseguido é
conhecimento de mim, na forma de Em-si, negar paralisado pelo olhar. Através da consciência de
o outro é, com efeito, negar meu Em-si, é uma ser visto, eu experiencio meu ser-Para-Outro, sou
tentativa de constituir-me apenas como Para-si. transformado em objeto, ele transcende minha
Quando tenho medo de ser assaltado, vejo meu transcendência. Quando o Outro me olha, ele
corpo como objeto em perigo; se, com efeito, não mais se mostra como objeto para mim, não
for assaltado, verei meu corpo como objeto posso mais tratá-lo como uma máquina, ele se
transcendido pela transcendência do Outro; é torna seu olhar, que faz o mundo escoar para
dessa situação que pode vir o ódio, ódio daquele fora de mim em direção a ele, uma hemorragia.
que me transcendeu. O ódio busca negar minha Deste modo, minha relação como o Outro é
objetidade tentando negar o Outro. e sempre será cindida: ou eu o apreendo como
São essas as situações em que se revelam objeto - sem que, nesse caso, possa apreender seu
o Outro, o olhar e o ser-Para-outro. Mas ainda ser - dando-lhe minhas significações e situando-o
vale lembrar que “minha certeza da existência do em relação a mim; ou o apreendo como olhar,

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me transcendendo e me limitando, situando-me Referências Bibliográficas:


em relação a ele. Não há síntese possível entre
essas duas posições e me relacionarei com o BORNHEIM, Gerd A. Sartre: Metafísica e
Outro como num jogo sem fim onde estarei ora Existencialismo. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva,
nesta ou naquela posição, saindo de uma para 2003.
inevitavelmente cair na outra. A consciência
de ser visto é esta primeira relação, na qual me HÜBNER, Maria Martha. Guia para elaboração de
encontro com o outro e me torno objeto para ele. monografias e projetos de dissertação de mestrado e
O outro é aquele que me possibilita conhecer-me, doutorado. São Paulo: Pioneira, Ed. Mackenzie,
aquele que traz meu conhecimento de mim para 1998.
mim. Ele me traz ao mundo, ou melhor, ele me
MACIEL, Luiz Carlos Junqueira. Sartre: Vida
joga no mundo, me prende a ele. Com o outro
e Obra. 5ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
passo a ser limitado, sou um ser acabado por ter
1986.
minha transcendência transcendida. Sou o que
sou, ao modo de ter-de-ser. Posso ter vergonha
MARCONI, M. A.; LAKATOS, E. M. Metodologia
do conhecimento que o outro me traz ou posso
científica. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2008.
orgulhar-me dele, ou ainda, posso ter medo, e
odiá-lo. Essa relação de conflito não tem fim, PERDIGÃO, Paulo. Existência e Liberdade: Uma
é um jogo eterno, cheio de jogadas e viradas. A Introdução à Filosofia de Sartre. Porto Alegre:
consciência de ser visto, o instante que avisto o L&PM, 1995.
olhar, é apenas o começo, o movimento inicial.
PESSOA, Fernando. Obra Poética. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1992.
Nota:
SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: Ensaio de
1
É importante notar como muitas vezes a literatura aborda Ontologia Fenomenológica. 7ª ed. Petrópolis:
a ideia do Outro de forma semelhante a Sartre. Fernando Vozes, 1999.
Pessoa em seu poema “Primeiro Fausto” afirma:
“O horror metafísico de Outrem!/ O pavor de uma
______. Saint Genet: ator e mártir. Petrópolis:
consciência alheia/ Como um deus a espreitar-me/ Quem
me dera/ Ser a única [cousa ou] animal/ Para não ter Vozes, 2002.
olhares sobre mim! [...] Sinto horror/ À significação que
olhos humanos/ Contêm”. Através de meios poéticos, ______. Entre Quatro Paredes. São Paulo:
Fernando Pessoas expressa o horror que é ser visto por
Civilização Brasileira, 2005.
outro, ter todas as suas possibilidades transformadas em
mortipossibilidades. Esse trecho mostra muito bem como
podemos chegar às conclusões de Sartre não só através
dos meios filosóficos, mas artísticos também.

Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 1, v. 1, n. 2, 2013, p. 157-168.

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