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ATÉ PARECE MILAGRE

Publicado em junho 21, 2013

Sobreviventes a séculos de intensa urbanização, as igrejas do Rio que compõem o roteiro da Jornada Mundial da
Juventude abrigam joias do barroco e contam a história do Brasil

Até o início do século XX, um conjunto de torres longilíneas sobressaía no cartão-postal do centro do Rio de
Janeiro em meio a um casario de altura acanhada. Eram o símbolo-mor da proeminência das igrejas que
arrematavam majestosamente. Em algumas dessas igrejas repousam até hoje verdadeiras obras-primas da arte
sacra, exemplares que passeiam do barroco ao rococó, tão em voga na época de sua construção. Atualmente
engolidas pelos arranha-céus que as circundam, muitas delas são pouco conhecidas e menos ainda visitadas. Mas
isso deve mudar: depois de décadas, tal tesouro vira à luz sob os holofotes da Jornada Mundial da Juventude, em
julho, quando integrará um circuito de 32 igrejas que pontilham o caminho entre o centro do Rio e Niterói. Além de um
alentado catálogo com fotos e textos sobre cada, uma, haverá um grupo de especialistas de prontidão por todo o
trajeto para remontar a história dos templos da fé em tomo dos quais tudo’ girava – de festas religiosas e procissões
a grandes manifestações artísticas e suntuosos casamentos reais. Diz a historiadora Myriam Ribeiro, uma das
maiores especialistas em barroco brasileiro: “O Rio tem até mais igrejas nesse estilo que Ouro Preto, mas, apesar de
sua relevância para a arte e a história, elas foram ficando em segundo plano”.

O ponto alto do roteiro, circunscrito às construções dos séculos XVII e XVIII, é a Igreja da Ordem Terceira de
São Francisco da Penitência, colocada de pé a mando de um grupo de ricos comerciantes ligados à ordem, em 1657.
Seu interior só ficou pronto quase um século mais tarde e, embora poucos saibam, é uma espécie de pedra
fundamental do estilo tomado de curvas, adornos e ouro à vontade que viria a encontrar seu apogeu nas mãos de
Aleijadinho. Trata-se de obra dos três mais importantes artistas portugueses da época – o entalhador Manuel de
Brito, o pintor Caetano da Costa Coelho e o mestre escultor Francisco Xavier de Brito, que se mudou depois para
Minas Gerais e ali atraiu a atenção de Aleijadinho e seus pares. Quem divisa a fachada branca emoldurada por
mármore sóbrio espanta-se com o interior todo coberto de madeira talhada e banhada em ouro, estrutura coroada por
uma cúpula que dá a sensação de estar assistindo à própria glorificação de São Francisco. Um milagre da
perspectiva obtido por meio de uma técnica de ilusão de ótica até então inédita no Brasil, a trompe l’oeil (engano dos
olhos, em francês), já conhecida de gregos e romanos e apurada pelos renascentistas.

O circuito sugerido traz ainda à tona mostras da cultura daqueles tempos em que a corte portuguesa imprimia
seus costumes à capital do Império. Na Penitência, assim como 110 Mosteiro de São Bento, que também está no
roteiro. é possível ainda discernir os nomes nas lápides dos benfeitores que compravam o direito de ser enterrados
em solo sagrado com suas doações. Nada resta sob as lápides, porém: em 1825, Pedro I proibiu a prática do enterro
nos templos por considerá-la anti-higiênica, e ordenou que os restos mortais, mesmo dos mais nobres, fossem
transferidos para o cemitério. Na mesma vizinhança. a ampla e rícamente adornada Carmo da Antiga Sé – cenário da
coroação de dom Pedro I e dom Pedro IIe do casamento da princesa Isabel com o conde d’Eu-cfoi escolhida para ser
a capela real não só por sua proximidade do Paço Imperial, a sede do poder, mas também porque a catedral de
então havia sido fundada por escravos, algo inconcebível para o templo de um rei. A capela chegou a ter uma
passarela elevada e fechada que permitia a dom João VI acessála sem ter de enfrentar o escrutínio dos populares
que lotavam a região mais movimentada da cidade. A passagem desapareceu sem deixar vestígios, mas as tribunas
da família real ainda estão lá, fechadas por cortinas vermelhas, testemunhas de um período em que a posição dos
fiéis na missa era definida segundo status. A aristocracia ficava num patamar mais alto; abaixo, vinha a plebe – as
mulheres sentadas no chão e os homens de pé.

Os escravos podiam assistir às celebrações com o rei presente, mas sem passar da porta, e por isso muitos
preferiam rezar em frente a um dos mais de setenta oratórios públicos espalhados pela cidade. Um desses altares,
erguido na então Travessa do Comércio (hoje Rua do Ouvidor), deu origem à Igreja da Lapa dos Mercadores,
pequena, e preciosa amostra do rococó, gênero menos rebuscado e mais delicado que surgiu como reação ao
exagero do barroco. Ela fica escondida em uma rua estreita, espremida entre antigas casas comerciais. O fato de
uma imagem exposta na torre do sino ter despencado de uma altura de 25 metros durante um bombardeio na
segunda Revolta da Armada, em 1893, e ter sobrevivido quase intacta alimentou a mística de que ocorrera no local
um milagre. Com o bota-abaixo de um sem-número de velhas construções na área, não deixa de ser um milagre que
a própria igrejinha continue ali, pronta para ser apreciada pelos visitantes – peregrinos ou não.
ATÉ PARECE MILAGRE

Publicado em junho 21, 2013

Sobreviventes a séculos de intensa urbanização, as igrejas do Rio que compõem o roteiro da Jornada Mundial da
Juventude abrigam joias do barroco e contam a história do Brasil

Até o início do século XX, um conjunto de torres longilíneas sobressaía no cartão-postal do centro do Rio de
Janeiro em meio a um casario de altura acanhada. Eram o símbolo-mor da proeminência das igrejas que
arrematavam majestosamente. Em algumas dessas igrejas repousam até hoje verdadeiras obras-primas da arte
sacra, exemplares que passeiam do barroco ao rococó, tão em voga na época de sua construção. Atualmente
engolidas pelos arranha-céus que as circundam, muitas delas são pouco conhecidas e menos ainda visitadas. Mas
isso deve mudar: depois de décadas, tal tesouro vira à luz sob os holofotes da Jornada Mundial da Juventude, em
julho, quando integrará um circuito de 32 igrejas que pontilham o caminho entre o centro do Rio e Niterói. Além de um
alentado catálogo com fotos e textos sobre cada, uma, haverá um grupo de especialistas de prontidão por todo o
trajeto para remontar a história dos templos da fé em tomo dos quais tudo’ girava – de festas religiosas e procissões
a grandes manifestações artísticas e suntuosos casamentos reais. Diz a historiadora Myriam Ribeiro, uma das
maiores especialistas em barroco brasileiro: “O Rio tem até mais igrejas nesse estilo que Ouro Preto, mas, apesar de
sua relevância para a arte e a história, elas foram ficando em segundo plano”.

O ponto alto do roteiro, circunscrito às construções dos séculos XVII e XVIII, é a Igreja da Ordem Terceira de
São Francisco da Penitência, colocada de pé a mando de um grupo de ricos comerciantes ligados à ordem, em 1657.
Seu interior só ficou pronto quase um século mais tarde e, embora poucos saibam, é uma espécie de pedra
fundamental do estilo tomado de curvas, adornos e ouro à vontade que viria a encontrar seu apogeu nas mãos de
Aleijadinho. Trata-se de obra dos três mais importantes artistas portugueses da época – o entalhador Manuel de
Brito, o pintor Caetano da Costa Coelho e o mestre escultor Francisco Xavier de Brito, que se mudou depois para
Minas Gerais e ali atraiu a atenção de Aleijadinho e seus pares. Quem divisa a fachada branca emoldurada por
mármore sóbrio espanta-se com o interior todo coberto de madeira talhada e banhada em ouro, estrutura coroada por
uma cúpula que dá a sensação de estar assistindo à própria glorificação de São Francisco. Um milagre da
perspectiva obtido por meio de uma técnica de ilusão de ótica até então inédita no Brasil, a trompe l’oeil (engano dos
olhos, em francês), já conhecida de gregos e romanos e apurada pelos renascentistas.

O circuito sugerido traz ainda à tona mostras da cultura daqueles tempos em que a corte portuguesa imprimia
seus costumes à capital do Império. Na Penitência, assim como 110 Mosteiro de São Bento, que também está no
roteiro. é possível ainda discernir os nomes nas lápides dos benfeitores que compravam o direito de ser enterrados
em solo sagrado com suas doações. Nada resta sob as lápides, porém: em 1825, Pedro I proibiu a prática do enterro
nos templos por considerá-la anti-higiênica, e ordenou que os restos mortais, mesmo dos mais nobres, fossem
transferidos para o cemitério. Na mesma vizinhança. a ampla e rícamente adornada Carmo da Antiga Sé – cenário da
coroação de dom Pedro I e dom Pedro IIe do casamento da princesa Isabel com o conde d’Eu-cfoi escolhida para ser
a capela real não só por sua proximidade do Paço Imperial, a sede do poder, mas também porque a catedral de
então havia sido fundada por escravos, algo inconcebível para o templo de um rei. A capela chegou a ter uma
passarela elevada e fechada que permitia a dom João VI acessála sem ter de enfrentar o escrutínio dos populares
que lotavam a região mais movimentada da cidade. A passagem desapareceu sem deixar vestígios, mas as tribunas
da família real ainda estão lá, fechadas por cortinas vermelhas, testemunhas de um período em que a posição dos
fiéis na missa era definida segundo status. A aristocracia ficava num patamar mais alto; abaixo, vinha a plebe – as
mulheres sentadas no chão e os homens de pé.

Os escravos podiam assistir às celebrações com o rei presente, mas sem passar da porta, e por isso muitos
preferiam rezar em frente a um dos mais de setenta oratórios públicos espalhados pela cidade. Um desses altares,
erguido na então Travessa do Comércio (hoje Rua do Ouvidor), deu origem à Igreja da Lapa dos Mercadores,
pequena, e preciosa amostra do rococó, gênero menos rebuscado e mais delicado que surgiu como reação ao
exagero do barroco. Ela fica escondida em uma rua estreita, espremida entre antigas casas comerciais. O fato de
uma imagem exposta na torre do sino ter despencado de uma altura de 25 metros durante um bombardeio na
segunda Revolta da Armada, em 1893, e ter sobrevivido quase intacta alimentou a mística de que ocorrera no local
um milagre. Com o bota-abaixo de um sem-número de velhas construções na área, não deixa de ser um milagre que
a própria igrejinha continue ali, pronta para ser apreciada pelos visitantes – peregrinos ou não.

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