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Estrutura Fundiária

Macpherson, C. B. A democracia liberal: origens e evolução. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.


Mendonça, S. R. O ruralismo brasileiro. São Paulo: Hucitec, 1997.
______. Estado e sociedade. In: Mattos, M. B .(org.). História: pensar & fazer.
Rio de Janeiro: Laboratório Dimensões da História, 1998. p. 13-32. E
T hompson, E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Editora da
Unicamp, 2001.

Estrutura fundiária
Paulo Alentejano

Em texto datado do final do sécu- No Brasil, apesar das inúmeras lu-


lo XIX, Elisée Reclus sustentava que a tas e revoltas camponesas, da resistên-
estrutura fundiária de um país é o re- cia indígena e quilombola, o latifúndio
sultado das lutas entre latifundiários e prevaleceu e impôs ao país a condição
camponeses pela posse das terras. As- de um dos recordistas mundiais em
sim, onde as lutas camponesas foram monopolização da terra. Iniciada com
capazes de se impor aos anseios mono- o instrumento colonial das sesmarias –
polistas do latifúndio, a estrutura fun- que dava aos senhores de terras o direi-
diária é mais democrática; mas onde o to de exploração econômica das mes-
poder do latifúndio prevaleceu sobre mas e poder político de controle sobre
as lutas camponesas, a concentração o território – e intensificada pela Lei
fundiária é intensa. Em síntese, o con- de Terras de 1850 – que transformou
ceito de estrutura fundiária refere-se ao a terra em mercadoria e assegurou a
perfil de distribuição das terras numa continuidade do monopólio privado,
dada sociedade. Assim, quanto mais ainda que sob outras bases jurídicas –,
desigual a distribuição das terras, mais a concentração fundiária segue sendo
concentrada será a estrutura fundiária, uma marca do campo brasileiro.
ao passo que quanto mais igualitária for O último Censo Agropecuário
a distribuição, mais desconcentrada ela (Instituto Brasileiro de Geografia e
será. Em geral, utiliza-se como base de Estatística, 2006) comprovou que o ín-
comparação para medir a concentração dice de Gini permaneceu praticamente
fundiária o índice de Gini,1 mas é pre- estagnado nas últimas duas décadas,
ciso considerar também a distribuição saindo de 0,857 em 1985, para 0,856
por estratos de área, pois, como o ín- em 1995/1996, e para 0,854 em 2006.
dice de Gini mede desigualdade, pode- Em alguns estados da federação, en-
mos ter situações em que há pouca de- tretanto, verificaram-se significativos
sigualdade, mas grande concentração aumentos, como em Tocantins (9,1%),
de terras, em função da eliminação das Mato Grosso do Sul (4,1%) e São
pequenas propriedades pelas grandes. Paulo (6,1%). O movimento de

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concentração foi puxado pelas gran- do total, ocupando uma área de cerca
des culturas de exportação, pela ex- de 20%, ao passo que os com mais de
pansão do agronegócio e pelo avanço 100 hectares são menos de 10% do to-
da fronteira agropecuária, em direção tal e ocupam cerca de 80% da área. E
à Amazônia, impulsionada pela cria- este quadro permaneceu praticamente
ção de bovinos e pela soja. No caso de inalterado nos últimos 50 anos.
São Paulo, o crescimento deveu-se à Se considerarmos os dados do Incra
cultura de cana-de-açúcar (estimulada (2003)2 em vez dos dados do IBGE
pelo maior uso de álcool com os carros (2006), ou seja, se considerarmos os
bicombustíveis e pelos bons preços imóveis rurais em vez dos estabeleci-
do açúcar). mentos agropecuários, verificamos que
Os dados do Censo Agropecuário o panorama não é muito diferente. Os
de 2006 (Instituto Brasileiro de Geo- imóveis com menos de 10 hectares são
grafia e Estatística, 2006) apontam a 31,6% do total, mas ocupam apenas
existência de 5.175.489 estabelecimen- 1,8% da área, e os com mais de 5 mil
tos agropecuários no Brasil ocupando hectares representam apenas 0,2% do
uma área total de 329.941.393 hectares, total de imóveis, mas controlam 13,4%
correspondente a 38,7% do território da área. Somados os imóveis com me-
nacional. Apontam ainda a existência nos de 100 hectares, eles correspon-
de 125.545.870 hectares de terras indí- dem a 85,2% do total e possuem me-
genas, 72.099.864 hectares de unidades nos de 20% da área, ao passo que os
de conservação e 30 milhões de hecta- que possuem mais de 100 hectares re-
res de águas internas, rodovias e áreas presentam menos de 15% dos imóveis
urbanas. Sobram, assim, praticamente e concentram mais de 80% da área.
300 milhões de hectares de terras de- Dos 4,375 milhões de imóveis, apenas
volutas que têm sido sistematicamente 70 mil (1,6% do total) totalizam 183
objeto de grilagem, isto é, da apropria- milhões de hectares.
ção ilegal de terras públicas por parte Assim, seja qual for a base estatís-
de especuladores. Segundo Delgado tica, a concentração fundiária aparece
(2010), são cerca de 170 milhões de como uma marca inegável da estru-
hectares grilados. tura fundiária brasileira e geradora de
Os dados do censo demonstram profundas desigualdades. Porém, o pro-
ainda que os pequenos estabelecimen- blema é ainda mais grave, pois as ca-
tos – com menos de 10 hectares – con- tegorias utilizadas pelo IBGE (esta-
tabilizam 2.477.071 (47,9% do total), belecimentos agropecuários) e pelo
mas a área ocupada pelos mesmos é de Incra (imóveis rurais) não dão conta da
apenas 7.798.607 (2,4 % do total), ao complexidade das formas de acesso à
passo que, no polo oposto, os estabe- terra existentes no Brasil. Ao se centra-
lecimentos com mais de 1.000 hectares rem nas dimensões econômica (IBGE)
são apenas 46.911 (0,9% do total), mas e jurídica (Incra), essas categorizações
ocupam 146.553.218 hectares (44,4% tornam invisíveis várias modalidades
da área total). O contraste se torna de acesso à terra que têm profundo
ainda mais nítido quando observa- enraizamento na cultura camponesa,
mos que os estabelecimentos com me- mas que não são evidenciadas pelas
nos de 100 hectares são cerca de 90% estatísticas de tais órgãos. Por isso, as

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formas de apropriação da terra típi- do último censo demonstram que os


cas dos faxinais, dos geraizeiros, dos pequenos estabelecimentos (menos
fundos de pasto, das quebradeiras de de 100 hectares) responderam por
coco, dos seringueiros, dos ribeirinhos,
dos vazanteiros, e de tantas outras co-
84,36% das pessoas ocupadas em es-
tabelecimentos agropecuários, embora E
munidades tradicionais não são capta- a soma de suas áreas represente apenas
das na sua complexidade, nem respei- 30,31% do total. Em média, os peque-
tadas na sua diversidade. nos estabelecimentos utilizam 12,6 ve-
Assim, podemos afirmar que as zes mais trabalhadores por hectare do
estatísticas revelam apenas parte das que os médios (100 a 1.000 hectares),
desigualdades existentes no Brasil e 45,6 vezes mais do que os grandes
quando se trata do acesso à terra e suas estabelecimentos (com mais de 1.000
consequências, o que as torna ainda hectares). O resultado da manutenção
mais aterradoras. do monopólio da terra no Brasil é a
Um dos resultados desta profunda precariedade da vida nas favelas e pe-
iniquidade na distribuição de terras no riferias das metrópoles e mesmo das
Brasil é, segundo Carter (2010), a dis- médias cidades brasileiras, para onde
crepância da representação política en- foram empurrados os mais de 50 mi-
tre camponeses e/ou agricultores fami- lhões de brasileiros expulsos do campo
liares (1 deputado para 612 mil famílias nas últimas décadas.
entre 1995 e 2006) e grandes proprie- A concentração fundiária tem im-
tários (1 deputado para 236 famílias), pactos ainda sobre a dimensão produ-
uma diferença de 2.587 vezes. Como tiva, seja porque boa parte das grandes
consequência direta dessa desigualda- propriedades pouco ou quase nada pro-
de, os grandes proprietários consegui- duz (são 120 milhões de hectares que
ram obter 1.587 vezes mais recursos os próprios proprietários declaram
públicos do que os camponeses e agri- ao Incra serem improdutivos dentro
cultores familiares para o financiamen- dos latifúndios), seja porque, quando
to da produção agropecuária. Segundo produzem, concentram-se na produ-
o IBGE, em 2006, os estabelecimentos ção de poucos produtos, destinados à
com 1.000 ou mais hectares (0,9% do exportação ou a fins industriais. Com
total) captaram 43,6% dos recursos, e isso, nas duas últimas décadas, a área
os com até 100 hectares (88,5% dos plantada com gêneros alimentares bá-
que obtiveram financiamento) capta- sicos, como arroz, feijão e mandioca,
ram 30,42% dos recursos. reduziu-se em mais de 2,5 milhões de
Outro efeito da persistência desta hectares, ao passo que a área plantada
concentração fundiária é a expulsão com soja, milho e cana-de-açúcar au-
de trabalhadores do campo. A impos- mentou 16 milhões de hectares. Além
sibilidade de reprodução ampliada das destas lavouras, as grandes proprieda-
famílias camponesas, resultante da des destinam a maior parte de suas ter-
concentração fundiária, produz a ex- ras à pecuária extensiva e à plantação
pulsão dos trabalhadores do campo, o industrial de árvores, sobretudo o eu-
que é acentuado pela modernização da calipto. Desta forma, a estrutura fun-
agricultura, que reduz a necessidade diária concentrada se converte também
de mão de obra no campo. Os dados num fator de insegurança alimentar.

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Outro efeito da concentração fundi- à propriedade da terra no Brasil. De


ária é facilitar a transferência do patri- todo modo, há indicações desta cres-
mônio natural brasileiro para o controle cente aquisição de terras, pois o apor-
estrangeiro, afinal, quando se trata o te de recursos estrangeiros destinado
agro como mero negócio (agronegócio), à compra de terras, que era da ordem
a terra é de fato apenas uma mercadoria de 104 milhões dólares em 2002, subiu
que pode ser transacionada sem maiores para 548 milhões de dólares em 2008,
preocupações, diferentemente de quan- um aumento de 427% em seis anos. O
do o agro é lugar de vida (agricultura) e Incra estima em 4,5 milhões de hecta-
a terra, portanto, não é mera mercado- res a área sob controle de estrangeiros,
ria, mas condição para a existência. mas não sabe a que se destinam, pro-
Diante disso, verifica-se hoje no dução ou especulação.
Brasil uma intensa transferência de ter- A concentração fundiária explica
ras para as mãos de fazendeiros, fundos também duas outras mazelas funda-
de investimentos e empresas estrangei- mentais do campo brasileiro: a violên-
ras. Este não é um fenômeno que está cia e a devastação ambiental. Como
acontecendo única e exclusivamente atestam os dados publicados anual-
no Brasil; pelo contrário, faz parte de mente pela Comissão Pastoral da Terra
um movimento de escala global capita- (CPT), a violência segue sendo parte do
neado por corporações agroindustriais cotidiano do campo brasileiro, onde,
interessadas em ampliar seus negócios, nos últimos 25 anos, houve uma mé-
por especuladores e fundos de investi- dia anual de: 63 pessoas assassinadas;
mento interessados na valorização das 2.709 famílias expulsas de suas terras;
terras como ativos financeiros, e mes- 13.815 famílias despejadas por meio de
mo por governos de países com limita- ações exaradas pelo Poder Judiciário de
ções naturais para o desenvolvimento alguma unidade da federação e cumpri-
da agricultura, que têm procurado ad- das pelo Poder Executivo por meio de
quirir terras no exterior para assegurar suas polícias; 422 pessoas presas por
o fortalecimento seguro de alimentos. lutar pela terra; 765 conflitos direta-
Segundo dados do Banco Mundial cita- mente relacionados à luta pela terra; e
dos por Sauer e Leite (2010), entre ou- 92.290 famílias envolvidas diretamente
tubro de 2008 e agosto de 2009 foram em conflitos por terra (Porto-Gonçal-
comercializados 45 milhões de hecta- ves e Alentejano, 2010).
res no mundo, sendo 33,75 milhões na No que se refere à devastação am-
África (75% do total) e 3,6 milhões no biental, é notório que as grandes mono-
Brasil e na Argentina (8% do total). O culturas e a criação extensiva de gado,
problema torna-se maior quando verifi- atividades tradicionais do latifúndio,
camos a fragilidade dos mecanismos de foram as atividades que historicamente
controle do Estado sobre o território provocaram a destruição das florestas
brasileiro, pois o próprio Incra, órgão e demais formações vegetais brasilei-
responsável pela administração fundiá- ras, como relata Warren Dean (1998).
ria no Brasil, admite que o governo não Hoje, além de continuar a produzir a
tem dados precisos sobre investidores devastação ambiental, os grandes lati-
e pessoas físicas que já detêm terras no fúndios monocultores são também os
país e que há inúmeras brechas legais principais responsáveis pela transfor-
que facilitam o acesso de estrangeiros mação do Brasil no maior consumidor

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mundial de agrotóxicos, pois são as amplamente às necessidades de terra


culturas da soja, da cana-de-açúcar, do dos 4 milhões de sem-terra espalhados
milho e do algodão as que mais utili- por este país afora. Isto possibilitaria
zam agroquímicos e, com isto, contri- resolver não só a situação das milha-
buem para a contaminação do ar, das res de famílias que permanecem acam- E
águas, do solo, dos alimentos e dos tra- padas em beiras de estrada ou dentro
balhadores rurais brasileiros. de latifúndios ocupados reivindicando
Por tudo isso, os movimentos so- um pedaço de terra, mas também dos
ciais que lutam pela Reforma Agrária milhares que, embora não estejam dire-
no Brasil têm defendido o estabele- tamente mobilizados na luta, continu-
cimento de um limite de 35 módulos am almejando uma terra para garantir
fiscais3 para as propriedades fundiárias seu sustento.
no Brasil. Caso este limite venha a ser Por tudo isso, a Reforma Agrá-
estabelecido, apenas 50.118 imóveis ria continua sendo uma luta funda-
(2% do total), que somam 203.643.369 mental por uma sociedade mais justa
hectares, seriam atingidos, atendendo e democrática.

Notas
1
O índice de Gini serve para medir desigualdades (de terra, de renda, de riqueza, de acesso
a bens etc.) e varia de 0 a 1, sendo que, quanto mais igualitária a distribuição, mais próximo
de 0 fica o índice, e quanto maior a desigualdade, mais próximo de 1 ele fica.
2
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) utiliza a categoria “estabeleci-
mentos agropecuários”, que considera a unidade produtiva, enquanto o Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (Incra) utiliza a categoria “imóvel rural”, que tem como
base a propriedade da terra. Assim, por exemplo, se uma fazenda é arrendada para quatro
diferentes agricultores, o Incra contabiliza um imóvel rural, e o IBGE, quatro estabeleci-
mentos agropecuários. Por outro lado, se três diferentes fazendas são administradas como
uma unidade produtiva contínua, o Incra contabiliza três imóveis rurais, e o IBGE, apenas
um estabelecimento agropecuário. Assim, os dados do IBGE e do Incra devem ser consi-
derados como complementares para a análise da concentração fundiária.
3
Segundo a legislação brasileira, as pequenas propriedades são as que têm até 4 módulos
fiscais, as médias são as que têm entre 4 e 15 módulos, e as grandes, as que têm mais de 15
módulos. O tamanho dos módulos varia de acordo com a localização e as condições natu-
rais, e vai de 5 a 110 hectares.

Para saber mais


Carter, M. (org.). Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrária no
Brasil. São Paulo: Editora da Unesp, 2010.
Dean, W. A ferro e fogo – a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.
Delgado, G. C. A questão agrária e o agronegócio no Brasil. In: Carter, M.
(org.) Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrária no Brasil. São
Paulo: Editora Unesp, 2010. p. 81-102.

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Dicionário da Educação do Campo

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo agropecuário


2006. Rio de Janeiro: IBGE, 2009. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/
home/estatistica/economia/agropecuaria/censoagro/brasil_2006/Brasil_
censoagro2006.pdf. Acesso em: 12 set. 2011.
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Estatísticas
cadastrais. Brasília: Incra, 2003
Medeiros, L. S. de. Reforma agrária no Brasil: história e atualidade da luta pela terra.
São Paulo: Perseu Abramo, 2003.
Porto-Gonçalves, C. W.; Alentejano, P. R. R. A violência do latifúndio
moderno-colonial e do agronegócio nos últimos 25 anos. In: Comissão Pastoral
da Terra (CPT). Conflitos no Campo Brasil 2009. Goiânia: CPT, 2010. p. 109-117.

Reclus, E. A propriedade e a exploração da terra. In: Andrade, M. C. de (org.).


Élisée Reclus: grandes cientistas sociais. São Paulo: Ática, 1985. p. 75-98.
Sauer, S.; Leite, S. P. A estrangeirização da propriedade fundiária no Brasil.
Artigos Mensais Oppa, n. 36, p. 1-4, ago. 2010.

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