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A PROMESSA E BENÇÃO DE DEUS EM NÚMEROS 23.27-24.

14 À LUZ DO CÂNON
BÍBLICO
Marcos Paulo Pereira Bastos da Silva

INTRODUÇÃO
Há muitos episódios surpreendentes e até mesmo cômicos nas Escrituras Sagradas,
possuindo um teor um tanto impressionante quanto engraçado em suas narrativas – este é o
caso da narrativa de Balaão. Contudo, não se deve subestimar a riqueza literária e teológica de
tal narrativa, pois, como diz Gordon Wenhan: “A encantadora ingenuidade destas histórias
esconde um fulgor de composição literária e grande profundidade de reflexão teológica” 1.
A referida história de Balaão está inserida na última seção de Números, que contempla
Israel acampado nas Planícies de Moabe, na iminência de entrar na terra que fora prometida por
Deus – Canaã. Balaque, rei de Moabe, diante de tal iminência, e tendo este ouvido falar das
vitórias de Israel, enviou uma delegação conjunta para solicitar à Balaão, profeta mesopotãmio,
que os amaldiçoasse (Nm 22.4,7).
Contudo, o que se vê na narrativa é a reversão, pela providência de Deus, de tal maldição
para a benção de seu povo, e isto em três oráculos/bençãos (22.41-23.12; 23.13-26; 23.27-
24.25). Tendo assumido a já citada profundidade teológica do texto, o presente estudo irá
analisar o terceiro oráculo (Nm 23.27-24.14) – oráculo este que contempla a benção da
prosperidade e paz futura de Israel2; tal análise será feita à luz da Teologia Bíblica, analisando
aspectos do texto em relação ao cânon da Escritura, e seu ponto culminante em Jesus Cristo.

1. NO PENTATEUCO
Em Números 24.5-6, no pronunciamento do oráculo de Balaão sobre Israel, lemos:
“Que boas são as tuas tendas, ó Jacó! Que boas são as tuas tendas, ó Israel! Como
vales que se estendem, como jardins à beira dos rios, como árvores de sândalo que o
Senhor plantou, como cedros junto às águas”.
Balaão está traçando uma visão daquilo que será o estabelecimento futuro de Israel em Canaã.
Há aqui, portanto, uma comparação: tal estabelecimento da descendência de Abraão em Canaã
será como fortes árvores crescendo perto de correntes de águas vivificadoras, como vales que

1 WENHAM, Gordon. Números: Introdução e Comentário. São Paulo: Ed. Mundo Cristão, 1985, p.
171
2 ibidem, p. 176.
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se estendem, o que aponta para sua força intransponível 3. Essa disposição do Senhor em
abençoar e governar o seu povo com proteção pode ser percebida em todo o escopo da torá.
Goldsworthy diz: “A geração, ou criação, dos céus e da terra, de todo o universo e tudo
o que nele há, concentra-se no povo de Deus no lugar onde foi colocado para viver sob a
orientação e o governo amoroso de Deus [...] Tal era o modelo do Reino de Deus” 4. A ideia
aqui é que sempre foi da intenção de Deus, desde a criação, criar um povo para si, num lugar
especial sob seu governo especial, tendo o homem como representante (Gn 1.28).
É sabido que, por causa do pecado (Gn 3), aqueles que deveriam ser o povo de Deus,
sob sua benção, passaram a estar em rebelião contra o Rei e contra o reino; tal rebeldia da
humanidade contra Deus resulta na queda de toda a ordem criada de seu lugar no reino de Deus 5.
Portanto, tal modelo inicial do Reino fora quebrado, e Deus iniciara o processo de restauração;
isto porque o propósito de Deus em seu reino é que ele não irá lançar fora o seu amor do universo
caído6.
Apesar de toda importância que há de Gênesis 3 à Gênesis 11, onde o compromisso de
Deus em resgatar pecadores se torna claro 7, é em Gênesis 12 que há um passo considerável na
revelação dos propósitos de Deus para o seu Reino. O povo que nossa passagem de estudo
contempla – Israel, fora formado a partir das promessas feitas neste capítulo com o homem
Abraão. Wenham, comentando o episódio de Balaão, diz:
“Os oráculos ali proferidos são muito específicos: eles reafirmam as promessas feitas
aos patriarcas. Em Gênesis 12.1.-3, e passagens subsequentes, foram prometidas três
coisas à Abraão: terra, descendentes e um relacionamento pactual. O primeiro oráculo
de Balaão menciona o relacionamento especial de Israel com Deus e sua grande
população (23.8; Gn 12.3; Nm 22.17; Gn 13.16; 12.1-3). O segundo se concentra no
relacionamento pactual de Israel (Gn 12.2-3); a terceira descreve como Israel em
breve gozará de paz e prosperidade na terra prometida. A quarta descreve um rei
Israelita, elemento muito mais raro nas promessas patriarcais”8
De fato, o todo do episódio dos oráculos de Balaão, e não somente o terceiro – que temos
analisado, contempla afirmar tais promessas patriarcais e, consequentemente, a fidelidade
divina em abençoar seu povo.

3 ibidem, p. 185
4 GOLDSWORTHY, Graeme. Introdução à Teologia Bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 102.
5 Ibidem, p. 113.
6 Ibidem, p. 113
7 Ibidem, p. 115
8 WENHAM, Gordon. Números: Introdução e Comentário. São Paulo: Ed. Mundo Cristão, 1985, p.

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Após toda a história subsequente de Gênesis, onde a fidelidade de Deus permaneceu


presente, vemos a escravidão no Egito, já predita por Deus (Gn 15.3), acontecer. Tal ponto da
história é narrada no segundo livro de Moisés, Êxodo, que enfoca a libertação do povo de Deus.
A “força intransponível” que descreve os Israelitas no oráculo de Balaão (Nm 24.5-6) é, ainda
que em forma de sombra, pressentida pelo Faraó (Êx 1.9) e demonstrada pelo próprio Deus,
que glorificaria seu nome libertando seu povo (Êx 14.4).
No entanto, é em Êx 19.4-6 que tais promessas são reafirmadas mais claramente:
“Tendes visto o que fiz aos egípcios, como vos levei sobre as asas de águia e vos
cheguei a mim. Agora, pois, se diligentemente ouvirdes a minha voz e guardardes a
minha aliança, então, sereis minha propriedade peculiar entre todos os povos; porque
toda a terra é minha; vós me sereis reino de sacerdotes e nação santa”
Aqui, de fato, vemos uma analogia nas alusões às promessas de Deus entre Números e
Êxodo no Sinai, passando por toda a peregrinação no deserto e, chegando em Cades, a espiagem
da terra, narrada por Números 13.2, que afirma: “Envia homens para a terra de Canaã, que eu
hei de dar aos filhos de Israel” 9. Portanto, nisto também se confirma a força e grandeza de Israel,
profetizada em toda a progressão da história narrada no pentateuco e confirmada na profecia de
Balaão em Números, força esta que era fundamentada em Javé. Ele estava cumprindo suas
promessas.

2. NO ANTIGO TESTAMENTO (AT)


A história de Israel continua, e o povo de Deus entra na terra prometida – episódio este
narrado no livro de Josué, após a pregação da lei em Deuteronômio e morte de Moisés. A
reafirmação que Balaão faz em seu oráculo profético das promessas patriarcais são
desenvolvidas e cumpridas no livro de Josué10. O povo e nação de força "intransponível”, pela
força de Javé, derrotou os inimigos ao redor da terra que lhes fora prometida, como Balaão
profetizara.
No entanto, no decorrer da história de Israel – após a morte de Josué, há uma crescente
infidelidade à aliança mosaica, posta diante do povo pelo próprio Josué, após terem tomado a
terra prometida (Js 24). Nisso, entra o período dos Juízes, onde a máxima é repetida: “Naqueles
dias, não havia Rei em Israel, cada um fazia o que parecia reto aos seus olhos” (Jz 17.6; 21.25),

9 WENHAM, Gordon. Números: Introdução e Comentário. São Paulo: Ed. Mundo Cristão, 1985, p.
171.
10 GOLDINGAY, John. Teologia Bíblica: O Deus das Escrituras Cristãs. Rio de Janeiro: Thomas

Nelson Brasil, 2020, p. 237.


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o que demonstra a necessidade do povo de Israel por um guia/Rei que os conduzisse como
modelo.
Tal fator, na profecia de Balaão, anos antes, também fora contemplada:
“Águas manarão de seus baldes, e as suas sementeiras terão águas abundantes; o seu
rei se levantará mais que Agague, e o seu reino será exaltado.” (Nm 24.7b)
Aqui, o que se vê de forma clara é o fato de que o tópico do futuro rei de Israel é trazido à tona.
Nisto se remonta não somente o fato de que por três vezes Deus prometera aos patriarcas que
“reis procederão de ti” (Gn 17.6, 16; 35.11), mas também o fato de que Saul, o primeiro Rei
ungido de Israel, de fato derrotara Agague, rei dos amalequitas (1Sm 15.8).
Sobre a questão da monarquia, Bruce Waltke diz: “Conforme registrado no livro de
Samuel, a instituição da monarquia baseia-se em declarações canônicas mais antigas sobre o
assunto, e a literatura canônica posterior desenvolve esse tema”11. Segundo Waltke, não é errado
dizer que de Gênesis (isto é, com sua narrativa de criação, tendo Adão como regente da terra) à
Números, há uma antecipação prenunciativa da benção da monarquia12.
No entanto, certamente a temática da monarquia não aparece apenas de Gênesis à
Números, mas vai em toda a literatura posterior, quer tendo por contexto de escrita (e.g. Rute)
quer como prelúdio à monarquia (e.g. Josué, Juízes, 1Sm) e o desenvolvimento da própria
monarquia (e.g. 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis). A monarquia, de fato, fora prometida como uma
benção.
Dessarte, o desenvolvimento da revelação chega ao livro dos profetas, mais
especificamente na nova perspectiva profética, onde há um profundo reconhecimento da
necessidade de uma nova obra de salvação diante da infidelidade de Israel 13. Tal perspectiva
messiânica já era percebida em certas dimensões no oráculo de Balaão 14, e no desenvolvimento
do cânon, tanto em Davi (1Sm 7) como nos profetas (Is 9.6), há a noção de um descendente
real que teria o selo divino e que governaria com perfeição: o Rei estava vindo.

3. NO NOVO TESTAMENTO (NT)


O terceiro oráculo de Balaão termina assim: “Este [Israel] abaixou-se, deitou-se como leão e
como leoa, quem o despertará? Benditos os que te abençoarem, e malditos os que te
amaldiçoarem” (Nm 24.9). Aqui, de forma mais clara e explícita, as promessas de Deus feitas

11 WALTKE, Bruce. Teologia do Antigo Testamento: uma análise exegética, canônica e temática. São
Paulo: Vida Nova, 2015, p. 763.
12 Ibidem, p. 771.
13GOLDSWORTHY, Graeme. Introdução à Teologia Bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 193.
14 WENHAM, Gordon. Números: Introdução e Comentário. São Paulo: Ed. Mundo Cristão, 1985, p.

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aos patriarcas são citadas (Gn 12.3; 27:29); contudo, a realidade de tais promessas foram
cumpridas apenas parcialmente na experiência de Israel. Como diz John Goldingay:
“O livro de Josué deixa claro que Israel continua a experimentar um cumprimento
cujo propósito deve ser concluído por Deus e que, embora os israelitas
experimentassem apenas um cumprimento parcial, eles viviam, mesmo assim, em
esperança. O padrão “já e ainda não” continua do Antigo Testamento até o Novo
Testamento, persistindo ao longo da história que passara”15
A disposição de Deus em abençoar o seu povo, portanto, era maior do que se imaginava e tinha
proporções que nem mesmo Israel tinha total compreensão.
É em Cristo, de fato, que vemos tais bençãos sendo cumpridas em sua realidade. As bençãos
prometidas à Israel eram sombras que apontavam para as bençãos maiores que seriam reveladas
em Cristo Jesus no futuro; seja a temática do rei, da terra, da paz, ou da descendência, tudo
encontra seu cumprimento nas bençãos que Cristo de fato traz em seu sentido real pretendido
por Deus.
Assim, com tal pano de fundo, Efésios 1.3 ganha novos ares de cumprimento no cânon das
Escrituras: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que tem nos abençoado com
toda sorte de bençãos espirituais nas regiões celestes em Cristo Jesus” (minha ênfase). Percebe-
se, aqui, a superioridade da benção em Cristo, das quais falavam a antiga aliança e o Antigo
Testamento (Hb 8.6-9; Hb 10.1).
Ademais, tais bençãos espirituais – sobre as quais prefiguravam as promessas do AT, são
trazidas na pessoa de Jesus de forma real, mas que ainda cunham e aguardam um cumprimento
de promessas superiores na segunda vinda Jesus. As promessas de reinado, paz e descendência
ganham cumprimento na pessoa de Jesus, em alguns aspectos apenas substancialmente agora e
plenamente no futuro, mas todas totalmente em Cristo.
Portanto, em Cristo, o reinado é o “presente da benção” 16, e ele agora nos governa por seu
Espírito; a shalom fora conquistada (Rm 5.1), e hoje temos comunhão com Deus. Ele – Cristo,
cumpre a promessa da descendência para além de uma nação, isto é, para todos os filhos de
Deus que estão dispersos (Jo 11.52), sendo ele mesmo o descendente prometido (Gl 3.16).
Sabemos, porém, que aspectos finais dessas bençãos só serão cumpridas na segunda vinda de
Cristo, quando o pecado será aniquilado e assim, seremos governados pelo grande Rei de forma

15 GOLDINGAY, John. Teologia Bíblica: O Deus das Escrituras Cristãs. Rio de Janeiro: Thomas
Nelson Brasil, 2020, p. 237.
16 LADD, George Eldon apud GOLDINGAY, John. Teologia Bíblica: O Deus das Escrituras Cristãs.

Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020, p. 251.


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visível, em corpos espirituais (1Co 15.44), desfrutando em plenitude da shalom, com todos os
filhos da fé, na terra prometida superior – a Jerusalém Celestial (Ap 21.2).

CONCLUSÃO
O principal propósito deste estudo é perceber como a revelação progressiva (Criação-queda-
Israel-Cristo) pode ser compreendida a partir do terceiro oráculo de Balaão (Nm 23.27-24.14).
A temática da benção e da promessa estão entremeadas na linguagem profética proferida pelo
profeta mesopotâmio, que estava sendo guiado pelo próprio Deus a falar em favor do seu povo,
Israel.
Assim, na primeira seção deste estudo, vimos como a temática e os pontos do oráculo de Balaão
aparecem, primeiramente, no pentateuco; fora analisada narrativa criacional, a narrativa da
chamada de Abraão, passando por Israel no Egito até o acampamento em Cades e Moabe,
episódios estes narrados no livro de Números. Já na segunda seção, vimos, de forma breve,
como tais promessas se cumprem e se expandem nos demais livros do AT, até que chegamos na
terceira seção, onde vimos os cumprimentos plenos de tais promessas em Cristo.
Portanto, viu-se que Cristo é a realidade das coisas que antes o prefiguravam (Hb 10.1), tendo
superiores promessas e bençãos, tanto para a vida presente de forma substancial e verdadeira,
como para o futuro de forma perfeita e plena; Cristo é o verdadeiro Rei, a verdadeira paz, o
verdadeiro descendente que traz muitos descendentes e aquele que de fato nos dá a terra – a
Jerusalém celestial. Tais são, pois, as superiores bençãos celestiais em Cristo (Ef 1.4).

BIBLIOGRAFIA:

WENHAM, Gordon. Números: Introdução e Comentário. São Paulo: Ed. Mundo Cristão,
1985.
GOLDSWORTHY, Graeme. Introdução à Teologia Bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2018.
GOLDINGAY, John. Teologia Bíblica: O Deus das Escrituras Cristãs. Rio de Janeiro: Thomas
Nelson Brasil, 2020.
WALTKE, Bruce. Teologia do Antigo Testamento: uma análise exegética, canônica e temática.
São Paulo: Vida Nova, 2015.

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