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A PARTE QUE FALTAVA NO NASCIMENTO DA PRISÃO

(VIGIAR E PUNIR NO BRASIL E NOS EUA)

Alex Pereira de Araújo1

Introdução à tradução ausente

ste texto comentário traz, ao final, uma parte de

E Surveiller et Punir (Vigiar e Punir) que não foi traduzida


para o português e não figura nas mais de 40 edições
da tradução brasileira. Ela está na contracapa do original em
francês, como se fosse um posfácio, assinado pelo próprio
autor, Michel Foucault, que há 40 anos, publicava pelas
Edições Gallimard, seus primeiros exemplares em fevereiro de
1975.
Dois anos depois, era publicada a versão brasileira, mas
sem esta parte que contém a reflexão que Foucault nos convida
a pensar no final de sua obra: “Pode-se fazer a genealogia da
moral moderna a partir de uma história política dos corpos?”

1 Bolsista de doutorado da CAPES pelo PPGMLS da UESB, integra a equipe de


colaboradores do Laboratório de Estudos do Discurso e do Corpo
(LABEDISCO/CNPq). Realizou estágio doutoral pelo PDSE da CAPES na
Universidade Paris III em 2014 sob a responsabilidade do prof. Dr. Philippe
Dubois do Departamento de Cinema e Audiovisual (CAV). É ainda pesquisador
no Projeto Traduzir Derrida: políticas e desconstruções da UESC (CNPq). E-mail:
alexscacba@yahoo.fr.
(Foucault, 1975, p. 318, tradução minha). Além desta
ausência, no texto em português, havemos de pensar por que
Foucault optou em colocá-la na parte final do livro?
Eis uma questão que poderá nos ajudar a compreender
melhor esta obra, ao buscar atualizá-la, em nosso presente,
num gesto genealógico que se aventura por sua microfísica do
poder, cuja escrita se faz continuamente em uma
descontinuidade histórica. Esta pode ser vista nos discursos,
sobre a obra.
Eles têm em sua ordem, como qualquer discurso, o
procedimento do comentário, cujo “desnível entre texto primeiro
e texto segundo desempenha dois papeis que são solitários”
(Foucault, 1996, p. 24), permitindo “dizer pela primeira vez
aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir
incansavelmente aquilo que, no entanto, não havia jamais sido
dito.” (Foucault, 1996, p. 25). Neste caso, “a repetição
indefinida dos comentários é trabalhada do interior pelo sonho
de uma repetição disfarçada: em seu horizonte não há talvez
nada além daquilo que já havia em seu ponto de partida, a
simples recitação.” (Foucault, 1996, p. 25).
De lá para cá, da publicação da primeira edição em língua
portuguesa, no Brasil, notamos o quanto estas últimas
palavras de Foucault fazem falta para os brasileiros, leitores de
Vigiar e Punir do inquieto professor do Collège de France que
se considerava um pirotécnico. Quais seriam os motivos para
esta ausência resultante de uma escolha tradutória, mais
endividada do que qualquer outra? Esquecimento? Censura ou
autocensura? Efeitos do poder da Ditadura Militar do Brasil
que controlava o que se podia saber?
Há, neste silêncio, um mar de vozes caladas por esta falta,
talvez não percebida por aqueles que preferiram ler
diretamente na língua de Foucault, mas, danosa para aqueles
que não a dominam. E como este número aumentou nos
últimos anos por causa da ausência do francês como
disciplinar escolar no Brasil, sobretudo, nos estabelecimentos
de ensino oficial, e até mesmo no Instituto Rio Branco que
forma ainda o corpo diplomático do Brasil.
Mas talvez, esta falta danosa tenha sido amenizada com
a publicação de A Verdade e As formas jurídicas, obra
composta por cinco conferências feitas por Foucault e por uma
mesa-redonda na PUC do Rio de Janeiro em 1973. Há quem
diga que tenha surgido daí, dessas discussões realizadas no
Brasil, muito do que Foucault escreveu em Vigiar e Punir.
Contudo, a sua motivação para realizar este empreendimento
teria, talvez, surgido “por ocasião de uma conferência de
imprensa dos advogados dos militantes maoísta, em greve de
fome para obter o estatuto de prisioneiros políticos, Foucault
anuncia a criação do Grupo de Informação sobre as Prisões
(GIP), ao qual ele dá seu domicílio como sede” (Defert, 1999, p.
33). É curioso notar que, nas edições americanas, sendo que a
primeira é de 1978, também não consta esta parte. Na versão
em espanhol, publicar em 1976, pela editora Siglo XXI, ela
aparece como contracapa, mas não integralmente, como no
texto em francês. Falta o último parágrafo do texto. Há nesta
ausência algo que “põe em jogo o poder e o desejo” (Foucault,
1996, p.21) que precisamos desarmar, ou talvez ainda o
ameaçar para melhor conhecê-lo.

A Tradução

T
alvez tenhamos hoje vergonha de nossas prisões. O
século XIX se orgulhava das fortalezas que construía
nos limites e, por vezes, no coração das cidades.
Encantava-se desta doce novidade que substituía os
cadafalsos. Maravilhava-se de não mais castigar os corpos, e,
de saber agora corrigir as almas. Seus muros, suas
fechaduras, suas células representam todo um
empreendimento de ortopedia social.
Aqueles que roubam são aprisionados, aqueles que
estupram são aprisionados; aqueles que matam, igualmente.
De onde vem esta estranha prática e o curioso projeto de
aprisionar para corrigir, que incluem, com eles, os Códigos
penais da época moderna? Uma velha herança das masmorras
da Idade Média? Antes, uma tecnologia nova: aperfeiçoada, do
século XVI ao XIX, de todo um conjunto de procedimentos para
enquadrar, controlar, medir, adestrar os indivíduos; tornando-
os, às vezes, “dóceis e úteis”. Vigilância, exercícios, manobras,
noções, fileiras e lugares, classificação, exames, registros, toda
uma maneira de assujeitar os corpos, de dominar as
multiplicidades humanas e de manipular suas forças,
desenvolvida ao longo dos séculos clássicos, nos hospitais, no
exército, nas escolas, nos colégios ou nas oficinas: a disciplina.
O século XVIII, sem dúvida, inventou as liberdades; mas lhe
deu um subsolo profundo e sólido, a sociedade disciplinar de
onde nos enquadramos. A prisão está na formação desta
sociedade de vigilância.
A penalidade moderna não ousa mais dizer que ela puniu
crimes; ela pretende reabilitar delinquentes. É por isso que
rapidamente, em dois séculos, ela tornou-se vizinha e prima
das “ciências humanas”. É sua altivez, sua maneira, em toda
caso de não estar envergonhada dela mesma: “talvez eu ainda
não esteja completamente certo; tenha paciência, veja como eu
estou me tornando sábio”. Mas como a psicologia, a
psiquiatria, a criminologia poderiam justificar a justiça de hoje,
já que a história delas mostra uma mesma tecnologia política,
no ponto em que se formam umas com as outras? Sob o
conhecimento dos homens e sob a humanização dos castigos
se encontram um certo investimento disciplinar dos corpos,
uma forma mista de assujeitamento e de objetivação, um
mesmo “poder-saber”. Pode-se fazer a genealogia da moral
moderna a partir de uma história política dos corpos? M.F.

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