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FOUCAULT EM SOBREVÔO
Hélio Rebello Cardoso Jr
não amava as coisas eternas e, sim, as terrenas. Ora, vocês me diriam, ficamos na mesma,
se um filósofo é conhecido por seu caráter risível, às vezes, digno de pena, porque parece
um louco ou um padre ou, mesmo, uma criança, então o que se pode se pode esperar de
Foucault, que não encarna os sempiternos personagens do mundo filosófico?
Para abandonarmos o mundo do senso-comum acerca da filosofia, sem ter de
encontrar o personagem ou a caricatura que Focault encarnaria, devemos, outrossim,
perguntar em quê as idéias de Foucault afetam nossa vida, se elas tem algum efeito prático
na condução de nossa existência cotidiana.
Tal pergunta é fácil de responder, pois não existe nenhum âmbito dos saberes e das
instituições contemporâneas onde as idéias de Foucault não se façam sentir. Estamos de tal
forma embebidos nos problemas filosóficos que Foucault abordou, tal a sua abrangência,
que já não sabemos com clareza que foi ele quem formulou esses problemas. Existe uma
presença anônima de Foucault. Ele retorna impessoal. De certa forma, para ele, é uma
realização, pois diversas vezes declarou como seria bom apagar seu eu, como seria bom que
a individualidade fosse como um rosto desenhado na areia, na beira de uma praia, que uma
onda mais forte viria apagar. (FOUCAULT, 1999a, p. 536)
É justo que façamos a pergunta para Foucault, e de forma direta; em que sua
filosofia afeta minha vida? Em que suas idéias acarretam efeitos práticos sobre minha
existência?
Ora, comecemos pelos indícios. Como dizíamos não há um âmbito da vida
contemporânea em que as idéias de Foucault não se façam, de alguma forma, presentes.
Vamos a exemplos.
Na medicina, em primeiro lugar. Pois bem, Foucault mostrou como se constituía a
clínica, isto é, a maneira pela qual se atribui causa de doenças a partir de sintomas
observados pelos médicos ou descritos pelo paciente, proporcionando o diagnóstico e a
terapia. Tal estudo era inicialmente muito técnico, mas seu trabalho deu um salto prático,
quando Foucault procura mostrar de que modo se constitui a clínica da psique humana, isto
é, a psiquiatria. Até hoje, principalmente quando se trata de políticas públicas voltadas para
a saúde mental, o nome de Foucault é referencia. Dificilmente, um médico, psiquiatra,
biólogo, se bem formado, não ouviu falar de Foucault.
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Um outro assunto que Foucault tem influenciado diretamente nossas vidas, ainda no
terreno da saúde mental, foi no entendimento da loucura. Foucault mostrou que as terapias
da loucura, em qualquer âmbito, eram certamente expedientes que visavam o abrandamento
trazido pelo males psíquicos, mas eram igualmente as formas modernas pela qual se
aprofundava o controle secular sobre o corpo, e não só sobre o corpo do louco. Não há um
hospital psiquiátrico, um psicanalista ou psicólogo cujos escritos foucaultianos acerca da
loucura não tenham trazido matéria-prima para reflexão sobre sua prática e, principalmente,
sobre qual o significado da loucura em nossa sociedade. De um modo geral, a luta por um
tratamento mais digno, o movimento contrário ao aprisionamento do louco em manicômios,
muito em voga hoje em dia, tem referência nos estudos de Foucault.
Um outro campo em que os estudos foucaultianos apresentaram-se com muita
ênfase é formado por todos aqueles que, de alguma forma, lidam com o problema do poder,
em suas formas mais variadas. A esse respeito, Foucault mostrou que as formas de poder
são exercidas, em todas os setores, por dispositivos que se constituem historicamente. Cada
época possui uma “tecnologia geral do indivíduo” particular de controle do corpo.
(FOUCAULT, 2002, p. 351) Em nossa sociedade, o controle sobre o corpo é exercido de
modo automático e silencioso. Desde o final do século XVIII, nossa sociedade tem sido
dominada por uma forma de controle que se denomina “disciplina”. (FOUCAULT, 2003, P.
119) Nos espaços institucionais, nós nos sentimos vigiados constantemente e essa presença
molda nossos corpos e nossa subjetividade. Nesse aspecto, Foucault também nos
acompanha, ele não deixa sossegados os médicos, psicólogos, mas também diretores de
presídio, carcereiros, policiais e todos aqueles que cumprem funções em espaços
institucionais: os professores, os bibliotecários, os administradores, os juízes, advogados,
assistentes sociais, etc.
Por último, podemos dizer que os efeitos do pensamento de Foucault se fazem sentir
bem no interior de nossa consciência, de nossa identidade mais indevassável. Foucault
mostrou que nós não nos tornamos sujeitos hoje como um grego o fazia. A subjetividade é
uma espécie de hábito ou exercício que adquirimos de acordo com certos expedientes que
mudam historicamente. Tais expedientes incidem particularmente sobre o corpo e o prazer.
Neste âmbito, também, Foucault esta em diálogo conosco. Neste caso, como uma espécie
de machado que fende a nossa consciência e nos livra ou nos amofina, conforme o caso, a
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respeito das ilusões que temos a respeito da estabilidade de nossa identidade ou das certezas
do eu.
Foucault, em qualquer caso, não quer que deixemos de pensar. Mas, os efeitos de
suas idéias não estão presentes em nossa vida como se fossem vozes em nossa consciência
ou um tribunal que nos perseguisse a fim de julgar-nos. Em todos esses lugares, Foucault
aparece sempre com a intenção, não de condenar, mas de nos lembrar que o mundo é como
as nuvens, ele não pára de passar. Se a loucura em nosso tempo é uma doença e por isso
deve ser tratada num hospital, em outra época, o louco já andou solto e, pelo contrário, era
visto como aquele dentre todos os seres que pertencia à estrada, ao ar livre, e não ao
confinamento do hospício. Ele nos lembra que se a prisão é um dispositivo correcional que
visa recondicionar o indivíduo pela máxima exposição àqueles que o vigiam, já houve em
outras épocas um regime de punição, a masmorra, cujo princípio de funcionamento era
justamente contrário ao da prisão ou, pelo menos, como esta é concebida nos tratados de
Direito Penal, pois a masmorra faz o corpo mergulhar na escuridão e o torna indistinto dos
outros corpos submetidos ao mesmo regime. Enfim, Foucault está sempre nos lembrando
que podemos mudar como sujeitos, que não paramos de mudar; ele sempre nos obriga a
pensar: o que estamos fazendo de nós mesmos?
que você esta fazendo de si mesmo? - ressoa a seguinte afirmação: que outra coisa estamos
nos tornando. Foucault acredita que tudo esta sujeito ao tempo. Ele não condena, ele diz
que há sinais de vida, se tudo já se alterou tanto, então, isso não vai parar.
Devido a essa problemática central que é o tempo, presente em todos os planos de
sua pesquisa, é que Foucault escreveu muitos livros de história. Foucault precisa da história
para expor suas idéias sobre o tempo. O senso comum sobre a historia diz que o tempo, a
passagem do tempo é organizada por um vetor de sentido. Isto é, por mais que os
acontecimentos aparentem ser caóticos e disparatados existe como que uma razão que os
ordena em direção a algo melhor ou pior, seja para um bem maior como a liberdade
universal do ser humano, seja para o progresso material de nossa civilização, seja para uma
catástrofe que embotaria a própria humanidade.
Ao contrário, Foucault não crê, e escreve textos sobre isso, que a história de todas as
coisas que acontecem com os Homens, seja uma história contínua que se orienta em direção
a um fim. Para Foucault, a história é descontinua, nela pulsam composições de forças que
se fazem e se desfazem, sem que seja possível traçar uma linha de progresso.
Por exemplo, a psiquiatria é vista como uma ciência que veio solucionar o antigo
problema da loucura, que sempre penalizou a humanidade. Mas Foucault mostrou que a
psiquiatria, enquanto ciência participa de uma sensibilidade a respeito da loucura que nem
sempre existiu. E, se é verdade que ela alivia as dores do louco, por outro lado, o trata como
um doente, e para tanto o priva de liberdade. Em contraste com o modo psiquiátrico de
tratar a loucura, Foucault mostrou que os loucos, em outras épocas eram deixados livres.
(FOUCAULT, 1987b, passim) Então em primeiro lugar, ao fazer uma história da
psiquiatria, Foucault mostra que ela não evoluiu de um estágio pré-científico para um
estágio científico. Assim, ela surge de um universo de saber determinado. (FOUCAULT,
1997a, p. 45-47) Foucault demonstra que problemas específicos são levantados pela
qualificação da loucura como doença, pois as formas de diagnóstico não se encaixam nos
modelos da sintomatologia das funções orgânicas (medicina do corpo). (FOCAULT, 1963,
passim) A partir daí, quer dizer a partir do diagnóstico, havia o problema da internação,
porque internar o louco? Pelas suas atitudes? Mas, seu comportamento era mal para a
sociedade ou para si mesmo? Do ponto de vista médico, a questão do internamento era
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Conforme DELEUZE, 1986, p. 122.
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do Saber condições?”
GENEALOGIA Anos 1970 a) Vigiar e Poderes “Que posso
Punir Dispositivos fazer, que poder
b) A Verdade e pretender e que
as Formas resistências
Jurídicas opor?”
c) História da
Sexualidade,
vol. 1
ESTÉTICA DA 1980 a 1984 a) História da Modos de “O que eu posso
EXISTÊNCIA Sexualidade, subjetivação ser? Ou como
vol. 2 Práticas de si me produzir
b) História da como sujeito?”
Sexualidade,
vol. 3
3.1. Arqueologia
Comecemos com a Arqueologia. Ora, o que faz um arqueólogo? Ele escava, ele
observa as idades das camadas do solo à medida que o sítio arqueológico vai se
aprofundando. O difícil é quando o sítio arqueológico se compõe de vários períodos, então
é mais complicado separar as camadas que identificam um período das camadas que
constituem outro período.
Foi dessa forma que o arqueólogo Foucault procurou entender de que modo se
formam os saberes. Um saber, por exemplo, a ciência, é formada por camadas que
identificam uma certa época histórica. De fato, quando Foucault se refere à ciência que se
ocupa com a vida orgânica ele quer dizer, a biologia. (FOUCAULT, 1999a, 175-181 e 343-
47) Esta surge no século XVIII e é característica de um período. Antes da biologia, a
história natural se ocupa da vida, mas não é uma ciência. Como Foucault pode fazer a
separação entre um saber cientifico e um não-científico?
Em primeiro lugar, não se deve supor que a história natural é uma espécie de
biologia na fase infantil, que evoluirá pra uma fase mais desenvolvida. Vimos que a idéia
de história em Foucault não comporta a noção de progresso. Pensemos na Arqueologia: a
história natural é uma camada ou estrato do saber que pertence a uma época, já biologia é
um estrato que pertence à outra época. São como vestígios de duas civilizações diversas
que viveram em momentos diferentes sobre o mesmo solo, deixando seus restos
depositados durante a passagem. O importante, do ponto de vista da Arqueologia
foucaultiana, é pensar que um saber não leva ao outro. Cada época do saber é descontínua
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com relação à outra. O arqueólogo procura encontrar esses pontos de descontinuidade entre
os saberes.
O limite entre os estratos de um período e os de outros Foucault denomina
“episteme”. Em sua fase arqueológica, Foucault estudou três epistemes: o Renascimento
(séc XIV ao XVI), a episteme clássica (séc XVII ao final do XVIII) e episteme Moderna
(final do séc XVIII e séc. XIX até a virada do séc. XX). Retomando nosso exemplo, a
história natural pertence à episteme clássica, enquanto a biologia à episteme moderna. Elas
são totalmente distantes em termos arqueológicos, apesar de relativamente próximas em
termos cronológicos. Elas são diferentes porque cada episteme organiza de modo
totalmente inovador os objetos, os conceitos e os métodos de um saber (“o que eu posso
saber?”). (FOUCAULT, 1987a, passim)
Uma vez que os estratos ou camadas de uma episteme estão separados dos outros, o
trabalho de arqueólogo foucaultiano volta-se para o interior, isto é, para de cada episteme, a
fim de entender como cada época se organiza em termos de saberes. Pois bem, há muitos
saberes, por exemplo, na época moderna, o saber científico sobre a loucura é um saber
sobre a psique humana ligado ao campo de descobertas próprio da psiquiatria. Esta
descobre as histerias, doenças cujos sintomas são somáticos ou orgânicos, mas cuja causa
não o é. A partir daí a loucura pode ser entendida como uma doença cuja manifestação,
pelo menos, é orgânica. Dentro dessa episteme, no entanto, a loucura, pode também ser
qualificada como possessão do corpo, então, pode ser objeto de um saber religioso que
desenvolveu suas próprias técnicas, é o exorcismo. O exorcismo, do ponto de vista
arqueológico, também é um saber sobre a loucura, pois ele dispõe de conceitos, métodos e
um objeto próprios, assim como a psiquiatria possui os seus.
Assim, dentro de uma determinada episteme um saber pode entrar num limiar
cientifico, mas um saber dessa episteme não é necessariamente científico. No caso do
relacionamento entre o exorcismo e a psiquiatria, Foucault descreve que, inicialmente, há
uma disputa entre ambos pelo objeto, isto é, o corpo do louco, o qual se resolve no sentido
de uma certa censura, por parte da própria Igreja Católica, com relação a seus exorcistas.
(FOUCAULT, 2002, p. 269 e ss.) Não que a Igreja estivesse totalmente convencida de que
a possessão do corpo fosse um caso médico. A religião nunca se convence disso, porque o
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saber que ela tem do corpo não pertence ao mesmo limiar que o saber psiquiátrico, embora
ambos pertençam à mesma episteme.
Então temos mais um passo da Arqueologia foucaultiana, a saber, separar os
limiares de saberes. Como fazer isso? Ora, a psiquiatria e o exorcismo são camadas de uma
mesma episteme, mas sua conformação é diferenciada, são estratos cuja consistência os
diferencia. Para a episteme moderna a separação dos limiares de saberes não é muito
complicada, pelo menos inicialmente, pois é possível separar os saberes que entraram dos
que não entraram em um limiar cientifico. Essa é a primeira separação possível, mas essa
triagem é ainda por demais grosseira do ponto de vista da Arqueologia de Foucault.
É que um saber é um “regime discursivo”. O discurso é o regime que organiza, para
um dado saber, os objetos, conceitos e métodos que caem sob sua alçada. Assim como os
saberes podem ser discriminados segundo os limiares em que elas entram ou saem (loucura:
psiquiatria ou exorcismo?), o arqueólogo tem de construir “famílias discursivas”,
descrevendo, por exemplo, quais são os objetos, conceitos e métodos da psiquiatria e os do
exorcismo e porque eles diferem. (FOUCAULT, 1987a, passim)
Na análise das famílias discursivas, a distinção entre os saberes científicos e não-
científicos torna-se mais tênue. Isto porque o regime discursivo que forma um saber
científico não possui apenas elementos científicos. Para Foucault, mesmo numa episteme
moderna, em que as ciências surgem, os regimes discursivos dos saberes científicos não
deixam de estar misturados a restos ou reativações de regimes discursivos não-científicos
ou mesmo de regimes discursivos de epistemes mais antigas. Anteriormente, vimos num
exemplo Foucaultiano que ilustra bem esse problema. A psiquiatria orienta-se em torno de
um discurso científico (anatomia e fisiologia), mas ele precisa, para se construir, de um
discurso jurídico (o médico em o direito de isolar o louco) e de um discurso confessional
(como fazer o louco falar? O que lhe perguntar para achar a raiz de sua loucura?).
A caracterização das famílias discursivas torna o trabalho do arqueólogo mais sutil.
Todo arqueólogo de verdade sabe que as camadas que reúnem vestígios de uma civilização
apresentam-se penetradas por outras camadas da mesma época ou, mesmo, misturam-se às
camadas de épocas diferentes, às vezes muito antigas. Então, as famílias discursivas são
sempre amálgamas de discursos (o que se diz sobre um objeto) que se fundem devido à
configuração da episteme em questão. Na arqueologia verdadeira, isso também é assim. As
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leprosos são deixados. Não há nada parecido com relação à loucura, não há um lugar para
internação da loucura. Com isso, nossas expectativas recebem o primeiro choque: no final
da Idade Média, ou os loucos não existem ou eles não são pacientes de uma reclusão.
Foucault desenvolve tal análise a partir de fontes inúmeras, documentos das paróquias, das
municipalidades, etc. Nessa época, o louco é encontrado em liberdade. Ele faz parte de um
grupo mais amplo. Está situado entre, o imbecil, o tolo, o bêbado, o devasso, o criminoso, e
o apaixonado. O louco não pode estar preso, pois, no imaginário medieval, ele aparece
como aquele que não pertence a nenhuma cidade. Assim como sua mente vaga sem destino,
seu corpo deve ser deixado livre para uma viagem constante. O louco é aquele que esta
num constante deslocamento, nada pode contê-lo.
Segundo Foucault, até o final da Idade Média, a desordem da loucura era o contrário
da razão e não um problema de disfunção da saúde, por isso o louco não é tratado, nem
internado. Na história da loucura contada por Foucault, observa-se que há uma
descontinuidade. Vários objetos, diferentemente definidos, são chamados de loucura. Até o
final da Idade Média, a loucura é contrária à razão, ambas convivem numa espécie de
contigüidade. Do ponto de vista arqueológico, então, tem-se de perguntar: qual o novo
objeto chamado loucura para que se tenha tornado evidente a reclusão do louco?
Como já indicamos, a noção foucaultiana de história é descontinua. A história da
loucura é marcada pela descontinuidade dos objetos que cada época denomina loucura. Ora,
mas como essa história descontinua segue? Na episteme clássica, como se caracteriza o
objeto loucura? Com que outros regimes discursivos se relacionam?
Foucault escreve que, neste momento, há dois regimes discursivos que se afrontam.
Um deles é o que provem da Idade Média. A loucura é vista como coexistente a razão, sua
presença no mundo não pode ser excluída. Tudo o que a razão pode fazer é, de certa forma,
retirar as forças da desordem para construir a própria ordem. Esta é a experiência trágica da
loucura: há um corpo a corpo entre a razão e a loucura, como num jogo de luz e trevas. Mas
um outro regime discursivo emerge: trata-se de uma razão que, ao invés de conviver com a
loucura e suas forças, quer subjugá-la. A razão passa a ser um estado de vigília, ela não
pode se descuidar, não pode adormecer, caso contrário, a desrazão invade o mundo e a
domina. A razão precisa dominar a loucura e mantê-la à distância, não pode lhe dar voz.
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O afrontamento entre esses dois regimes discursivos é flagrado por Foucault partir
da grande produção cultural dos séc. XV ao XVII. Por exemplo, Foucault observa a cisão
entre esses regimes discursivos a partir da análise de que, nas artes plásticas, a experiência
trágica da loucura perdura por muito mais tempo, enquanto na literatura, o novo discurso
aparece mais cedo. Esta mesma cisão pode ser observada na filosofia, visto que o grande
exemplo de uma razão concebida como guardiã do mundo das luzes é o Cogito de
Descartes. Se o Cogito é o ponto de partida do pensamento; o louco é aquele destituído de
Cogito, o louco não pensa. Tal confronto discursivo definira em favor de uma razão que
controla a loucura, que vigia o louco e procura de todas as formas não se descuidar. Essa
reviravolta define a ascensão de uma nova episteme, onde novos regimes discursivos
podem emergir. (FOUCAULT, 1987b, p. 42-47)
Na nova episteme, a loucura será objeto de exclusão e confinamento. Foucault nota
que os leprosários se esvaziam desde o final da Idade Média. Tais espaços estão
abandonados, esquecidos, os leprosos não são mais excluídos, mas tratados como doentes
em casas de saúde. Mas, o mais importante é que os antigos leprosários, durante o séc.
XVIII serão reformados arquitetonica e administrativamente. Então se formam os
“hospitais gerais”, que vão receber uma série de pessoas, estando os loucos entre elas.
Apesar do nome, no entanto, o hospital geral não é um lugar de tratamento de saúde como
entendemos hoje. Essa caracterização do hospital geral deve-se ao fato de que, a direção do
estabelecimento não é norteada por uma demanda de saúde, pois o médico não dirige o
hospital, ele apenas desempenha uma função subalterna. Além disso, o que demonstra que
este hospital não é como aqueles que conhecemos, é o fato de que aí dentro se reúne uma
grande população. Nos hospitais gerais, os loucos são internados juntamente com o pobre, o
indigente e os devassos. (FOUCAULT, 1987b, p. 53-71)
Ora, o que esses indivíduos podiam ter em comum para estarem internados no
mesmo lugar?
Certamente, não era um problema de saúde que os levava a serem internados num
mesmo local. Com efeito, a história da loucura mostra que, nessa época do “grande
internamento”, como a denomina Foucault, o louco tinha em comum com as demais
categorias de indivíduos internados uma certa degenerescência moral. O mal que assola os
pobres, os loucos e os devassos são uma desordem de caráter moral. Por isso eles estão no
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mesmo lugar. O tratamento não é para sua saúde, muito embora os loucos sejam doentes do
corpo também. Porém, em primeiro lugar, eles são tratados moralmente. Ora, qual a terapia
aplicada para o mal moral nos hospitais gerais? É o trabalho. O trabalho pode corrigir as
almas e as índoles, o médico só cuida dos corpos.
Foucault apresenta os procedimentos terapêuticos do hospital geral, alertando para o
fato de que trabalho aí não significa, necessariamente, trabalho produtivo. Quer dizer, a
cura moral de um louco não viria do trabalho numa fábrica ou plantação, embora, muitas
vezes, essa força de trabalho inativa fosse cooptada pelas forças capitalistas em ascensão. O
sentido terapêutico do trabalho, nos hospitais gerais, não é, em primeiro lugar econômico.
O trabalho servia para impor à mente desordenada do louco alguma ordem ou rotina, pela
qual uma conversão moral poderia ser obtida. Foucault descreve que, muitas vezes, nos
hospitais gerais, as atividades do louco eram a de andar em torno de pátio circular, sem
nada produzir. O que importava era o exercício repetitivo, o esforço e o desgaste
proveniente de tal atividade. Foucault mostra que essa época – a do “grande internamento”
– não foi a origem pré-científica de nossas clínicas médicas e hospícios, pelo contrário será
o internamento social, o isolamento e a observação de todas as categorias de pessoas que
denunciam a “origem de nossas ciências médicas (moderna e psiquiátrica) e humanas”.
(DREYFUS e RABINOW, 1995, p. 5)
Isso significa, simplesmente, que a psiquiatria surge em outra episteme, a episteme
moderna, mas ela reativa em seu regime discursivo enunciado e visibilidades de outra
episteme. Quer dizer, embora os métodos, os conceitos e as técnicas dessas ciências se
desenvolvam dentro da episteme moderna, basicamente, elas continuarão a operar nas
instituições de internamento, rearticurlando, para fins científicos, o discurso moralizante
nelas desenvolvido. Mas, para tanto, era preciso que o internamento do louco fosse
associado à idéia de que a loucura é uma doença do corpo. Com isso, o louco será isolado,
não mais pertenceria a uma população de indivíduos acometidos por um mal de ordem
moral. Ele vai merecer o desenvolvimento de uma instituição de internamento cujos fins
são médicos.
Se o século XIX, esclarece Foucault, se espanta e se indigna com o fato de que
havia internado o louco ao lado do criminoso, do devasso, do indigente. Esse espanto do
ponto de vista do arqueólogo do saber, indica que uma nova experiência da loucura estava
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3.2. Genealogia
A Arqueologia estuda os regimes discursivos dos saberes. Os regimes discursivos
são formados por combinações, peculiaridade para cada episteme, de enunciados e
visibilidades. Com relação aos discursos, pode-se dizer que as conjunções entre os
enunciados e visibilidades formam “verdades”. Verdades relativas aos objetos, conceitos e
métodos de cada saber.
Com a nova fase, a Genealogia, Foucault começa a se perguntar, em complemento à
Arqueologia, não só o que formam os regimes de verdade dos saberes, mas como eles se
formam, qual sua gênese. O que faz com que, em cada prática de saber considerada, se
encontre uma certa convivência peculiar de enunciados e visibilidades? E afinal, o que faz
estas práticas se alterarem?
Tais questões, inaugurais para a fase genealógica, que se configuram, mais ou
menos, na virada dos anos 60 para os 70, fazem vir a primeiro plano o problema que era
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Então, Foucault nos pede para desconfiar da continuidade. Uma outra linha
importante da Genealogia é que se deve abolir o que Foucault denomina de “solenidade das
origens”. Trata-se de descobrir que a essência das coisas nunca é estável. As essências dos
acontecimentos históricos são contingentes, trata-se de uma verdade construída que se
apresenta como universal. Na verdade, cada acontecimento histórico possui “camadas” de
essências que o genealogista deve separar, analisando, em cada uma, a estratégia de por-se
como universal.
O acontecimento histórico, ao invés de ser um elo numa linha evolutiva, é de fato,
um espaço formado por relações de força. É por esse jogo de forças que surge o espaço
discursivo formado por enunciados e visibilidades, cuja relação como vimos, corresponde à
“verdade”. Agora podemos concluir que toda verdade é um campo de forças. E a
Genealogia descobre a verdade como um jogo de forças e as estratégias de cada força que
formam o “poder”.
Neste ponto, já podemos retornar ao que havíamos assinalado um pouco
anteriormente, ou seja, que o conceito de poder em Foucault esta muito distante da idéia
que dele faz o senso comum, mas também dos principais conceitos de poder em voga na
filosofia. Foucault chama atenção a atenção para o fato de que devemos nos livrar de uma
concepção jurídica do poder, isto é, de que o poder se exerce como força sobre um objeto
para conformá-lo à vontade de quem o detém ou à finalidade de uma instituição. Para
Foucault, o poder constitui a realidade, é uma relação microfísica. (FOUCAULT, 2001,
passim)
Uma relação de poder como confere a um evento histórico a sua verdade, permite,
em primeiro lugar, desfazer todos os jogos identitários pelos quais se procurar atribuir uma
estabilidade ou universalidade enganosa a este ou aquele acontecimento. Além disso, é
possível, com o suporte deste conceito de poder, desnaturalizar aqueles objetos que
supostamente estariam fora da alçada do historiador por não terem história, como os
sentimentos, o amor, a consciência, etc. Costumamos que as coisas em sua origem ou as
coisas que supostamente não têm história estão em estado de perfeição, mas a Genealogia
mostra que a origem das coisas é a discórdia e o disparate. No fundo da história não há uma
identidade que foi mal versada ou que se degenerou com o tempo.
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visibilidades é uma relação historicamente recente. Não que os homens não fossem punidos
antes do séc. XVIII, mas a função pela qual se punia não era a mesma que se pode observar
na prisão.
Em primeiro lugar, Foucault analisa a “tortura”, que é um instrumento de poder real.
Em segundo lugar, a reforma humanista da idade clássica. Por último, analisa a punição e a
vigilância normalizadoras que encarnam a tecnologia do “poder disciplinar”. A prisão é
uma das modalidades desta última. Então, o método genealógico, em Vigiar e Punir,
procurará distinguir as tecnologias de poder diversas ou sua produtividade variada, de
acordo com as épocas históricas. O objeto de cada uma dessas tecnologias de poder é o
corpo. No entanto, como cada tecnologia produz seus enunciados e visibilidades
respectivas, as funções as quais o corpo estará submetido mudam, necessariamente.
Vamos a um breve regime das duas primeiras figuras da punição para, em seguida,
podermos discorrer mais detalhadamente sobre a prisão que é onde se encontrar uma
tecnologia de poder denominada “disciplina”. Veremos que a tecnologia disciplinar
constitui uma rede de funções amplas e conectadas, constituindo uma “sociedade
disciplinar” sob cuja alçada vivemos ainda hoje - em parte ou totalmente.
A tortura é a figura da punição que se desenvolve durante o período da renascença.
A transgressão da lei era entendida como um ataque ao corpo do Rei. O condenado era
submetido á masmorra. Seu corpo se perde na penumbra dos calabouços e se mistura aos
outros corpos. Ao poder real não interessa a visibilidade desse corpo. A confissão do
acusado era extraída em grandes espetáculos públicos. O espetáculo visa estabelecer a
ordem através de uma demonstração maciça onde o poder se torna totalmente visível. Já o
corpo do acusado, a não ser por sua exibição publica, é um instrumento de reparo ao corpo
lesado do Rei. Ele cumpre essa função e, se não é morto, novamente retorna para a
penumbra dos calabouços onde é esquecido.
Outra figura de punição que surge, esta durante o século XVIII, é a “reforma
humanista”, diz Foucault. Essa “reforma” produz uma mudança notável no que se diz
respeito à tecnologia de poder que se aplica ao corpo dos punidos. A reforma humanista se
caracterizou pela formulação de um código penal cuja finalidade era estabelecer a justa
representação entre o crime e a punição. Tal busca incentivou a pesquisa das
individualidades para que se pudesse compreender de que modo o crime se manifesta em
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função, a operação exercida sobre o corpo no espaço anterior sirva como preparo para a
nova função.
Então, a sociedade disciplinar se organiza de acordo com a contigüidade de vários
espaços disciplinares, onde funções, embora diferentes entre si quanto a seu objetivo, se
interconectam no sentido de que obedecem ao mesmo diagrama ou organização. Desta
forma, o ideal da sociedade disciplinar é maximizar o exercício da função em cada espaço
para que as várias funções disciplinares se encadeiem sem lacunas. A sociedade disciplinar
também precisa aumentar os espaços disciplinares, a fim de que o deslocamento dos
indivíduos entre os vários espaços não interrompa a continuidade da modelação. Como
veremos mais a frente, esta última exigência fará com que a disciplina desenvolva um
mecanismo que lhe dará mais consistência, qual seja, o “biopoder”, como denominou
Foucault.
Em certo sentido que devemos especificar, pode-se dizer que a disciplina controla
os corpos para produzir indivíduos. Eis a produtividade do poder disciplinar: produção de
individualidade através de modelagem dos corpos nos espaços disciplinares. Quando o
enunciado é educar, as visibilidades são os escolares, quando é castigar, a visibilidade são
os prisioneiros, e assim por diante.
O procedimento específico do poder na sociedade disciplinar é o exame. O exame
parte da idéia de que se deve vigiar e normalizar o indivíduo através de uma constante
visibilidade a que os corpos estão submetidos no interior dos espaços disciplinares. Deste
modo, a tecnologia disciplinar parte da idéia de que os indivíduos têm entre si uma
igualdade formal. O exame, enquanto procedimento da tecnologia disciplinar, transforma o
indivíduo em objeto de conhecimento. Eis o elo poder-saber, ou seja, de que forma as
relações de poder constituem os regimes discursivos de um determinado tipo de saber. Os
detalhes da vida cotidiana tornam-se temas de pesquisa, através de documentação
minuciosa. Para Foucault, quanto a este aspecto, há uma ligação importante entre as
ciências humanas e os procedimentos disciplinares. De fato, um aspecto disciplinar, é ao
mesmo tempo, um lugar de aplicação de tecnologia disciplinar e um laboratório onde um
saber é produzido de modo bruto, isto é, como dados a serem organizados e formalizados
em procedimentos, teorias, sistemas, etc. Sendo assim:
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pelo jogo dessa quantificação, dessa circulação dos adiantamentos e das dívidas,
graças ao cálculo permanente das notas a mais ou a menos, os aparelhos
disciplinares hierarquizam, numa relação mútua, os “bons” e os “maus”
indivíduos. Através dessa microeconomia de uma penalidade perpétua, opera-se
uma diferenciação que não é a dos atos, mas dos próprios indivíduos, de sua
natureza, de suas virtualidades, de seu nível ou valor (FOUCAULT, 1999c,
p. 151)
na periferia uma construção em anel; no centro uma torre; esta é vazada em largas
janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é
dividida em celas; cada uma atravessando toda espessura da construção; elas tem
duas janelas; uma correspondendo a janela da torre; e outra, que da para o
exterior permite que a luz atravesse a cela de lado a lado (FOUCAULT,
1999c, p. 177).
Em um tipo de moral, o corpo é entendido como lugar onde o prazer é uma potência
que pode ser organizada através de práticas de si, de modo que seu modo de subjetivação é
o “auto-governo”. Neste caso, o prazer não é mais tomado como uma energia natural a ser
regrada, mas como uma potência que pode ser gerida e conservada. Nestas morais, diz
Foucault, “o elemento forte e dinâmico dever ser procurado das formas de subjetivação e
das práticas de si” (FOUCAULT, 1984, p. 30), pois são eles campos de experimentação
para a conquista do auto-governo.
Da oposição entre estes dois tipos de morais, advém a separação, segundo Foucault,
entre o “corpo-prazer” e o “corpo-carne”. (FOUCAULT, 2001, p. 190) Em termos gerais, o
corpo-carne, característico das morais cuja ênfase se dá sobre as “práticas que permitam
transformar o próprio modo de ser” (Foucault, 1984, p. 30) coincidem historicamente com a
Antiguidade Greco-Romana (pagã), ao passo que as morais do corpo-carne, definidas pelo
código, correspondem ao Cristianismo. No entanto, alerta Foucault, “entre elas houve
justaposições, por vezes rivalidades e conflitos, e por vezes composição” (ibid.). Para
sermos mais precisos, dentro de cada período histórico, o que permite separar o amálgama
das duas linhagens da moral é a relação com a verdade, pois a “questão das relações entre o
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uso dos prazeres e o acesso à verdade” (FOUCAULT, 1984, 201 e 214) surge dentro da
moral grega, mas dá o acesso a morais baseadas no código, como a cristã, quando o que
passa a ser problematizado, afirma Foucault, não é mais o “prazer, com a estética de seu
uso, mas o desejo, com sua hermenêutica purificadora” (id., 221). O uso dos prazeres se
tornaria ainda mais austero, no dois primeiros séculos de nossa era, em função do
aprofundamento acerca da relação do prazer com a verdade, a qual, enfim, torna as práticas
de si associadas ao “conhecimento de si”, embora essas restrições ainda estejam muito
distantes de uma moral prescritiva como a cristã (FOUCAULT, 1985, p. 45-47, 71-73;
Foucault, 1997, p. 119-130).
A relação com a verdade, demonstra Foucault, vem acompanhada de uma certa
acentuação dos efeitos nocivos do prazer, de modo que o corpo, ao invés de ser entendido
como lugar onde o homem domina o prazer e por isso torna-se senhor de si, passa a ser
visto como um espaço de fragilidade arrebatado por forças naturais cujo controle se deve
mais a expedientes de proteção do que ao exercício de uma soberania sobre si mesmo
(FOUCAULT, 1985, p. 125-126).
Mas o que isso tem a ver conosco, hoje em dia?
Numa moralidade característica Antiguidade Clássica, os prazeres do corpo são o
domínio onde se constitui o autogoverno, perfazendo um campo contínuo onde não se
demarca a questão do desejo. Por exemplo, no campo dos prazeres não cabe a pergunta: em
que tipo de relação há uma verdadeira reciprocidade do ponto de vista do amor, a relação
heterossexual ou a relação homossexual? Já, numa Antiguidade Tardia, que corresponde à
ascensão do Império Romano, a problematização do desejo, a qual vem acompanhada da
indagação sobre o amor verdadeiro, de acordo com Foucault, desencadeará um processo
que se estenderá à sexualidade, entendida como modo de subjetivação do sujeito moderno.
O surgimento do desejo como novo modo de subjetivação atesta um
Foucault observa que, nas sociedades modernas, a relação do prazer com a verdade
(scientia sexualis) orienta a subjetivação em torno de uma “forma de poder-saber” que
instaura procedimentos voltados para que o indivíduo diga a “verdade sobre o sexo”
(FOUCAULT, 1985, p. 57). O modo de subjetivação moderno, portanto, pode ser
surpreendido em práticas de si reguladas por um dispositivo disciplinar, onde emerge a
noção de sexualidade como constitutiva da subjetividade moderna. Sendo assim, a
sexualidade, como modo de subjetivação, articula-se com a questão da relação entre o
corpo e a verdade sobre o sexo. Por um lado, o modo de subjetivação do sujeito moderno,
que é, de certa forma, aquele que ainda experimentamos em nossos dias, não é uma moral
relacionada com o autogoverno; de outro, não pode ser caracterizado como uma moral de
código, no sentido prescritivo ou jurídico, que vigia em uma moral cristã.
Como vimos, o modo de subjetivação moderno é marcado por um dispositivo
denominado “sexualidade”, que procura estabelecer uma “incitação técnica” a falar da
sexualidade, partindo do princípio de que aquele que pensa a sexualidade conhece melhor a
si mesmo. O dispositivo de sexualidade procura estabelecer um certo eixo que gira em
torno das “relações entre comportamento sexual, a normalidade e a saúde” (Foucault, 1984,
p. 220). Não estamos, com relação à sexualidade, em busca do autogoverno que geriria o
prazer, nem da verdade que regraria o desejo, mas de uma verdade da sexualidade relativa
ao auto-conhecimento e à identidade que, ao mesmo tempo, nos liga à instância coletiva do
biopoder através de várias instâncias disciplinares.
um delegado, juiz ou um diretor de consciência. Ele não nos julga. Em suas perguntas – o
que você está fazendo de si mesmo? - ressoa a seguinte afirmação: que outra coisa estamos
nos tornando. Foucault acredita que tudo está sujeito ao tempo. Ele não condena, ele diz
que há sinais de vida, se tudo já se alterou tanto, então, isso não vai parar.
Devido a essa problemática central que é o tempo, presente em todos os planos de
sua pesquisa, é que Foucault escreveu muitos livros de história. Foucault precisa da história
para expor suas idéias sobre o tempo. O senso comum sobre a história diz que o tempo, a
passagem do tempo é organizada por um vetor de sentido. Isto é, por mais que os
acontecimentos aparentem ser caóticos e disparatados existe como que uma razão que os
ordena em direção a algo melhor ou pior, seja para um bem maior como a liberdade
universal do ser humano, seja para o progresso material de nossa civilização, seja para uma
catástrofe que embotaria a própria humanidade.
Ao contrário, Foucault não crê, e escreve textos sobre isso, que a história de todas as
coisas que acontecem com os Homens, seja uma história contínua que se orienta em direção
a um fim. (FOUCAULT, 1982) Para Foucault, a história é descontinua, nela pulsam
composições de forças que se fazem e se desfazem, sem que seja possível traçar uma linha
de progresso. Os eventos não se organizam de maneira unitária, descrevendo um
movimento em que todos os elementos são homogêneos e cujo sentido se revela de uma
vez por todas como algo contínuo no tempo. Pelo contrário, a verdade ou o sentido que
encontramos na história é sempre uma composição de elementos heterogêneos. A verdade
histórica tem muitas arestas, não é uma figura bem torneada. Ou ainda, a história é um
quebra-cabeça onde as peças não apresentam contornos muito concordantes, de modo que a
figura que se forma na história parece mal formada ou suas peças parecem reunidas a
contragosto, à força.
DREYFUS, H. & RABINOW, P. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do
estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
FOUCAULT, M. História da sexualidade II: o uso dos prazeres, Rio de Janeiro: Graal,
1984.
FOUCAULT, M. História da sexualidade III: o cuidado de si, Rio de Janeiro: Graal, 1985.
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir: a história da violência nas prisões. 19ª ed. Petrópolis/RJ:
Vozes, 1999c.