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JANE AUSTEN: TRAÇOS DO PATRIARCADO VERSUS ASPECTOS

DO FEMINISMO EM SEIS DE SUAS OBRAS MAIS EMBLEMÁTICAS

Rodrigo Amorim dos Santos Paiva1

Yls Rabelo Câmara2

Maria Taiza Galdino Vieira³

RESUMO:

O presente artigo tem por objetivo analisar a desigualdade de gênero na sociedade inglesa e patriarcal do século
XVIII presente em seis romances de Jane Austen, , assim como algumas personagens femininas austenianas
deles que representam o espírito do feminismo, buscando seu espaço e alçando sua voz em meio ao ambiente
repressor que as envolve. . Os romances de Jane Austen debatidos aqui são: Orgulho e Preconceito (1813),
Razão e Sensibilidade (1811), Emma (1815), Mansfield Park (1814), Persuasão (1818) e A Abadia de
Northanger (1818).Para o embasamento teórico do artigo foram utilizados os teóricos Bourdieu (1999), Zolin
(2003), Wollstonecraft (2004), Wolff (2013), Alves e Pitanguy (1985) , Beauvoir (2014) e Hooks (2020).
Concluímos que ao analisar as seis obras da autora Jane Austen, percebemos que, embora ela tenha escrito a
mais de duzentos anos atrás, numa época onde a opressão e a submissão das mulheres era recorrente, Austen foi
revolucionária ao dar voz e lugar feminina em seus textos.

Palavras-chave: Jane Austen; Patriarcado; Feminismo; Romances; Machismo.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A partir da contextualização das narrativas literárias de Jane Austen em seis de suas


obras mais emblemáticas, tendo por critério de escolha do corpus desta pesquisa o sucesso de
vendas de exemplares de seus livros ao longo do tempo, este artigo, que cristaliza os
resultados aos quais chegamos, tem por objetivo analisar traços do machismo presentes na

1 Graduando no terceiro período em Produção Cultural pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia de São Paulo (IFSP) - Campus Rio Preto, monitorando pelo Programa Institucional de Monitoria
(PIM) no primeiro período de graduação em Produção Cultural na IFSP, na disciplina de Cultura e Sociedade,
Participante do Grupo de Estudos Filhas de Avalon. E-mail: rodrigoamorimp234@gmail.com. Participação no
trabalho: elaboração do trabalho, pesquisa e construção.
2 Doutora e Mestra em Filología Inglesa pela Universidad de Santiago de Compostela (USC), com Estágio
Pós-Doutoral em Educação pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Docente de Língua e Literatura
Inglesas no Curso de Letras – Inglês da Universidade Estadual do Ceará, no Campus de Quixadá, na Faculdade
de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central (FECLESC). Idealizadora e Líder do Grupo de Estudos Filhas
de Avalon. E-mail: ylscamara@hotmail.com. Participação no trabalho: orientação, composição textual, revisão
sintático-semântica, adaptação do artigo às normas de publicação e organização deste no presente e-book.
³ Graduanda no sexto período de Pedagogia pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN) –
Campus Avançado de Patu, participante no Grupo Filhas de Avalon. E-mail: mariataiza@alu.uern.br.
Participação no trabalho: contribuição na elaboração do artigo como co-autora.
sociedade inglesa da época da autora e por ela plasmados em suas obras, demonstrando
também o impacto que os costumes de então causavam nas relações de classe e de gênero.
Igualmente objetivamos demonstrar que através das personagens femininas retratadas nos
romances de Austen, as mulheres daquele contexto já lutavam por seus espaços na sociedade
e alçavam sua voz, normalmente amordaçada pela moral, pela religião e pela forma que se
esperava que elas agissem.
Foram analisados seis romances da escritora para a elaboração desta investigação,
como componentes de nosso corpus, a saber: Razão e Sensibilidade (1811), Orgulho e
Preconceito (1813), Mansfield Park (1814), Emma (1815), A Abadia de Northanger (1818) e
Persuasão (1818). A partir deles, traçamos uma crítica à sociedade patriarcal de então, ao
matrimônio arranjado e à desigualdade de gênero - características das sociedades ocidentais
daquele tempo, mas que seguem em muitas da contemporaneidade, em partes diversas do
mundo.
Esta é uma pesquisa qualitativa calcada em um levantamento bibliográfico com base
nas contribuições de investigadores como Alves e Pitanguy (1985), Beauvoir (2014)
Bourdieu (1999), Hooks (2020), Zolin (2003), Wollf (2013), e Wollstonecraft (2004), entre
outros, utilizando a análise da crítica feminista para compreender os papéis sociais impostos
às mulheres que pertenciam ao contexto do período compreendido entre o início do século
XVII e o final do século XIX e o que a eles concernia.
O papel da mulher na sociedade, ao longo dos séculos, tem sido servir aos homens,
sendo que a ela não tem sido sempre dado o pleno direito de trabalhar, de estudar, de fazer
opções que a coloquem como a protagonista de sua vida; nem sempre tem podido escolher
seu marido, mas normalmente se espera que ela se case, que tenha filhos e que se dedique aos
serviços domésticos, sem maiores aspirações do que essas. Quer o patriarcado que ela se
mantenha obediente, submissa, que não questione o que lhe é ordenado nem à sua posição de
inferioridade.
Segundo Beauvoir (2014), durante muito tempo, os contratos matrimoniais foram
acordados e assinados entre o sogro e o genro, sem contar com a noiva ou sua mãe. O pai e o
futuro marido decidiam o futuro da mulher, que não podia declinar da proposta de
casamento, pois seria julgada como inconsequente, ingrata e voluntariosa, correndo ainda o
risco de ser deserdada ou enviada a um convento ou, de jamais conseguir outro pretendente -
causando vergonha à sua família e atraindo para si uma aura de piedade. A liberdade de
escolha das jovens sempre foi muito restrita e o celibato — salvo em casos excepcionais, nos
que se reveste de caráter sagrado — abaixa-a ao nível de parasita e de pária. O casamento e
a maternidade são, para a mulher, ainda em muitas sociedades, sua garantia de manutenção
financeira e a única justificação social de sua existência.
As mulheres da época de Austen Tampouco tinham o direito de sair de casa para
estudar; eram ensinadas em casa, por um preceptor, e não aprendiam o mesmo que os
homens, pois estes teriam maior intelecto do que elas e, portanto, aprendiam habilidades que
iam além do mero letramento e das disciplinas que eram frívolas pelas lentes atuais como
bordado, costura, leitura em francês para declamação e aulas de piano. Como exemplo dessa
prática, a própria Jane Austen foi educada por seu pai, e suas personagens, como Emma,
também eram educadas em casa; estudavam piano, canto, etiqueta, bordado e costura, e eram
instruídas a se casarem jovens para poderem ter muitos filhos (já que a mortalidade infantil
era alta) e status social de casada, de senhora respeitável.
Analisamos, pois, nesse artigo, o machismo abordado em seus romances e a relação
das personagens femininas com o feminismo, ao não aceitarem as desigualdades impostas ao
seu gênero, lutando por seu espaço e erguendo sua voz. Destarte, este trabalho está dividido
em partes, a saber: 1- Percurso Metodológico ( onde será abordado a contribuição do Grupo
de Estudos Filhas de Avalon na confecção deste trabalho, a abordagem metodológica
utilizada); 2 - Marco Teórico, dividido em dois subtópicos: 2.1 - Jane Austen: uma escritora
revolucionária (abordando a bibliografia da autora Jane Austen e seu legado no que tange a
alçar voz às mulheres), 2.2 - O legado literário de Jane Austen ( abordando o legado das
obras da autora, a dificuldade de uma mulher escrever na época e a sua contribuição para o
lugar da mulher na literatura); 3 - Resultados e Discussões , dividido em dois subtópicos: 3.1
- O Ambiente Machista e Repressor da Inglaterra de Jane Austen Refletido em Seis de suas
Obras Mais Emblemáticas (abordaremos em cada uma das seis obras pesquisadas, o ambiente
machista e repressora na época em que foram escritas e como as personagens femininas
alçaram sua voz em meio a opressão) , 3.2 Analisando o Machismo em Seis Romances de
Jane Austen ( analisamos o machismo contido nas seis obras de Austen com embasamento
em outras autoras que falam sobre sistema patriarcal e machista); Considerações Finais
( trazemos o objetivo e o resultado obtido ao pesquisar as seis obras de Jane Austen).

1 PERCURSO METODOLÓGICO
Na confecção deste trabalho, houve a contribuição do Grupo de Estudos Filhas de
Avalon como provedor de insights a partir dos encontros semanais que tivemos em sua
primeira edição, que durou sete meses; no evento acadêmico que organizamos e realizamos e
nos outros eventos científicos nos quais participamos como convidados. Fazer parte dele nos
propiciou a oportunidade de contribuirmos, de maneira interdisciplinar, juntamente com
membros de vários estados brasileiros e de mais seis países afora o Brasil, da tessitura de
artigos e ensaios a partir dos estudos feitos em conjunto e publicados como capítulos de
livros neste ebook e no outro, que trata das escritoras nacionais.

A abordagem utilizada neste trabalho, uma pesquisa bibliográfica e de natureza básica


é qualitativa, com objetivo exploratório e toma como ponto de partida a leitura e a análise
dos romances Emma, Persuasão, Razão e Sensibilidade, Orgulho e Preconceito, Mansfield
Park e A Abadia de Northanger e sua relação com o feminino, com ênfase no feminismo.
Para maior embasamento da análise, foram utilizados artigos científicos, monografias, livros
e outros trabalhos acadêmicos por nós encontrados no Google Acadêmico a partir dos
descritores Patriarcado, Machismo, Feminismo, Jane Austen, Orgulho e Preconceito, Abadia
de Northanger, Emma, Razão e Sensibilidade, Mansfield Park, Persuasão. Após triados o
corpus e o suporte teórico, os dados foram analisados e os resultados obtidos, plasmados na
forma deste trabalho.

2. MARCO TEÓRICO

2.1 Jane Austen: uma escritora revolucionária

De acordo com Moura (2015),MOURA (2015), Jane Austen, escritora inglesa, viveu
entre 1775 e 1817 e foi considerada um ícone da Literatura estando ela ainda viva - o que não
é a norma, especialmente em se tratando de escritoras e, principalmente, as de sua época. As
obras de Austen tematizam os costumes da sociedade inglesa contemporâneos a ela,
principalmente no que diz respeito às relações amorosas e matrimoniais - e isso é é si uma
contradição, uma vez que ela própria não se casou nem teve filhos e deve ter sofrido pressão
por não ter seguido os caminhos do casamento e nem da maternidade que trilharam as , como
era usual entre tal qual suas conterrâneas e contemporâneas.
A escritora nasceu em 16 de dezembro de 1775, na zona agrária de Hampshire. Era a
sétima de oito irmãos e sua família apresentava uma condição financeira instável (fato que
era ligado ao costume de primogenitura, que estabelecia que as terras e o patrimônio da
família fossem repassados para os filhos primogênitos como herança - filhos varões, diga-se
de passagem). Jane levanta essa questão em suas obras, mais especificamente em Orgulho e
Preconceito (1813), visto que as irmãs Bennet não poderiam herdar os bens da família pois,
segundo a Lei da Primogenitura, o herdeiro de direito seria o primo delas, o Sr. Collins, não
elas próprias: em muito por serem mulheres e também pelo fato de esta lei não as favorecer.
De acordo com Ainda segundo Moura (2015), MOURA (2015), o pai de Austen era,
ao mesmo tempo, o seu tutor e o responsável legal por sua educação. Ele a incentivou a
adentrar no mundo dos livros muito desde cedo, despertando nela o amor pela leitura e pela
escrita desde sua primeira infância. Já na Desde a adolescência, ela amava escrever - fruto
advindo desse interesse pela Literatura despertado nela precocemente e que ela fez questão de
manter durante toda a sua vida.
Suas principais obras são: Juvenília (1793), que ela começou a escrever aos onze anos
de idade, em 1787, e foi finalizada seis anos depois, em 1793; Amor e Amizade (1790); Lady
Susan (1794); Razão e Sensibilidade (1811); Orgulho e Preconceito (1813); Mansfield Park
(1814); Emma (1815); A Abadia de Northanger (1818) e Persuasão (1818). Essas duas
últimas foram publicadas após sua morte.
Austen foi uma escritora revolucionária para sua época por escrever romances de
forma irônica, que criticavam os costumes da sociedade à qual pertencia e na qual deveria se
encaixar de maneira submissa e sendo feliz por isso. Não foi a única. Autores consagrados
como Henry James e Oscar Wilde também o fariam, mas com a prerrogativa de serem
homens - o que fazia toda a diferença - pois não tinham o seu lugar de fala e, portanto, seus
discursos não são tão legitimados quanto os dela.
Austen, como deixa claro em suas obras, não concordava com os costumes de sua
época: jamais quis se casar por motivos financeiros e, mesmo que naquele momento, para a
uma mulher solteira, fosse motivo de vergonha o não casar-se, pois não teria quem a
sustentasse mais adiante nem quem a amparasse em sua velhice quando essa chegasse, ela
Austen jamais quis se casar por interesse. Quanto à sua vida amorosa, não se sabe muito a
respeito, mas acredita-se que deve ter tido um breve romance com Thomas Lefroy, que foi
rapidamente terminado por ela pela razão exposta acima, conforme Freire (2011).
Em meio a uma sociedade patriarcal e na qual as mulheres eram amordaçadas em seus
mínimos direitos, época na qual o casamento era essencial na vida de uma jovem para que
esta pudesse adquirir uma situação financeira minimamente estável (ou mantê-la se já a
tivesse), e na qual escrever romances não era atividade de uma moça de “bons modos”,
Austen foi uma revolucionária, criticando as relações de classe e de gênero de então,
acreditando que as mulheres poderiam ter espaço e voz se os reivindicarem. Foi assim que ela
empoderou suas personagens e foi uma escritora importante no que tange ao movimento
feminista que já ensaiava tímidos passos.

2.2. O Legado Literário de Jane Austen

Jane Austen ganhou fama no mundo literário após o seu falecimento, apesar de que
fora reconhecida em vida como uma escritora prestigiosa, como mencionamos na seção
anterior. Começou a escrever em um contexto onde as mulheres eram mais desmerecidas do
que o são hoje. Se atualmente uma mulher ter seu lugar de fala reconhecido na Literatura é
uma conquista importante, no contexto dela esse era um passo transformador -
inimaginável, inclusive.
Em uma época na qual as mulheres dependiam dos homens para terem o seu sustento
mais básico (alimentação e moradia, pelo menos), para elas, escrever escreverem
profissionalmente era desafiador e estigmatizante, além de utópico, uma vez que as escritoras
de então não costumavam ter um espaço próprio e privado onde pudessem escrever sem
serem interrompidas, não tinham direito a passear sozinhas e fora do ambiente doméstico
para terem inspirações e insights para suas escritas, não dispunham de dinheiro suficiente
para poderem se dedicar a essa função em momentos de ócio. e, além Em resumo: elas não
tinham o que Virginia Woolf - outra chama de “um teto todo seu”
Além das dificuldades materiais, havia tinham as dificuldades que o próprio gênero
impunha: os homens burlavam-se de suas tentativas de escrever e as oprimiam para que estas
não tivessem seus escritos levados a sério nem pelo público leitor nem pelos críticos. Para
eles, assim como para as pessoas em geral daquele contexto acachapante, escrever era uma
atividade masculina, pois uma vez que se acreditava que os homens eram intelectualmente
superiores às mulheres - fato presente e constantemente recalcado inclusive na Bíblia
Sagrada, que regia a fé da maioria deles e delas.
Austen, assim como outras escritoras que a precederam e a sucederam, teve diversas
dificuldades para encontrar seu lugar no universo literário e no mercado editorial inglês nos
anos nos quais se debruçou sobre seu labor de escritora. Além disso, tornar-se uma escritora
“pública”, que expunha e que vendia seus escritos, que deveriam ser apenas de cunho privado
e intimista, era uma escolha que ameaçava a reputação da mulher na sociedade. Ela, tentando
minorar essa repulsa, como forma de se proteger da pressão que sofria por ambicionar
publicar suas obras, começou inicialmente a fazê-lo de forma anônima, usando o pseudônimo
“A Lady”.
A primeira edição de seu romance Razão e Sensibilidade, publicado em 1811, teve
todos os exemplares vendidos, o que fez com que ela visse no mercado editorial - mesmo que
bastante mais restrito às escritoras do que aos escritores, independentemente de sua qualidade
literária - sua fonte própria de renda. Desde sua primeira venda, ela tem estado presente nesse
mercado e há mais de duzentos anos continua levando seu legado literário ao mundo, fazendo
seus leitores se encantarem e refletirem sobre suas obras, reflexo direto de seu testemunho
como mulher na Inglaterra oitocentista. Em cada um de seus romances, uma de suas obras,
uma delas, Austen nos leva a divagar sobre as classes sociais, as questões de gênero e o
matrimônio. Sobre essas questões tratamos na próxima seção.

3 RESULTADOS E DISCUSSÕES

3.1 O Ambiente Machista e Repressor da Inglaterra de Jane Austen Refletido em Seis


de suas Obras Mais Emblemáticas
Jane Austen viveu no período da Revolução Industrial na Inglaterra e, naquela época,
a sociedade inglesa era dividida por classes e gêneros de maneira muito mais segregadora do
que agora: o que importava era o status social ao custo que fosse. As mulheres deveriam ser
obedientes aos homens; eram prometidas em casamento por seus familiares - não raro, antes
de nascerem ou pouco depois - e não importava aos negociadores matrimoniais (normalmente
os pais dos noivos) se o jovem casal se amava ou se queria ou não casar. O que se esperava
das jovens noivas era que fossem esposas e mães desveladas, além de gestoras da casa e dos
afazeres domésticos; que fossem boas anfitriãs, além de virtuosas, bondosas e caridosas - e
cristãs.
Não tinham acolhida no mercado de trabalho nem na política. O espaço público
pertencia aos homens, não a elas, que ficavam arinconadas em casa, dedicadas a aprender
formalmente e de maneira limitada o vernáculo e uma ou outra disciplina escolar, por meio
de um preceptor, além de bordado, piano, música e poemas em sua língua máter ou em
francês - que eram lidos por elas nos saraus que as famílias e outras instituições ligadas aos
bons costumes organizavam. Contudo, essas observações se referem às classes sociais média
e alta. Nas camadas mais depauperadas da população, o trabalho fora do lar sempre foi uma
realidade presente e parcamente remunerada.
As únicas ocupações que uma mulher com certo prestígio poderia exercer longe do
ambiente de seu lar, sem que com isso comprometesse o respeito alheio por ela a ou
credibilidade de sua pessoa, eram profundamente maternais: o Magistério, a Enfermagem ou
a governança de propriedades alheias - o que inspirou algumas das obras da autora.
Em Razão e Sensibilidade (1811), Jane Austen teve que usar um pseudônimo, como
já mencionamos - The Lady (A Senhora) -, para manter sua identidade em segredo, já que as
mulheres que escreviam profissionalmente naquele momento eram chamadas de loucas, eram
motivo de mofa e as editoras não publicavam seus escritos com a mesma facilidade com a
qual publicavam os dos homens. Sem revelar seu antropônimo, pareceu-lhe que seria mais
fácil publicar, vender e ser lida, já que desconheceriam que o livro realmente havia sido
escrito por uma mulher e qual seria o seu nome verdadeiro.
Neste romance, somos levados a refletir sobre o papel da mulher nos séculos XVIII e
XIX no que tange ao socialmente aceitável com respeito às “boas maneiras” na sociedade
inglesa das classes média e alta. A narrativa retrata a vida das irmãs Mariane e Elionor
Dashwood. Mariane age mais pela emoção, é sensível, enquanto Elionor age levada pela
razão, sendo às vezes considerada insensível - uma é o complemento da outra. Contudo,
ambas buscam seu espaço social e lutam por seus direitos nesta sociedade castradora para
com as mulheres e à qual ambas pertencem.
Por causa da Lei da Primogenitura, após a morte do patriarca da família Dashwood, a
herança é legada ao seu filho primogênito do primeiro casamento, John Dashwood, obrigando
Mariane, Elionor e sua mãe (a Sra. Dashwood), assim como sua irmã Margaret, a se
mudarem para um pequeno chalé onde as quatro mulheres passam a morar sozinhas, sem uma
figura masculina protetora, fazendo com que passem a tomar decisões por si próprias, sendo
protagonistas de suas narrativas de vida e provando, com essa independência, que a figura
masculina é perfeitamente prescindível na vida de uma mulher.
Mariane e Elionor, assim como as demais personagens de Jane Austen, não
concordam com o costume do casamento arranjado por interesse financeiro, dentro do qual a
mulher poderia ser uma eterna prisioneira, muitas vezes infeliz. Mariane infringe as normas
de chaperonage,3 por exemplo, andando acompanhada por um cavalheiro (Willoughby) que
não era seu esposo nem seu familiar - um escândalo para a época:

Fiquei muito à vontade, fui alegre e franca demais. Pequei contra toda noção
corriqueira de decoro; fui aberta e sincera quando devia ter sido reservada, obtusa,
estúpida e falsa. Se tivesse falado só do tempo e da condição das estradas e só
tivesse aberto a boca uma vez a cada dez minutos, não teria merecido esta censura.
(AUSTEN, 2015a, p. 400).

Mariane admite que não teve um comportamento adequado, mas ironiza que a mulher
tenha que sempre acatar, calada, dócil e apática,o papel de submissa; que ela não tenha o
poder nem o direito de se expressar e que não viva como lhe apeteceria porque isso
desagradaria a outrem. Mariane prova, por meio de suas atitudes e palavras heterodoxas, ser
uma jovem à frente do seu tempo, que mesmo sendo criticada e julgada, faz o que acredita ser
certo para ela.
Em Orgulho e Preconceito (1813), a protagonista Elizabeth Bennet e suas cinco irmãs
são predestinadas ao casamento para poderem obter status. A grande preocupação de sua mãe
era casar as cinco filhas. Para que uma moça tivesse um “bom futuro”, teria que se casar com
um homem rico e isso era o sonho dessa mãe. Austen nos revela, nesse romance, as pressões
exercidas pela sociedade sobre as jovens casadoiras e sobre seus pares masculinos para que se
desse o casamento, porta de acesso a uma vida financeiramente confortável para ambos e
garantia de aliança entre as duas famílias envolvidas. Além de maior estabilidade econômica,
os casamentos promoviam a mobilidade de classes. Com isso, um bom arranjo matrimonial
asseguraria a essas mulheres sua sobrevivência em uma sociedade fortemente patriarcal e, por
meio dessa ligação, a ascensão social lhes era garantida também, se fosse o caso.
Quando Elizabeth Bennet recusa o pedido de casamento do Sr. Collins, gera com isso
um desconforto para a família do pretendente por infringir as normas sociais que ditavam
esse rito de passagem na vida dos jovens ingleses de então. A atitude dela foi uma ofensa ao
rapaz, à família dele e à sociedade, pois demonstrava o pouco caso que ela fazia de aceitá-lo
como companheiro de vida e o desprezo que dava à ajuda financeira que ele poderia prover a
ela e à sua família:

3 Regra social que obrigava as moças a sempre andarem acompanhadas com as mães ou com algum membro
masculino e mais velho de sua família (Nota dos Autores).
Asseguro-lhe que não sou dessas moças, se é que existem, que cometem a ousadia
de arriscar a sua felicidade confiando nas possibilidades de um segundo pedido.
Minha recusa é perfeitamente séria. O senhor não me poderia tornar feliz. E estou
convencida de que sou a última mulher do mundo capaz de fazê-lo feliz. (AUSTEN,
2015a, p. 202).

Era inimaginável que uma mulher pudesse ter a atitude de recusar um casamento, que
era, o mais das vezes, a “salvação” de seu futuro. Era igualmente inimaginável que ela
facilmente encontrasse outro pretendente que se interessasse por ela a ponto de pedi-la em
casamento. O mais recorrente, quando havia a dispensa de um pretendente, era que a jovem
não chegasse a desposar-se com ninguém mais e que fosse destinada a um convento ou a
trabalhar como governanta em uma casa de abastados. Elizabeth não se preocupou com as
consequências. Não queria para si um casamento sem amor e teve uma postura independente,
ousada e revolucionária, principalmente diante de um homem que, para muitas mulheres da
época, teria sido considerado sua salvação econômica.
É notório que as personagens masculinas descritas em Orgulho e Preconceito (1813)
e demais romances de Jane Austen têm um domínio sobre as mulheres, buscando sempre
exibir seu privilégio econômico e status social, sua mobilidade dentro dessa sociedade e seu
poder de chefiar. As mulheres, como se era de esperar, acatam as normas comportamentais
sem questionamento, a necessidade do enlace matrimonial e a superioridade dos homens
sobre elas,mas Elizabeth mostra-se inconformada com essas normas impostas à revelia e
essas injustas desigualdades de gênero e se recusa a aceitar o casamento arranjado, mesmo
que isso lhe traga prejuízos e preconceitos. Ela não se permite calar e busca para si um novo
destino.
Mansfield Park (1814)narra a história de Fanny Price: uma jovem tímida, frágil e que
acata todas as ordens que lhe são impostas sem questioná-las. Sua família passa por
dificuldades financeiras e Fanny, ainda criança, vai morar em Mansfield Park com os tios
prósperos. A personagem fica mais contida e submissa às regras daquela sociedade; sua
única companhia é seu primo e amigo, Edmund. Com o tempo, Fanny adquire mais
maturidade e começa a não fazer tudo o que lhe mandam, procurando alçar sua voz, como
quando se recusa a se casar com seu vizinho Henry Crawford, deixando seu tio e sua tia
furiosos, pois estes queriam formar esse enlace matrimonial por interesse próprios.
Fanny, ao conversar sobre Henry com sua irmã Mary, não concorda com ela de que
ele seria um marido ideal: Henry podia ser bonito, mas era namorador e não se importava
com os sentimentos das mulheres. Ela sabia que jamais seria feliz com ele e, para ela, não
seria um triunfo conquistá-lo:
_Ah, não posso negar. De vez em quando, ele agia como um lamentável namorador
e muito pouco se importava com o estrago que talvez fizesse nas afeições de
inúmeras jovens. Muitas vezes já o repreendi por isso, mas se trata de seu único
defeito, porém, é importante dizer que muitas poucas moças merecem que se levem
em consideração tais afeições. E, por outro lado, Fanny, que glória a de conquistar
alguém que tem sido cobiçado por tantas, de ter o poder de ajustar todas as contas
contraídas pelo nosso sexo! Oh, sei que não faz parte da natureza feminina recusar
tamanho triunfo.
Fanny faz que não com a cabeça.
_ Não posso pensar bem de um homem que joga com os sentimentos de qualquer
mulher e talvez tenha causado com frequência muito mais sofrimentos em algumas
delas do que pode supor um observador circunstancial.
_ Não o defendo. Deixo-o inteiramente à sua misericórdia, e, quando ele a tiver
levado para Everingham, não me importa quantos sermões lhe passe. Mas tenha em
conta o seguinte, que o defeito de Henry, o de gostar que as moças fiquem um
pouco apaixonadas por ele, não é nem a metade tão perigoso para a felicidade de
uma esposa quanto a tendência a ele mesmo apaixonar-se. (AUSTEN, 2015b, p.
199).

Naquela época, tal como segue sendo até hoje, as mulheres se iludem ao achar que
poderão mudar a inclinação de um homem que tende à infidelidade constante, que retificarão,
com amor e dedicação, seu padrão de comportamento desviante e adúltero. Ledo engano.
Esse pensamento errôneo leva a relacionamentos abusivos, com sofrimento psicológico e,
muitas vezes, físico para as mulheres. Austen, naquele tempo, já evidenciava,
denodadamente, essa verdade.
Em Emma (1815), é narrada a história de Emma Woodhouse, que diferentemente das
demais personagens das obras estudadas neste artigo, não sofria com o costume dos
casamentos arranjados por questões financeiras, uma vez que era uma jovem rica.Mas,
mesmo assim, ainda tinha a pressão da época sobre ela para casar-se, pois uma jovem linda e
rica não deveria ficar solteira. Ser solteira, naquela época, era algo vergonhoso para as
mulheres e se uma mulher passasse dos vinte e sete anos sem se casar, dificilmente se casaria
depois desta idade. Emma, aos seus vinte e um anos, não queria se casar e para ela isso não
seria motivo de infelicidade:

_ Fico admirada, senhorita Woodhouse, pelo fato de a senhorita ainda não ter se
casado e nem estar para se casar, encantadora como é!
Emma riu e replicou:
_ Meu encanto, Harriet, não é o suficiente para induzir alguém a se casar comigo.
Eu também posso achar outras pessoas encantadoras… até mesmo uma pessoa, mas
nada significa. Não pretendo me casar agora e, aliás, não tenho a mínima intenção
de me casar algum dia.
_ Ah! A senhorita diz isso por dizer. Não posso acreditar.
_ Eu teria que encontrar alguém muito superior a todos os cavalheiros que conheci
até agora, para ser tentada... Não há porque me sentir tentada, não existe a menor
possibilidade do casamento fazer-me mudar para melhor. Se eu tivesse de me casar,
sei que me arrependeria.
_ Meu Deus! É tão esquisito ouvir uma mulher falar assim!
_ Não recebi nenhum dos costumeiros incentivos que levam as mulheres a se
casarem. Se eu me apaixonasse, é claro, seria outra coisa! Mas nunca me apaixonei.
Não é meu jeito, não está na minha natureza e não creio que isso um dia possa
acontecer. E, sem amor, tenho certeza de que seria loucura mudar uma situação
como a minha. Não preciso de fortuna, não preciso de trabalho, não preciso de
importância. Acredito que pouquíssimas mulheres casadas são mais donas de suas
casas do que eu sou dona de Hartfield (AUSTEN, 2015b, p. 373-374).

Pelo que fica patente no diálogo acima, Austen, através da opinião de Emma, critica a
visão social do enlace matrimonial apenas por interesse e não calcado no amor. Emma afirma
que não precisa se casar porque tem fortuna suficiente para viver solteira e feliz - ainda que
isso soe ofensivo a quem a escute. Diz ainda que só se casaria se se apaixonasse, o que é o
oposto do que ocorre com Harriet, que representa a visão convencional da mulher da época
sobre o casamento - compulsório para as mulheres e impensável que uma mulher não
quisesse tê-lo como destino.
A confissão de Emma é chocante para a amiga, que não está acostumada com essa
visão independente sobre a e da mulher, já que para ela o que se espera de uma senhorita
casadoira é que encontre bons pretendentes que lhe assegurem um futuro confortável. Emma
não tinha essa preocupação: ela era uma nobre, tinha status social elevado e podia prescindir
de um casamento sem amor e focado apenas no financeiro. Através desse romance, Austen
satiriza a classe alta por “preocupações” que degradam a identidade feminina e passam ao
largo de sua felicidade e completude.
Em Persuasão (1818), Austen aborda as questões da desigualdade de gênero, das
desigualdades sociais diversas e da construção dos papéis sociais das personagens. Na trama,
a jovem Anne Elliot é persuadida a não firmar compromisso com o jovem Frederik
Wentworth, pois ele tinha uma posição social e econômica inferior à dela. Anne e Frederick
se reencontram anos depois e ele a percebe com uma nova postura: ela agora está
determinada a lutar pelo que quer na vida. Essa situação pode ser um reflexo do que lhe
aconteceu à autora. Uma mostra do quanto Frederick é misógino está plasmada abaixo:

_ [...] Odeio ouvir ou ver uma mulher a bordo; e nenhum navio sob meu comando
jamais transportará uma família em que haja mulheres para nenhum lugar, se eu
puder evitá-lo.
_Ah! Frederick! Não posso acreditar que você tenha dito tal coisa! Tudo isso são
refinamentos ociosos! As mulheres podem se sentir tão confortáveis a bordo como
nas melhores casas da Inglaterra. [...] Mas odeio ouvi-lo falar como um cavalheiro
delicado e como se todas as mulheres fossem delicadas, e não seres racionais.
(AUSTEN, 2015a, p. 588-589).
Após ter dito que odiava ver mulheres a navegar de navio, sua irmã, Sophia Croft, o
critica. Ela percebe que o irmão foi preconceituoso ao tratar as mulheres como frágeis e ao
dizer que não se sentia confortável com elas a bordo. Mais do que isso: percebemos o quanto
as mulheres incomodam seu frágil ego que, se melhor analisado, poderia indicar questões
heteronormativas incluídas, uma vez que a sexualidade, em todas as suas nuances, na
Inglaterra de então e na Era Vitoriana que se seguiria, era, ao mesmo tempo, assunto proibido
em público e vivenciado com culpa e prazer no privado.
Em A Abadia de Northanger (1818), Austen narra a história de Catherine Morland,
uma jovem de apenas dezessete anos, amante da leitura (principalmente de romances góticos,
cuja principal característica é a presença de acontecimentos sobrenaturais). Catherine irá se
mudar para Bath, onde Jane Austen passou parte da vida em 1817. Austen, nesse romance,
utiliza uma linguagem irônica para satirizar os leitores ávidos por romances góticos, visto que
Catherine Morland fantasia viver aventuras sobrenaturais em castelos e mosteiros,
aparentemente influenciada por suas leituras, principalmente pelas obras de sua autora
preferida, a inglesa Ann Radcliffe, pioneira na escrita dos romances góticos.
A história de Catherine Morland também retrata uma sociedade patriarcal e
aristocrática, que se transformava em um mundo no qual o que quase todos almejavam era o
dinheiro e o prestígio social e onde a desigualdade de gênero continuava em evidência: as
mulheres seguiam buscando conquistar um espaço externo ao lar e fazendo audível sua voz
em meio à opressão que vivenciavam dentro e fora dele.
Ao retratar Catherine, Austen questiona o protótipo ideal feminino da época. A
individualidade de Catherine é retratada na primeira página do romance, onde Austen a
descreve assim: “Catherine gostava de todas as brincadeiras de meninos, e tinha grande
preferência pelo cricket… aos prazeres mais heróicos da infância, como cuidar de um
arganaz, alimentar um canário, ou regar flores.”. (AUSTEN, 2015b, p. 621). Embora
Catherine pareça um pouco diferente das demais heroínas dos romances austenianos, por ser
uma jovem inocente e que sonha em se aventurar por cenários instigantes e descobrir algo
sobrenatural, ela demonstra ter um discernimento e se faz ouvida em suas demandas: “[...] se
eu não pude ser persuadida a fazer o que considerava errado, eu nunca serei levada a fazê-
lo.”. (AUSTEN, 2015b, p. 659).
Por não gostar de John Thorpe, ela mostra que pode pensar por si mesma e não
sucumbe às pressões sociais para se unir a ele matrimonialmente.Ela também acredita que
casar-se por dinheiro é uma prática revoltante, e, por ser algo tão comum naquela época, isto
mostra que por ter esta atitude, ela tem que ter também a capacidade de transcender o
meramente trivial ao abstrair verdades próprias a partir das verdades coletivas e que não a
contemplam.
Ao retratar Catherine como uma personagem não-convencional, que ousa ser
diferente em meio à universalidade do comportamento artificial de suas iguais, Austen dá um
recado aos seus leitores e, especialmente, às suas leitoras: de que mesmo uma jovem
sonhadora, que se influencia pelas quimeras que projeta a partir das leituras que faz, é capaz
de discernir que a educação que se dava às moças das classes média e alta da Inglaterra de
seu tempo não condizia com o que elas queriam, pensavam, sonhavam e necessitavam. Ela
usa de artifícios retóricos como a sátira para mostrar como a mulher esconde sua inteligência
dos homens ao seu redor: “Uma mulher, especialmente se ela tem o infortúnio de saber
alguma coisa, deve esconder o que sabe o quanto puder.”. (AUSTEN, 2015b, p. 660). Para
que serve mostrar-se como é, inteligente, se a sociedade somente quer enxergar o elemento
feminino como pouco douto?
Nessa obra, Austen também satiriza os conselhos que as mulheres recebiam dos
homens, como o Dr. John Gregory, e retrata a Sra. Allen como uma mulher materialista e
estúpida.Ela usa a ironia para descrever esse tipo de mulher, que encarna o perfeito retrato
de uma esposa submissa, virtuosa e dependente que os homens aconselhavam as mulheres a
se tornar.

3.2 Analisando o Machismo em Seis Romances de Jane Austen

Ao se aplicar a todas as coisas do mundo, a começar pela natureza biológica do


corpo (os velhos gascões falavam de "natureza" para designar o sexo da mulher),
este programa social naturalizado constrói - ou institui - a diferença entre os sexos
biológicos de acordo com os princípios de divisão de uma visão mítica do mundo,
princípios que são eles próprios o produto da relação arbitrária de dominação dos
homens sobre as mulheres, a qual está inscrita na realidade do mundo, enquanto
estrutura fundamental da ordem social. (BOURDIEU, 1999, p. 145).

Vemos que as pontuações acima, de Bourdieu (1999), nos remetem a uma


relativização e a uma estrutura cultural de dominação dos homens sobre as mulheres na
questão de gênero, baseada em uma estrutura de ordem social.Desde os primórdios, as
atividades dos nômades caçadores-coletores, por exemplo, quando ainda não havíamos
entrado no Neolítico, eram separadas por gêneros. Os homens iam caçar, pescar, coletar e
guerrear e as mulheres ou iam com eles ou - o que ficou cada vez mais normatizado -
ficavam na aldeia, com a prole e outras mulheres e suas proles, cuidando da pequena
agricultura, da pequena pecuária e dos filhos que iam nascendo e crescendo. Essa divisão de
tarefas continua até os tempos atuais, de uma forma ou de outra, independentemente de quão
avançada seja ou esteja uma sociedade no tocante aos direitos dos sujeitos.
Apesar das lutas por igualdade de gênero, as mulheres ainda são estereotipadas, em
grande parte do mundo, como sendo pertencentes ao ambiente doméstico. Nas obras de Jane
Austen, escritas há mais de duzentos anos, testemunhamos essa diferenciação de gênero
segundo os papéis sociais a elas atribuídos, essa dominação masculina e, mesmo diante disso,
as mulheres austenianas têm voz e a alçam na tentativa de fazerem valer seus direitos,
opiniões e por seus lugares dentro dessa mesma sociedade que tentava encaixá-las em papéis
sociais estanques, silenciando-as e apagando-as, preparando-as para o ambiente privado
somente: o lar.
Bell Hooks (2020) tece uma crítica ao casamento nesse sistema patriarcal, um
casamento sexista que faz com que os homens tenham domínio sobre suas esposas e que estas
sejam totalmente submissas a eles. Vemos essas mesmas críticas nos romances de Jane
Austen, como Orgulho e Preconceito, por exemplo, onde a protagonista Elisabeth Bennet não
concorda com a questão dos casamentos arranjados para a obtenção de status social mediante
acúmulo de capital, que termina subjugando as mulheres à revelia e colocando-as sob a égide
de seu maridos e das famílias destes - sem volição, sem expressão de suas subjetividades,
objetificadas, propriedades de outrem.
Conforme Hooks (2020), o casamento, tradicionalmente sexista e patriarcal, é uma
problemática opressora para as mulheres mais do que para os homens. Os casamentos
arranjados, descritos em Orgulho e Preconceito, no século XVIII, eram a realidade daquela
época, eram o que havia de mais normal e vinham de uma lógica medieval: de que a mulher
pertencia ao homem e servia como moeda de troca nas alianças que se firmavam por meio
desses enlaces matrimoniais combinados à revelia dos noivos, mas com base nos interesses
de suas famílias. No romance, é trazida à baila essa temática quando a personagem Elisabeth
não concorda com a imposição social de que ela e suas irmãs deveriam se casar com homens
escolhidos por seus pais e de que estes pretendentes tivessem status social elevado.
A dona de casa e, principalmente a mãe, tanto na época de Austen como agora, em
muitas sociedades mundo afora, eram e seguem sendo valoradas se comparadas às mulheres
solteiras e/ou sem filhos. Essa necessidade masculina de controlar a sexualidade e a
fertilidade das mulheres de seu entorno, especialmente das que acreditam serem “suas”,
instaurando o mito da maternidade, exacerbou-se nas culturas abraâmicas e, principalmente,
na muçulmana - ainda que a cristã não seja menos exigente. A mãe é dicotomicamente forte e
fraca para essas concepções religiosas, a depender do locus onde essa mulher se encontra:

[...] a maternidade pode ser vista, de um lado, como uma força sagrada nas culturas
primitivas, capaz de elevar a mulher a uma posição de prestígio em relação aos
demais membros de seu grupo, ou de outro, como um traço de vulnerabilidade e,
consequentemente, de inferioridade. (ZOLIN, 2003, p. 43).

Zolin (2003) também enfatiza que a maternidade é romanceada e vista como algo
sagrado, como se dissesse que toda mulher quer ser mãe, e também é algo que, ao mesmo
tempo, as torna inferior, que causa preconceito na sociedade se esta for mãe solo, a título de
exemplo. A cobrança exagerada para que as mulheres sejam mães, oprime aquelas que não
podem ou que não querem sê-lo - é o chamado “mito da maternidade”. No período em que
foram escritos os romances austenianos, como reiteradas vezes aqui apontamos, as mulheres
deveriam seguir os rígidos padrões relacionados ao matrimônio e à maternidade porque o fato
de não fazê-lo as expunha à segregação social (mesmo que velada).
Em Persuasão (1818), logo após o falecimento da Sra. Elliot, a educação das três
filhas do Baronete Sir. Walter Elliot não ficou a cargo dele, mas sim de uma figura feminina,
Lady Russel, que era amiga dos Elliot:

[...] Tinha ela, porém, uma amiga muito íntima, mulher sensata e de méritos, que
fora atraída por seu forte apego a ela a se estabelecer nas proximidades, no vilarejo
de Kellynch; e lady Elliot confiava sobretudo no auxílio de sua bondade e seu
discernimento para salvaguardar os bons princípios e levar adiante a educação das
filhas, em que tanto se empenhara. (AUSTEN, p. 11).

Nota-se que a educação das filhas dos Elliot foi entregue a uma tutora, a uma mulher
que partilhava da mesma condição financeira e pertencia à mesma classe social que a
matriarca da família e, sobretudo, que partilhava dos mesmos valores e princípios sociais que
a família em questão. Isso nos mostra que socialmente aceitava-se que os cuidados para com
as crianças devessem ser maternais, reforçando-se a ideia errônea do instinto materno inato,
de que toda mulher deve ser mãe e de que só elas devem ou sabem cuidar dos filhos: “Ser
mulher nunca é fácil, sobretudo naquele século 19 que, em sua racionalidade triunfante,
provavelmente levou a seu paroxismo a divisão sexual dos papéis e dos espaços, definindo o
‘lugar das mulheres’ com um rigor apoiado no discurso científico.”. (PERROT, 2005, p.79,
apud FREIRE, 2011, p. 8).
A sociedade britânica do século XIX, tempo cronológico das obras de Austen, era
marcada por uma forte cultura de domínio e de superioridade masculina. Havia também a
preocupação em relação ao status social: o importante era o poder aquisitivo de uma família;
a filha de um nobre jamais poderia se casar com um homem sem status.A Vontade da mulher
em relação a escolher o seu marido era descartada: sua família era quem arranjava o
casamento, ancorado na ambição, prescindindo dos sentimentos entre os futuros cônjuges.
Não importava se não existisse amor entre ambos, o que se buscava com o matrimônio era a
confortável situação financeira que o enlace poderia prover.Nisso o desejo do patriarca
prevalecia: “O destino que a sociedade propõe tradicionalmente à mulher é o casamento [...].
De uma maneira mais ou menos velada, sua juventude consome-se na espera. Ela aguarda o
Homem.”. (BEAUVOIR, 2014, p. 6).
É curioso como Beauvoir (2014) expõe que a mulher espera seu “Homem”, assim
mesmo, com inicial maiúscula, mostrando, com isso, a importância deste para ela, que deve
ser seu predestinado marido. Tal como defende em O Segundo Sexo (1949), após ligar-se a
ele, passará a ser chamada pelo sobrenome dele, como propriedade sua por direito. O reverso
não ocorre porque, diferentemente da mulher, que é o Outro, é o segundo sexo, o Homem é o
primeiro sexo, é quem prepondera.
Conforme BATISTA (2017), a sociedade patriarcal da época de Austen defendia a
ideia de que as mulheres precisavam se casar, de preferência mantendo-se virgens até o dia da
cerimônia religiosa para o desfrute do marido em sua primeira noite de casados - resquício do
costume da prima noctis4 medieval. Romantiza-se o casamento para a mulher (mas não para o
homem) como algo que ela necessitava ter para ser completa; pertencer a alguém, servir a
alguém, cuidar de alguém, parir alguém, nutrir alguém - para isso a nubente era preparada,
não lhe importando se esse alguém lhe devotaria o mesmo cuidado e se na relação com ela
depositaria as mesmas esperanças e o mesmo afã.
Os romances publicados na época, edulcorados, faziam as moças devanear, sonhando
com um noivo perfeito - quando os noivos para elas destinados quase nunca correspondiam a
essas expectativas hiperbólicas e geravam frustrações incontornáveis. A maior preocupação
das famílias era ter suas filhas casadas e, em especial, com homens ricos e que rendessem um
bom dote. Jane Austen critica esses costumes sociais de maneira recorrente em suas obras,
como vimos mencionando até agora. Em Emma (1815), por exemplo, diferentemente das
demais protagonistas suas, a deste romance era uma moça rica; tinha aulas de piano, pintura e
boas maneiras, sendo “uma moça casadoira e pronta para “casar”. Ela, contudo, jamais

4Direito à primeira noite - comum na época medieval, se referia ao poder que o senhor feudal tinha de desvirginar na primeira
noite de núpcias, a noiva de seus servos. (Google Acadêmico - CALIL, Lea E. S. Um Novo Desafio no Combate ao Assédio
Sexual no Trabalho: a manutenção do emprego. 1999. Disponível em: ^http:www.mundo filosóficos.com.Br/lea2.htm~^
demonstraria interesse no matrimônio e usaria seu status para fugir dele. Contrariamente a
isso e endossando o pensamento de Austen, Woolf (2013) afirma:

Em todas as minhas várias viagens, só vi dois tipos de pessoas, e muito parecidas


entre si,a saber:homens e mulheres. Meu aforismo dizia assim: homens e mulheres
são realmente mais parecidos do que possam imaginar; mas não devem se
comportar entre si como se isso fosse verdade. (WOOLF, 2013, p. 15).

Woolf (2013), nesse trecho, enfatiza a igualdade de gênero ideal entre homens e
mulheres, mas como vivemos em uma sociedade patriarcal e, por isso, dual, os homens
tendem a apresentar uma masculinidade tóxica, eivada de sexismo e misoginia que os faz
rechaçar as características neles que os igualam às mulheres, tal como a sensibilidade, que
eles interpretam como fraqueza por ser uma peculiaridade socialmente associada ao sexo
feminino.
No romance Razão e Sensibilidade (1811), Jane Austen é irônica quanto aos costumes
sociais da época. Mesmo pertencendo a uma sociedade de regras de conduta rígidas, as irmãs
Mariane e Elionor Dashwood mostram que uma família formada só por mulheres pode, sim,
fazer a diferença; que elas, apesar de serem tidas como inocentes e de estarem desguarnecidas
de homens em casa, são vanguardistas,autossuficientes e empoderadas. Esse comportamento,
diferente do esperado, corrobora o que preconizava uma das precursoras do feminismo, já
naqueles idos: “Fortaleça a mente feminina aumentando-a, e haverá um fim à obediência
cega.”. (WOLLSTONECRAFT, 2004, p. 34).
Para Wollstonecraft (2004), a mulher era estrategicamente ensinada a ser pacífica e
subordinada ao homem e a ter uma figura masculina para seu sustento e proteção (desde o
patriarca, passando pelos pais e irmãos e chegando até os cônjuges e filhos) porque isso
favorecia (e segue favorecendo) o patriarcado. Contudo, ela mostrava, em seu discurso, que
essa é uma visão errônea e que faz com que a mulher tenha uma obediência cega aos homens,
sem se questionar a respeito dessa submissão.A mulher é dona de si e deve prescindir dessa
figura opressora que usa a desculpa do “cuidado” para controlá-la, assim como deve
prescindir desse dote traiçoeiro, que a prenderá a um casamento muitas vezes insípido.
Segundo ela, pelo que vemos na citação que fecha o parágrafo anterior a este, o meio para
romper tais barreiras é a educação: quanto mais instruída for uma mulher, menos dependente
ela é e será da égide masculina castradora.
Tanto isso é verdade que ela mantinha um casamento heterodoxo com seu
companheiro, William Godwin, um filósofo ateu como ela o era também. Quando morreu,
onze dias após dar à luz à sua filha Mary, Godwin encarregou-se pessoalmente da primorosa
educação que foi destinada à então criança que um dia chegaria a desafiar a sociedade ao
namorar um homem casado, Percy Shelley, com ele fugir, provocando o suicídio da esposa
deste, que estava grávida, e inaugurar um gênero textual com seu insubstituível Frankenstein
- ou O Prometeu Moderno (1818). Mary Shelley, a criadora da ficção científica, é uma das
autoras que também estudamos nesta primeira edição do Grupo de Estudos Filhas de Avalon,
sendo homenageada neste e-book com um artigo escrito por membros nossos,
colaborativamente.
Alves e Pitanguy (1985) ressaltam a necessidade de as mulheres lutarem por seus
direitos. Jane Austen foi uma revolucionária, já que seus romances mostravam, em
inequívoco tom de censura, o que era socialmente aceito como normal. Para muito além
disso, percebemos que a autora transfere para as personagens femininas basilares de suas
obras idem, muito de si mesma. A ela não lhe interessavam nem o casamento nem a
maternidade (um comportamento questionável naquele contexto - como ainda o é até hoje),
assim como esse binômio esposa-mãe não fazia parte dos desejos de suas heroínas, que
preferiam ser conhecidas por sua educação e liberdade, pelo protagonismo com o qual
vivenciavam os papéis sociais que a sociedade oitocentista britânica, rígida e ao mesmo
tempo hipócrita, sexista e limitante lhes impunha.
A escritura de Austen exprimia o pensamento de mulheres que, na sua época, já
pensavam diferentemente e ousavam defender suas ideias publicamente, mesmo que se
escondendo por detrás de um pseudônimo a princípio, como ela o fez, e sem contar com o
apoio de seus pares nem de suas iguais, que certamente viam em tal conduta uma aberração -
ainda que desejassem igual comportamento.
Vulgarmente associamos os feminismos à segunda onda do feminismo no Ocidente,
ocorrido na segunda metade do século XX. No entanto, o feminismo per se começou bastante
antes, esparsamente representado na Europa, principalmente, por uma ou outra intelectual
e/ou nobre que se dispunha a enfrentar a sociedade e as consequências que viessem a partir
do momento que se desse a conhecer sobre o que advogavam. Dentre essas pioneiras,
podemos citar, além de Mary Wollstonecraft (1759), Olympe de Gouges (1748), Maria
Firmina dos Reis (1825) Virginia Woolf (1882), Simone de Beauvoir (1908), Lygia Fagundes
Telles (1923), entre tantas outras escritoras revolucionárias, nacionais e internacionais,
muitas delas por nós estudadas no Grupo de Estudos Filhas de Avalon, e que contribuíram
para que as mulheres de seu tempo e de seu entorno tivessem seu espaço, pudessem ser
ouvidas, colocando o feminismo e o feminino em pauta.

Olympe de Gouges, pseudônimo de Marie Gouze, foi uma dramaturga francesa que
reivindicou os direitos das mulheres, criticou as mazelas do Antigo Regime escreveu a
Declaração dos Direitos das Mulheres e da Cidadã (1791), uma crítica à Declaração dos
Homens e Cidadãos (1789), em plena Revolução Francesa. Em seu texto, ela defende a
igualdade de gênero; os direitos da mulher na vida política, jurídica e social; o direito ao
trabalho e à igualdade salarial; o direito à propriedade para as mulheres casadas e a reforma
das leis matrimoniais, beneficiando as mulheres, além das obrigações como a igualdade penal
para ambos os sexos. Por causa de suas ideias, no mínimo atípicas, Olympe foi considerada
uma mulher perigosa e insubordinada, sendo peremptoriamente silenciada: foi condenada à
morte na guilhotina em 1793.
Gouges foi uma das pioneiras do movimento feminista e inspirou as gerações de
feministas que lhe seguiram. Podemos ver a força de seu discurso por esse trecho da
Declaração supracitada:

Mulheres! Mulheres, quando deixareis de ser cegas? Quais são as vantagens que
obtivestes na Revolução? Um menosprezo mais marcado, um desdém mais
perceptível. Durante os séculos de corrupção vós só conseguistes reinar sobre a
fraqueza dos homens. Vosso império está destruído; o que vos sobra? A convicção
das injustiças do homem5.

Em solo nacional, tivemos e temos as nossas feministas inspiradoras também - e


muitas. Dentre elas, Maria Firmina dos Reis, Lygia Fagundes Telles - ambas estudadas por
nós em nosso Grupo de Estudos e homenageadas no Volume 2 deste e-book, dedicado às
autoras nacionais por meio de artigos escritos por nossos membros..
Filha de uma escrava alforriada, nascida no Maranhão, em 1822, criada por sua tia e
sua avó maternas após a morte precoce de sua genitora, Maria Firmina dos Reis foi uma
professora e uma romancista que quebrou paradigmas e estereótipos no século XIX. Seu
único romance (Úrsula, 1859) deu lugar de fala aos escravizados africanos pela primeira vez
na Língua Portuguesa, assim como ineditamente desmistificou a África e questionou a
escravidão, sendo o primeiro romance escrito por uma mulher negra em Língua Portuguesa e
na América Latina abordando esses temas. Além disso, Firmina foi a primeira funcionária
pública do Maranhão e a primeira educadora a criar uma escola mista e gratuita em seu

5 Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. Civilistica.com. Rio de Janeiro: a. 7, n. 1, 2018.


estado, um ano antes de se aposentar, aos cinquenta e quatro anos de idade. Contudo, por ter
sido grande em meio a mentes medíocres que não a valorizaram, foi condenada ao
ostracismo, passando mais de cem anos no limbo do esquecimento literário canônico e
somente sendo descoberta há poucas décadas - e completamente por acaso.
Violências contra mulher em relacionamentos abusivos, racismo e desigualdades
sociais e de gênero são expressivas nas obras de Firmina, abordadas não só no espaço de
relação entre marido e mulher, mas entre tio e sobrinha, irmão e irmã, senhor e escrava:

É que entre ele e sua esposa estava colocado o mais despótico poder: meu pai era o
tirano de sua mulher; e ela, triste vítima, chorava em silêncio, e resignava-se com
sublime brandura. Meu pai era para com ela um homem desapiedado e orgulhoso –
minha mãe era uma santa e humilde mulher. Quantas vezes na infância, malgrado
meu, testemunhei cenas dolorosas que magoavam, e de louca prepotência, que
revoltavam! (REIS, 2004 , p. 82).

Lygia Fagundes Telles, a “Maior Escritora Brasileira Viva”, a “Dama da Literatura


Brasileira”, ganhadora do Prêmio Camões de Literatura, do Prêmio Jabuti e de muitos outros,
a única escritora brasileira até hoje a ser indicada ao Prêmio Nobel de Literatura apresenta,
em suas obras, um universo marcadamente feminino. Apesar de ter ojeriza à união de seu
nome ao adjetivo “feminista”, Lygia é uma escritora que valoriza a egrégora feminina e
aborda questões ligadas a ela, como emancipação e os papéis sociais da mulher por meio de
personagens que buscam lugares sociais incomuns.
A construção das personagens Lorena, Ana Clara e Lia, protagonistas de As Meninas
(1973), seu romance mais conhecido, aborda a representação feminina: as três figuras
desconstroem conceitos pré-formados e apontam para as singularidades das mulheres,
apresenta ainda a subversão dos modelos padronizados, que mostram uma relação de
insubordinação ao modelo apresentado por seus corpos. Essa característica da narrativa
vincula-se ao pensamento feminista de revisão e quebra de modelos sociais preestabelecidos.
Lygia ousou tocar em temas como drogas, liberdade sexual feminina, aborto, abuso infantil,
homossexualismo e, principalmente, tortura e ditadura - em plena ditadura militar.
Todas essas autoras e, com especial destaque, Jane Austen, deram e dão lugar ao
feminino na Literatura, mostrando como os modelos patriarcais silenciaram e seguem
silenciando as mulheres e como estas escritoras colaboraram e colaboram, à sua maneira,
criando um espaço de inserção do feminino nestas sociedades falocêntricas através de suas
personagens ousadas, intrépidas e suas ações idem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo teve por objetivo analisar os elementos utilizados por Jane Austen, em
seis de seus romances, de modo a refletirmos sobre a importância da mulher soerguer sua voz
com o fito de que ela fosse ouvida na sociedade, chamando a atenção para os rígidos padrões
exigidos às mulheres em uma sociedade patriarcal, tais como: o enlace matrimonial arranjado
em prol de status social/financeiro, a maternidade como essencial ao elemento feminino,a
submissão a égide do macho e as consequentes desigualdades de gênero.
Austen exprime suas próprias convicções por meio de suas personagens espirituosas,
singulares, intrépidas, inspiradas e inspiradoras, que alçam sua subjetividade elevando a voz
na reivindicação de seus direitos,buscam espaço social, prescindem de matrimônio e filhos,
passam ao largo das ambições materiais e criticam as regras de uma sociedade patriarcal e
injusta para com as mulheres. Austen, ousadamente, cria para essas heroínas um lugar de fala
por onde ela própria, emprestando seu discurso, defende ideias reprováveis se consideradas
sob ótica dos paladinos morais de seu tempo.
Analisamos as obras Razão e Sensibilidade (1811), Orgulho e Preconceito (1813),
Mansfield Park (1814), Emma (1815), A Abadia de Northanger (1818) e Persuasão (1818), e
através das personalidades marcantes de suas heroínas, foi-nos possível observar as
diferenças de gênero, as pressões sociais que elas sofriam, sua necessidade de expressão da
subjetividade e as críticas que teciam a costumes e tradições vetustos, que as prendiam a
grilhões misóginos e acachapantes.
Além de Jane Austen, outras escritoras que a antecederam e a sucederam também
criticaram, em suas obras, as desigualdades sociais e de gênero, o sistema patriarcal
dominante e os limitados papéis sociais femininos fora do ambiente doméstico. Escritoras do
quilate de todas as que são homenageadas por nós, Filhos e Filhas de Avalon, neste e-book e
no outro, publicado em paralelo e dedicado às autoras brasileiras. Todas essas autoras, como
outras do universo feminino, colocam em pauta questões que pertencem ao campo do
movimento feminista, tendo como protagonistas mulheres independentes e que revolucionam
as tramas dos romances aos quais estão ligadas, criticando o patriarcado, recusando regras e
padrões impostos por ele e se rebelando contra.
Embora Jane Austen tenha vivido muito antes do surgimento da abordagem feminista
na crítica literária, fica claro que ela desenvolveu idéias bastante revolucionárias para o seu
tempo nesse sentido, no tocante à representação da voz feminina. Nos seis romances
estudados nesta pesquisa, ela defende seu ponto de vista não convencional para a sua época,
correndo o risco de ser rechaçada em termos editoriais, mas, inesperadamente, não foi isso o
que aconteceu. Pelo contrário: com sua obra ineditista, tais como as de Mary Shelley e de
Maria Firmina dos Reis, apenas para citar duas dentre tantas, ela encorajou as mulheres que a
liam a ganharem força para se fazerem ouvir, para lutarem por igualdade de direitos,
liberdade e, sobretudo, felicidade.

REFERÊNCIAS

ALVES, Branca Moreira; PITANGUY, Jacqueline. O Que é Feminismo. São Paulo: Abril,
1985.

AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito; Razão e Sensibilidade; Persuasão. Tradução e


Notas de Alda Porto, Adriana Sales Zardini, Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martin Claret.
(Box – Edição Especial). 1 ed., ,2015a. AUSTEN, Jane. Emma; Mansfield Park; A
Abadia de Northanger. Tradução e Notas de Alda Porto, Adriana Sales Zardini, Roberto
Leal Ferreira. São Paulo: Martin Claret. (Box – Edição Especial). 1 ed., 2015 b.

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Tradução de Sérgio Milliet. 4 ed. São Paulo:
Nova Fronteira, 2014.

BATISTA, Keliane Ferreira. Relações de gênero em Persuasão, de Jane Austen. 2017. 64f.
Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Letras-Língua Inglesa) - Centro de
Formação de Professores, Universidade Federal de Campina Grande, Cajazeiras, Paraíba,
Brasil, 2017.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de


Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

FREIRE, Luana Justino. Representações paradoxais do feminino no século XIX: uma


análise comparativa entre Orgulho e Preconceito, de Jane Austen e Tess, de Tomas
Hardy. - Guarabira: UEPB, 2011. Artigo Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em
Letras) - Universidade Estadual da Paraíba. Orientação: Prof. Ms. Suênio Stevensen Tomaz
da Silva.

GOUGES, Olympe de. Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. Civilistica.com.


Rio de Janeiro: a. 7, n. 1, 2018. ESSA REFERÊNCIA NÃO ESTÁ NO TEXTO.

HOOKS, Bell. O Feminismo é Para Todo Mundo: políticas arrebatadoras. Tradução de


Bhuvi Libanio. 13 ed. Rio de Janeiro: Rosas dos Tempos, 2020.
MOURA, Fernanda Korovsky. A sensibilidade de Marianne Dashwood: um olhar
feminista sobre a personagem de Jane Austen. 2015. 85f. Trabalho de Conclusão de Curso
(Licenciatura em Letras Português-Inglês) - Universidade Tecnológica Federal do Paraná.
Curitiba, 2015.

TELLES, Lygia Fagundes. As Meninas.5ºed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.

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