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DIALOGOS ENTRE

GERACOES NA FLORESTA
SEMANA CHICO MENDES 2020

Ilustrações: Flora Wewito Piyãko e Acelino Sales Kaxinawa


ALIANCA POVOS DA FLORESTA
Vera Olinda

O ano de 2020 foi marcado por muitos desa ios e Para nó s da CPI-Acre nos juntar ao Comitê Chico
pela grave crise da pandemia do coronavıŕus, Mendes, e aos demais organizadores da Semana,
trouxe à tona muitas inquietaçõ es e, com mais é uma das formas de, nã o só homenagear o Chico
força, despertou em nossos coraçõ es e mentes o Mendes, mas dar continuidade ao seu legado.
desejo de aproximaçã o. A lorou assim o
sentimento de solidariedade, a resiliê ncia, o olhar As vozes aqui apresentadas sã o de lideranças
mais apurado para as lutas e batalhas que temos indıǵenas, extrativistas e també m de seus
vivido nos ú ltimos tempos. Na crise causada pela parceiros e parceiras. Pretendemos com essas
pandemia, e també m na crise moral que se vozes aquecer o debate e dar mais força para
instalou no Brasil desgovernado, estamos açõ es concretas que possam garantir a
enfrentando terrıv́eis ameaças e retrocessos manutençã o de direitos plenos, a conservaçã o da
contra os direitos dos povos da loresta – povos loresta Amazô nica, com sua rica e singular
indıǵenas e populaçõ es e comunidades sociobiodiversidade. O esforço coletivo da
tradicionais. Aliança dos Povos da Floresta vai assim, muito
mais adiante que barrar retrocessos. Se coloca
Os atropelos sã o tantos que a vigıĺia dos povos nã o como uma soluçã o para todo o Planeta, já dada e
pode apagar. Este ano, a Semana Chico Mendes comprovada. Precisamos é de governo civilizado
está organizada com o tema Aliança Povos da para entender isso e fazer o que é sua obrigaçã o.
Floresta com uma programaçã o que dialoga com a
origem da Aliança e o signi icado dela para o Lutar por isso nos une, como veremos a seguir.
momento atual. Para apoiar uma necessá ria Desejamos boa leitura, ao tempo em que
reorganizaçã o dessa uniã o entre povos é que manifestamos que, apesar de estarmos no
escolhemos organizar e divulgar neste espaço, pesadelo do cená rio devastador com investidas
alguns depoimentos, textos, fotos e desenhos, de contra os povos da loresta, temos orgulho de
diferentes vozes e olhares, sobre a vida na loresta seguir a caminhada com emoçã o, buscando
e a importâ ncia da articulaçã o entre os povos, em criatividade e mantendo a alegria! Viva o Chico
uma perspectiva de passado, presente e futuro, Mendes e viva todos os povos da loresta!
com um horizonte repleto de desa ios.
Foto: Estevão Ribeiro
Agentes Agro lorestais Indígenas (AAFIs) e extrativistas intercambiando práticas produtivas
Ilustração: Aldemir Mateus Biná e José Samuel Txana

ARTICULACAO ENTRE OS POVOS


Angela Mendes – Coordenadora do Comitê Chico Mendes

A Amazô nia é um bioma de muita riqueza e tudo Infelizmente, para as autoridades supremas ela é
que você precisa para viver tem de lá . Nesse vista assim, como um grande empecilho ao
perıo
́ do de pandemia acho que das pessoas que desenvolvimento, que é um modelo excluı,́ na
estiveram mais seguras, foram as que verdade. E um desenvolvimento pautado na
permaneceram na loresta. Se nã o fossem pessoas intensa degradaçã o dos recursos naturais para
que iam daqui da cidade para dentro das atender uma parcela muito pequena da
comunidades, os extrativistas, os indıǵenas, os populaçã o privilegiada desse mundo, desse
quilombolas, estariam mais seguras. Porque lá na planeta. Entã o, é um desenvolvimento que nã o é o
loresta você tem o alimento de cada dia. Lá você desenvolvimento que as populaçõ es que moram
tem um ar de qualidade para respirar. Você tem na Amazô nia, pregam e defendem.
abrigo. Entã o, ela acolhe realmente, ela abriga e é
diversa, plural. Meu pai sempre defendeu a valorizaçã o da
loresta em pé . Da loresta viva. E o convıv́io
A Amazô nia é rica, mas també m é pobre porque, harmonioso entre seus moradores e a loresta. E
à s vezes, tem comunidades, tem famıĺias que isso tem garantido muito a permanê ncia dessas
realmente nã o conseguem sair daquele inıćio ali pessoas que tê m essa relaçã o mais harmoniosa. E
de necessidade...Porque nã o conseguiu acesso a essa relaçã o com base em boas prá ticas e em uma
polıt́icas pú blicas adequadas, que sã o sustentabilidade é o que continuamos a construir
extremamente necessá rias. Há famıĺias que nessa articulaçã o entre os povos, por isso a
acessam essas polıt́icas de educaçã o, de saú de, importâ ncia da Aliança Povos da Floresta. Essa
acesso a agua potá vel. Há as que nã o conseguem uniã o garante que ainda tenhamos uma loresta.
ainda comercializar seu produto, porque falta um A Amazô nia que precisa que todas nó s e todos
ramal... A gente tem problemas, mas a gente tem nó s cuidemos dela.
grandes soluçõ es. A Amazô nia nã o é um grande
problema, é uma grande soluçã o para muitos dos
males desse sé culo e desse mundo.

* Trecho do depoimento realizado por Angela Mendes na abertura da Semana Chico Mendes 2020.
ENTREVISTA
Com Txai Terri Aquino

Isabel Aquino: Txai, fala um pouco sobre a Essas empresas agropecuá rias que compraram os
organizaçã o da Aliança dos Povos da Floresta no seringais a preço de banana no Acre na dé cada de
Acre. Faz um resumo da histó ria para os mais 70. E nó s temos esse inimigo comum, esses novos
jovens. donos do Acre que estã o expulsando os
seringueiros das colocaçõ es e estã o tirando os
Txai Terri Valle de Aquino: A primeira vez que direitos e territó rios de você s antes dos seringais,
eu ouvi falar sobre a Aliança dos Povos da entã o eu acho que tá no tempo da gente fazer
Floresta foi com o Chico Mendes. Na realidade a uma aliança dos seringueiros e dos indıǵenas e
ideia da aliança entre os Povos da Floresta surgiu criar a Aliança dos Povos da Floresta”.
antes de sua pró pria fundaçã o em 1989 que,
como tudo, você nã o cria de repente uma ideia, Logo que os seringais foram estabelecidos aqui
ela vai sendo construıd ́ a ao longo do tempo até no Acre, o seringueiro icava preocupado porque
serem formalizadas. os ın
́ dios isolados iam lá saquear suas barracas,
naquelas colocaçõ es de centro, nas cabeceiras dos
As lideranças indıǵenas começaram a se reunir rios, nã o é ? E com isso os patrõ es seringalistas
em Assembleias para lutarem por suas terras, reuniam os seringueiros para organizar correrias
para melhorar as condiçõ es de comercializaçã o e massacrar os ın ́ dios.
de sua produçã o de borracha, lutar por saú de, por
educaçã o indıǵena nas suas terras e Eu sei no bojo dessas Assembleias Indıǵenas as
comunidades. Essas assembleias indıǵenas lideranças indıǵenas no Acre, já estavam lutando
surgiram em meados dos anos 80, entre 84 e 87, e pela demarcaçã o das terras há muito tempo e os
o Chico Mendes estava levando essa luta sindical seringueiros ainda nã o estavam lutando por terra.
no Vale do Acre, Xapuri, Brasilé ia, que se Nas primeiras assembleias, entre 83 e 84, ainda
interessou a conhecer as reivindicaçõ es dos para nã o serem expulsos das colocaçõ es. Para se
ın
́ dios e a participar de suas assembleias. A manterem nas colocaçõ es, mas ainda nã o estavam
primeira vez que eu ouvi o Chico falando sobre falando na criaçã o das Reservas
isso foi em uma dessas Assembleias Indıǵenas, Extrativistas. Essa ideia começou a ser discutida
em 84 ou 85. Mas o Chico Mendes falou e eu me em 85, com a criaçã o do Conselho Nacional dos
lembro. Ele disse: “olha, nó s fomos muito usados Seringueiros –CNS. Mas antes os ın ́ dios diziam
contra você s pelos patrõ es de seringal e agora assim: “tudo bem, está certo Chico Mendes, nó s
nó s estamos em uma é poca que os patrõ es se podemos fazer aliança com os seringueiros e criar
acabaram e agora tem os paulistas que querem a Aliança dos Povos da Floresta, mas queremos
ser donos do Acre, nã o é ? que você s tenham a terra de você s, que você s
lutem por terra para você s, á reas para você s.”

Isabel Aquino: Era um recado para nã o haver


disputa pela terra? Ou seja, Terras Indıǵenas
demarcadas e Reservas Extrativistas criadas
legalmente.

Txai Terri Valle de Aquino: Isso. O Chico


Mendes começou a colocar també m em suas
reuniõ es, com os sindicatos em Xapuri e em
Brasilé ia, por onde ele andava e no Vale do Juruá
també m.
Txai Terri Aquino
Foto: Leilane Marinho
Entã o ele começou a dizer: “mas sabem que os Isabel Aquino: E quais os frutos dessa Aliança
ın
́ dios tem razã o? Será que nã o está na hora da dos Povos da Floresta?
gente també m começar a pensar nisso, em nó s
termos as nossas reservas? Vamos pensar em Txai Terri Valle de Aquino: Eu acho que o fruto
Reservas Extrativistas? E a maneira como foi da Aliança dos Povos da Floresta foi o
pensada por Chico Mendes e seus assessores, reconhecimento, na regiã o do Vale do Juruá , de
como a antropó loga Mary Allegretti e o professor 03 Reservas Extrativistas: a RESEX Alto Juruá que
Mauro Almeida, da Unicamp, o modelo de foi a primeira a ser conhecida, no Brasil e no
Reserva Extrativista, é muito semelhante a ideia mundo, a RESEX Riozinho da Liberdade e a
de Terra Indıǵena. A á rea é da uniã o, é uma terra RESEX Alto Tarauacá . Essa trê s surgiram nesse
coletiva, de usufruto das populaçõ es que vivem ali conjunto dessa Aliança. També m teve o
tradicionalmente, tem uma associaçã o que pode reconhecimento de Terras Indıǵenas, que é
propor [a criaçã o da Reserva Extrativista]. justamente essa aliança dos dois lados. Esse
Discutir, mobilizar, para ter associaçõ es locais, trabalho da aliança permitiu també m inanciar
organizaçõ es de extrativistas para apresentar a todas as cooperativas indıǵenas e das trê s
proposta. E o Chico Mendes estava muito aberto Reservas Extrativistas com recursos de projetos
para esse lado ambiental, e defendendo que nã o comuns. No Vale do Juruá essa Aliança se
signi ica só a defesa da loresta, mas signi ica concretizou. A luta dos seringueiros e dos ın ́ dios
també m a loresta para os seringueiros. tinham projetos comuns. Como por exemplo o
Projeto de Desenvolvimento Comunitá rio
Entã o eu acho que essa discussã o sobre a aliança inanciado pelo BNDES, que já nos anos 89/90,
já ajudou os seringueiros a formular um bene iciou a Reserva Extrativista do Alto Juruá e
conceito, a pensar també m sua reserva, como os també m as Terras Indıǵenas daquela regiã o. Isso
povos indıǵenas estavam pensando suas Terras fortaleceu um trabalho bem anterior que a
Indıǵenas a dé cada de 70. Começaram em 76 ou pró pria CPI-Acre estava fazendo no Juruá , que era
77 as identi icaçõ es de á reas indıǵenas no Acre. E fortalecer as cooperativas indıǵenas para que os
os ıń dios a irmaram para o Estado: “Isso é ın
́ dios se organizassem em suas terras por conta
fundamental, nossa cultura nã o existe no espaço, pró pria, independente dos patrõ es seringalistas.
ela existe numa terra, num territó rio. Entã o é a
coisa mais importante da nossa luta nã o é a terra Nesse sentindo, os seringueiros aprenderam com
no sentindo restrito, mas é a loresta, sã o os rios, os indıǵenas. Essa forma de se organizar em
sã o animais. E de onde a gente tira nossa cooperativas. Logo veio a formaçã o de
proteın ́ a...” Entã o a de Terra Indıǵena e Reserva professores indıǵenas, os agentes indıǵenas de
Extrativista sã o muito semelhantes. saú de. No Vale do Juruá , o modelo como os ın
́ dios
estavam fazendo foi apropriado pelos
A Aliança dos Povos da Floresta já proporcionou seringueiros como instrumento de luta e
esse entendimento que o fundamental era a terra, conquistaram essas trê s Reservas Extrativistas.
o territó rio, tanto para os ın
́ dios quanto para os Esse é o ganho principal, segurar a loresta nas
seringueiros. A Aliança já ajudou nessa mã os dos povos indıǵenas e das populaçõ es
territorialidade que até entã o estava mais tradicionais.
distante para os seringueiros. O territó rio para as
populaçõ es tradicionais da loresta nã o indıǵena,
veio da mesma maneira que os ın ́ dios estavam
lutando por suas terras. E o conceito em si, nã o é
de propriedade ou reforma agrá ria, pois até entã o
os nã o indıǵenas lutaram por reforma agrá ria. E o
Chico Mendes viu inspiraçã o na luta indıǵena por
territó rio. Uma luta coletiva, nã o uma coisa
individual, nã o é um lote, é um territó rio,
entendeu?
VOZES DA FLORESTA
UM DIÁLOGO CONJUNTO
“Vozes da Floresta” são depoimentos de Josias Maná
lideranças indígenas e extrativistas,
protagonistas na implementação e Antes eram seis seringais, agora sã o vá rias
consolidação de estratégias de proteção aldeias. Até que foi crescendo e hoje nó s temos
36 aldeias. Com o recurso da associaçã o indıǵena
territorial, que resultam das o icinas de gestão foi que conquistamos a Terra Indıǵena Seringal
integrada, realizadas pela CPI-Acre, AMAIAAC, Independê ncia. Quando surgiu o cargo de AAFI,
ASAREAT e ASKARJ, com apoio do projeto com apoio de professor e AIS. Porque para caçar,
Corredor Socioambiental Alto Juruá – Purus: pescar, tem que ter um plano. Um plano de vida e
Conservação de lorestas e direitos dos povos de trabalho. Nã o é qualquer dia qualquer hora,
indígenas e tradicionais. queimar e destruir. Nó s criamos o nosso plano
para as pessoas se ouvirem, se entenderem. A
loresta nã o acaba, mas nó s sim, né ? Nó s temos
representantes de cada aldeia para ajudar,
contribuir. As trê s terras indıǵenas e a RESEX Alto
Tarauacá faremos um diá logo conjunto. E os mais
velhos criaram um espıŕito forte para isso aqui.
Nó s nã o somos ricos de dinheiro, a nossa riqueza
é a loresta. Por isso a natureza agradece. Por isso
tem que se monitorar o plano.

PRECISAMOS ORGANIZAR
MUITO MAIS O QUE SOMOS JUNTAR OS POVOS
José de Araújo – Resex Chico Mendes João Braz

Quero dizer que a luta nã o acabou. O nosso cená rio Quando fala de gestã o territorial integrada, é o
é tenso e querem acabar com a gente. Nã o é só no que a gente está falando aqui, juntar, integrar os
cená rio politico, porque o que tem de invasores, de povos, as instituiçõ es que cuidam, porque a forma
pessoas que nã o dependem da Reserva para de vida é parecida, os costumes sã o parecidos, sã o
sobreviver... Talvez isso seja até pior. Quando foi todos populaçõ es tradicionais e nada mais justo
criado o plano de uso, foi para ins de pessoas que do que fazer essa gestã o, administraçã o, esse
vivem aqui. Muitas vezes nã o pensamos nisso, cuidado, como o Maná falou, de forma integrada,
porque tem gente que vende estrada de seringa
junto, procurando parcerias para que saia dali o
para pessoas que nã o dependem da Reserva. Nó s
resultado també m integrado para que todas as
temos que mudar a nossa concepçã o das pessoas
que moram aqui. Se o governo acabar com a RESEX populaçõ es tradicionais possam disfrutar disso
tem que mudar com muitas leis, isso demora. Nada juntamente.
mais estamos fazendo do que o que faziam antes,
porque isso já existia e foi por isso que Gestã o territorial integrada dessas á reas é isso
conseguimos tanta coisa. Porque a mesma dor que que nó s estamos fazendo aqui hoje, nó s estamos
os indıǵenas sentem, nó s sentimos. Acho muito integrando as populaçõ es indıǵenas com a
louvá vel dizer que a luta nã o para. Precisamos extrativista em prol de um mesmo objetivo
organizer muitos mais o que somos. comum.
LUTANDO POR TODAS AS TERRAS naquela é poca a ''Aliança dos Povos da Floresta'',
que seria todos nó s a lutar pelo seu modo de vida
Jaime Manchineri - TI Cabeceira do Rio Acre da sua forma tradicional e isso repercutiu um
sucesso muito grande.
E bom ter mais re lexõ es. A populaçã o aumenta e
a terra indıǵena nã o. Agora o governo quer Tanto ın ́ dios como seringueiros e ribeirinhos
diminuir nossa terra? Nó s nã o tomamos terra de lutavam pela sua libertaçã o, libertaçã o essa que a
outras pessoas. Os invasores é que tomam nossa intensã o daquela é poca para cá era tanto
terra. Os nossos governantes nã o pensam nisso, Reservas Extrativista, Terras Indıǵenas, que cada
por isso é bom discutir e começar a encaminhar. um de nó s pudesse se libertar das mã os dos
Eu morei anos no Mamoadate, aı́ me mudei para patrõ es. Nó s mesmos nos dizer donos dos nossos
a Cabeceira do Acre. E queria dizer que estamos territó rios; nó s mesmos zelar por eles, que é a
lutando por todas as terras. nossa cultura, que é cuidar dessa riqueza da
nossa biodiversidade, da nossa fauna brasileira e
onde tem isso.
FRONTEIRAS PROTEGIDAS Já imaginou se a gente deixa essa fera, esse
PELOS FILHOS DESSE LUGAR dragã o que vem de lá para cá destruindo tudo,
que é a soja, a produçã o de animais, que vem
Osmildo Kuntanawa destruindo tudo, essa loresta que tem aqui. Para
onde nó s vamos? Fica só debaixo de uma casinha
Essa luta sobre Unidades de Conservaçã o, dessa! Será que nó s vamos suportar o sol? Como
Reservas Extrativistas, Terras Indıǵenas, Parque é que vai icar a situaçã o das nossas á guas? A
Nacional, ela nã o é uma histó ria de agora, aqui onde nó s vamos estar saciando a nossa sede, a
no Alto Tarauacá ele chegou agora a partir de sede do nosso povo? A Reserva Extrativista e as
2000 para cá . Em 1986 já se trabalhava com o Terras Indıǵenas da forma que estava a Aliança
sindicato, já se iniciava, em 1984 a luta dos dos Povos da Floresta, ela trabalhava nesse
sindicatos em Cruzeiro do Sul e começou assim, sentido para que essas fronteiras fossem
como a gente está aqui agora, ın ́ dios e os protegidas pelos pró prios ilhos nativos do lugar,
seringueiros sentados falando do seu modo de desse lugar.
vida, daı́ surgiu a necessidade de ser criado
Foto: Estevão Ribeiro
Agentes Agro lorestais Indígenas (AAFIs) e extrativistas intercambiando práticas produtivas
Foto: Estevão Ribeiro

SOBRE GERACOES
Estevão Ribeiro

Toda vez que visito comunidades indıǵenas ou cinematográ ica, onde os/as mais velhos/as
tradicionais, a questã o intergeracional se ensinam sobre plantas medicinais e os/as mais
manifesta de alguma forma. Eu acho isso de uma jovens ensinam sobre os saberes aprendidos em
riqueza incrıv́el, pois é possıv́el ver que, cursos té cnicos de agro loresta, e por aı́ vai. As
internamente, há um processo natural e mulheres, tornando-se lideranças polıt́icas e
importante de conservar a tradiçã o, os costumes, espirituais notá veis colocam em evidê ncia a
os conhecimentos herdados pelos antigos e, por necessidade de transformaçã o da tradiçã o,
outro, há um movimento, igualmente natural e enquanto, em suas posiçõ es, referenciam sempre
importante, de inovar, de transformar e, à s vezes, os/as suas mais velhos/as sobre o conhecimento
de questionar a tradiçã o. Esse dilema que nã o que apreenderam. Todas essas dinâ micas
tem soluçã o pronta é um desa io eterno, que internas, quando nã o cooptadas pelas dinâ micas
sempre vai apresentar novas situaçõ es e formas externas da ló gica do dinheiro, acabam gerando
diferentes de lidar. O que mais me instiga a uma fortaleza para se relacionar com o mundo
observar é que, nã o apenas a conversa, o diá logo, do branco, tanto para conquistar parcerias,
que tem o seu valor nesse processo, é su iciente. quanto para o embate de ameaças em suas
Parece que esse cruzamento torna-se nã o só culturas e territó rios. Isso porque elas entendem
possıv́el, como harmonioso, quando a prá tica os princıp
́ ios, herdados pela geraçã o anterior, de
revela um ganho para a comunidade... Os jovens uma qualidade de vida que só é possıv́el com a
nã o sã o o futuro, nem os velhos sã o passado. loresta em pé e que, de forma complementar, é
Os dois sã o presentes e acho que isso é o mais preciso entender o mundo do branco até certo
instigante: o que se faz com o que temos aqui e ponto para se apropriar de suas ferramentas.
agora. Nesse sentido, é possıv́el brincar com a
palavra presente e argumentar que há muitos Em linhas gerais, as coisas nã o sã o excludentes.
momentos em que é possıv́el uma economia Os diferentes mundos se sobrepõ em, muitas
polıt́ica da troca intergeracional, onde os/as mais vezes, inclusive, de forma violenta. Talvez o nosso
velhos/as ensinam sobre as plantas medicinais e desa io está em como vamos fazer para que
os/as mais jovens ensinam sobre produçã o esses mundos possam dialogar, se complementar.
O PAPEL DAS ALIANCAS PARA
O ENFRENTAMENTO DAS
CRISES LOCAIS E GLOBAIS
Carolina Schneider Comandulli
A Aliança dos Povos da Floresta (APF), lançada no
inal da dé cada de 1980, consolidou a uniã o de
indıǵenas e populaçõ es extrativistas no Brasil por
um objetivo comum: a luta dos povos da loresta
por seus territó rios, visando garantir o
reconhecimento de direitos diferenciados para
essas populaçõ es. Atualmente, cerca de 30 anos
apó s a criaçã o da APF, a importâ ncia da Aliança
segue atual, mas també m surgem novos desa ios
a serem enfrentados, pois nesses 30 anos o ritmo
de destruiçã o, nã o só da Amazô nia, mas també m
de outros importantes ecossistemas do Planeta
Terra, tem sido extremamente acelerado,
afetando o clima e a vida de todos – humanos e
nã o humanos.

Ao mesmo tempo, muitos povos da loresta


seguem lutando pelo reconhecimento de seus
territó rios, enquanto aqueles que já asseguram
seu direito à terra enfrentam o desa io tanto de Associação Apiwtxa desenvolvendo trabalho com
proteger, quanto garantir o bem viver de suas os povos da loresta na região do Alto Juruá (2016)
comunidades por meio de uma economia Foto: Carolina S. Comandulli
baseada na manutençã o da sociobiodiversidade
destes territó rios. A luta pela proteçã o das
loresta hoje é , mais do que nunca, uma luta de
da Comissã o Pró -Indio do Acre (CPI-Acre) e nas
todos os povos do Planeta, pois o bem-estar da
iniciativas dos povos da loresta para proteçã o de
humanidade depende da saú de e equilıb ́ rio
seus modos de vidas. Está tã o viva na memó ria
desses espaços de vida. Nesse sentido, a
coletiva dos povos indıǵenas e extrativistas do
retomada da força da Aliança dos Povos da
Brasil, que levou a uma promulgaçã o formal e
Floresta é um passo muito importante, que está
pú blica - em janeiro de 2020, na aldeia Piaraçu,
nas mã os dos povos indıǵenas e comunidades
localizada na Terra Indıǵena Capoto/Jarina
tradicionais, assim como na disposiçã o de
durante um encontro nacional convocado pelo
parceiros nacionais e internacionais em apoiar
chefe Raoni Metuktire – por parte da Articulaçã o
iniciativas que fortaleçam a conexã o entre os
dos Povos Indıǵenas do Brasil (APIB) e do
povos da loresta e a preservaçã o da Amazô nia.
Conselho Nacional das Populaçõ es Extrativistas
(CNS) – a declarar a intençã o de de retomar a
A aliança continua viva! Aliança, dados os sucessivos ataques à s
A Aliança nunca morreu. Ela segue viva de muitas conquistas socioambientais alcançadas no Brasil.
formas, como por meio das açõ es realizadas pela Essa declaraçã o englobou nã o apenas o territó rio
Associaçã o Ashaninka do Rio Amô nia – Apiwtxa amazô nico, como espaço de luta e resistê ncia,
junto à s comunidades extrativistas e indıǵenas da mas todos os biomas brasileiros com sua
regiã o do Alto Juruá , que busca fomentar respectiva diversidade humana.
atividades de intercâ mbio de conhecimentos e
experiê ncias em preservaçã o ambiental e Ainda assim, a plena retomada da Aliança
fortalecimento das instituiçõ es de base depende també m da elaboraçã o de uma
comunitá ria. També m segue presente nas açõ es estraté gia coletiva adequada à diversidade
só cio-cultural de diferentes regiõ es e que dê conta luta de todos no Planeta, hoje isso está ainda mais
de responder aos desa ios contemporâ neos. A claro, considerando as evidê ncias nã o só
Aliança surgiu a partir das bases comunitá rias e cientı́ icas, mas vivenciadas por pessoas ao redor
somente tem e icá cia e sentido a partir do olhar, do mundo em relaçã o ao aumento de eventos
diagnó stico e pensamento estraté gico e localizado climá ticos dramá ticos e mudanças no
daqueles que estã o sendo diretamente afetados comportamento dos ecossistemas.
por pressõ es e ameaças a seus territó rios. Poré m,
o olhar local nã o dispensa a aliança com os Desse modo, é necessá rio que nos entendamos
parceiros nacionais e internacionais que estã o como parte de um mesmo organismo vivo – o
atentos e preocupados com o tema. Planeta Terra – e que estejamos todos conectados
para auxiliar um processo de transformaçã o
Paıśes que levam a sé rio a importâ ncia e sistê mica que permita, uma vez mais, que a vida
centralidade dos povos da loresta na preservaçã o (humana e nã o humana) seja um valor maior que
dos ecossistemas sã o partes integrais deste o lucro e o interesse individual – um
movimento. Se na dé cada de 1980 já se percebia entendimento que os povos da loresta já possuem
que a luta pela preservaçã o das lorestas é uma em suas tradiçõ es e que precisa ser
compartilhado.
Foto: Carolina S. Comandulli
Associação Apiwtxa desenvolvendo trabalho com os povos da loresta na região do Alto Juruá (2016)
Realização: CPI-Acre e Comitê Chico
Mendes

Organização e edição: Vera


Olinda e Isabel Aquino

Colaboração: Estevã o Ribeiro

Diagramação: Camila Martins

Apoio:

Ilustração: Edilene Sales Yaka


Foto: Estevão Ribeiro

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