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GERACOES NA FLORESTA
SEMANA CHICO MENDES 2020
O ano de 2020 foi marcado por muitos desa ios e Para nó s da CPI-Acre nos juntar ao Comitê Chico
pela grave crise da pandemia do coronavıŕus, Mendes, e aos demais organizadores da Semana,
trouxe à tona muitas inquietaçõ es e, com mais é uma das formas de, nã o só homenagear o Chico
força, despertou em nossos coraçõ es e mentes o Mendes, mas dar continuidade ao seu legado.
desejo de aproximaçã o. A lorou assim o
sentimento de solidariedade, a resiliê ncia, o olhar As vozes aqui apresentadas sã o de lideranças
mais apurado para as lutas e batalhas que temos indıǵenas, extrativistas e també m de seus
vivido nos ú ltimos tempos. Na crise causada pela parceiros e parceiras. Pretendemos com essas
pandemia, e també m na crise moral que se vozes aquecer o debate e dar mais força para
instalou no Brasil desgovernado, estamos açõ es concretas que possam garantir a
enfrentando terrıv́eis ameaças e retrocessos manutençã o de direitos plenos, a conservaçã o da
contra os direitos dos povos da loresta – povos loresta Amazô nica, com sua rica e singular
indıǵenas e populaçõ es e comunidades sociobiodiversidade. O esforço coletivo da
tradicionais. Aliança dos Povos da Floresta vai assim, muito
mais adiante que barrar retrocessos. Se coloca
Os atropelos sã o tantos que a vigıĺia dos povos nã o como uma soluçã o para todo o Planeta, já dada e
pode apagar. Este ano, a Semana Chico Mendes comprovada. Precisamos é de governo civilizado
está organizada com o tema Aliança Povos da para entender isso e fazer o que é sua obrigaçã o.
Floresta com uma programaçã o que dialoga com a
origem da Aliança e o signi icado dela para o Lutar por isso nos une, como veremos a seguir.
momento atual. Para apoiar uma necessá ria Desejamos boa leitura, ao tempo em que
reorganizaçã o dessa uniã o entre povos é que manifestamos que, apesar de estarmos no
escolhemos organizar e divulgar neste espaço, pesadelo do cená rio devastador com investidas
alguns depoimentos, textos, fotos e desenhos, de contra os povos da loresta, temos orgulho de
diferentes vozes e olhares, sobre a vida na loresta seguir a caminhada com emoçã o, buscando
e a importâ ncia da articulaçã o entre os povos, em criatividade e mantendo a alegria! Viva o Chico
uma perspectiva de passado, presente e futuro, Mendes e viva todos os povos da loresta!
com um horizonte repleto de desa ios.
Foto: Estevão Ribeiro
Agentes Agro lorestais Indígenas (AAFIs) e extrativistas intercambiando práticas produtivas
Ilustração: Aldemir Mateus Biná e José Samuel Txana
A Amazô nia é um bioma de muita riqueza e tudo Infelizmente, para as autoridades supremas ela é
que você precisa para viver tem de lá . Nesse vista assim, como um grande empecilho ao
perıo
́ do de pandemia acho que das pessoas que desenvolvimento, que é um modelo excluı,́ na
estiveram mais seguras, foram as que verdade. E um desenvolvimento pautado na
permaneceram na loresta. Se nã o fossem pessoas intensa degradaçã o dos recursos naturais para
que iam daqui da cidade para dentro das atender uma parcela muito pequena da
comunidades, os extrativistas, os indıǵenas, os populaçã o privilegiada desse mundo, desse
quilombolas, estariam mais seguras. Porque lá na planeta. Entã o, é um desenvolvimento que nã o é o
loresta você tem o alimento de cada dia. Lá você desenvolvimento que as populaçõ es que moram
tem um ar de qualidade para respirar. Você tem na Amazô nia, pregam e defendem.
abrigo. Entã o, ela acolhe realmente, ela abriga e é
diversa, plural. Meu pai sempre defendeu a valorizaçã o da
loresta em pé . Da loresta viva. E o convıv́io
A Amazô nia é rica, mas també m é pobre porque, harmonioso entre seus moradores e a loresta. E
à s vezes, tem comunidades, tem famıĺias que isso tem garantido muito a permanê ncia dessas
realmente nã o conseguem sair daquele inıćio ali pessoas que tê m essa relaçã o mais harmoniosa. E
de necessidade...Porque nã o conseguiu acesso a essa relaçã o com base em boas prá ticas e em uma
polıt́icas pú blicas adequadas, que sã o sustentabilidade é o que continuamos a construir
extremamente necessá rias. Há famıĺias que nessa articulaçã o entre os povos, por isso a
acessam essas polıt́icas de educaçã o, de saú de, importâ ncia da Aliança Povos da Floresta. Essa
acesso a agua potá vel. Há as que nã o conseguem uniã o garante que ainda tenhamos uma loresta.
ainda comercializar seu produto, porque falta um A Amazô nia que precisa que todas nó s e todos
ramal... A gente tem problemas, mas a gente tem nó s cuidemos dela.
grandes soluçõ es. A Amazô nia nã o é um grande
problema, é uma grande soluçã o para muitos dos
males desse sé culo e desse mundo.
* Trecho do depoimento realizado por Angela Mendes na abertura da Semana Chico Mendes 2020.
ENTREVISTA
Com Txai Terri Aquino
Isabel Aquino: Txai, fala um pouco sobre a Essas empresas agropecuá rias que compraram os
organizaçã o da Aliança dos Povos da Floresta no seringais a preço de banana no Acre na dé cada de
Acre. Faz um resumo da histó ria para os mais 70. E nó s temos esse inimigo comum, esses novos
jovens. donos do Acre que estã o expulsando os
seringueiros das colocaçõ es e estã o tirando os
Txai Terri Valle de Aquino: A primeira vez que direitos e territó rios de você s antes dos seringais,
eu ouvi falar sobre a Aliança dos Povos da entã o eu acho que tá no tempo da gente fazer
Floresta foi com o Chico Mendes. Na realidade a uma aliança dos seringueiros e dos indıǵenas e
ideia da aliança entre os Povos da Floresta surgiu criar a Aliança dos Povos da Floresta”.
antes de sua pró pria fundaçã o em 1989 que,
como tudo, você nã o cria de repente uma ideia, Logo que os seringais foram estabelecidos aqui
ela vai sendo construıd ́ a ao longo do tempo até no Acre, o seringueiro icava preocupado porque
serem formalizadas. os ın
́ dios isolados iam lá saquear suas barracas,
naquelas colocaçõ es de centro, nas cabeceiras dos
As lideranças indıǵenas começaram a se reunir rios, nã o é ? E com isso os patrõ es seringalistas
em Assembleias para lutarem por suas terras, reuniam os seringueiros para organizar correrias
para melhorar as condiçõ es de comercializaçã o e massacrar os ın ́ dios.
de sua produçã o de borracha, lutar por saú de, por
educaçã o indıǵena nas suas terras e Eu sei no bojo dessas Assembleias Indıǵenas as
comunidades. Essas assembleias indıǵenas lideranças indıǵenas no Acre, já estavam lutando
surgiram em meados dos anos 80, entre 84 e 87, e pela demarcaçã o das terras há muito tempo e os
o Chico Mendes estava levando essa luta sindical seringueiros ainda nã o estavam lutando por terra.
no Vale do Acre, Xapuri, Brasilé ia, que se Nas primeiras assembleias, entre 83 e 84, ainda
interessou a conhecer as reivindicaçõ es dos para nã o serem expulsos das colocaçõ es. Para se
ın
́ dios e a participar de suas assembleias. A manterem nas colocaçõ es, mas ainda nã o estavam
primeira vez que eu ouvi o Chico falando sobre falando na criaçã o das Reservas
isso foi em uma dessas Assembleias Indıǵenas, Extrativistas. Essa ideia começou a ser discutida
em 84 ou 85. Mas o Chico Mendes falou e eu me em 85, com a criaçã o do Conselho Nacional dos
lembro. Ele disse: “olha, nó s fomos muito usados Seringueiros –CNS. Mas antes os ın ́ dios diziam
contra você s pelos patrõ es de seringal e agora assim: “tudo bem, está certo Chico Mendes, nó s
nó s estamos em uma é poca que os patrõ es se podemos fazer aliança com os seringueiros e criar
acabaram e agora tem os paulistas que querem a Aliança dos Povos da Floresta, mas queremos
ser donos do Acre, nã o é ? que você s tenham a terra de você s, que você s
lutem por terra para você s, á reas para você s.”
PRECISAMOS ORGANIZAR
MUITO MAIS O QUE SOMOS JUNTAR OS POVOS
José de Araújo – Resex Chico Mendes João Braz
Quero dizer que a luta nã o acabou. O nosso cená rio Quando fala de gestã o territorial integrada, é o
é tenso e querem acabar com a gente. Nã o é só no que a gente está falando aqui, juntar, integrar os
cená rio politico, porque o que tem de invasores, de povos, as instituiçõ es que cuidam, porque a forma
pessoas que nã o dependem da Reserva para de vida é parecida, os costumes sã o parecidos, sã o
sobreviver... Talvez isso seja até pior. Quando foi todos populaçõ es tradicionais e nada mais justo
criado o plano de uso, foi para ins de pessoas que do que fazer essa gestã o, administraçã o, esse
vivem aqui. Muitas vezes nã o pensamos nisso, cuidado, como o Maná falou, de forma integrada,
porque tem gente que vende estrada de seringa
junto, procurando parcerias para que saia dali o
para pessoas que nã o dependem da Reserva. Nó s
resultado també m integrado para que todas as
temos que mudar a nossa concepçã o das pessoas
que moram aqui. Se o governo acabar com a RESEX populaçõ es tradicionais possam disfrutar disso
tem que mudar com muitas leis, isso demora. Nada juntamente.
mais estamos fazendo do que o que faziam antes,
porque isso já existia e foi por isso que Gestã o territorial integrada dessas á reas é isso
conseguimos tanta coisa. Porque a mesma dor que que nó s estamos fazendo aqui hoje, nó s estamos
os indıǵenas sentem, nó s sentimos. Acho muito integrando as populaçõ es indıǵenas com a
louvá vel dizer que a luta nã o para. Precisamos extrativista em prol de um mesmo objetivo
organizer muitos mais o que somos. comum.
LUTANDO POR TODAS AS TERRAS naquela é poca a ''Aliança dos Povos da Floresta'',
que seria todos nó s a lutar pelo seu modo de vida
Jaime Manchineri - TI Cabeceira do Rio Acre da sua forma tradicional e isso repercutiu um
sucesso muito grande.
E bom ter mais re lexõ es. A populaçã o aumenta e
a terra indıǵena nã o. Agora o governo quer Tanto ın ́ dios como seringueiros e ribeirinhos
diminuir nossa terra? Nó s nã o tomamos terra de lutavam pela sua libertaçã o, libertaçã o essa que a
outras pessoas. Os invasores é que tomam nossa intensã o daquela é poca para cá era tanto
terra. Os nossos governantes nã o pensam nisso, Reservas Extrativista, Terras Indıǵenas, que cada
por isso é bom discutir e começar a encaminhar. um de nó s pudesse se libertar das mã os dos
Eu morei anos no Mamoadate, aı́ me mudei para patrõ es. Nó s mesmos nos dizer donos dos nossos
a Cabeceira do Acre. E queria dizer que estamos territó rios; nó s mesmos zelar por eles, que é a
lutando por todas as terras. nossa cultura, que é cuidar dessa riqueza da
nossa biodiversidade, da nossa fauna brasileira e
onde tem isso.
FRONTEIRAS PROTEGIDAS Já imaginou se a gente deixa essa fera, esse
PELOS FILHOS DESSE LUGAR dragã o que vem de lá para cá destruindo tudo,
que é a soja, a produçã o de animais, que vem
Osmildo Kuntanawa destruindo tudo, essa loresta que tem aqui. Para
onde nó s vamos? Fica só debaixo de uma casinha
Essa luta sobre Unidades de Conservaçã o, dessa! Será que nó s vamos suportar o sol? Como
Reservas Extrativistas, Terras Indıǵenas, Parque é que vai icar a situaçã o das nossas á guas? A
Nacional, ela nã o é uma histó ria de agora, aqui onde nó s vamos estar saciando a nossa sede, a
no Alto Tarauacá ele chegou agora a partir de sede do nosso povo? A Reserva Extrativista e as
2000 para cá . Em 1986 já se trabalhava com o Terras Indıǵenas da forma que estava a Aliança
sindicato, já se iniciava, em 1984 a luta dos dos Povos da Floresta, ela trabalhava nesse
sindicatos em Cruzeiro do Sul e começou assim, sentido para que essas fronteiras fossem
como a gente está aqui agora, ın ́ dios e os protegidas pelos pró prios ilhos nativos do lugar,
seringueiros sentados falando do seu modo de desse lugar.
vida, daı́ surgiu a necessidade de ser criado
Foto: Estevão Ribeiro
Agentes Agro lorestais Indígenas (AAFIs) e extrativistas intercambiando práticas produtivas
Foto: Estevão Ribeiro
SOBRE GERACOES
Estevão Ribeiro
Toda vez que visito comunidades indıǵenas ou cinematográ ica, onde os/as mais velhos/as
tradicionais, a questã o intergeracional se ensinam sobre plantas medicinais e os/as mais
manifesta de alguma forma. Eu acho isso de uma jovens ensinam sobre os saberes aprendidos em
riqueza incrıv́el, pois é possıv́el ver que, cursos té cnicos de agro loresta, e por aı́ vai. As
internamente, há um processo natural e mulheres, tornando-se lideranças polıt́icas e
importante de conservar a tradiçã o, os costumes, espirituais notá veis colocam em evidê ncia a
os conhecimentos herdados pelos antigos e, por necessidade de transformaçã o da tradiçã o,
outro, há um movimento, igualmente natural e enquanto, em suas posiçõ es, referenciam sempre
importante, de inovar, de transformar e, à s vezes, os/as suas mais velhos/as sobre o conhecimento
de questionar a tradiçã o. Esse dilema que nã o que apreenderam. Todas essas dinâ micas
tem soluçã o pronta é um desa io eterno, que internas, quando nã o cooptadas pelas dinâ micas
sempre vai apresentar novas situaçõ es e formas externas da ló gica do dinheiro, acabam gerando
diferentes de lidar. O que mais me instiga a uma fortaleza para se relacionar com o mundo
observar é que, nã o apenas a conversa, o diá logo, do branco, tanto para conquistar parcerias,
que tem o seu valor nesse processo, é su iciente. quanto para o embate de ameaças em suas
Parece que esse cruzamento torna-se nã o só culturas e territó rios. Isso porque elas entendem
possıv́el, como harmonioso, quando a prá tica os princıp
́ ios, herdados pela geraçã o anterior, de
revela um ganho para a comunidade... Os jovens uma qualidade de vida que só é possıv́el com a
nã o sã o o futuro, nem os velhos sã o passado. loresta em pé e que, de forma complementar, é
Os dois sã o presentes e acho que isso é o mais preciso entender o mundo do branco até certo
instigante: o que se faz com o que temos aqui e ponto para se apropriar de suas ferramentas.
agora. Nesse sentido, é possıv́el brincar com a
palavra presente e argumentar que há muitos Em linhas gerais, as coisas nã o sã o excludentes.
momentos em que é possıv́el uma economia Os diferentes mundos se sobrepõ em, muitas
polıt́ica da troca intergeracional, onde os/as mais vezes, inclusive, de forma violenta. Talvez o nosso
velhos/as ensinam sobre as plantas medicinais e desa io está em como vamos fazer para que
os/as mais jovens ensinam sobre produçã o esses mundos possam dialogar, se complementar.
O PAPEL DAS ALIANCAS PARA
O ENFRENTAMENTO DAS
CRISES LOCAIS E GLOBAIS
Carolina Schneider Comandulli
A Aliança dos Povos da Floresta (APF), lançada no
inal da dé cada de 1980, consolidou a uniã o de
indıǵenas e populaçõ es extrativistas no Brasil por
um objetivo comum: a luta dos povos da loresta
por seus territó rios, visando garantir o
reconhecimento de direitos diferenciados para
essas populaçõ es. Atualmente, cerca de 30 anos
apó s a criaçã o da APF, a importâ ncia da Aliança
segue atual, mas també m surgem novos desa ios
a serem enfrentados, pois nesses 30 anos o ritmo
de destruiçã o, nã o só da Amazô nia, mas també m
de outros importantes ecossistemas do Planeta
Terra, tem sido extremamente acelerado,
afetando o clima e a vida de todos – humanos e
nã o humanos.
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