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BACHELARD, Gaston. L’engagement rationaliste. Paris: Vrin, 1972 Tradução brasileira no prelo.

Excerto para uso exclusivo no curso “Tópico de Filosofia da Ciência”.


Faculdade de Filosofia – UFG (2º semestre de 2022)
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A ATUALIDADE DA HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS

Quando se entra no Palácio da Descoberta, quando cada detalhe desta espantosa


exposição de essenciais novidades chama a atenção para a essencial modernidade da
ciência de hoje, podemos nos perguntar se não seria incorrer num verdadeiro anacronismo
vir aqui para proferir uma conferência sobre o passado da ciência.

A ciência contemporânea bem pode designar-se, por suas descobertas


revolucionárias, como uma liquidação do passado. Aqui estão expostas descobertas que
colocam a história recente no nível de uma pré-história. É por isso que o passado da
ciência poderia, em certos casos, significar tão somente uma simples curiosidade
histórica. Parece, então, que certos domínios da história das ciências deveriam ser tratados
como não mais que uma busca intelectualmente relaxada, contentando-se simplesmente
das alegrias da erudição.

Assim, eis que encontramo-nos aqui diante da dialética heroica do pensamento


científico de nosso tempo, diante da dialética que separa a curiosidade natural da
curiosidade científica: a primeira quer ver, a segunda quer compreender.

Esta dialética é, segundo me parece, a própria filosofia do Palácio da Descoberta.


De fato, o visitante não deve entrar no Palácio da Descoberta para ver, ele deve vir aqui,
vir muitas vezes aqui, para compreender. O Palácio da Descoberta não é um museu para
basbaques. Nele não se passeia num dia de chuva, para passar ou para matar o tempo.
Para cá, se vem para trabalhar. Aqui se vem para fazer trabalhar o espírito. Aqui se vem,
compreendendo a ciência em sua novidade, para fazer-se um espírito novo. Ademais, as
conferências que os senhores terão ocasião de acompanhar aqui a cada semana serão –
exceto a minha – provas deste espírito novo que caracteriza a ciência contemporânea. As
próximas conferências colocarão os senhores no ápice do saber humano, em face do
próprio porvir da ciência. Assim, quando os senhores tiverem consciência da luminosa
modernidade do Palácio da Descoberta, compreenderão que, aparte toda modéstia, eu
podia falar do anacronismo que a conferência de um filósofo historiador apresenta num
quadro semelhante.

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Contudo, escolhi para esta conversa o título “A atualidade da história das


ciências”. Minha pretensão é, com efeito, a de buscarmos juntos em que condições e sob
que forma a história das ciências pode ter uma ação positiva sobre o pensamento científico
de nosso tempo.

Para começar, eis um primeiro ponto a refletir: a história das ciências não pode
ser uma história como as outras. Pelo próprio fato de que a ciência evolui no sentido de
um manifesto progresso, a história das ciências é, necessariamente, a determinação dos
sucessivos valores de progresso do pensamento científico. Nunca se escreveu
verdadeiramente uma história, uma ampla história, de uma decadência do pensamento
científico. Ao contrário desenvolveram-se abundantemente histórias da decadência de um
povo, de uma nação, de um Estado, de uma civilização.

É certo que, quando ocorre o declínio de uma civilização, a ignorância invade os


espíritos. Entra-se em séculos de trevas. Mas, se os historiadores das civilizações devem
retraçar os acontecimentos destes tempos de ignorância, descrever o rebaixamento dos
costumes, a miséria intelectual e moral, o historiador das ciências só pode atravessar como
um risco estes períodos de inatividade do pensamento científico. De qualquer modo,
tomada em sua essência, a ciência não poderia ser causa de uma regressão do saber.
Além do mais, e de um modo parcial, um pensamento científico mal engajado pode ser
uma causa de estagnação.

Nos períodos de regressão geral, parece que a verdade espera. Ela espera um
renascimento. Para um historiador das ciências uma verdade encontrada é a conclusão de
uma história, ela é o termo de uma linha particular de pesquisas. Desta conclusão, deste
termo poderá partir uma nova linha de pesquisas. Mas o historiador das ciências terminou
sua tarefa quando descreveu a história de uma verdade. Sem dúvida, pode chegar um
tempo em que uma verdade encontrada será esquecida. O historiador das ciências de
modo algum se interessa pelo processo deste esquecimento. Ele retomará sua tarefa
positiva quando esta verdade esquecida for reencontrada. Mas então, depois de um
período de ineficácia, a verdade científica retomará sua ação específica de crescimento
essencial; ela funcionará como havia funcionado psiquicamente; em suma, ela seguirá a
mesma dinâmica psíquica do progresso manifesto. Quando o velho princípio de
Arquimedes aplicado aos líquidos chega a ser aplicado aos gases, ele traz aos novos

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fenômenos visados a mesma potência de compreensão, a mesma força de convicção


racional. Uma verdade científica é uma verdade compreendida. De uma ideia verdadeira,
compreendida como verdadeira, não se pode fazer uma ideia falsa. A temporalidade da
ciência é um aumento do número de verdades, um aprofundamento da coerência das
verdades. A história das ciências é a narrativa deste crescimento, deste aprofundamento.

Que façam, se assim quiserem, histórias da decadência de civilizações, façam até


histórias da decadência do ensino, o que se descreverá não será senão decadências que
reagem, sem dúvida, sobre o progresso da ciência; mas estas descrições são exteriores à
ciência; elas não pertencem propriamente à história completamente positiva da ciência.

Se me objetarem que esta distinção é artificial, se acharem que ela tende a


desencarnar o pensamento científico privando-o da ação que teria sobre os homens de um
país e de uma época, referir-me-ei tão somente aos fatos tais com são, à cultura histórica
tal como ela é. Abram qualquer livro de história das ciências – dos livros elementares às
mais instruídas histórias – e poderão verificar este fato constante, um fato significativo: a
história das ciências é sempre descrita como a história de um progresso do conhecimento.
Ela faz o leitor passar de um estado em que se sabia menos para um estado em que se
sabe mais. Pensar historicamente o pensamento científico é descrevê-lo do menos ao
mais. Jamais, ao contrário, do mais ao menos. Dito de outro modo, o eixo central da
história das ciências é nitidamente dirigido no sentido de uma compreensão melhorada e
de uma experiência ampliada.

Se por vezes devemos descrever o declínio de uma teoria particular (por exemplo,
o declínio da física cartesiana), é por que o progresso do pensamento científico descobriu
um outro eixo de argumentação dos valores de compreensão (por exemplo, a física
newtoniana). Este novo eixo, inteiramente positivo, revela uma espécie de ingenuidade
na ciência anterior. Atingimos precisamente uma dialética de liquidação do passado, tão
característica de certas revoluções do pensamento científico.

Além de tudo, percebamos bem a que ponto a obrigação de descrever um


progresso é característico para a história das ciências. A história da arte, por exemplo, é,
no que concerne a esta relação, completamente distinta da história das ciências. Na
história da arte, o progresso seria um simples mito. Com efeito, a história da arte encontra-

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se diante de obras que podem ter, em todas as épocas, um sentido de eternidade, obras
que tem uma espécie de perfeição primitiva, uma perfeição instantânea.1 Tais obras
imobilizam a meditação, centralizam a admiração. O papel do historiado é valorizá-las.

As mesmas observações valeriam para a história da filosofia. Os grandes sistemas


se reconhecem em seu isolamento. A noção de progresso não é apropriada para se
descrever sua aparição.

É claro que se eu comparasse o empirismo da noção de progresso na história


política com o racionalismo da noção de progresso na história das ciências, a tarefa seria
fácil demais. Na história política, o que é progresso para um historiador é, não raro,
declínio para um outro historiador: encontramo-nos aí perante um reino de valores mal
estabelecidos ou, mais exatamente, entregamo-nos a valorizações polêmicas. Sem dúvida,
o bom historiador se afasta disso, ou pensa afastar-se. Ele se atém aos fatos. Mas uma
surda interpretação sempre pode obscurecer a determinação dos fatos.

Abandonemos, portanto, estas comparações fáceis demais e retomemos nosso


problema preciso, que é o de iluminar a positividade quase absoluta do progresso
científico.

Esta positividade absoluta do progresso científico se revelará inegável se


examinarmos a história de uma ciência modelo, a história das matemáticas. É evidente
aqui que não podemos descrever uma decadência, pois uma diminuição na coerência das
verdades quer dizer simplesmente um erro. Se a história das ciências relatasse erros nos
quais se pode incorre depois da descoberta da verdade matemática, seria uma história de
maus alunos de matemática e não a história dos matemáticos verdadeiros. Tal história
abandonaria o viés da história positiva.

Mas já disse o bastante para justificar a observação que apresentei de início:


assumamos, portanto, que, em seu conjunto, a história das ciências se situa diante de um
crescimento absoluto. Ou bem ela relata um crescimento, ou bem ela nada tem a dizer.

1
No original, une perfection de premier jet, que se traduziria literalmente por “uma perfeição de
primeiro jato”, ou, mais livremente, “uma perfeição imediata”. Julgamos, contudo, estas soluções
insatisfatórias e preferimos explicitar a imagem por meio da noção de instante, cara à filosofia de
Bachelard, sobre tudo aqui, aproximada da ideia de primitividade. (NT)

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Esta situação especial vai impor obrigações particulares ao historiador das


ciências, obrigações que revelarão a atualidade da história das ciências.

Com efeito, em completa oposição às prescrições que recomendam ao historiador


não julgar, é preciso, ao contrário, pedir ao historiador das ciências julgamentos de valor.
A história das ciências é, no mínimo, um tecido de julgamentos implícitos sobre o valor
de pensamentos e descobertas científicas. O historiador das ciências que explica
claramente o valor de todo pensamento novo ajuda-nos a compreender a história das
ciências. Em suma, a história das ciências é essencialmente uma história julgada, julgada
no detalhe de sua trama, e com um sentido dos valores de verdade que deve ser
constantemente aguçado. A história das ciências não poderia ser simplesmente uma
história registrada. As atas das Academias contêm, naturalmente, inúmeros documentos
para a história das ciências. Mas essas atas não constituem verdadeiramente uma história
das ciências. É preciso que o historiador venha traçar nelas linhas de progresso.

Mas tenho agora todos os elementos para a pequena demonstração que o título da
presente conferência exige.

Com efeito, se o historiador das ciências deve ser um juiz dos valores de verdade
concernentes a esta ciência, onde ele deverá aprender seu ofício? A resposta não deixa
dúvidas: para bem julgar o passado o historiador das ciências deve conhecer o presente;
ele deve dar o melhor de si para aprender a ciência da qual pretende escrever a história.
E é nisso que a história das ciências, queiramos ou não, tem uma forte ligação com a
atualidade da ciência.

Na medida em que o historiador das ciências se instrui na modernidade da ciência,


ele destacará nuances cada vez mais numerosas, cada vez mais finas, na historicidade da
ciência. A consciência de modernidade e a consciência de historicidade, aqui, são
rigorosamente proporcionais.

A partir das verdades que a ciência atual tornou mais claras e mais bem
coordenadas, o passado de verdade aparece mais claramente progressivo como passado
propriamente dito. Parece que a clara história das ciências não pode ser contemporânea
de seu desenvolvimento. Nós acompanhamos mais facilmente o desenvolvimento do
drama das grandes descobertas na história já tendo assistido ao quinto ato.

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Por vezes, uma luz repentina exalta o valor do passado. Sem dúvida, é o
conhecimento do passado que ilumina o caminhar da ciência. Mas poder-se-ia dizer que
em certas circunstâncias é o presente que ilumina o passado. Foi o que bem se pode ver a
dois séculos, quando Brianchon apresenta seu teorema fazendo dualidade com o famoso
hexagrama místico de Pascal. Tudo o que era epistemologicamente misterioso no
hexagrama místico de Pascal aparece sob uma luz renovada. É verdadeiramente o mistério
sob luz plena. Parece que, na dualidade Pascal-Brianchon, o espantoso teorema de Pascal
dobra de valor.

Naturalmente, esta luz recorrente que atua de modo tão harmonioso no


desenvolvimento do pensamento matemático pode ser muito mais indecisa na fixação de
valores históricos para outros ramos da ciência, como a física e a química. De querer
tornar demasiado ativos pensamentos do passado, podemos cometer verdadeiras
racionalizações, racionalizações que atribuem um sentido prematuro às descobertas
passadas. Léon Brunschvicg teve a sutileza de percebê-lo ao criticar um texto de
Houllevigne. Houllevigne escreve, depois de ter evocado vários ensaios feitos em 1659
para dissolver o ouro: “a estes métodos puramente químicos, Langelot, em 1672,
substituía um procedimento físico, que consistia em triturar o ouro compactado em finas
folhas ao longo de um mês em um ‘moinho filosófico’, sem dúvida um almofariz cujo
pilão era acionado por uma manivela. Ao final deste tempo, ele obtinha um pó
extremamente fino que, posto em suspensão na água, mantinha-se nela formando um
líquido muito vermelho; este líquido obtido por Langelot... – nós o conhecemos hoje, é o
ouro coloidal. E assim é que, perseguindo suas quimeras, os alquimistas haviam
descoberto os metais coloidais dos quais Bredig, duzentos e cinquenta anos mais tarde,
mostraria as espantosas propriedades”.

Mas Léon Brunschvicg, com sua habitual sensibilidade para nuances, com uma
palavra detém esta “racionalização”: “Ocorre”, diz ele, “que a descoberta deles existe
para nós, ela não existia para eles. Com efeito, não é autorizado afirmar que se sabe
alguma coisa quando se a fez tantas vezes que não se sabe que a fez. Sócrates já dizia que
saber é ser capaz de ensinar”.2

2
Léon Brunschvicg. La connaissance de soi, p. 68.

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A advertência de Brunschvicg deveria ser inscrita ao lado das máximas diretoras


da história das ciências. É necessário um verdadeiro tato para manusear as recorrências
possíveis. Mas continua sendo necessário ultrapassar a história do desenvolvimento dos
fatos por uma história do desenvolvimento dos valores. E não se pode apreciar
convenientemente os valores a não ser conhecendo os valores dominantes, os valores que,
no pensamento científico, ativam-se na modernidade.

É certo que a posição filosófica que eu assumo aqui é não somente difícil e
perigosa. Ela carrega em si um elemento que a destrói: este elemento destrutivo é o caráter
efêmero da modernidade da ciência. Acompanhando o ideal de tensão modernista que
proponho para a história das ciências, seria necessário que a história das ciências fosse
constantemente refeita, que ela fosse constantemente reconsiderada. Com efeito, é
precisamente o que ocorre. E o que faz da história das ciências uma doutrina sempre
jovem, uma das doutrinas científicas mais vivas e mais educativas é a obrigação de
esclarecer a historicidade das ciências para a modernidade da ciência.

Mas eu não gostaria de dar-lhes a impressão de que eu me limito aqui a


desenvolver uma filosofia abstrata da história das ciências sem recorrer a exemplos
históricos concretos. Tomarei um exemplo bem simples que me servirá a dois fins:

1.º veremos com ele que o caráter de história julgada sempre foi, com maior ou
menor grau de clareza, ativo na história das ciências;

2.º veremos com ele que esta assimilação do passado da ciência pela modernidade
da ciência pode ser destrutiva quando a ciência ainda não conquistou esta hierarquia de
valores que caracteriza, em particular, a ciência do século XIX e do século XX.

O exemplo que vou analisar me é dado por uma explicação da pólvora de canhão
que o competente físico suíço Jean Ingen-housz, escrevendo no final do século XVIII,
pretende fornecer. Ele intenta explicar os efeitos da pólvora de canhão servindo-se das
novas concepções da química de Lavoisier, portanto, ao nível mesmo da modernidade da
ciência de seu tempo.

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Jean Ingen-housz se expressa da seguinte forma 3:

“A pólvora de canhão é um ingrediente tanto mais maravilhoso que, sem os


conhecimentos de que atualmente dispomos sobre as diferentes espécies de fluidos
aéreos, principalmente do ar desflogisticado (entenda-se, o oxigênio) e do ar inflamável
(entenda-se, o hidrogênio), parece impossível que tivéssemos podido imaginar a priori o
composto, isto é, que tivéssemos podido adivinhar anteriormente que estas três
substâncias (enxofre, carbono, salitre, ou mesmo estes dois últimos apenas, pois o
primeiro, o enxofre, não é indispensável) misturados uns aos outros, pudessem produzir
um efeito tão surpreendente”.

E Jean Ingen-housz explica longamente como, considerando tudo, não deveríamos


ter podido inventar a pólvora. Com isto, ele pretende trazer à compreensão, na atualidade
da ciência de seu tempo, o que não podia ser compreendido no momento em que a história
fixa a descoberta. Mas, precisamente, a ciência do tempo de Ingen-housz ainda não
admite esta explicação recorrente que faz sobressair os valores, e as explicações de Ingen-
housz fornecem um bom exemplo destes textos confusos, tão típicos da verdade em
construção, mas ainda confusos por causas de noções pré-científicas.

Resumamos esta modernização prematura: ela é, de nosso ponto de vista, um


exemplo da história das ciências incoativa, da história das ciências que tenta constituir-
se.

O salitre, diz Ingen-housz, composto de potássio e do ácido “assim chamado


nitroso” não contém qualquer princípio ígneo; o potássio, “não só não é combustível
como apaga o fogo, e até mesmo priva de sua inflamabilidade os corpos combustíveis
dela impregnados”. Do mesmo modo, “o ácido nitroso, qualquer que seja sua
concentração, não pode ser inflamável e, como a água, até apaga o fogo”. A união destas
duas substâncias não ígneas no salitre não cria, para Ingen-housz, o princípio de ignição.
“Pode-se até mesmo mergulhar um ferro vermelho de tão aquecido numa massa de nitro
fundido e avermelhado sem que ele se inflame”. 4

3
Jean Ingen-housz. Nouvelles expériences et observations sur divers objets de physique. Paris, 1785, p.
352.
4
Loc. cit., p. 354.

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“O carbono, que é o segundo elemento necessário à pólvora de canhão, continua


Ingen-housz, tampouco nos oferece o que quer que possa nos trazer a suspeita do menor
perigo em lidar como ele. Ele pega fogo e se reduz a cinza sem qualquer bulício ou
movimento”.

Portanto, conclusão de Ingen-housz, é evidente que a pólvora de canhão não pode


nem inflamar-se, nem explodir, uma vez que seus elementos constituintes não têm, neles
mesmos, nem princípio de ignição, nem força de explosão. O velho inventor, como diz
Ingen-housz, não podia compreender sua invenção partindo do conhecimento comum das
substâncias que ele misturava.

Vejamos agora Ingen-housz em ação para dar ao velho conhecimento histórico


uma atualidade no nível da ciência de seu próprio tempo.

Ele estima, e com razão, que o salitre é uma fonte de ar desflogisticado (oxigênio).
Ele pensa, erroneamente, que o carvão é uma fonte de gás inflamável (hidrogênio). Ele
sabe que a mistura dos dois “ares” se inflama “com extrema violência quando aproximada
do fogo”. Ele pensa possuir, assim, todos os elementos para compreender o fenômeno da
explosão. Ele atualiza a história reimaginando, deste modo, uma descoberta da pólvora
de canhão que ele estima seja racional. “Parece-me provável, diz ele, que estas novas
descobertas (o oxigênio e o hidrogênio), feitas sem que se tivesse a mínima ideia de
adaptá-las à natureza da pólvora de canhão, ter-nos-ia conduzido rapidamente à
descoberta deste composto terrível, se ele já não tivesse sido descoberto por acidente”.

Assim, por este simples exemplo, vemos em ação uma necessidade de se refazer
a história das ciências, um esforço em compreender modernizando. Aqui, este esforço é
infeliz e só podia ser assim, numa época em que os conceitos para compreender os
explosivos não estavam formulados. Mas este esforço infeliz está, ele também, na história
e há, como pensamos, certo interesse em acompanhar esta história da história das ciências,
esta história das ciências refletindo sobre si mesma, esta história sempre refletida, sempre
recomeçada.

Para dizer diretamente o que penso, acredito que a história das ciências não
poderia ser uma história empírica. Ela não poderia ser escrita no esmiuçamento dos fatos,
pois que ela é essencialmente, em suas formas mais elevadas, a história do progresso das

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ligações racionais do saber. Na história das ciências – para além da ligação de causa e
efeito – estabelece-se uma ligação de razão e consequência. De algum modo, portanto ela
é duplamente ligada. Ela deve abrir-se cada vez mais às organizações racionais. Quanto
mais aproximamo-nos do nosso século, mais sentimos que os valores racionais orientam
a ciência. E se tomamos descobertas modernas, vemos que, decorrido algum tempo, elas
passam do estágio empírico à organização racional. E é assim que, num modo acelerado,
a história recente reproduz a mesma ascensão à racionalidade que o processo de progresso
que se desenvolve lentamente na história mais antiga.

Tomemos, portanto, o problema da história das ciências em sua ação mais


moderna. Vejamos de perto o interesse atual da história das ciências. Fizemos filosofia
demais até aqui; consideremos, na segunda parte desta conferência, uma sequência de
observações pelas quais nos esforçaremos em dizer todos os papéis que a história das
ciências deve desempenhar numa cultura científica.

Primeiramente, uma observação bem óbvia: a ciência moderna se desenvolve ao


nível da modernidade da cultura. Os problemas, no presente, são tão numerosos que não
se vai buscar muito longe, no passado, problemas não resolvidos. Mas para que se esteja
culturalmente à altura de se participar do progresso da ciência, naturalmente é preciso
conhecer os progressos antecedentes. Todas as monografias originais comportam uma
bibliografia sobre o tema estudado, portanto, um curto preâmbulo histórico. Tais
monografias originais talvez fossem mais acessíveis à cultura científica geral se seus
autores aprofundassem seu enraizamento na cultura clássica, se eles retomassem com
mais cuidado a história de seu problema. Indico apenas de passagem esta espécie de
desejo insatisfeito de história. Acredito que todo filósofo das ciências deve sentir o
mesmo a partir do momento em que ele compreende que toda filosofia das ciências deve
servir a facilitar a ascensão à modernidade da ciência.

Se hesitamos em inscrever as bibliografias preparatórias no âmbito da história das


ciências, é porque estamos habituados a ler a história das ciências de um modo por vezes
distendido, de um modo que dá saltos de dezenas de anos. Mas é precisamente a história
das ciências que deve, aproximando-se do período contemporâneo, assumir uma
verdadeira tensão. Também ela deve aceitar a aceleração tão característica dos tempos
modernos.

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Esta tensão seria melhor sentida se estudássemos mais a história das ciências no
curso dos últimos séculos, em particular no curso deste maravilhoso século científico que
foi o século XIX. Mas há que assinalar aqui um estranho paradoxo. É nos períodos dos
quais o estudo seria mais útil que os trabalhadores em história das ciências são menos
numerosos. Há poucos historiadores de ciências para o século XIX. Contudo, dentre este
poucos, temos excelentes. A bela tese de René Taton, que proferiu aqui mesmo uma
conferência, é uma prova disso. Um outro conferencista do Palácio da Descoberta,
Maurice Daumas, reuniu uma documentação preciosíssima. Eu conheço outros
trabalhadores que estão em ação. Mas a tarefa é tão considerável que as equipes deveriam
ser multiplicadas. Quanto mais uma ciência se torna difícil, mais se faz necessário bem
fixar o nascimento de problemas, mais se faz necessário que a todo momento se atualize
o classicismo da ciência e os eixos de evolução – dito de outro modo, que se determine
para todos os cantões da ciência aquilo que, referindo-se às matemáticas, Georges
Bouligand chama de síntese global de onde os problemas tiram suas origens. Tudo isso
é impossível sem um exame minucioso da história recente das doutrinas.

Até aqui examinei a história das ciências em sua tensão para os problemas do
tempo presente, como indicava o título de minha conferência.

Mas há, para a história das ciências, uma forma de atualidade menos tensa que
agora eu gostaria de considerar. Com efeito, é preciso prestar atenção à transmissão de
uma ciência de uma geração a outra, à formação do espírito científico, à inscrição
profunda do pensamento científico na psique humana. Com esta última máxima, minha
intenção é marcar, no estilo da antropologia filosófica contemporânea, a potência
hominizante do pensamento científico.

E, antes de tudo, é preciso transmitir a ciência de modo a que ela permaneça na


história dos homens de hoje pelo menos no nível ao qual ela elevou-se para os homens de
ontem. É preciso, sobretudo, preservar o interesse pelo pensamento científico. O que não
é fácil num tempo em que, de modo bastante apressado, se inculpa a ciência pelos erros
humanos pelos quais de modo algum ela é responsável.

Para preservar este interesse pela cultura científica, é preciso integrar a cultura
científica à cultura geral. Neste ponto, uma história das ciências elementares é de

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importância primordial. Parece que todo mundo concorda e que a pertinência da história
dos grandes cientistas é instintivamente sentida. Pedimos, portanto, que o professor de
ciências faça com que os gênios da ciência sejam conhecidos como o professor de
literatura faz com que sejam conhecidos os gênios das letras. Mesmo do simples ponto
de vista humano, a pesquisa científica persistente é um exemplo tão grande de energia,
de tenacidade, que a juventude sempre terá interesse em ouvir contar a vida de um
Bernard de Palissy, de um Galileu, de um Kepler. A história das ciências deve transmitir
a lembrança dos heróis da ciência. Ela necessita, como qualquer outra, de preservar suas
estórias5. A estória, diz Vitor Hugo a respeito de William Shakespeare, não é uma “forma
da história tão verdadeira e tão falsa quanto qualquer outra”? Mas esta história ilustrada
da ciência não vai longe e não é raro que se lembre, sobre Bernard Palissy, do fato de que
ele queimou seu assoalho sem saber direito o que ele tinha em cozimento em seu forno.
A imagem de Bernard Palissy atiçando seu fogareiro obscurece suas longas pesquisas
sobre as substâncias químicas, sobre a consistência das terras.

Faz-se necessário, portanto, encetar estudos históricos mais sutis. É necessário,


sobretudo, trazer à compreensão a multiplicidade das dificuldades que entravaram o
progresso. A este respeito, sem chegar ao ponto de afirmar – como Auguste Comte – o
paralelismo do desenvolvimento do indivíduo com o desenvolvimento da humanidade,
paralelismo demasiado simplista para dele tiramos observações fecundas, é certo que a
história das ciências está repleta de ensinamentos para a pedagogia. E é enquanto
pedagogo que acredito que se pode considerar a história das ciências como uma imensa
escola, como uma sequência de séries escolares, desde os níveis elementares é os níveis
superiores. Nesta imensa escola, há bons alunos e alunos medíocres. Disse o bastante, no
início desta conferência, que a história positiva das ciências era, em suma, a história dos
bons alunos para pedir-lhes que considerem, agora, por um momento a influência dos
maus alunos.

Dito de outro modo, se há transmissão de verdades no curso da história das


ciências, também há, sempre, certa permanência do erro. Como dizia Van Swinden, dois
séculos atrás, em sua obra sobre as Analogias entre a eletricidade e o magnetismo (t. I, p.
23): “Parece que os mesmos erros se encontram em diferentes períodos, mas sempre sob

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Em francês, legendes. (NT)

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formas novas e adaptadas à filosofia da época”. Observação profunda, particularmente


em seu último argumento. É, sem dúvida, penoso para um filósofo reconhece-lo, mas, de
fato, parece que, nos erros memoráveis a atrasaram o progresso das ciências, quem se
engana é a filosofia. Ela incorpora as teorias científicas a sistemas demasiado gerais. É
preciso, portanto, que o filósofo do pensamento científico esteja sempre pronto a avaliar
o que entrava o progresso da ciência.

Neste sentido é que, num livro já antigo, propus a noção de obstáculo


epistemológico e tentei classificar diferentes obstáculos epistemológicos de acordo com
seus aspectos filosóficos. Limitar-me-ei a alguns exemplos gerais.

Quando consideramos a física e a química modernas, não fica evidente que elas
rompem com a experiência comum? Não seria necessário, na pedagogia elementar,
atingir o ponto de ruptura? Quando queremos explicar aos jovens alunos as leis da
eletricidade, deparamo-nos com dificuldades que são as mesmas que obstaculizaram o
rápido avanço da ciência no século XVIII. Assim, a experiência imediata – o que quer
que, em geral, os filósofos pensem – pode ser um obstáculo ao conhecimento da
experiência científica.

Por vezes, um substancialismo exagerado mascara leis profundas. Por exemplo,


Aldini, o sobrinho de Galvani, pensa que a eletricidade se impregna das substâncias que
ela atravessa. Se atravessa a urina, a eletricidade emite um “raio branco”, ela tem um
gosto acre. Através do leite, ele tem um gosto suave, acidulado, um raio vermelho; através
do vinho, um gosto acidulado; através do vinagre um gosto picante; através da cerveja,
um gosto picante, um raio esbranquiçado...

Quando se leem páginas como esta, temos a impressão de ver um homem que se
aplica em fazer nada, um homem que se engana com esforço e constância. Que reforma
do pensamento e da experiência não será necessário para aceder, partindo daí, à noção
científica de resistência elétrica, para constituir o jogo de conceitos que objetivam e
coordenam os fenômenos científicos!

Estudando especificamente a física e a química, tive ocasião de reunir, às


centenas, textos como este de Albini. Com frequência, ensinando física e química, pude
reconhecer que certos obstáculos que atrasaram a história continuam a atrasar a cultura.

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BACHELARD, Gaston. L’engagement rationaliste. Paris: Vrin, 1972 Tradução brasileira no prelo.
Excerto para uso exclusivo no curso “Tópico de Filosofia da Ciência”.
Faculdade de Filosofia – UFG (2º semestre de 2022)
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Deste modo, encontrei na história das ciências verdadeiros testes pedagógicos. Há aí uma
minuciosa atualidade de antigos erros para designar as dificuldades da pedagogia
elementar.

Tentei sistematiza estas observações numa psicanálise do conhecimento objetivo.


Este termo, psicanálise, indignou certos críticos. Parece-me, no entanto, que ele acode
muito naturalmente se quisermos considerar que, em meio às dificuldades
especificamente científicas da aquisição do saber científico, há dificuldades mais gerais,
mais íntimas, mas profundamente inscritas na alma humana. A psicologia não dispõe de
todas essas doutrinas para iluminar este fundo obscuro que impede o trabalho da ciência.

Assim, a história das ciências, meditada em seus valores de progresso e na resistência


dos obstáculos epistemológicos, nos oferece verdadeiramente o homem integral. Se esta
história tem uma atualidade manifesta é precisamente porque bem se percebe que ela
representa um dos traços mais profundos do destino do homem. A ciência tornou-se
parte integrante da condição humana. Ela tornou-se? Ela já não o era quando o homem
compreendeu o interesse da pesquisa desinteressada? Desde a Antiguidade, não foi ela
uma verdadeira ação social do homem solitário? Não existe verdadeiramente
pensamento científico egoísta. Se o pensamento científico tivesse sido primitivamente
egoísta, ele teria assim permanecido. Seu destino era outro. Sua história é uma história
de socialização progressiva. A ciência é, atualmente, socializada de ponta a ponta.
Desde alguns séculos a história das ciências se tornou a história de uma cidade
científica. A cidade científica, na época contemporânea, tem uma coerência racional e
técnica que afasta toda possibilidade de recuo. Mesmo caminhando ao longo de um
passado obscuro, o historiador das ciências deve ajudar os espíritos a tomar consciência
do valor profundamente humano da ciência de hoje.

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