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BACHELARD, Gaston. L’engagement rationaliste. Paris: Vrin, 1972 Tradução brasileira no prelo.
Excerto para uso exclusivo no curso “Tópico de Filosofia da Ciência”.
Faculdade de Filosofia – UFG (2º semestre de 2022)
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Para começar, eis um primeiro ponto a refletir: a história das ciências não pode
ser uma história como as outras. Pelo próprio fato de que a ciência evolui no sentido de
um manifesto progresso, a história das ciências é, necessariamente, a determinação dos
sucessivos valores de progresso do pensamento científico. Nunca se escreveu
verdadeiramente uma história, uma ampla história, de uma decadência do pensamento
científico. Ao contrário desenvolveram-se abundantemente histórias da decadência de um
povo, de uma nação, de um Estado, de uma civilização.
Nos períodos de regressão geral, parece que a verdade espera. Ela espera um
renascimento. Para um historiador das ciências uma verdade encontrada é a conclusão de
uma história, ela é o termo de uma linha particular de pesquisas. Desta conclusão, deste
termo poderá partir uma nova linha de pesquisas. Mas o historiador das ciências terminou
sua tarefa quando descreveu a história de uma verdade. Sem dúvida, pode chegar um
tempo em que uma verdade encontrada será esquecida. O historiador das ciências de
modo algum se interessa pelo processo deste esquecimento. Ele retomará sua tarefa
positiva quando esta verdade esquecida for reencontrada. Mas então, depois de um
período de ineficácia, a verdade científica retomará sua ação específica de crescimento
essencial; ela funcionará como havia funcionado psiquicamente; em suma, ela seguirá a
mesma dinâmica psíquica do progresso manifesto. Quando o velho princípio de
Arquimedes aplicado aos líquidos chega a ser aplicado aos gases, ele traz aos novos
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BACHELARD, Gaston. L’engagement rationaliste. Paris: Vrin, 1972 Tradução brasileira no prelo.
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Se por vezes devemos descrever o declínio de uma teoria particular (por exemplo,
o declínio da física cartesiana), é por que o progresso do pensamento científico descobriu
um outro eixo de argumentação dos valores de compreensão (por exemplo, a física
newtoniana). Este novo eixo, inteiramente positivo, revela uma espécie de ingenuidade
na ciência anterior. Atingimos precisamente uma dialética de liquidação do passado, tão
característica de certas revoluções do pensamento científico.
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BACHELARD, Gaston. L’engagement rationaliste. Paris: Vrin, 1972 Tradução brasileira no prelo.
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se diante de obras que podem ter, em todas as épocas, um sentido de eternidade, obras
que tem uma espécie de perfeição primitiva, uma perfeição instantânea.1 Tais obras
imobilizam a meditação, centralizam a admiração. O papel do historiado é valorizá-las.
1
No original, une perfection de premier jet, que se traduziria literalmente por “uma perfeição de
primeiro jato”, ou, mais livremente, “uma perfeição imediata”. Julgamos, contudo, estas soluções
insatisfatórias e preferimos explicitar a imagem por meio da noção de instante, cara à filosofia de
Bachelard, sobre tudo aqui, aproximada da ideia de primitividade. (NT)
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BACHELARD, Gaston. L’engagement rationaliste. Paris: Vrin, 1972 Tradução brasileira no prelo.
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Mas tenho agora todos os elementos para a pequena demonstração que o título da
presente conferência exige.
Com efeito, se o historiador das ciências deve ser um juiz dos valores de verdade
concernentes a esta ciência, onde ele deverá aprender seu ofício? A resposta não deixa
dúvidas: para bem julgar o passado o historiador das ciências deve conhecer o presente;
ele deve dar o melhor de si para aprender a ciência da qual pretende escrever a história.
E é nisso que a história das ciências, queiramos ou não, tem uma forte ligação com a
atualidade da ciência.
A partir das verdades que a ciência atual tornou mais claras e mais bem
coordenadas, o passado de verdade aparece mais claramente progressivo como passado
propriamente dito. Parece que a clara história das ciências não pode ser contemporânea
de seu desenvolvimento. Nós acompanhamos mais facilmente o desenvolvimento do
drama das grandes descobertas na história já tendo assistido ao quinto ato.
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BACHELARD, Gaston. L’engagement rationaliste. Paris: Vrin, 1972 Tradução brasileira no prelo.
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Por vezes, uma luz repentina exalta o valor do passado. Sem dúvida, é o
conhecimento do passado que ilumina o caminhar da ciência. Mas poder-se-ia dizer que
em certas circunstâncias é o presente que ilumina o passado. Foi o que bem se pode ver a
dois séculos, quando Brianchon apresenta seu teorema fazendo dualidade com o famoso
hexagrama místico de Pascal. Tudo o que era epistemologicamente misterioso no
hexagrama místico de Pascal aparece sob uma luz renovada. É verdadeiramente o mistério
sob luz plena. Parece que, na dualidade Pascal-Brianchon, o espantoso teorema de Pascal
dobra de valor.
Mas Léon Brunschvicg, com sua habitual sensibilidade para nuances, com uma
palavra detém esta “racionalização”: “Ocorre”, diz ele, “que a descoberta deles existe
para nós, ela não existia para eles. Com efeito, não é autorizado afirmar que se sabe
alguma coisa quando se a fez tantas vezes que não se sabe que a fez. Sócrates já dizia que
saber é ser capaz de ensinar”.2
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Léon Brunschvicg. La connaissance de soi, p. 68.
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É certo que a posição filosófica que eu assumo aqui é não somente difícil e
perigosa. Ela carrega em si um elemento que a destrói: este elemento destrutivo é o caráter
efêmero da modernidade da ciência. Acompanhando o ideal de tensão modernista que
proponho para a história das ciências, seria necessário que a história das ciências fosse
constantemente refeita, que ela fosse constantemente reconsiderada. Com efeito, é
precisamente o que ocorre. E o que faz da história das ciências uma doutrina sempre
jovem, uma das doutrinas científicas mais vivas e mais educativas é a obrigação de
esclarecer a historicidade das ciências para a modernidade da ciência.
1.º veremos com ele que o caráter de história julgada sempre foi, com maior ou
menor grau de clareza, ativo na história das ciências;
2.º veremos com ele que esta assimilação do passado da ciência pela modernidade
da ciência pode ser destrutiva quando a ciência ainda não conquistou esta hierarquia de
valores que caracteriza, em particular, a ciência do século XIX e do século XX.
O exemplo que vou analisar me é dado por uma explicação da pólvora de canhão
que o competente físico suíço Jean Ingen-housz, escrevendo no final do século XVIII,
pretende fornecer. Ele intenta explicar os efeitos da pólvora de canhão servindo-se das
novas concepções da química de Lavoisier, portanto, ao nível mesmo da modernidade da
ciência de seu tempo.
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Jean Ingen-housz. Nouvelles expériences et observations sur divers objets de physique. Paris, 1785, p.
352.
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Loc. cit., p. 354.
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Ele estima, e com razão, que o salitre é uma fonte de ar desflogisticado (oxigênio).
Ele pensa, erroneamente, que o carvão é uma fonte de gás inflamável (hidrogênio). Ele
sabe que a mistura dos dois “ares” se inflama “com extrema violência quando aproximada
do fogo”. Ele pensa possuir, assim, todos os elementos para compreender o fenômeno da
explosão. Ele atualiza a história reimaginando, deste modo, uma descoberta da pólvora
de canhão que ele estima seja racional. “Parece-me provável, diz ele, que estas novas
descobertas (o oxigênio e o hidrogênio), feitas sem que se tivesse a mínima ideia de
adaptá-las à natureza da pólvora de canhão, ter-nos-ia conduzido rapidamente à
descoberta deste composto terrível, se ele já não tivesse sido descoberto por acidente”.
Assim, por este simples exemplo, vemos em ação uma necessidade de se refazer
a história das ciências, um esforço em compreender modernizando. Aqui, este esforço é
infeliz e só podia ser assim, numa época em que os conceitos para compreender os
explosivos não estavam formulados. Mas este esforço infeliz está, ele também, na história
e há, como pensamos, certo interesse em acompanhar esta história da história das ciências,
esta história das ciências refletindo sobre si mesma, esta história sempre refletida, sempre
recomeçada.
Para dizer diretamente o que penso, acredito que a história das ciências não
poderia ser uma história empírica. Ela não poderia ser escrita no esmiuçamento dos fatos,
pois que ela é essencialmente, em suas formas mais elevadas, a história do progresso das
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ligações racionais do saber. Na história das ciências – para além da ligação de causa e
efeito – estabelece-se uma ligação de razão e consequência. De algum modo, portanto ela
é duplamente ligada. Ela deve abrir-se cada vez mais às organizações racionais. Quanto
mais aproximamo-nos do nosso século, mais sentimos que os valores racionais orientam
a ciência. E se tomamos descobertas modernas, vemos que, decorrido algum tempo, elas
passam do estágio empírico à organização racional. E é assim que, num modo acelerado,
a história recente reproduz a mesma ascensão à racionalidade que o processo de progresso
que se desenvolve lentamente na história mais antiga.
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Esta tensão seria melhor sentida se estudássemos mais a história das ciências no
curso dos últimos séculos, em particular no curso deste maravilhoso século científico que
foi o século XIX. Mas há que assinalar aqui um estranho paradoxo. É nos períodos dos
quais o estudo seria mais útil que os trabalhadores em história das ciências são menos
numerosos. Há poucos historiadores de ciências para o século XIX. Contudo, dentre este
poucos, temos excelentes. A bela tese de René Taton, que proferiu aqui mesmo uma
conferência, é uma prova disso. Um outro conferencista do Palácio da Descoberta,
Maurice Daumas, reuniu uma documentação preciosíssima. Eu conheço outros
trabalhadores que estão em ação. Mas a tarefa é tão considerável que as equipes deveriam
ser multiplicadas. Quanto mais uma ciência se torna difícil, mais se faz necessário bem
fixar o nascimento de problemas, mais se faz necessário que a todo momento se atualize
o classicismo da ciência e os eixos de evolução – dito de outro modo, que se determine
para todos os cantões da ciência aquilo que, referindo-se às matemáticas, Georges
Bouligand chama de síntese global de onde os problemas tiram suas origens. Tudo isso
é impossível sem um exame minucioso da história recente das doutrinas.
Até aqui examinei a história das ciências em sua tensão para os problemas do
tempo presente, como indicava o título de minha conferência.
Mas há, para a história das ciências, uma forma de atualidade menos tensa que
agora eu gostaria de considerar. Com efeito, é preciso prestar atenção à transmissão de
uma ciência de uma geração a outra, à formação do espírito científico, à inscrição
profunda do pensamento científico na psique humana. Com esta última máxima, minha
intenção é marcar, no estilo da antropologia filosófica contemporânea, a potência
hominizante do pensamento científico.
Para preservar este interesse pela cultura científica, é preciso integrar a cultura
científica à cultura geral. Neste ponto, uma história das ciências elementares é de
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importância primordial. Parece que todo mundo concorda e que a pertinência da história
dos grandes cientistas é instintivamente sentida. Pedimos, portanto, que o professor de
ciências faça com que os gênios da ciência sejam conhecidos como o professor de
literatura faz com que sejam conhecidos os gênios das letras. Mesmo do simples ponto
de vista humano, a pesquisa científica persistente é um exemplo tão grande de energia,
de tenacidade, que a juventude sempre terá interesse em ouvir contar a vida de um
Bernard de Palissy, de um Galileu, de um Kepler. A história das ciências deve transmitir
a lembrança dos heróis da ciência. Ela necessita, como qualquer outra, de preservar suas
estórias5. A estória, diz Vitor Hugo a respeito de William Shakespeare, não é uma “forma
da história tão verdadeira e tão falsa quanto qualquer outra”? Mas esta história ilustrada
da ciência não vai longe e não é raro que se lembre, sobre Bernard Palissy, do fato de que
ele queimou seu assoalho sem saber direito o que ele tinha em cozimento em seu forno.
A imagem de Bernard Palissy atiçando seu fogareiro obscurece suas longas pesquisas
sobre as substâncias químicas, sobre a consistência das terras.
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Em francês, legendes. (NT)
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Quando consideramos a física e a química modernas, não fica evidente que elas
rompem com a experiência comum? Não seria necessário, na pedagogia elementar,
atingir o ponto de ruptura? Quando queremos explicar aos jovens alunos as leis da
eletricidade, deparamo-nos com dificuldades que são as mesmas que obstaculizaram o
rápido avanço da ciência no século XVIII. Assim, a experiência imediata – o que quer
que, em geral, os filósofos pensem – pode ser um obstáculo ao conhecimento da
experiência científica.
Quando se leem páginas como esta, temos a impressão de ver um homem que se
aplica em fazer nada, um homem que se engana com esforço e constância. Que reforma
do pensamento e da experiência não será necessário para aceder, partindo daí, à noção
científica de resistência elétrica, para constituir o jogo de conceitos que objetivam e
coordenam os fenômenos científicos!
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Deste modo, encontrei na história das ciências verdadeiros testes pedagógicos. Há aí uma
minuciosa atualidade de antigos erros para designar as dificuldades da pedagogia
elementar.
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