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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS

CURSO DE LICENCIATURA EM PEDAGOGIA

Anderson de Jesus Rodrigues

A INFÂNCIA DE PERIFERIA: SER CRIANÇA E VIVER NA VILA SÃO


JOSÉ EM BELO HORIZONTE

Ibirité
2022
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MINAS GERAIS

CURSO DE LICENCIATURA EM PEDAGOGIA

Anderson de Jesus Rodrigues

A INFÂNCIA DE PERIFERIA: SER CRIANÇA E VIVER NA VILA SÃO


JOSÉ EM BELO HORIZONTE

Trabalho de conclusão de curso apresentado


ao Curso de Pedagogia da Universidade do
Estado de Minas Gerais, como requisito parcial
à obtenção do título de Licenciado em
Pedagogia.

Orientador: Prof. Dr. Otavio Henrique Ferreira


da Silva

Ibirité
2022
Dedico este trabalho ao povo da periferia e todas as infâncias inseridas
nesse ciclo periférico e produtoras de culturas próprias.
AGRADECIMENTOS

Nascer às margens de uma grande metrópole, crescer entre becos e vielas,


perpassando à infância, adolescência e a vida adulta sobre as ruas de terra que
cortavam o aglomerado, ao calor humano da solidariedade e partilha entre os
moradores, da nascente do Rio pastinho ao córrego cortante da Vila São José. Cada
passo trilhado me fez chegar até aqui
Agradeço os meus ancestrais que com lutas e resistências me permitiram estar aqui
neste momento, aos primeiros moradores da Vila que buscaram suas moradias em
uma área improdutiva, fazendo florescer culturas e valores da nova favela que se
formava, o orgulho em agradecer aos primeiros fundadores da Vila e ter meu padrinho
Geraldo Medeiros e minha tia Conceição Medeiros como participantes desse processo
juntamento com querida avó Maria Nunes dos Santos, mulher negra, exemplo de amor
e resistência e minha avô Adriana, mulher de fé e perseverança. Agradeço minha mãe
Angela Maria de Jesus e meu pai Lucimar dos Santos Rodrigues que atravessaram
todas as dificuldades para criar 6 filhos dentro da comunidade, destaco essa criação
cheia de afetos imensuráveis, os conselhos valiosos dos meus pais, me proporcionou
escolher caminhos floridos durante a trajetória da minha vida, sem eles seria
impossível me tornar o homem que hoje sou.
Os caminhos até a universidade foram aconselhados pela pessoa mais que especial
que surgiu em minha vida, sou grato a tudo que amo, e um dos meus amores é minha
esposa Thalita Agostinho de Souza Ferreira que me fez enxergar um futuro possível,
estando lado a lado nos percursos da escrita da minha nova história.
O apoio dos meus irmãos, irmã e amigos me deram força para seguir nessa
caminhada acadêmica, tornando a jornada mais tranquila. Ao Prof. Dr. Otavio
Henrique Ferreira da Silva sou grato pela orientação e a credibilidade em meu
potencial, por acreditar em uma educação libertadora e decolonial.
Expresso imensa gratidão pela esperança alcançada nos olhares das crianças que
permitiram que essa pesquisa acontecesse, que com seus brilhos e protagonismos
possibilitaram entender como são partes e produtoras da cultura de periferia, sem
essas criança nada seria possível e sua presença na comunidade, a busca do seu
território mostram que suas infâncias abrem o campo das possibilidades e voam como
borboletas sobre as dificuldades e nos indicam como chegamos à uma sociedade
melhor e igualitária.
Para finalizar não poderia deixar de agradecer a minha outra família, meus sogros,
Angela Rosário de souza e Carlos António Ferreira, meu cunhado André de Souza
Oliveira e meu avô José Ferreira (in memoria), por serem fontes de inspiração e
ternura, e por me auxiliarem em todos os momentos nesse novo caminhar.
Gratidão!
Todo menino é um rei
Eu também já fui rei
Mas quá!
Despertei!
A vida que eu sonhei
no tempo que eu era só
Nada mais do que menino
Menino pensando só
No reino do amanhã
A deusa do amor maior
Nas caminhadas sem pedras
No rumo sem ter um nó
Todo menino é um rei
Eu também já fui rei
Mas quá!
Despertei!

Todo Menino é um rei - Roberto Ribeiro (1978)


RESUMO

O presente artigo pretende compreender as diversas manifestações da infância dentro


da Favela São José, localizada na regional noroeste de Belo Horizonte, Minas Gerais.
Para tanto, foi desenvolvido um estudo sobre a historicidade do local em interface a
minha infância para análise de diferentes gerações. Desenvolvendo a empiria para
captar informações em concordância às perspectivas etnográficas das infâncias em
diferentes tempos e espaços dentro da comunidade reconhecendo as crianças em
suas interações como protagonistas de formação e transformação cultural através das
observações de suas ações e brincadeiras. Seguindo a metodologia qualitativa, com
a autorização dos pais e responsáveis das crianças, é possível trazer as vozes das
crianças mostrando seus entendimentos sobre si, valorizando as suas expressões
sobre morar, habitar e resistir na Vila São José.

Palavras-chave: Infâncias. Periferia. Etnografia.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO……………………………………………….………………………………4

1. A VILA SÃO JOSÉ E MEU ENCONTRO COM A PEDAGOGIA………………….….5

2. AS INFÂNCIAS E CRIANÇAS NA VILA SÃO JOSÉ…………………..……….……21


2.1 Infâncias e Crianças na Roda de Samba………………………………….…....…22
2.2 Quando a polícia chega crianças e adultos se isolam em casa…………….…32
2.3 Infâncias e Crianças na Praça……………………………………………………....34
2.4 Infâncias e Crianças no Canão…………………………………………….............39
2.5 Infâncias e Crianças nos conjuntos habitacionais…………………………..….43

3. AS CRIANÇAS DA VILA SÃO JOSÉ E A PERCEPÇÃO DE SI…………............…46


3.1 Isac: percepções de si……………………………..………………………………....48
3.2 Iza: percepções de si…………………………………….…………………………...51
3.3 Rian: percepções de si………………………………………..…………..……….…51
3.4 Renner: as percepções de si……………………………………….………….....…52
3.5 Keven: as percepções de si……………………………………...………..……..….53

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS……………………………………………………….…...57

REFERÊNCIAS………………………………………...……………………………….….58
INTRODUÇÃO

A periferia sendo uma produtora de culturas é um local que deve ser analisada sobre
uma perspectiva simbólica, afetuosa, por sujeitos que protagonizam essa produção
cultural com seus corpos presentes no cotidiano periférico: as crianças. Nesse sentido,
o presente trabalho tem o objetivo de analisar os protagonismos e as resistências das
crianças na construção de suas infâncias na Vila São José – BH, buscando as
manifestações desse coletivo e como são seus comportamentos nas localidades
mostrando os acessos possíveis sobre a percepção das crianças sobre a periferia e
como parte da construção cultural da periferia.

No decorrer do texto, será apresentado no primeiro capítulo a historicidade da Vila


São José desenvolvendo o seu processo de construção desde a posse da área onde
fica localizada, a maneira de como se desenvolveu o aglomerado até chegar no
formato atual com seus conjuntos habitacionais. Na passagem pelo aglomerado faço
uma leitura desse processo em interface à minha infância, mostro os acessos e
caminhos de ruas de terra, becos e vielas e como proporcionaram diversas
brincadeiras entre as crianças e de como os acessos da periferia permitiram a minha
construção epistemológica até a minha formação em Pedagogia na Universidade do
Estado de Minas Gerais (UEMG) Unidade Ibirité.

Na sequência, no segundo capítulo apresento minha pesquisa de campo onde faço


as minhas observações das manifestações das infâncias presentes na Vila e como o
seus corpos se comportam nos diferentes espaços do local, nos diferentes tempos,
descrevendo o que as crianças fazem nesses espaços, como compartilham suas
brincadeiras e como eles desenvolvem interagem com seus pares na conclusão
dessas brincadeiras como protagonistas da cultura da infância, quando essas
crianças trazem informações do mundo adulto e de uma maneira adaptada
reproduzem o que são importantes ao seu contexto infantil.

No terceiro capítulo trago as vozes das crianças da periferia, vozes potentes em copos
pequenos, mostrando a potencialidade de suas falas, apoiado nas falas de Frederico
Alves Lopes (2021) quando em sua pesquisa etnográfica compreende que “Reduzi-
las à meros objetos de estudos seria subtrair o que elas detêm de mais potente: o

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protagonismo criativo” (LOPES, 2021, p. 121). Mostrando as expressões das crianças
na escuta como narrador de sua própria história, o sociólogo completa dizendo,

Não quero romantizar, idealizar essa cooperação entre as crianças e


eu, as hierarquias existem, diferenciando-nos, mas compreendo a
necessidade de equalizar as vozes, deixando as crianças falarem
também como pesquisadoras, apresentando suas miradas infantis
(LOPES, 2021, p. 121).

É através do protagonismo e autonomia da criança que construímos uma análise


sobre suas expressões dentro da periferia junto a sua concepção de si mesmos e a
percepção de mundo onde estão inseridas.

A etnografia é a metodologia utilizada visto a vertente qualitativa do trabalho. Esse


método sustentará as considerações empíricas tratadas no trabalho, fazendo ecoar
as vozes extraídas da favela. O meu pertencimento a Vila São José me torna um
nativo desse grupo periferizado e mostrar as concepções culturais das infâncias que
foram construídas e que são desenvolvidas “no meu lugar”. Indo mais além, é mostrar
também que a favela é o lugar das crianças e que na periferia elas resistem com suas
ações mesmo com os problemas sociais que circundam a periferia.

1. A VILA SÃO JOSÉ E MEU ENCONTRO COM A PEDAGOGIA

E o Zé do Caroço trabalha
E o Zé do Caroço batalha
E que malha o preço da feira
E na hora que a televisão brasileira
Destrói toda gente com a sua novela
É que o Zé põe a boca no mundo
É que faz um discurso profundo
Ele quer ver o bem da favela
Está nascendo um novo líder
No morro do Pau da Bandeira

Zé do Caroço - Leci Brandão – 1978.

Neste capítulo o objetivo específico é apresentar a historicidade da Vila São José em


interface com a minha história de vida, as crianças e as infâncias. Desde já, destaco
que a história da Vila São José está relaciona a minha própria história, pois foi lá que
cresci durante minha infância e adolescência e de lá que fui para o curso de
Licenciatura em Pedagogia da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG)

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Unidade Ibirité.

A favela é a parte imprescindível no processo da minha construção como cidadão, da


minha personalidade e do meu pertencimento. Nascido e criado na Vila São José,
localizada região noroeste de Belo Horizonte, faço um pequeno resgate do histórico
da Vila quetem início com a vinda de Alípio Ferreira de Mello e Ursulina de Andrade
Mello para o Curral Del Rey em 1895. Eles adquiriram 200 alqueires geométricos de
terra, localizados no vale do córrego da Ressaca, do Pastinho, onde, hoje, encontram-
se implantados os bairros São José, Castelo, Jardim alvorada, Jardim Montanhês e o
Alípio de Melo. (NEVES, 2013).

A Vila São José tem início em meados dos anos 60 com a ocupação de parte da
Fazenda São José, nome que os Mellos colocaram na terra adquirida. Mas, a Vila só
passou a ser reconhecida como São José em 1982 com crescimento da ocupação.
(BELO HORIZONTE, 2008).

IMAGEM 1 - Avenida João XXIII, Vila São José, 1978

Fonte: Belo Horizonte (2008).

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A partir daí, a Vila começa a ser nomeada por aglomerado e assim formando a Vila
São José, com uma média de 12 mil habitantes até 2003 quando o aglomerado passa
pelo processo de urbanização.

IMAGEM 2 –A Favela Instaurada

Fonte: Facebook- Vila José (2020).

IMAGEM 3 - Boca Da Favela nas proximidades do Aeroporto Carlos


Prates e Avenida Pedro II

Fonte: Facebook- Vila José (2020).

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IMAGEM 4 - O Canão

(Facebook- Vila José, 2020)

Me recordo de ter o medo instaurado no coração quando voltávamos da escola e uma


das brincadeiras de meus amigos era atravessar o Canão da COPASA para o outro
lado, o detalhe era o perigo da travessia com seus 20 metros de altura sobre o córrego
São José, essa era uma das brincadeiras aventureiras que as crianças dentro da
periferia buscavam para a diversão envolvendo adrenalina.

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IMAGEM 5 – Brincadeiras no córrego

Fonte: Facebook- Vila José (2020).

IMAGEM 6 – Minha antiga residência no Beco Vila Nova

Fonte: Facebook- Vila José (2020).

Na região onde morava tinha a rua Vila Nova como morro por estar em um nível acima
da casa onde morava, logo o endereço que eu morava era o beco Vila Nova e ao

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fundo corria o córrego São José. As brincadeiras eram diversas, aventuras dentro do
próprio córrego esgotando nossa imaginação, pega-pega, futebol, bolinhas de gude,
enfinca quando chovia e toda a extensão da rua se transformava em lama. As
brincadeiras envolvendo o papagaio eram feitas no morro, na parte mais alta da rua
Vila Nova e no Morrão que era uma vasta área não ocupada que possibilitava a
brincadeira.

IMAGEM 7 – Início Da Rua Vila Nova, Campo Rio Negro À Direita

(Facebook- Vila José, 2020)

Com o crescimento desordenado,além de se tornar uma área de risco social, a Vila


sofria com a falta de saneamento básico e o córrego do Pastinho era utilizado para
descarga de esgoto de todas as famílias da comunidade tornando se foco de insetos,
roedores e doenças para os moradores, a vila também era um empecilho para a
extensão da avenida Pedro II, que melhoraria a ligação entre as regionais Noroeste,
Norte e Pampulha.

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IMAGEM 8 – Falta De Saneamento Básico

(Facebook- Vila José, 2020)

Em matéria publicada em 2008, a Câmara Municipal de Belo Horizonte informa que


no ano 2000, a vereadora Neusinha Santos (PT) desenvolve o plano de urbanização
da comunidade. O ano de 2003 é marcado pela conclusão da primeira etapa do
projeto, quando 208 famílias são contempladas com seus apartamentos e mais 992
famílias foram transferidas para os 1.408 apartamentos feitos para os moradores na
conclusão do plano, as obras e a remoção das famílias foram feitas pela Programa
de Reassentamento por Obras Públicas em Vilas e Favelas (Proas) com o suporte da
Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte (URBEL) com ajuda dos recursos
financeiros do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal.
(CÂMARA MUNICIPAL, 2008).

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IMAGEM 9 – Concluindo A Primeira Etapa Em 2003 - Carandiru

(Facebook- Vila José, 2020)

Após a conclusão dessa etapa, as primeiras famílias a residirem no conjunto


habitacional são moradores dos arredores do Campo do Rio Negro e nos limites
próximo a Avenida João XXIII, sendo assim, contamos que a extremidade inferior ou
parte de baixo da vila é a parte mais próxima a essa avenida e a parte de cima ou
superior a extremidade mais próxima à Avenida Pedro II.

O processo de desocupação das famílias residentes da favela possibilitou uma nova


oportunidade e dignidade aos moradores com seus novos apartamentos ou em suas
novas moradias para quem foi indenizado. As transformações urbana no local mudaria
a paisagem da Vila, os escombros da remoção ainda permitiram as crianças suas
últimas brincadeiras em um ambiente terroso, que pudessem sentir o calor do chão
puro, da ventania e o içar da poeira, se despedindo da referência afetiva aos

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moradores, o Campão não mais existiria.

IMAGEM 10 – As Últimas Brincadeiras No Campo Rio Negro

Fonte: Henner Figueiredo, YouTube, (2009).

IMAGEM 11 – Nos Escombros

(Facebook- Vila José, 2020)

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IMAGEM 12 – Visita Do Presidente Lula Às Obras Do PAC Na
Vila São José

(Facebook- Vila José, 2020)

IMAGEM 13 – Obras Iniciadas

(Facebook- Vila José, 2020)

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IMAGEM 14 – Novas Moradias

(Facebook- Vila José, 2020)

Desde a sua fundação, a Vila São José passou por diversas transformações, antes
da urbanização ultrapassar a favela, a Vila foi dividida em quatro partes, paraum maior
entendimento sobre a área do campo de pesquisa, farei uma apresentação das
demarcações territoriais feitas na comunidade pela população.

IMAGEM 15 – Divisão Territorial Da Favela

(Facebook- Vila José, 2019)

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Para melhor entendimento dos caminhos que irei percorrer para a análise etnográfica
analisando as infâncias da Vila São José, irei fazer uma construção apresentando
mapas do local em sua nova versão, usando como referência a Avenida João XXIII já
ligada à Avenida Pedro II, o mapa mostra o conjunto habitacional instalado, há uma
mudança territorial para a localização dos moradores, na parte de baixo da Vila e do
antigo Campo Rio Negro, agora passa a avenida e a Praça João XXIII, destacando
áreas de observação como a Rua das Figueiras, o primeiro conjunto de prédios a ser
concluído denominado pela população local como Carandiru e a Nova Ocupação.

IMAGEM 16 – Parte De Baixo

Fonte: Google Maps, (2022).

A Praça João XXIII divide é dita como a divisão das partes, mas, podemos dizer que
a parte do meio é a região onde ficava a área do Canão, onde hoje fica instalado o
Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), o conjunto à direita da imagem
abaixo está relacionado aos moradores que moravam na antiga região da Penha, esse
nome é destinado à um antigo morador chamado José da Penha, que tinha um bar
onde era promovido as danças de forró e diversão da comunidade aos finais de

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semana nos anos 80.

IMAGEM 17 – Parte Do Meio

Fonte: Google Maps, (2022).

Por serem os últimos moradores a serem deslocados da favela, os moradores da parte


de cima ou da Boca da Vila foram distribuídos por todas as partes do novo conjunto
habitacional ou foram indenizados, logo, finalizamos a parte superior na antiga rua da
Penha, destacando também a área arborizada, onde foram desabrigadas mais dez
famílias, pois o local era inabitável, na atualidade tem construída uma nova praça
sobre o antigo córrego São José/ Pastinho (PBH, 2022).

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IMAGEM 18 – Parte De Cima

Fonte: Google Maps, (2022).

IMAGEM 19 – Nova Praça

Fonte: PBH/URBEL (2022).

Após apresentação da Vila São José, passo agora a descrever brevemente como se
deu a minha chegada ao Curso de Licenciatura em Pedagogia da UEMG Ibirité.

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Antes de iniciar minha trajetória como estudante de Pedagogia e profissional da
educação, trabalhei na área da construção civil como ajudante de pedreiro até ser
promovido à Armador de Ferragens. A profissão exige que o profissional fique
constantemente com o corpo dobrado para frente, demanda um grande esforço dos
músculos posteriores das pernas por ficarem esticados e a coluna que fica dobrada
por muito tempo. Foi nos momentos em que deixava o meu corpo ereto para alongar
e descansar, que comecei a observar melhor meus companheiros de trabalho. Logo
em 2015, me incomodou o fato de todos o s t r a b a l h a d o r e s b r a ç a i s
serem negros e os engenheiros e estagiários todosserem brancos. Ao chegar em
casa conversei com minha esposa Thalita Agostinho de Souza Ferreira, na época
minha namorada, sobre minhas observações no campo de trabalho. Eu e Thalita após
termos concluídos o ensino médio e cursos técnicos, eu em Mestre de obras e ela
em Segurança do trabalho, na mesma semana decidimos procurar o cursinho
comunitário pré-ENEM EDUCAFRO/ Núcleo Águia, localizada também na região da
Vila São José,

O curso comunitário foi marcante em minha trajetória na construção da cidadania,


tem como organização, a gestão autônoma de cada núcleo exercendo o voluntariado,
com o objetivo de incluir negros e periféricos no ensino superior além de promoverem
convênio com o governo de Cuba e Venezuela, afim de viabilizar a formação em
medicina de estudantes pobres do Brasil nesses países. (TEIXEIRA, 2013). No início
de 2015, formando a dupla de coordenadores, dois ex-estudantes do curso
comunitário, já formados, decidem reabrir o núcleo após dois anos fechados, no início
eram somente os dois na condução das aulas de todas as disciplinas do currículo do
ensino médio até que aos poucos outros educadores foram incorporando o grupo.

Meses depois do início das aulas no EDUCAFRO, a dupla de coordenadores ficou


impossibilitada de conduzirem o núcleo e para evitar novamente o encerramento do
curso, eu e Thalita decidimos atuar como estudantes e voluntários na coordenação
do curso. No curso, meu objetivo principal objetivo era melhorar meus conhecimentos
científicos das ciências exatas a partir da minha experiência com a construção civil e
no curso de Mestre de Obras para que assim conseguisse uma boa nota no ENEM e
ingressasse no curso de Engenharia Civil.

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Os seminários promovidos pela EDUCAFRO mostraram o quanto é importante o
corpo preto está inserido na academia. E no ano de 2016, através de dois eventos
realizados no cursinho, percebi que poderia atuar na educação com a perspectiva de
orientar criançase adolescentes negros e pobres a trilharem um caminho diferente do
que do que a condição de exclusão social imposta aos que vivem nas periferias
urbanas.

Minha primeira atuação como profissional da educação foi na função de apoio à


coordenação do cursinho pré-vestibular. Ali tive experiência como voluntariado dos
professores, a organização das disciplinas que cada educador fazia, como
executavam seus planejamentos com maestria e suas ações para promover um curso
de qualidade e que contribuísse socialmente para o ingresso de seus estudantes no
ensino superior. Era encantador viver estas experiências. Comecei a perceber ali os
diferentes campos da educação de uma forma mais profunda.

O imóvel cedido pela Paróquia São Tiago Maior para o EDUCAFRO Núcleo Águia,
está situado em área asfaltada no entorno da Vila São José. Da rua Violeta de Melo,
nas janelas do pequeno edifício do EDUCAFRO, podemos ter uma visão ampla da
comunidade. Antes da transformação feita pelo PAC, era possível ver o campo do Rio
Negro, a parte da comunidade que circulava esse campo, o primeiro conjunto de
prédios construídos para a remoção das primeiras famílias situadas na extremidade
de baixoda Vila nomeado popularmente de Carandiru, e a Chácara. Na atualidade
vemos a ligação das avenidas João XXIII com a Pedro II, a praça, os novos
apartamentos construídos pelo PAC, o mesmo Carandiru e a nova ocupação que
surgiu numterreno que antes era inutilizado. Tomando um café, em um intervalo entre
as aulas no cursinho, aproveitava para olhar a comunidade pelas janelas. Em certa
ocasião observei uma movimentação rápida de várias pessoas correndo em direção
à rua que rodeava a praça, havia acabado de acontecer execução de um
adolescente de dezasseteanos. Mesmo que esse adolescente estivesse envolvido
com o tráfico de drogas e que tenha sido vítima de uma rivalidade entre grupos
diferentes, me comoveu e me fez refletir mais os motivos que levam nossas crianças
e jovens à criminalidade e como a educação poderia contribuir para mudar essa
realidade para nós moradores das periferias.

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Continuei firme com a formação do EDUCAFRO, fiz o ENEM de 2016 e em 2017, pelo
SISU, pelas políticas de ações afirmativas, fui aprovado no vestibular para os cursos
de Pedagogia e Educação Física da UEMG Ibirité. Tive que tomar uma decisão e
para isto, meu sogro Carlos Antônio Ferreira foi uma referência para mim. Carlos
Antônio também teve sua passagem pelo EDUCAFRO e cursou o curso de Pedagogia
na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Tanto meu sogro como minha
esposa Thalita, me orientaram sobre as possibilidades de atuação do pedagogo.
Assim, optei pelo curso de Pedagogia pois percebi que poderia estar diretamente
ligado às infâncias jovens, colocando minha prática profissional a serviço da
transformação social da vida dos povos das periferias.

IMAGEM 20 – Nas Brincadeiras Que As Infâncias Resistem

Fonte: Henner Figueiredo, YouTube (2009).

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É nesse sentido que o presente trabalho tem como objetivo geral analisar os
protagonismos e as resistências das crianças na construção de suas infâncias na Vila
São José. Assim, para além de todo o contexto de opressão, exclusão e
subalternidade que marcam as vidas de quem mora na periferia, busca-se visibilizar
neste estudo as diferentes estratégias desenvolvidas pelas crianças para ser sujeitos
e resistir na periferia. No capítulo a seguir, iremos apresentar com mais detalhes as
manifestações infantis observadas por nós durante a pesquisa de campo.

2. AS INFÂNCIAS E CRIANÇAS NA VILA SÃO JOSÉ

O sorriso no olhar,
Ainda mostra esperança
Favela, não é só bandidos e matanças
A cultura dos pobres que tem pensamentos nobres
Vale mais do que qualquer riqueza escondida no cofre
O nosso céu tem mais estrelas,
Nossas vazas tem mais flores
Os nossos bosques tem mais vida,
A nossa vida tem mais amores
Liberdade de expressão,
Se tiver vontade cante
A verdade que se esconde,
Atrás de cada semblante.
Além da simplicidade – Simpson Souza (Artista da Vila São José)

Neste capítulo irei desenvolver os objetivos específicos: a) observar as manifestações


infantis nos diferentes tempos e espaços da Vila São José; e b) descrever o que fazem
as crianças em seu tempo de infância na Vila São José.

Na perspectiva de acompanhar as manifestações das infâncias nos diferentes


espaços da Vila São José, ancorado na etnografia como orientação da pesquisa
qualitativa, utilizo da minha vivência na comunidade como um agente participante de
um grupo social periférico, uma técnica que permite coletar dados através da
convivência com um povo que pretendo pesquisar. A etnografia oportuniza ao
pesquisador a inter-relação com a população local utilizando de estratégias com
observações diretas, diálogos informais e formais, entrevistas livres, dentre outros,
para a coleta de dados (ECKERT; ROCHA, 2008).

Durante o período de 05 de junho 2022 a 22 de julho de 2022, realizei um total de 8


observações, buscando praticar a alteridade, percebendo as diferenças,

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particularidades e singularidades das infâncias da periferia. Para relatar os aspetos
das crianças no contexto periférico, é necessário a pesquisa empírica etnográfica. De
acordo com Peirano, “A empiria – eventos, acontecimentos, palavras, textos, cheiros,
sabores, tudo que nos afeta os sentidos –, é o material que analisamos e que, para
nós, não são apenas dados coletados, mas questionamentos, fonte de renovação”
(PEIRANO, 2014, p. 380).

Para dar continuidade à pesquisa, estive presente em locais específicos da


comunidade que contemplasse toda a sua demarcação no modelo atual, após as
conclusões do processo de urbanização. Perpassei pelos locais marcantes como a
rua das Figueiras, onde localiza o conjunto onde minha família foi realocada, a Praça
João XXIII e a nova Praça como ambiente de lazer, espaços onde residem os
moradores da antiga rua da Penha, o campo do Inconfidência nos horários destinado
ao público infantil, o Carandiru e a nova Ocupação que sofre com a falta de
infraestrutura. Para melhor compreensão das observações feitas em campo, foram
realizados registros fotográficos das movimentações das infâncias com a autorização
e consentimento das crianças e de seus responsáveis. Com a anuência dos
responsáveis dos pequenos, foi possível identificar as crianças pelo o nome nesse
capítulo que estão elencados no quadro abaixo.

Nome da criança Idade


Ayla 2 anos
Isac 4 anos
Miguel 4 anos
Keven 8 anos

2.1 Infâncias e Crianças na Roda de Samba

A facilidade na interação entre as crianças permite a criação de novas ações que elas
possam desenvolver mesmo em ambiente onde a maioria é adulta, possibilitando a
procura pelos pares. Na roda de samba realizada na comunidade no dia 05 de junho
de 2022, observei a criação de brincadeiras protagonizadas pelas crianças enquanto
os adultos se divertiam com a apresentação do grupo de samba. Neste mesmo dia,
ocorreu no local, disparo de tiros p o r u m motoqueiro anônimo, a l g u m a s
c o n f u s õ e s d e c o r r e n t e s do uso de bebidas alcoólicas, mas mesmo assim, a

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comunidade continuou a se divertir.

P a r a a s o b s e r v a ç õ e s d e s s e d i a , me antecipei ao iníciodo evento previsto


para às 15h:00min chegando uma hora antes. Os sorrisos estampados nos rostos das
pessoas que frequentavam o local refletiam a felicidade das relações humanas na
ansiedade pelo início do evento, a tranquilidade do início de evento permitia que as
crianças acompanhadas de seus responsáveis, se sentissem livres para
desempenharem os seus protagonismos no mesmo local.

Enquanto os convidados chegavam e se formavam pequenos grupos de adultos, a


criança Keven, dentre tantos adultos, estava s e n t a d a n u m banco, observando
a movimentação e às brincando sozinha com seu carrinho azul, ouvia-se sons e
gestos simulando as mobilidades de um carro voador, ora olhava para o lado direito,
fitava os cachorros disputando um pedaço de pano e sorria. Olhava para sua
esquerda, movimentava a cabeça em direção à cada pessoa que estava ao longo de
toda a rua. Depois levantou para buscar um pedaço de carne, mirou o olhar pra frente
e encontrou do outro lado da rua duas outras crianças próximas de suas mães. As
outras crianças discutiam se iriam brincar de bicicleta ou com os brinquedos que
estavam guardados em casa.

Uma dessas crianças que Keven observava do outro lado da rua era meu sobrinho
Isac de 4 anos que buscava outras crianças para se divertir, pois, Miguel, outra
criança de mesma idade havia se afastado. Passados alguns minutos, em um
momento em que fui ao banheiro, Isac vem em minha direção, tenta montar uma
narrativa de um episódio de desespero que acabara de acontecer no local. Montado
em uma motocicleta, um rapaz não identificável com roupas de proteção contra chuva,
de capacete e mochila de empresa de entrega de fast food se adentra na rua das
Figueiras e antes de chegar ao local do samba, efetuou seis disparos de arma de fogo
contra um grupo de traficantes da área que causou um desespero enorme em todos
os presentes, fazendo com que todos corressem buscando um local seguro.
Felizmente os disparos não acertou ninguém, mesmo depois da arma do atirador cair
no chão, ele conseguiu pegar a mesma e evadir do local.

Após o evento violento começo a construir diálogos com Isac que demonstrava

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preocupação com seus familiares. O antropólogo Florence Weber avalia que ouvir os
anseios e classificações da criança (sujeito que está sendo observado), sobre o
ocorrido, em diálogo espontâneo é mais valiosa que um uma pesquisa de
questionário, evitando a expectação do observador. Ainda reforça que ouvir sem
interrogar, possibilita investigar as diferenças linguísticas, o seu significado social, o
pertencimento aquele grupo e sua visão de mundo (WEBER ,2009). Horas depois do
tiroteio a sensação era que o pior já havia passado. O samba iniciou, os adultos se
divertiam e as crianças continuavam a brincar. Isac, continuava a se divertir e sua
mãe o interditou em certo momento, perguntando para onde iria e alertando a criança
de estar em alerta pois o ambiente estava perigoso. A criança responde dizendo que
só iria brincar com seus novos amigos, que já estavam realizando uma brincadeira
simulando a produção de uma refeição.

IMAGEM 21 – Isac Encontra Novos Amigos

Fonte: Autor, 2022.

Isac é a criança de blusa de cor azul escura e ao se aproximar de seus amigos


logo percebe que eles já estão em uma brincadeira coletando britas, gramas,
areia, pedaços de galhos, tampas de refrigerantes e colocando em recipientes que
simulavam panelas. Quando me aproximei observei que preparavam um banquete.
Os meninos estavam organizando e cozinhando a refeição, que tinha como opção o
macarrão temperado, arroz misturado com carne, miojo e salada.

Com a categorização do feminino e masculino desde o nascimento da criança, a

25
sociedade fortalece as diferenças de gênero determinando normas de padronização
de ações binárias, limitando os privilégios individuais dos pequenos (MARCÍLIO,
2018). Percebemos o rompimento de barreiras exercido no comportamento das
crianças, trazendo o pensamento de que:

[…] acredita-se que o rompimento de barreiras de gênero começa na


infância, no brincar, portanto, nesses momentos de socialização e de troca
cultural. Além disso, é preciso olhar e ouvir as crianças, perceber seus gestos
e expressões, para que assim seja possível identificar os sujeitos que
desejam transgredir as fronteiras e os limites (MARCILIO, 2018, p.73)

Os meninos em seu protagonismo na criação dessa brincadeira em questão, não


exercem a divisão de gênero e não classificam a atividade como uma brincadeira de
menina (feminino), simplesmente compartilham seus saberes e conhecimentos,
exercendo seus aspectos culturais, nas diferentes formas de interação social das
crianças com seus pares.

IMAGEM 22 – Troca De Saberes No Tempero Dos Ingredientes Da


Refeição

Fonte: Autor, 2022.

26
IMAGEM 23 – A Coleta Dos Macarrões

Fonte: Autor, 2022.

IMAGEM 24 – Isac Participa Ativamente Da Nova Brincadeira

Fonte: Autor, 2022.

27
Vejo que na interação e ações entre as crianças elas reproduzem as ações dos
adultos, seus comportamentos são recortes do convívio com o adulto, mas elas
ressignificam a sua maneira e compartilham com seus pares no movimento de suas
ações (PEDROSA; CARVALHO. 1995). Vale salientar que as ações das crianças não
são somente uma reprodução da vida adulta que eles participam. A Sociologia da
Infância assegura que as crianças são produtoras de sua própria cultura como afirma
Corsaro (2011 apud LIMA; MOREIRA; LIMA, 2014, p. 101) com o termo
“representação interpretativa”:

No entanto, na perspectiva da Sociologia da Infância, as crianças não


simplesmente reproduzem as culturas e as ações dos adultos. O termo
“reprodução interpretativa” de Corsaro (2011) contrapõe-se à visão de
reprodução passiva, afirmando que as crianças expressam interpretações e
atitudes que auxiliam no processo de configuração e de transformação das
formas sociais (LIMA; MOREIRA; LIMA, 2014, p. 101).

A autonomia das crianças para realizarem uma brincadeira que retome um saber
inspirador e acolhedor, as reproduções com as demonstrações de afeto na feitura do
alimento sendo produzido por suas pequenas mãos, retomam as lembranças de laços
familiares na partilha da refeição comumente vivida nos barracos das favelas, ações
estas que são reproduzidas pelos garotos na brincadeira, retomando um gesto que
perpassa por gerações:

...Fiz a comida. Achei bonito a gordura frigindo na panela. Que espetáculo


deslumbrante! As crianças sorrindo vendo a comida ferver nas panelas. Ainda
mais quando é arroz e feijão, é um dia de festa para eles (JESUS, 1955, p.
43).

Carolina de Jesus nos mostra que na simplicidade há alegria e prazer no preparo da


refeição e no propósito de alimentar seus filhos, o movimento das crianças na
brincadeira nos revela o mesmo afeto na preparação, revelando suas capacidades em
reconhecer as potencialidades com as atribuições domésticas que ao longo dos anos
vem sido concedido a maior parte do tempo às mulheres. Quando os dados do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) de 2012 (IPEA, 2012) mostram que
88% das meninas entre 10 e 15 gastam 25 horas semanais com afazeres domésticos,
os meninos despendiam de 10 horas semanais na mesma tarefa. Assim, a iniciativa
dos garotos na brincadeira traz uma expectativa de mudança de comportamento na
divisão igualitária de tarefa domésticas entre gêneros.

28
As crianças após prepararem toda sua refeição imaginária e finalizarem a brincadeira,
dispensaram todos os materiais utilizados em um canto próximo de onde brincavam.
Isaac retornou aos cuidados da mãe e se despediu dos outros dois amigos com um
aceno de mãos dizendo até mais.

O por do sol vinha se aproximando, abrindo espaço para a noite que se estenderia, e
todas as crianças ainda presentes na roda de samba estavam mais próximas de seus
responsáveis. Os adultos descontraídos e envolvidos nos batuques do samba que
ainda acontecia, quando o som foi interrompido por uma outra confusão. Um homem
de aproximadamente 40 anos assediou verbalmente uma das crianças do sexo
feminino de 11 anos que esta no evento. De acordo com o Estatuto da Criança e do
Adolescente no Artigo 241 “Aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer
meio de comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso: Pena –
reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa” (BRASIL,1990, Art. 241). Porém, os
traficantes do local agrediram fisicamente o homem que havia cometido o ato de
assédio contra a criança. O desespero foi maior quando uma arma de fogo foi retirada
em ameaça a esse homem. Assim, as crianças se agarraram em seus responsáveis
rapidamente buscando segurança, não havia mais sorrisos, os olhos cheios d'água e
o choro escorreu levando a felicidade e sorriso daquelas crianças. Era nítido o
assombro da situação expressado nos olhares das crianças. Em seu diário, Carolina
de Jesus relata sobre as brigas entre adultos diante das crianças nas favelas.

...E o pior na favela é o que as crianças presenciam. Todas crianças da favela


sabem como é o corpo de uma mulher. Porque quando os casais que se
embriagam brigam, a mulher, para não apanhar sai nua para rua. Quando
começa as brigas os favelados deixam seus afazeres para presenciar os
bate-fundos (Jesus, 1995, p.45)

Isac ao ver a situação, adentrou no apartamento onde mora, se dirigiu para o quarto
onde sua tia Thalita estava e disse: “- Tia Thalita, eles iriam matar aquele homem, que
bom que ele conseguiu ir embora” (Isac, 4 anos, 2022).

O homem conseguiu ir embora após o episódio, mesmo diante desses fatos violentos
não desvaloriza o fato de a periferia ser um lugar multicultural de construção de

29
saberes e lazeres. Os olhares estereotipados sobre a favela, por parte de algumas
pessoas que moram fora do contexto de periferia, não apaga o brilho da cultura que é
produzido dentro dela, em alguns casos, os olhares de julgamento, indicam somente
um lugar gerador de violências como nos mostra os relatos de Carolina de Jesus nos
relatos do tenente da delegacia, onde este diz que a favela é um ambiente propenso,
que as pessoas tem mais possibilidades de delinquir do que tornar-se útil a pátria e
ao país (Jesus, 1955). Os moradores do bairro vizinho à Vila São José também já
mostraram o seu lado preconceituoso contra a periferia:

[…] a Favela São José. Na visão dos moradores antigos, sem nenhum
preconceito, a construção daquela favela mudou o perfil do bairro e ajudou a
tornar o lugar perigoso, além de desvalorizar os imóveis localizados por perto
(NEVES, 2013, s/p).

Os acontecimentos violentos são pequenos fatos, e não se pode desconsiderar os


valores que faz com que a favela seja um ambiente favorável ao convívio social e em
muitos momentos agradável.

Após ser apaziguado o conflito sobre o assédio do homem contra a criança, os


instrumentos começaram a ser recolhidos. O brilho de um grande talento começa a
emergir e clarear diante daquele momento obscuro. Foi quando Ayla Cecília com seus
3 anos de idade, se aproximou do instrumento surdo (percussivo) e começou a marcar
um compasso musical ao mesmo tempo que se arriscava no cantar.

A iniciativa Ayla contagiava as pessoas em seu redor. Ao observar melhor seus


movimentos, percebia seu encantamento e curiosidade com o tamanho do
instrumento e com o som grave. Parecia que Ayla havia encontrado uma potente
ferramenta, ao mesmo tempo que protagonizava a reprodução interpretativa
(CORSARO, 2011) da cultura das rodas de samba, colocando em prática suas
habilidades percussionistas. Esse movimento de socialização, mostra como as
crianças são capazes de criar e modificar culturas mesmo estando em um ambiente
adulto, logo, é válido as análises de seus comportamentos compartilhando suas
vozes, experiências, decisões e suas opiniões (DELGADO, MULLER, 2005).

30
IMAGEM 25 – Ayla Marcando O Compasso

Fonte: Autor, 2022.

A alegria das crianças contagiava as pessoas. Parecia um antídoto contra a violência


que perpassa a vida do povo da periferia. Ayla, demonstrava capacidade de
desenvoltura singular e no simples toque do tambor e pandeiro, fazia o samba se
prolongar um pouco mais. O samba da Vila São José, naquele domingo à tarde, não
terminava com o fim da apresentação do grupo convidado, mas o fechamento era
protagonizado por crianças como Ayla. Mantendo vivo assim, o samba como parte da
cultura das gerações mais nova do território.

Nessa perspectiva, as crianças são consideradas seres sociais imersos,


desde cedo, em uma rede social já estabelecida e, por meio do
desenvolvimento da comunicação e da linguagem – o que possibilita uma
maior interação com os outros – constroem seus mundos sociais (SANTOS,
2014, p.124).

A criança valida o seu protagonismo na modificação cultural dos adultos e para a


cultura da infância, demonstra suas habilidades percussionistas, os cantos autorais
que ela mesma reproduz com sua delicada voz, demonstrando a sua maneira
diferenciada de tocar os instrumentos no refinamento da maestria do compasso

31
próprio exercido em sua infância.

IMAGEM 26– Ayla Toca E Canta Suas Canções

Fonte: Autor, 2022.

IMAGEM 27 – É Assim Que Se Toca Um Pandeiro!

Fonte: Autor, 2022.

32
2.2 Quando a polícia chega crianças e adultos se isolam em casa

O dia 18 de junho é marcado por um belo dia ensolarado, permite os acessos para a
caminhada afetuosaem observação das crianças na comunidade, mas, as pessoas
que costumavam ocupar a praça em busca de lazer não se encontravam, nem as
crianças e nem os adultos da comunidade. A praça era ocupada naquele dia pelas
viaturas da polícia militar. Ocorria ali uma grande operação de combate ao crime
organizado. As abordagens policiais na periferia são vistas como agressivas pela
comunidade, Leite e Silva (2007) nos apresentam relatos de denúncias nas periferias
sobre as abordagens e inibição da população periférica nas chamadas operações
policiais quando dizem que:

Vale aqui um comentário sobre as diferenças entre os agentes da violência


nas favelas. Como foi sugerido, os moradores não dispõem das mesmas
alternativas quando se trata da violência policial. No caso desta, silêncio e
omissão não têm utilidade como recursos defensivos. Nem são impostos
explicita ou implicitamente pelos policiais, posto que, salvo raras exceções,
eles sabem que estão lidando com uma população segregada e
estigmatizada, de modo que não se esforçam por garantir a clandestinidade
das ilicitudes que possam cometer (LEITE, SILVA. 2007, p. 570).

Com a falta das manifestações das infâncias no local fui impedido também de fazer
minhas observações, porém, a reflexão era sobre a estadia dos policiais na marcante
área de lazer da comunidade e sua suposta atuação na periferia sobre a intenção de
proteção da comunidade, se revelar também perigosa, não podendo transitar no local
onde estão estacionados, considerando os argumentos de Martins (2019), as crianças
são observadoras do cotidiano da periferia e sabem como se comportar diante a tal
operação:

Também fazia parte do cotidiano das crianças a violência policial pela qual os
jovens de periferia são submetidos, por meio de abordagens abusivas e até
mesmo sendo alvejados, como se pode observar nos assassinatos recentes
perpetrados pela polícia militar aos, em sua maioria, jovens negros e pobres.
Todo esses elementos e experiências subjetivas vivenciadas por essas
crianças de periferia contribuam para constituição de suas identidades, não
de forma homogênea, mas por meio da apreensão dessa violência como
produtora de sujeitos (MARTINS, 2019, p. 268.).

33
IMAGEM 28 – Operação Policial No Espaço De Lazer

Fonte: Autor, 2022.

Mesmo assim, saí para as observações da pesquisa, mas em cada local em que
transitava, havia abordagens policiais acontecendo. Naquele dia não foi prosseguir
com as observações. O povo da comunidade, crianças e adultos não se arriscaram a
ocupar o espaço público, com toda aquela repressão ao redor.

IMAGEM 29 – Operação Policial Na Praça João XXII

Fonte: O Tempo (Alex de Jesus, 2014).

34
IMAGEM 30 – Operação Policial Na Rua Das Figueiras

Fonte: Itatiaia (Amanda Antunes, 2022)

Em certos momentos a comunidade já presenciou a repressão assassinatos


envolvendo a força policial, o que nos instiga a pensar sobre os pensamentos de
Mbembe (2016, p.128) em relação a necropolítica: “trajetórias pelas quais o estado de
exceção e a relação de inimizade tornaram-se a base normativa do direito de matar”.
A periferia já sofre com o descaso social e se dispõe de um domínio de escolha do
estado sobre a ameaça ao terror, quando este demonstra o seu domínio sobre o povo
periferizado majoritariamente negro. Assim,

O poder necropolítico opera por um gênero de reversão entre vida e morte,


como se a vida não fosse o médium da morte. Procura sempre abolir a
distinção entre os meios e os fins. Daí a sua indiferença aos sinais objetivos
de crueldade. Aos seus olhos, o crime é parte fundamental da revelação, e a
morte de seus inimigos, em princípio não possui qualquer simbolismo. Este
tipo de morte nada tem de trágico e, por isso, o poder necropolítico pode
multiplicá-lo infinitamente, quer em pequenas doses (o mundo celular e
molecular), quer por surtos espasmódicos - a estratégia dos pequenos
massacres do dia-a-dia, segundo uma implacável lógica de separação, de
estrangulamento de vivis secção, como se pode ver em todos os teatros
contemporâneos do terror e do contra terror (MBEMBE, 2017, p. 65 apud
GOMES:TEODO, 2021, p. 3 ).

2.3 Infâncias e Crianças na Praça

Tenho a praça João XXIII como ponto de partida em outros momentos da etnografia.
Mas no sábado dia 02 de junho de 2022, antes de ir à praça, vejo que o campo

35
estavavazio, não aconteceram os jogos das crianças no campo, evento que reúne em
média 60 crianças para treino e jogos geralmente das 08h:00min às 12h00min. Logo,
continuo a caminhada, prossigo para a praça e diferentemente da observação
anterior, o que vejo é um céu bem colorido, com uma chuva de “papagaios”, cortando
as nuvens no alto. Ali também, vejo sorrisos dos moleques, que na transição da
adolescência para a juventude. Não perderam o gosto pelo brincar com pipas e linhas
entrelaçadas em suas mãos. À sua maneira, as crianças que moram nas favelas
reconstroem os lugares em suas brincadeiras e constroem sua identidade interagindo
com a imagem percebida de sua ambiência.

IMAGEM 31 – Os Movimentos Na Busca Pelos Papagaios Na Praça

Fonte: Autor, 2022.

Os mesmos movimentos eram reproduzidos pelas crianças, todas que ali


permaneciam brincavam no mesmo estilo dos moleques maiores. Olhares atentos a
cada movimento dos papagaios no ar, a correria na tentativa de pegar um que acabou
de ser "mandado" mesmo competindo com adolescentes e adultos maiores que elas,
na manifestação das crianças na praça havia o encanto, o brilho nos olhos, sorrisos
estampados em suas primeiras imersões com aquela brincadeira que envolve linha,
plástico, bambu, junto a agilidade dos toques para aplumar, posicionar e fazer dançar
os papagaios, mais alegria quando dava certo e o brinquedo voador alcançava o céu.

36
IMAGEM 32 – Os Que Colorem O Céu

Fonte: Autor, 2022.

Esta brincadeira que envolve crianças, jovens e adultos e fortemente presente no


contexto periféricos, esboça conhecimentos e saberes, diante tamanha habilidade
para conduzira pipa no ar. A intensidade em cada toque na linha na percepção da
direção que iria o artefato voador, presenciamos a frustração quando não conseguiam
fazer a pipa subir e rapidamente buscavam alguém para auxiliar nessa empreitada,
seja o auxílio de outra criança ou o adulto mais próximo.

IMAGEM 33 – Empinar Pipas Em Diferentes Tempos- Noturno

Fonte: Autor, 2022.

37
Quando o ambiente está tranquilo, viabiliza a b r i n c a d e i r a por um longo tempo,
até mesmo ao anoitecer. A escuridão da noite não permite que localize as pipas
quando estão fora do limite do campo de visão de quem está conduzindo, porém,
mesmo quando o brincante tem a possibilidade de fazer a pipa voar cada vez mais
longe, mais alto, a mesma não faz isso, pois há limites para enxergar. Quanto mais
longe o papagaio está, necessita recolher um pouco mais as linhas para que a pipa
fique segura e não saia do controle do brincante.

Nos acessos da Vila São José, quando ainda era aglomerado, não era possível
algumas brincadeiras como empinar pipas no horário noturno. Não havia um espaço
amplo, sem fiações e com iluminação que permitia a segurança para quem
participasse dessa brincadeira. Outra diversão que era pouco vista na comunidade
era partidas de futebol no período da noite. O campo que havia dentro da favela não
tinha iluminação, as partes de morros onde ficavam os campinhos também não havia
iluminação. Naquela época algumas crianças se aventuravam a jogar nas ruas de
terra improvisando golzinhos nas primeiras horas da noite e encerrando no máximo
às 19h00min. Diante da construção da nova praça, perceber-se novas formas de
manifestação do brincar e sua extensão durante o anoitecer. No mesmo dia da
observação, vi o retorno das crianças que participaram de um torneio de futebol que
ocorria em Betim. Por isso, o campo Inconfidência estava vazio na observação
daquele outro momento. Os que acabaram de chegar do jogo em outro município,
ainda uniformizados, rapidamente as crianças se reuniram com os demais que já
estavam dentro daquadra, enquanto um time jogava os demais aguardavam fora de
quadra empinando os papagaios, conversando entre os amigos ou pedalando em uma
mesma bicicleta que era compartilhada entre os pares, os que aguardavam sua vez
de jogar tinham outro tipo de interação para se distrair, e o futebol mesmo a noite
continuava a rolar.

A partir do jogo do futebol das crianças na praça, observa-se autoliderança, domínio


das regras, seleção de competidores de idades compatíveis para que tenha equilíbrio
em ambos os times, mostram que são sujeitos com autonomia, capazes de
produzirem e conduzirem as próprias brincadeiras de pares quando “Nesta partilha,
as crianças constroem formas específicas de compreender e agir no mundo e também

38
expressam um conjunto de elementos culturais através das brincadeiras” (BRANDÃO,
2010, p. 41). A liberdade é demonstrada em seus passos e agilidade dentro de quadra,
os pés diretamente ligados ao chão melhoram a mobilidade da garotada,
diferentemente da obrigatoriedade do uso da chuteira em um jogo oficial, as
independências de seus movimentos impulsionam os passes mais precisos na bola e
a chuva de gols marcados pelos pés descalços.

IMAGEM 34 – A Liberdade Dos Pés No Chão

Fonte: Autor, 2022.

IMAGEM 35 – Organização Das Crianças No Jogo De Futsal

Fonte: Autor, 2022.

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IMAGEM 36 – A Continuação De Um Dia Futebolístico

Fonte: Autor, 2022.

2.4 Infâncias e Crianças no Canão

No domingo dia 03 de julho, como ponto de partida, vou para a área onde era a área
que ficava instalado o antigo Canão da COPASA. Lá recentemente foi inaugurada
outra praça poliesportiva, para melhor entendimento podemos retomar a Imagem 16
como referência, a área destacada era um projeto de arborização do local, porém, o
espaço ainda permanece sem nome mesmo após sua inauguração ter ocorrido no
mês de Maio de 2022 (PBH/ URBEL, 2022).

40
IMAGEM 37 – A Nova Praça

Fonte: Autor, 2022.

As crianças no local permaneciam próximas de seus responsáveis, mas brincando


cada uma à sua maneira, seja com bicicletas, patins ou bolas. Em outros momentos
aproveitavam os aparelhos da academia ao ar livre instalados nas praças para
promoverem suas brincadeiras. Mesmo com aparelhos instalados para a brincadeiras
dos pequenos, eles se aventuraram nos demais equipamentos da academia na praça
que são utilizados pelos adultos, essa investigação permite retomar o olhar sobre a
reprodução interpretativa nas ações das crianças em sua produção cultural. Na
perspectiva de Brandão (2010) o entendimento da “Interpretativa” é a captação das
ações participativas das crianças na sociedade, considerando suas interações e
envolvimentos com o brincar, onde destintas culturas são concebidas pelas crianças
apropriando costumes adultos, afim de desfrutar do que é útil para cada criança em
suas brincadeiras. Tal observação me foi possível no local dessa praça, os
equipamentos para as crianças estavam vazios e os aparelhos de academia eram
utilizado pela criança e seu pai, quando me direcionei aos dois, eles finalizaram a
atividade impossibilitando o registro fotográfico do momento.

41
IMAGEM 38 – Equipamentos Para As Crianças?

Fonte: Autor, 2022.

Antes de partir para outra área de pesquisa, observo que o inverno é principal
temporada de empinar pipas e papagaios, e uma grande percentagem de crianças
que encontrava pelo caminho estava também na mesma brincadeira do papagaio.
Passando pela Penha, as pessoas de um bar do local comemoravam a vitória dos
amigos no jogo de truco, suas celebrações estavam em um tom muito alto, mas, o
som de duas crianças que testam suas habilidades como samurais empunhando
pedaços de cabo de vassoura simulando katanas foi o que me chama atenção.
Perguntando a eles qual era a brincadeira, disseram que eram caçadores de “Onis”
do anime “Demon Slayers”. Em interface com a minha infância percebo a inspiração
na interpretação de personagens fictícios que são apresentados as infâncias, mas, a
singularidade na execução das brincadeiras na coletividade é carregada de
significados para cada infância se diferenciando das gerações anteriores (BARBOSA;
HUNGER; PEREIRA, 2007).

42
IMAGEM 39 – Rua Da Vocação, Antiga Penha Onde Observo A
Brincadeira Dos Samurais

Fonte: Autor, 2022.

Mesmo o dia sendo tranquilo em todas as partes da comunidade, a parte demarcada


e comandada pelo grupo da 42, só foi possível uma breve passagem não sendo
possível registrar as crianças, pois não havia movimentação dos pequenos na área.

IMAGEM 40 – Área Dominada Pelo Grupo 42, Moradores Realocados Da


Antiga Área Da Penha

Fonte: Autor, 2022.

43
2.5 Infâncias e Crianças nos conjuntos habitacionais

Continuando a caminhada observei festividades acontecendo no térreo dos edifícios.


Lá crianças correndo e brincando de pega-pega. Outras olhavam o colorido e o zig-
zag das pipas no céu. Haviam aquelas que somente conversavam com seus pares
e estavam sentadas no chão. Na caminhada passando entre a nova ocupação e o
Candiru, um grupo de crianças que expressavam suas brincadeiras em forma da
preparação de uma festa surpresa para a mãe de uma das crianças que organizava o
pequeno evento, essa informação foi possível através de um breve diálogo com as
crianças participantes no momento da brincadeira.

IMAGEM 41 – Interação Entre As Crianças Dos Edifícios E A Nova


Ocupação Ao Fundo

Fonte: Autor, 2022.

Observando o movimento daquelas crianças, vejo que construíam uma agência


fraterna e conjunta. Cada uma desempenha uma função na preparação dos alimentos
da brincadeira. Possibilitando um diálogo com na representação cultural da infância
mostrando que “a cultura apresenta um caráter dinâmico e ela está em constante
movimento, onde o novo e o tradicional se misturam criando uma novidade na
representação do Mundo” Brandão (BRANDÃO, 2010, p. 43.). Fitava que algumas
crianças permaneciam mexendo as refeições nas panelas que já estavam cheias
quando me aproximei buscaram minha interação.

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IMAGEM 42 – Preparando A Cobertura Do Bolo

Fonte: Autor, 2022.

Estavam assando o bolo e pediram para que eu aguardasse um pouco. Iriam retirar a
refeição para enfeitar e finalizar para o prato principal da festa surpresa. Perceberam
que estava faltando a salada. E uma delas saiu correndo e disse: “Eu irei colher os
tomates!”.

IMAGEM 43 – Após A Colheita, Está Pronta A Salada

Fonte: Autor, 2022.

45
Após a colheita dos tomates, o preparo da salada e da retirada do bolo do forno, as
crianças finalizaram pedindo para registrar o resultado final. Havia um encanto infantil
com a beleza do bolo de sabor chocolate com granulado colorido, com o desempenho
do trabalho conjunto e c o m a produção d a festa que prepararam.

IMAGEM 44 – O Bolo Assado Cheio De Granulado

Fonte: Autor, 2022.

Ali, naquele lugar em que era familiar para mim, região de tanto afeto, minha casa,
meu lugar, o inédito viável ocorria. Minha presença para aquelas crianças, era de um
estranho que viram pe l a p r i m e i r a vez. Por isso, perguntaram quem eu era e onde
morava. Respondi que morava no mesmo bairro e que era um professor em formação
e pesquisador vinculado ao curso de Pedagogia. Rapidamente perguntaram se eu iria
atuar nas escolas em que estudavam. O diálogo continuou com demonstrações de
saberes delas, de que aprenderam como é a soletração de seus nomes e dos colegas,
contagem dos números naturais até 50, até arriscaram algumas palavras em inglês.

46
IMAGEM 45 – Os Protagonistas Das Brincadeiras

Fonte: Autor, 2022.

No próximo capítulo passarei a apresentar fala das crianças, analisando e discutindo


as percepções que elas têm de si mesmas.

3. AS CRIANÇAS DA VILA SÃO JOSÉ E A PERCEPÇÃO DE SI

Deixa os menino brincar


É rap de brinquedo.
Deixa que as crianças brinquem
Deixe que as flores respirem
O que há de bom está nas coisas boas simples
Deixe que o amor transborde em cima das batidas da vida
Pra ver se eu crio um pensamento livre
Não fictício, deixe que brote um sentimento místico.
3.D - Rap de Brinquedo

Neste capítulo o objetivo específico é ouvir as vozes das crianças e suas formas de
expressão sobre sua condição de ser e habitar na Vila São José.

Nesse sentido, destaco que fazer parte da Vila São José possibilita analisar as
diferentes infâncias que participam do cenário social existente hoje na comunidade.

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Há sempre uma tensão que paira entre os responsáveis pelas crianças quanto ao
grau de periculosidade das ruas da comunidade, a tranquilidade durante o dia permite
que os pequenos possam estar em todos os locais desenvolvendo suas atividades, já
a noite, no simples escurecer, as crianças são recolhidas para seus aposentos, o
clima muda com as diversas ações policiais que ocorre nos pontosde maior perigo.
Diante dessa situação, em sua maior parte, só podemos ver as crianças brincando na
praça com a presença de seus pais ou acompanhados de um outro responsável, a rua
já não é um local adequado para as ações infantis nesse momento noturno.

Afim de não praticar o adultocentrismo - que refere-se as decisões que os adultos


tomam para e pelas, sem considerar suas expressões próprias e tampouco abrir
espaços de escutá-las (NOGUERA; ALVES, 2019; ROSEMBERG, 1976; SANTIAGO;
FARIA, 2015) - busquei durante a pesquisa etnográfica estar atento ao protagonismo
das crianças em sua participação na sociedade em sua espontaneidade relacionado
ao tempo e espaço da forma em que se encaixam no meio social (FRIEDIMANN,
2018), especialmente na comunidade onde moram os pequenos, trago suas vozes
para o trabalho no intuito de mostrar as diferentes maneiras de pensar suas
participações na comunidade analisando as diferenças e semelhanças sobre as
infâncias em uma perspectiva geracional, aos pensamentos que eles carregam sobre
si mesmos, sobre as possibilidades de ações que são permitidas a elas enquanto
crianças e os tipos de brincadeiras que elas gostam e brincam na comunidade.

Buscando investigar mais a fundo os pensamentos e comportamentos das crianças


da Vila São José, foi possível conversar com cinco crianças de pontos diferentes da
comunidade, são elas:

QUADRO 1 – relação de crianças participantes da pesquisa


Nome da criança Idade
Isac 4 anos
Izabela “Iza” 7 anos
Rian 11 anos
Renner 10 anos
Keven 8 anos
Fonte; Autor, 2022.

Todas as entrevistas foram feitas nas proximidades de onde moram, na praça e em

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suas residências. Todas as entrevistas foram gravadas para fazer a análise das falas
com a autorização de seus responsáveis. Para melhor condução da pesquisa
preparamos i n i c i a l m e n t e duas perguntas abertas: O que é ser criança? E como
é ser criança morando na Vila São José? Mas, no decorrer da pesquisa, foi preciso
fazer algumas alterações nas perguntas para que houvesse uma melhor condução
dos diálogoscom um diálogo sobre a vida do participante, como ele estava se sentindo
no momento, perguntando sua idade e as perguntas que nos auxiliaram nesse diálogo
foram: Você gosta de ser criança? O que é ser criança e o que você pode fazer
enquanto criança? Quais tipos de brincadeiras você pode fazer nos diferentes tempos
morando aqui na Vila São José? As respostas dessas perguntas nos orientaram para
um olhar mais atento aos movimentos da favela e o comportamento dos corpos que
habitam dentro dela, conforme a seguir.

3.1 Isac: percepções de si

Ao chegar na rua Da Figueiras na tarde de domingo, o clima era de sossegado no


local, não havia movimento de tráfico e me deparo com meu sobrinho Isac, de 4 anos,
sentado em sua bicicleta com a cara fechada olhando para a entrada do conjunto de
prédios e logo pergunto a ele o que estava acontecendo para ele estar daquele jeito.
Ele queria ir em frente ao bar brincar na piscina rodeada de cachaça. Já me chama a
atenção a vontade de brincar em uma piscina que passara despercebido das minhas
vistas em frente a um bar tão chamativo, pois se trata de uma Kombi que foi adaptada
para virar um pequeno comércio.

49
IMAGEM 46 - A produção do bolo

Fonte: Autor, 2022.

A curiosidade foi tanta que pedi para me levar onde era essa piscina e iniciamos
a nossa caminhada dos saberes, no início eu o perguntei o que tinhanessa piscina
se era água ou outra coisa. Espontaneamente ele me responde:

Eu vou brincar nadando, lá tem água e ao redor dela é cachaça (Isac, 4


anos, 2022).

O que me chama atenção é que o olhar atento da criança para os detalhes que estava
naquele local, uma piscina de plástico que o dono do bar tinha deixadoa disposição
dos clientes que usavam o bar e teriam a diversão para os filhos de quem frequentasse
o local e para sustentar as bordas da piscina o dono colocou caixas de cervejas e
garrafas de vidro cheias de água que pareciam estar mesmo com cachaça. Toda essa
estratégia que o dono do estabelecimento fez, mostra o quanto o povo da periferia
resiste buscando possibilidades de adquirir sua renda e sobreviver dia após dia.

Retomo ao diálogo perguntando se ele gostava de ser criança e o que ele pode fazer
enquanto criança e se ele gostava de brincar na Vila São José.

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Ah! Ver desenho, brincar, ir lá na escola, piscina, faço qualquer coisa,
chutar bola. Sim (Isac, 4 anos, 2022).

Recorrente a nossa espera pela resposta do brincar, pois o olhar adulto direciona o
único comportamento à criança quando ela está atentamente observando o seu
mundo, o que está ao seu redor e expressando seus anseios(referência), no momento
em que a resposta da piscina é uma opção de brincadeira, é perceptível que aquilo
era o que ele queria fazer no momento. O dono do local não havia autorizado a
brincadeira pois o bar no momento estavafechado e não havia como ele monitorar o
uso da piscina.

Quando Isac fala sobre que gosta de ir à escola, lembro que uma de suas atividades
constantemente proporcionadas as crianças são as a brincadeiras e Tião Rocha
(2022) nos abre outras possibilidades de educação no que ele chama de Pedagogia
do Brinquedo:

A Pedagogia do Brinquedo responde que sim! Aprender e ensinar brincando


traz em si toda a riqueza de possibilidades de relacionamento e
companheirismo, socialização e troca de experiências, conhecimento do
outro e respeito às diferenças, desejos e visões de mundo, elementos
essenciais para construção de uma relação plural entre educadores-
educandos, condição básica para existência de uma prática educativa de
qualidade e para a descoberta e apropriação do “mundo dos saberes, dos
fazeres e dos quereres”: das letras, dos números, das idéias, dos fatos, dos
sentimentos, dos valores, da cidadania, dos sonhos (ROCHA, 2022, s/p.).

Analisando que a escola é um fator importantíssimo na construção do sujeito social,


Rocha (2022) nos aponta as possibilidades de o brinquedo dentro do espaço escolar
influenciar nas relações pessoais entre os estudantes, logo, essa ação auxilia no
entendimento das relações dentro da comunidade realçando os seus valores.

3.2 Iza: percepções de si

No final da tarde a pequena Iza, moradora do Bloco frente a ocupação nos concede a
entrevista compartilhando seus pensamentos e nos levando refletir sobre como a
transformação urbana do local modificou a relação com o lazer, as diversões
envolvendo os meios tecnológicos e as brincadeiras.

No início do diálogo quando início com as perguntas, Iza nos apresenta suas ações

51
enquanto criança dizendo que gosta de ser criança e o que ela gosta de fazer
enquanto criança.

O que que eu gosto de ser criança é que eu brinco no celular, jogo e no fim
de semana eu vou para o lote, arrumo os trem em casa, e vou pra pracinha
brincar, eu gosto de brincar lá fora, brinco com meus brinquedo, chuto
bola (Iza, 7 anos, 2022).

Morando em apartamentos do novo conjunto habitacional, percebemos que as


crianças buscam alternativas para sua diversão e em meio ao crescimento
tecnológico, utilizam dos celulares como meio de entretenimento em busca de jogos,
vídeos, aplicativos, etc.

Ter a nova praça instalada na “quebrada” possibilita um local seguro para o


entretenimento, ação e lazer das crianças com segurança, enquanto ainda era
aglomerado esses espaços de lazer ficavam limitados, sendo possível brincar
somente com a luz do dia por falta de iluminação noturna. A rua também era uma
possibilidade, mas trazia os seus perigos com a permanência noturna. Com a área de
fora dos apartamentos asfaltada e dentro de um conjunto de blocos, as brincadeiras
podemser desenvolvidas com maior segurança. Além de não ter o tráfego constante
de carros, as áreas são iluminadas e a cada sinal de perigo é mais fácil adentrar para
as residências.

Iza traz uma questão interessante sobre os nossos medos com os diferentes tempos
na periferia, quando questionada sobre suas brincadeiras poderiam ser feitas pela
manhã ou à noite ela responde:

Não pode ficar lá fora todo dia porque é perigoso e nem de noite e nem todo
dia, é perigoso o homem do saco (Iza, 7 anos, 2022).

A região onde iza mora não oferece tanto perigo pelo conflito do tráfico, porém, no ano
de 2021 houve um assassinato próximo a sua residência, para os adultos isso é uma
demonstração de perigo e alerta constante quanto a permanência dos pequenos na
rua. Veremos em outros relatos que esse também é uma das tensões que está
presente nos pensamentos infantis, mas Iza, nos provoca a pensar em um medo
geracional que sempre rompea barreira do tempo e permanece nas infâncias, o medo

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do “Homem do Saco”, conforme podeser confirmado no relato a seguir:

Algumas crianças contestaram: “Tá errado, tia! A mamãe diz que o homem
do saco pega a criança, coloca dentro do saco e leva embora. Dentro do saco
tem criança!”. E a questão foi motivo para uma longa conversa sobre o medo
do homem do saco, o que promoveu um debate reflexivo sobre falar com
estranhos e sobre a confiança nas pessoas (KOIDE; TORTELLA: ROCHA,
2017, p. 238).

Os perigos estipulados pelas crianças perpassam pelo imaginário e os perigos


eminentes que está estigmatizado sobre as favelas, ao mesmo tempo que sabem de
suas responsabilidades, sabem dos perigos que podem ser prejudiciais a elas e a
simples permanência na rua em um horário não estipulado pelos adultos pode
acarretar em um possível problema para a criança.

3.3 Rian: percepções de si

Rian é uma criança alegre, que gosta de interagir com os adultos e demonstrar suas
habilidades, no dia do samba na rua Das Figueiras, ele chega com seu carisma na
roda de samba e tenta demonstrar suas habilidades em tocar pandeiro e durante o
tempo que permaneceu na roda de samba ficou ao redor dos adultos, não interagiu
com as outras crianças, ficou assim até o anoitecer. Já no dia da entrevista,
encontramos com ele às 19h:00min voltando da padaria com dois amigos, próximo a
avenida João XXIII. Quando perguntado sobre o que é ser criança ele responde
diferente das demais:

Uai, lutadora(Rian, 11 anos, 2022).

Rian é uma criança que não mora com os pais, pois os mesmos já faleceram. A
resposta espontânea talvez tenha vindo pela superação de vida ao não ter os pais. A
sua mãe morreu logo quando ele nasceu. Teve a presença de seu pai até o período
da pandemia e atualmente mora com seus tios.

A resposta sobre ele gostar de ser criança foi articulada a sua postura na roda de
samba:
Ah não, eu prefiro ser adulto. Não sei, trabalhar, ganhar dinheiro.
(Rian, 11 anos, 2022).

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O querer ser adulto nas crianças, parece estar além da chegada à adolescência. Vem
carregado de expectativas em ajudar os seus responsáveis que lutam para sustentar
sua família. Muitas crianças periféricas ao se aproximarem da pré-adolescência já
buscam essa responsabilidade para si, e por outro lado, é possível observar a falta de
políticas públicas e oportunidades para as famílias mais pobres, o que
consequentemente reflete na antecipação das responsabilidades adultas com as
crianças.

3.4 Renner: as percepções de si

Morador da parte de baixo da Vila, onde era a parte da Chácara, encontro-me com
meu outro sobrinho, o Renner, na praça com seus amigos na tarde do dia 21 de julho,
por volta das 15h: 49min, brincando com seus amigos de soltar papagaio” e andar de
bicicleta, na primeira resposta ele afirma gostar de ser criança e brincar. Renner
divide as brincadeiras em relação aos locais que ele frequenta. Próximo à sua casa
ele joga futebol na rua e na praça, empina pipas. Podemos observar a preocupação
do garoto ao analisar bem quais são as suas possibilidades de brincadeiras como
criança moradora da Vila São José nos diferentes tempos, durante o dia e durante a
noite:

Entrevistador: E aqui no São José? O que você pode fazer?


Renner: Fazer um tanto de coisa e é bom.
Entrevistador: De manhã?
Renner: De manhã e de tarde.
Entrevistador: E de noite?
Renner: Não, de noite não. Entrevistador: Por que?
Renner: Porque é ruim. Porque pode tomar um tiro no coco. É ruim.
Entrevistador: Mesmo aqui na praça brincar a noite é ruim?
Renner: Mais ou menos, tem dia que é, tem dia que não é
(Renner, 10 anos, 2022).

A urbanização e a construção de espaços de lazer não foram suficientespara


ocultar as lembranças negativas referentes a violência local, muitas crianças
presenciaram e viveram momentos de violência, carregam em suas memórias e
percebem a periculosidade em transitar a noite. Esses sentimentos e informações eles
compartilham no simples diálogo entre amigos e/ou nas trocas de mensagens
instantâneas nas redes sociais.

54
3.5 Keven: as percepções de si

Às 21h:00min, na rua das Bananeiras não há mais ninguém. Todos já estão em suas
residências, quando me encontro com Keven e sua mãe. Sou recebido com um grande
abraço da criança, um ato simples, mas de uma educação que promove a amenidade
nas interações, na troca de saberes e no compartilhamento:

A Pedagogia do Abraço, tem como premissa o investimento na afetividade –


palavras, atitudes, afetos e cafunés pedagógicos – fazendo da diversidade,
riqueza. A sua aplicação dentro dos projetos educacionais, possibilita a
melhoria da comunicação e a inclusão social, estimula a participação, a
formação da identidade, o fortalecimento da auto-estima, a integração da
equipe, a idealização de espaço solidário, a relação de iguais entre pessoas
diferente (ROCHA, 2022, s/p).

Ao relembrar dos movimentos de Keven, que também esteve presente no samba e


promovia suas brincadeiras solitárias com seu carrinho azul, observo a repetição deste
modo de brincar na sua residência, pois brinca pouco na rua. Sua mãe expressa
grande preocupação com o relacionamento de seu filho com as outras crianças.
Segundo relatos da mãe, as crianças não gostam de brincar com ele e por isso toma
essa atitude de deixá-lo mais em casa. Mesmo assim, Keven esbanja criatividade em
suas brincadeiras e construções de saberes, ainda que sozinho.

Iniciei a pesquisa após Keven compartilhar os vídeos que ele mesmo produziu. Disse
que deseja ter um canal no Youtube mostrando as coisas que ele acha engraçado e
juntando suas habilidades. Quando pergunto se ele gosta de ser criança novamente,
uma resposta surpreendente surge e seguimos dialogando:

Keven: - Sim, eu gosto de brincar e assistir desenho. Fazer para casa e


estudar. Como cebola, mas prefiro ser adulto.
Entrevistador: Adulto? O que você acha que adulto faz que você queria fazer?
Keven: Ah! Eu queria fazer algo de bom, tudo de bom pra minha família e
quando eu crescer, eu vou ter que trabalhar e depois dar muito dinheiro para
minha família.
Entrevistador: Entendi. E o que você gosta de fazer como criança?
Keven: Ah! Eu gosto de brincar. Eu posso fazer duas coisas legais…
Entrevistador: E você brinca só dentro de casa?
Keven: - Eu brinco. Olha aqui, depois eu te mostro os meus brinquedos
todos (Keven, 8 anos, 2022).

A percepção que tive sobre Keven é que ele gosta de fazer suas atividades

55
individualmente. Com uma cabana cheia de brinquedos mais os utensílios domésticos
ele brinca, com tendências caseiras, explorando sua imaginação sobre produções
diversas, expressando ainda na presente infância os seus planos também para o
futuro.

IMAGEM 47 – Empresa de carregar de Keven

Fonte: Autor, 2022.

A acolhida e o afeto familiar é o que move os pensamentos da criança a um futuro


próspero para que ele possa ajudar a família. Keven em diversas vezes comentou
sobre o amor que sentia e compartilhava com sua mãe e com sua avó. Ele dizia querer
proteger ambas pelo resto de suas vidas, se sentindo um verdadeiro protetor de
ambas, sempre exibindo a sua força física.

56
IMAGEM 48 – Um plano possível de Keven

Fonte: Autor, 2022.

IMAGEM 49 – O meu lugar - Keven

Fonte: Autor, 2022.

57
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa teve o objetivo de analisar os protagonismos e as resistências das


crianças na construção de suas infâncias na Vila São José – BH, considerando a
intervenção da mudança da paisagem da comunidade em interface com minha
infância observando todos os atos desenvolvidos pelas crianças que estão dentro
dela, através das observações dos comportamentos das crianças nos diferentes
tempos e espaços, observou-se que as crianças procuram mecanismos de interação
com seus pares em diversas situações mesmo diante de um contexto violento vivido
dentro das periferias. Buscam recursos para resistência dentro dela libertando sua
autonomia diante do brincar, driblando a necropolítica e a instalação do biopoder
sobre a periferia. As presenças das infâncias nas praças, quadras e espaços
seguros é um novo marco territorial para essa manifestação infantil. Não há mais
rua ou campinhos de terra, os novos espaços de lazer trazem mais segurança e
tranquilidade para o sujeito principal da produção cultural infantil em diferentes
tempos, reconhecendo o diálogo que suas vozes permanecem ativas, permitindo o
reconhecimento das singularidades infantis, os perigos que seus corpos estão
suscetíveis, mostram que é preciso mudanças para que seja possível a
manifestação dessa pequena grande cultura produzida e adaptada pelas crianças.

A pesquisa contribui para minha formação como educador, visto que a escuta das
crianças da periferia transmite uma mensagem de mudança constante no
comportamento adulto e como educador poderei estar sempre atento às
manifestações infantis.

Os olhares para a periferia devem ser mudados, descolonizando-o, pois há


potencialidades na Vila São José e em todas as periferias. Essas potencialidades se
entrelaçam com as manifestações culturais da periferia, bem como, com as infâncias
que estão sendo e da forma como as crianças resistem criando diferentes formas de
brincar.

58
REFERÊNCIAS

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