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Os Diálogos Makii foram estrutu- rei morto (que não é nomeada, mas
rados a partir da interlocução de que o empenho historiográfico iden-
duas figuras: o regente da congre- tificou como sendo Victoria Cor-
gação, Francisco Alves de Souza, e rea) em ceder a primazia do trono a
o secretário da entidade, o alferes Francisco, bem como a recusa de lhe
Gonçalo Cordeiro. O relato têm entregar as “tralhas” deixadas pelo fa-
como objetivo afirmar a necessi- lecido e que pertenceriam à congre-
dade de a congregação se manter gação. Se não, veja essa passagem da
alheia “de todo o abuso gentílico, página 22, quando o alferes Cordeiro
e supersticioso” (práticas não- se esforça para convencer Francisco
-cristãs associadas à feitiçaria). Os Alves de Souza a assumir a regência
estatutos, estabelecidos no fim do da congregação: “Não seja importu-
texto, regulavam principalmente no, e veja que há de morrer, ouça-me
a conduta esperada dos membros glórias, que hão de ser de tão pouca
em relação às caridades praticadas dura, para que é possuí-las? Vida que
no seio da comunidade Makii e o tão brevemente se acaba, para que
“sufrágio às almas”, isto é, a elabo- pressá-la? Finalmente para que é fa-
ração e a organização dos rituais zer tanto apreço e estimação de uma Em linguagem acessível, livro traz análise
fúnebres que sucediam ao faleci- exalação que desaparece, de uma seta sobre o papel dos sonhos na história
mento de algum dos membros da que rompe o ar, de uma ave que voa,
irmandade. que não tem jazigo? [...]”.
Com relação ao aspecto literário da Como se vê, em qualquer dos dois as- R es e n h a
obra, os Diálogos Makii se vinculam pectos citados, os Diálogos Makii são
a uma tradição que remonta à an-
tiguidade clássica. Os diálogos são
um documento essencial que ajuda
na compreensão dos modos de so- A história
um recurso retórico, utilizado para ciabilidade dos escravizados no Rio
expor controvérsias de ideias políti- de Janeiro do século XVIII, além de
e a ciência
cas, religiosas e econômicas, confor- remarcar o protagonismo da popu- dos sonhos
me relata Mariza de Carvalho Souza lação escrava na organização de seu
no posfácio. O mais interessante cotidiano numa sociedade escravista
nos Diálogos Makii é perceber, nas do antigo regime e, para finalizar, de- Ao longo da história, os sonhos
brechas do formalismo que marca os monstra como esses atores operavam serviram de guia para os homens
requisitos do instrumento, o enge- e manejavam as instituições disponí- nas mais variadas situações. Não
nho de Francisco Alves de Souza no veis, algumas delas imputadas pelo são poucos os relatos de guerras e
manejo de uma linguagem literária, senso comum como sendo privativas conflitos cujos rumos foram dita-
de que ele lança mão com o fito de do mundo dos brancos. dos pelas revelações que líderes e
realizar sua missão persuasiva. chefes militares recebiam duran-
Em muitas passagens, as metáforas, André Rosemberg, te o sono. Assim como os outros
as peripécias dos personagens e as graduado em direito, doutor em mamíferos, em determinado mo-
dissimulações e negaças em que se história social pela Universidade de mento de sua evolução os seres
empenham os interlocutores apro- São Paulo (USP – 2008) e pós-doutor humanos passaram a sonhar, um
ximam o texto de uma estrutura pelo Departamento de Sociologia e modo que o cérebro utiliza para
narrativa de caráter ficcional, prin- Antropologia da Universidade Estadual organizar as memórias, sedimen-
cipalmente quando são relatados os Paulista (Unesp/Marília) e pela PUC-SP tando as mais importantes, elimi-
empecilhos impostos pela viúva do na área de história social. nando o desnecessário e, com isso,

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Sidarta Ribeiro convida o leitor a lembrar


e registrar os sonhos

Acima,
O sonho , de
Pierre Piuvis to do Cérebro da Universidade
de Chavannes, Federal do Rio Grande do Norte
1883; ao lado,
O sonho do
(UFRN), faz uma trajetória ana-
eunuco , de lítica do sonho, dissecando sua
Jean Lecomte origem, função e implicações, ao
du Nouy, 1873 longo da história. Para isso, se vale
dos registros históricos mais anti-
gos já feitos e das pesquisas mais
recentes em áreas como a neuro-
biologia, psiquiatria e psicologia.
Afinal, conforme escreve o autor,
“uma teoria satisfatória do sono
e dos sonhos deve primeiro con-
liberando espaço para o novo. A noites, ao fechar os olhos e dor- siderar todos os fenômenos rele-
função dos sonhos pode extrapo- mir. O sonho permite extrapolar vantes, e não apenas parte deles.
lar isso, ganhando outras dimen- os limites do real, do possível e da Em segundo lugar, deve distin-
sões, como ser um combustível moral vigente. guir as várias funções dos dife-
para a criatividade ou apontar ca- Em O oráculo da noite – a história e rentes estados de sono e sonho.
minhos, direções a seguir, como a ciência do sonho (2019), Sidarta Em terceiro, deve produzir uma
um oráculo que visitamos todas as Ribeiro, neurologista do Institu- narrativa plausível de como tais

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estados favorecem a aptidão para Os sonhos são um misto de even-
procriar gentes e cultura através tos passados e expectativas futuras
Terapias do sono
do tempo”. onde o sonhador revive, a seu mo-
Nesse diálogo entre áreas aparen- do, na sua subjetividade, algumas Boa parte das pesquisas sobre
temente distintas alguns paradig- situações ao mesmo tempo em que o sono e o sonho se baseiam em
mas são questionados. Primeira- cria possibilidades de caminhos e mapear o cérebro em diversos
mente, há uma recuperação das resoluções. Por isso, ele convida o estágios do sono e da vigília,
ideias do médico e psicanalista leitor a prestar atenção em seus so- analisar as regiões ativadas ou
Sigmund Freud cujos conceitos nhos, buscando “lembrar e regis- desligadas conforme o estímulo
têm sido fortemente questionados trar suas viagens ao interior pro-
e identificar os hormônios
nos últimos anos. No livro, os pos- fundo da mente”.
envolvidos nesses processos. A
tulados freudianos ganham nova
leitura e respaldo ao serem apoia- Criatividade Para ele, esses “restos ação de fármacos e de algumas

dos em novos estudos e evidências. diurnos” que “preparam o sonha- drogas (lícitas ou não) se baseia
Além disso, Sidarta descarta o ca- dor para o dia seguinte” também exatamente nesse mecanismo de
ráter puramente lógico no estudo contêm a chave da criatividade hu- ligar e desligar. Ao discutir o papel
dos sonhos, que ignora qualquer mana. Nesse sentido o autor traz do sonho na história humana,
subjetividade do indivíduo e da um alerta, ao afirmar que o sentido Sidarta não se furta a discutir temas
coletividade da qual ele partici- de urgência e os imediatismos do delicados como as políticas sobre
pa. Segundo ele, essa visão criou nosso tempo estão cerceando o âni-
drogas, a indústria farmacêutica e
a ideia que os sonhos, juntamente mo e a capacidade de criar meios
como os médicos receitam esses
com o sono, têm a função apenas para encarar os desafios atuais, tais
de organizar as memórias, sedi- como mudanças climáticas e con- fármacos. Ele argumenta que
mentando as mais importantes e flitos pessoais e sociais. “Podemos diversas culturas usavam – e ainda
eliminando as demais e liberando dizer que nos últimos 300 mil anos usam - substâncias psicotrópicas
espaço para a aquisição de novas o hardware biológico da humani- em rituais para que o usuário
informações. Uma argumentação dade mudou muito pouco, mas o durma profunda e tranquilamente,
simples que Sidarta faz para con- software cultural evoluiu acelera- dando fluidez e a possibilidade da
trapor essa ideia é: por que, então, damente. É como se o acúmulo
lembrança dos sonhos. É importante
temos sonhos recorrentes? Em um de ideias adaptativas fosse uma
ressaltar que essas práticas não
cérebro com um “número colossal catraca, uma engrenagem que só
de neurônios e conexões sináp- gira para um lado”, teoriza o neu- acontecem de forma rotineira e
ticas [...] é impossível explicar a rocientista ao pensar o conceito de sem supervisão. Celtas, aborígenes,
ocorrência [...] por meio da ativa- catraca cultural do psicólogo nor- ameríndios, por exemplo, permitiam
ção cortical aleatória”. te-americano, Michael Tomasello. e estimulavam a conversa, a partilha
A despeito do sólido embasamen- Ou seja, o nosso acúmulo cultural e a lembrança de sonhos, visões e
to científico, o autor estabelece nos trouxe a um ponto de inflexão revelações. Para o neurocientista,
um diálogo constante e fluído com que exige de nós decisões e atitu-
terapias que incentivam o paciente
seu leitor, o que torna o livro aces- des para além de saudosismos ou
à autorreflexão podem ser mais
sível a um público amplo. Sidarta ideias simples. Como um oráculo
reforça a importância dos sonhos probabilístico, os sonhos, podem eficientes em termos de efeitos
para o indivíduo e para a socieda- ser aliados para encontrar novos colaterais para o tratamento
de: “Temos enorme capacidade de caminhos e soluções. de depressões, melancolias e
simular futuros possíveis com ba- ansiedades.
se nas memórias do passado”, diz. Ana Carolina Bezerra

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