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LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G.

Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com
Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN:
9788544403

Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado


João Carlos Pivatto Lipke1

Pedro Paulo Gastalho de Bicalho2

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

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Problematiza-se a lógica disciplinar a partir de pesquisa bibliográfica e documental sobre a


tortura no treinamento militar e suas consequências para a sociedade. Primeiramente, é abordado
o fenômeno da tortura no exército, buscando entender como as tradições foram moldadas ao
longo da história, convergindo, assim, para a construção do espírito militar – que alimenta e é
alimentado pelo treinamento nos moldes atuais. Para isso, conceitua-se a tortura, trazendo seu
histórico e os espaços e formas em que ela foi empregada na sociedade. Além disso, é analisado
o caso do cadete Lapoente, morto em treinamento. O estudo permite-nos pensar em como esse
tipo de treinamento revela a necessidade de romper o ciclo: a disciplina, exercida com vistas à
produção de não-humanos, promove a criação de valores relacionados a ela, que se refletem na
sociedade a partir da prática da tortura.

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INTRODUÇÃO

O Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro3 (GTNM-RJ) promove encontros


semanais em sua sede e lá, em um desses encontros, os autores pessoalmente conheceram
Sebastião Alves da Silveira4 e Carmen Lúcia Lapoente da Silveira, pais do cadete do Exército
Márcio Lapoente da Silveira, torturado e morto em treinamento militar na Academia Militar das
                                                             
1 Psicólogo graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: jocapsiufrj@yahoo.com.br
2 Professor Associado do Instituto de Psicologia e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista de produtividade em pesquisa (CNPq) e Jovem Cientista do Nosso
Estado (Faperj). E-mail: ppbicalho@ufrj.br 
3
O GTNM-RJ foi fundado em 1985 por iniciativa de ex-presos políticos que viveram situações de tortura durante a
ditadura militar e por familiares de mortos e desaparecidos políticos.
4
Sebastião Alves da Silveira, militar reformado da Marinha, faleceu no dia 10 de abril de 2009. Por sua destacada
militância no GTNM-RJ, pela sua apaixonada luta em defesa dos direitos humanos e, principalmente, pela sua árdua
tentativa de responsabilização dos oficiais que mataram seu filho na AMAN, foi homenageado, in memorian, com a
Medalha Chico Mendes de Resistência 2010, oferecido por vários movimentos sociais e entidades de direitos
humanos.
LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com
Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN:
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Agulhas Negras (AMAN), no ano de 1990. Contaram como foi o último treinamento do cadete
Lapoente, falaram também sobre como conheceram o GTNM-RJ e como vinha sendo a luta para
que os oficiais responsáveis pelos exercícios militares fossem responsabilizados criminalmente.
Vimo-nos instigados a pensar sobre o dispositivo da tortura, a discutir também sobre as torturas
realizadas nos dias atuais, em diferentes lugares: prisões, delegacias, favelas, quartéis, hospitais
psiquiátricos etc. Exatamente, ainda tinha o etcetera.
Neste texto recortamos a tortura em treinamentos militares, utilizando como analisador5 o
caso do cadete Lapoente, citado anteriormente. A partir deste, que não é o único6 pretende-se
colocar em questão, junto com Foucault, a lógica disciplinar e seus efeitos de tortura. A lógica
disciplinar e seus efeitos no cotidiano.
Ao pensar em tais exercícios surgem alguns questionamentos: o que se pretende com
estes tipos de treinamentos, que em quase todos os momentos além de exaustivos e exigentes,
são extremamente violentos? Não seriam uma forma de forjar homens que aceitem as torturas, as
violências, as humilhações como coisas naturais? Homens que ao serem treinados desta forma
possam fazer o mesmo com seus semelhantes?
Neste sentido, o texto foi dividido em dois momentos.
O primeiro aborda o fenômeno da tortura no exército, buscando entender como as
tradições foram moldadas ao longo da história, convergindo, assim, para a construção do espírito
militar – que alimenta e é alimentado pelo treinamento militar nos moldes atuais. Para isso,
conceitua-se a tortura, trazendo seu histórico e os espaços e formas em que ela foi empregada na
sociedade.
A partir das ferramentas apresentadas no primeiro momento foi possível analisar o caso
do cadete Lapoente, morto em treinamento militar. Para isso, foi relatada a aproximação com o
caso, o cenário em que ele se encontra (AMAN – sua história, suas características internas, a
formação e o treinamento) e o estudo de caso.

TREINAMENTO MILITAR: PRODUZINDO GUERREIROS EM UMA GUERRA


CONTRA QUEM?

                                                             
5
Segundo Lourau (1996, p.284), analisador é o “que permite revelar a estrutura da instituição, provocá-la, obrigá-la
a falar”, a partir de manifestações de não- conformidade com o instituído.
6
Segundo um dossiê entregue pelo GTNM-RJ e o Centro de Justiça Global ao Comitê Contra a Tortura da ONU, em
maio de 2001. O GTNM-RJ registrou 23 casos de violência institucionalizada entre os anos de 1990 e 2001,em
quartéis das Forças Armadas. Entre estes casos estão presentes torturas, suicídios e mortes em treinamentos
exaustivos. Sobre o assunto consultar Tortura nas Forças Armadas (2001).
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Para compreender o fenômeno da tortura no exército, é preciso entender como as


tradições foram moldadas de diferentes formas ao longo da história, convergindo para a
construção do “tipo ideal de militar”, ou seja, o espírito militar (CASTRO, 1990), que alimenta e
é alimentado pelo treinamento militar nos moldes atuais. Nesse sentido, abordam-se os seguintes
conceitos: invenção de tradições (HOBSBAWM, 1984; CASTRO, 2002), sociedade disciplinar,
docilização dos corpos, hierarquia/disciplina (FOUCAULT, 2005), espírito militar (CASTRO,
1990), treinamento militar, educação de torturadores e tortura (COIMBRA, 2001; GIBSON,
HARITOS-FATOUROS, 1986; PIOVESAN, SALLA, 2001; ROZA, 2003; BIAZEVIC, 2006).
Segundo Hobsbawm (1984), as tradições são
Um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente
aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e
normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma
continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer
continuidade com um passado histórico apropriado (p.9).

Dessa forma, elas “são reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a
situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que
obrigatória” (idem, p.10).
O autor as divide em dois grupos: genuínas e realmente inventadas, sendo o primeiro
nascido sem a necessidade de imposição de determinado grupo ou pessoa. A segunda surgiria a
partir de uma imposição para que se consiga atingir determinados comportamentos que
beneficiem alguma ideologia ou grupo. Segundo o autor, o segundo grupo é forjado e, por isso,
menos importante. Castro (2002), no entanto, utiliza-se parcialmente do conceito de invenção de
tradições de Hobsbawm, uma vez que não acredita existir uma gradação de importância entre os
dois tipos, entendendo, então, as tradições inventadas como
(...) um fenômeno encontrado nos mais diversos países e contextos históricos, podendo
também ser patrocinado por diferentes agentes, desde o Estado nacional até grupos
sociais específicos. Comum a todos os casos, seria a tentativa de expressar a identidade,
a coesão e a estabilidade social em meio a situações de rápida transformação histórica,
através do recurso à invenção de cerimônias e símbolos que evocam continuidade com
um passado muitas vezes ideal ou mítico (p.10-11).

Apesar desse caráter de reinvenção da cultura, os indivíduos reconhecem determinada


prática ao fazerem menção a algo que já conhecem. Ou seja, passam a reconhecer as tradições a
partir de uma cristalização, como se nunca fossem mudar, como se fossem sempre da mesma
forma. Sobre isso, Castro diz: “O passado é recriado por referência a um estoque simbólico
anterior e precisa guardar alguma verossimilhança com o real, sob risco de não vingar.” (idem,
p.11)
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O exército é uma instituição que se utiliza da invenção de tradições para impor


determinados comportamentos entendidos como inerentes a ele, através da instituição de
símbolos e criação de cultos, com a finalidade de promover a coesão e homogeneização entre
seus membros para que desapareçam os conflitos. Uma das principais características do exército
é estabelecer uma uniformidade interna, desaparecendo com qualquer tipo de divergência, a fim
de criar uma identidade única. As tradições são criadas, alteradas e substituídas de acordo com a
necessidade de se estabelecer a ordem e a unidade em diferentes contextos.
Percebe-se isso ao estudar as correlações de forças da instituição ao longo da história.
Para definir a identidade do exército brasileiro adotou-se uma série de novos elementos
simbólicos, a fim de reorganizar esta instituição fragmentada. Havia como ideal a construção da
nação. Um exemplo de tradição inventada é o culto de Duque de Caxias, como patrono do
exército brasileiro. Em 25 de agosto de 1923, dia e mês do aniversário de Caxias, após 43 anos
de sua morte, o Ministro do Exército Setembrino Carvalho determinou a oficialização da data
para homenagem ao duque. Em 1925, este dia transformou-se no Dia do Soldado. Segundo
Castro (2002), “a transformação da festa de Caxias para a festa do soldado servia para vincular,
simbolicamente, uma categoria genérica – o soldado brasileiro – a seu guia” (p. 17). Ainda neste
ano, surge o termo “patrono” na tradição militar, uma vez que pela primeira vez um general era
homenageado por uma turma de formandos na Escola Militar do Realengo7. O termo, oriundo do
francês patron, ganha um duplo sentido: protetor e padrão/modelo.
Anteriormente, o grande herói era o general Manuel Luís Osório, comandante das
vitoriosas tropas brasileiras na Batalha do Tuiuti8 (24 de maio de 1866). Carismático, foi
considerado o maior guerreiro do Exército brasileiro e soldado-cidadão – uma vez que comandou
a luta para a derrubada do Império. Era venerado e amado espontaneamente pelos companheiros
da corporação, ao contrário de Caxias, que representava uma figura agregadora, importante no
momento em que a instituição tinha profundas divisões, e rigorosamente disciplinado9.
Essa mudança se deu pela necessidade de coibir os protestos e as revoltas instauradas no
interior da instituição, nascidas a partir do questionamento de determinados castigos e relações
hierárquicas abusivas, que poderiam aprofundar o processo de fragmentação da mesma. Houve
uma substituição do modelo ideal de soldado brasileiro. O objetivo a ser alcançado no culto a
Caxias, portanto, era a afirmação do valor da legalidade e o afastamento do exército de assuntos

                                                             
7
Antigo nome da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN).
8
A Batalha do Tuiuti foi a maior da Guerra do Paraguai (1864-1870).
9
Surge, posteriormente, o termo “caxias”, para denominar, então, pessoas corretas, “certinhas”, que se enquadram
nos regulamentos.
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ligados à política. Este também teve importante papel na fusão do exército com o país e a forte
ligação entre os dois, ou, pelo menos, na tentativa de construção de um “Estado forte”. Sobre
isso, Castro (2002) afirma: “Concordo com José Murilo de Carvalho quando afirma que, para o
projeto militar que veio se tornar hegemônico com o Estado Novo, Caxias aparecia como
símbolo da união militar e, acima disso, da própria nação”. (p.22)
Além disso, pode-se destacar a instituição do dia do exército na data de 19 de abril, a
partir do decreto presidencial de 24 de março de 1994, referente à Batalha dos Guararapes
ocorrida na mesma data no ano de 1648. A ideia central desta comemoração era que “em
Guararapes teriam nascido ao mesmo tempo a nacionalidade e o exército brasileiros. A força
simbólica do evento é reforçada pela presença conjunta das três raças vistas como constitutivas
do povo brasileiro – o branco, o negro e o índio.” (idem, p.69).
Na exposição de motivos do decreto citado, a justificativa era de que:
Tendo em vista que a gênese da nacionalidade brasileira brotava em Guararapes,
quando, em 1645, as três raças formadoras de nossa gente firmaram um pacto de honra,
assinando célebre proclamação, em que aparece, pela primeira vez, o vocábulo pátria,
razão pela qual foi constituída, militarmente, uma tropa que passou a ser chamada de
Exército Libertador ou Patriota, e que tal fato consagrou-se com a 1ª Batalha de
Guararapes, travada em 19 de abril de 1648, constituindo importante fator para a
formação do Exército Brasileiro; (...) é de todo interesse para a Instituição que o dia 19
de abril seja transformado em data máxima para o Exército Brasileiro, em virtude dos
feitos realizados em Guararapes, culminando com o nascimento do nosso glorioso
Exército. (idem, p. 71)

Com o passar do tempo, as datas importantes vão se modificando. A instauração desta


ligada à batalha, atualmente, tem relação direta com a defesa da Amazônia contra a cobiça
internacional, representando uma mudança de foco iniciada na Ditadura Militar, em que o
inimigo agora é externo, os estrangeiros – ao contrário dos anteriores que eram os internos, como
os subversivos e os comunistas. Isso remete ao conflito central da batalha dos Guararapes – luta
dos negros, brancos e índios contra um poderoso invasor: os holandeses – ressignificado na
atualidade conforme exposto anteriormente. Não à toa, as seguintes frases estão localizadas na
entrada do Comando Militar da Amazônia: “Fizemos ontem... faremos sempre”; “Guararapes... e
surgiu o Exército”; “Exemplo e tradição que serão mantidos na defesa da Amazônia.”.
A atuação do exército atualmente está ligada à Doutrina da Resistência, utilizada em
Guararapes, vista como uma doutrina militar autenticamente brasileira. Constitui-se pela
utilização de estratégias de guerra irregular, de guerrilha, como as emboscadas, contra um
eventual inimigo de maior poderio bélico. Dessa forma, compreende-se que o treinamento
militar não foi sempre da mesma forma, tendo seu atual padrão origem no espírito de
Guararapes, que forma o espírito militar (CASTRO, 1990), entendido como modelo ideal, isto é,
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os valores, comportamentos e atitudes apropriados para a vida militar. A busca por ele implica
no formato do treinamento. O treinamento militar atual é baseado em tal doutrina, significando a
produção de soldados aptos a lidar dessa forma: sem regularidade, de acordo com o movimento
do inimigo, surpreendendo-o. Isso implica em um treinamento baseado na necessidade de
resistir, isto é, na aferição dos limites da resistência do recruta. A partir do discurso oficial sobre
o treinamento, em que haveria necessidade de testar e treinar os recrutas para futuras situações
de guerra, havendo a necessidade de aprender a aguentar a fadiga, passar diversas horas sem
alimentação ou sem dormir, justifica-se sua aplicação de forma violenta e humilhante, sendo
exaustivo em muitos momentos, com abusos sendo cometidos, chegando até à tortura.
No entanto, segundo Gibson e Haritos-Fatouros (1986), esses treinamentos educam
torturadores. E como se consiste essa educação? A resposta pôde ser dada a partir de
depoimentos oficiais de ex-militares do Corpo de Polícia Militar da Grécia durante processos
penais e entrevistas de parte desses durante os julgamentos a que foram submetidos em 1975, em
função de sua participação em torturas e assassinatos na Ditadura do mesmo país (1967-1974),
além de entrevistas com soldados e ex-soldados do Corpo de Infantaria da Marinha e dos Boinas
Verdes do Exército, unidades de elite dos Estados Unidos da América.
Faz parte do treinamento, fundamento da educação, ritos de iniciação com objetivo de
marcar a diferença entre os recrutas e o restante da sociedade (CASTRO, 1990), a fim de
demostrar que eles são diferentes e superiores, realidade em que é necessário trabalhar outros
valores que não os “mundanos”. Para isso é preciso apresentar bruscamente a diferença entre a
instituição militar e o mundo exterior e testar o recruta no sentido de saber se é aquilo que ele
deseja. Dessa forma, os treinamentos são fisicamente brutais, onde os soldados são insultados,
agredidos, humilhados, além de serem obrigados a fazer exercícios físicos até o seu esgotamento,
sendo castigados por qualquer tipo de falta. Soma-se a isso a impossibilidade de fazerem
necessidades fisiológicas quando necessário e as poucas horas disponibilizadas para o sono.
Sobre isso, as autoras dizem: “Aprenderás a amar eldolor’, prometióun oficial a un recluta. La
sensibilidadhaciala tortura embotada em sucesivas etapas. Primero, loshombrestenían que
suportarlaen carne propria, como si la tortura fuera um acto normal10.” (GIBSON, HARITOS-
FATOUROS, 1986, p. 25)
Citam ainda a importância da culpa e da desumanização nos treinamentos e
ensinamentos, pois assim torna-se menos perturbador violentá-las. A partir de constante
                                                             
10
“Aprenderás a amar a dor, prometeu um oficial a um recruta. A sensibilidade fazia a tortura embotada em
sucessivas etapas. Primeiro, os homens teriam que suportar em carne própria, como se a tortura fosse um ato
normal.” (livre tradução).
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intimidação física e psicológica que impedem o pensamento lógico, são geradas reações
necessárias para realizar crueldades. Há, portanto, uma dessensibilização sistemática a atos
repugnantes, expondo os recrutas a eles, para que lhes pareçam rotineiros e normais. Para isso,
observar outros membros do grupo a cometer atos violentos é bastante comum, a fim de
possibilitar que os observadores façam o mesmo11. Nesse sentido, Foucault (2005) compreende o
treinamento como um conjunto de práticas que docilizam corpos, ou seja, em suas palavras: “a
disciplina fabrica assim corpos submissos exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as
forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos
políticos de obediência).” (p. 119).
Foucault diz ainda em seu livro Vigiar e Punir que a partir da
segunda metade do século XVIII: o soldado tornou-se algo que se fabrica de uma massa
informe, de um corpo inapto, faz-se a máquina de que se precisa; corrigiram-se aos
poucos as posturas; lentamente uma coação calculada percorre cada parte do corpo, se
assenhoreia dele, dobra o conjunto, torna-o perpetuamente disponível, e se prolonga, em
silêncio, no automatismo dos hábitos (2005, p. 117).

Foucault (2005) aponta, portanto, como este corpo pode ser submetido, utilizado e
treinado, para assim ser transformado e aperfeiçoado no que interessa à sociedade capitalista.
Entende que os exercícios militares servem para transformar o soldado em uma máquina que
deve ser cada vez mais aperfeiçoada e lapidada. O corpo do soldado, o corpo dócil, está sendo
preparado para ser utilizado da forma que for mais conveniente.
O poder disciplinar tem como principal função “adestrar”, e esse adestramento serve para
retirar e se apropriar cada vez mais e melhor o que o corpo do outro pode oferecer. Ele diz: “a
disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao
mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício” (p. 143).
Cita ainda a hierarquia, o que fica evidente no trecho abaixo:
O exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um
aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em
troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam.
(p.143)

Claramente refere-se à vigilância hierárquica como um dispositivo de controle para o


exercício da disciplina. Esses elementos estão presentes no Estatuto dos Militares (1980) e na
Constituição Federal de 1988 como veremos a diante.
Portanto, apesar da ideologia dominante de que o treinamento pesado é necessário para
produzir militares aptos às adversidades, entende-se que este beira muitas vezes ao exagero, com

                                                             
11
Vale ressaltar que a realidade dos treinamentos citados é muito próxima da brasileira, pois esta sofreu forte
influência dos treinamentos norte-americanos. Ver o documentário Escola das Américas (2003).
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o cometimento, inclusive, de tortura. As perguntas que permanecem são: será que os exageros
são desvios ou têm intencionalidade? Se são intencionais, para que servem? Compreender a
tortura, seu conceito e história, se faz necessário neste momento.

PENSANDO A TORTURA: UMA ANÁLISE SÓCIO-HISTÓRICA

Para começar, como se define o termo tortura? Claro que a resposta não é simples de ser
dada, e não se busca definições de dicionário. Mas, para o início da análise pode-se trazer
algumas definições. Para a Associação Médica Mundial, em 10 de outubro de 1975, tortura é:
a imposição deliberada, sistemática e desconsiderada de sofrimento físico ou mental por
parte de uma ou mais pessoas, atuando por própria conta ou seguindo ordens de
qualquer tipo de poder, com o fim de forçar uma outra pessoa a dar informações,
confessar, ou por outra razão qualquer.

O Artigo 1º da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis,


Desumanos ou Degradantes da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), de
10 de dezembro de 1984 afirma que
o termo “tortura” designa qualquer ato pelo qual uma violenta dor ou sofrimento, físico
ou mental, é infligido intencionalmente a uma pessoa, com o fim de se obter dela ou de
uma terceira pessoa informações ou confissão; de puni-la por um ato que ela ou uma
terceira pessoa tenha cometido, ou seja, suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir
ela ou uma terceira pessoa; ou por qualquer razão baseada em discriminação de
qualquer espécie, quando tal dor ou sofrimento é imposto por um funcionário público
ou por outra pessoa atuando no exercício de funções públicas, ou ainda por instigação
dele ou com o seu consentimento ou aquiescência.

A partir destas, pode-se pensar em três elementos essenciais, como os apontados por
Piovesan e Salla (2001):
a) a inflição deliberada de dor e ou sofrimentos físicos ou mentais; b) a finalidade do ato
(obtenção de informações e confissões, aplicação de castigo, intimidação ou coação, e
qualquer outro motivo baseado em discriminação de qualquer natureza); e c) a
vinculação do agente ou responsável, direta ou indiretamente, com o Estado. (p.31)

A tortura tem o propósito intencional de impor a dor física ou psicológica por crueldade,
intimidação, punição, para obtenção de uma confissão, informação ou simplesmente por prazer
da pessoa que tortura. No entanto, ela deve ser pensada como uma prática cotidiana, uma prática
de toda a sociedade e não só de quem dá o choque elétrico ou asfixia alguém, mas também dos
“amoladores de facas”, conceito cunhado por Baptista (1999):
O fio da faca que esquarteja, ou o tiro certeiro nos olhos, possui alguns aliados, agentes
sem rostos que preparam o solo para esses sinistros atos. Sem cara ou personalidade
podem ser encontrados em discursos, textos, falas, modos de viver, modos de pensar
que circulam entre famílias, jornalistas, prefeitos, artistas, padres, psicanalistas etc.
Destituídos de aparente crueldade, tais aliados amolam a faca e enfraquecem a vítima,
reduzindo-a a pobre coitado, cúmplice do ato, carente de cuidado, fraco e estranho a
LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com
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nós, estranho a uma condição humana plenamente viva. Os amoladores de facas, à


semelhança dos cortadores de membros, fragmentam a violência da cotidianidade,
remetendo-a a particularidades, a casos individuais. Estranhamento e individualidades
são alguns dos produtos desses agentes. (p.46)

Há uma luta histórica no sentido de acabar com a tortura no cotidiano. A seguir são
elencados alguns dos principais avanços, no sentido de reconhecimento público, desta.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, só tratava da
tortura em seu Artigo V, que diz: “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo
cruel, desumano ou degradante”. O dia 26 de junho foi escolhido para ser o dia mundial da ONU
em apoio às vítimas de tortura, pois foi nesta data que entrou em vigor na ordem internacional a
Convenção Contra a Tortura, em 1987.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu Artigo 5º, inciso III,
diz: “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. O governo
brasileiro ratificou a Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura e a Convenção
Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura em 1989, e aprovou a lei nº 9.455, que tipifica a
tortura como crime somente em 7 de abril de 1997 (PIOVESAN, SALLA, 2001, p.31). Ao
tipificar esta prática como crime, ela se torna um tipo penal autônomo, deixando de ser punida
simplesmente como lesão corporal ou constrangimento ilegal, mas, ainda assim, a tortura é um
método recorrente nas nossas forças policiais, militares e no cotidiano de nossas prisões. Todos
os Estados-membros que aceitaram as decisões tomadas na Convenção da ONU, citada acima,
tem que adotar “medidas capazes de prevenir, punir e erradicar essa prática, que afronta a
consciência ética contemporânea” (Idem, p.31).
O artigo 142 da Constituição Brasileira, em seu caput, diz que:
As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são
instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na
disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa
da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da
lei e da ordem.

O Estatuto dos Militares, em seu artigo 2º, lei 6.880, de 09 de dezembro de 1980, ao
apresentar as funções das Forças Armadas, oferece definição bastante parecida, sendo estas
(...) essenciais à execução da política de segurança nacional, são constituídas pela
Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, e destinam-se a defender a Pátria e a garantir
os poderes constituídos, a lei e a ordem. São instituições nacionais, permanentes e
regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema
do Presidente da República e dentro dos limites da lei.

As Forças Armadas – cujos pilares de sustentação são a hierarquia e a disciplina –


destinam-se a defender a Pátria e a garantir os poderes constituídos, a lei e a ordem. Um dos
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objetivos da existência da mesma, segundo o documento supracitado, é garantir a Constituição


Federal (inclusive no que concerne à tortura). Ao revés, segundo um dossiê entregue, em 2001,
pelo GTNM-RJ e pelo Centro de Justiça Global ao Comitê Contra a Tortura da ONU, no período
de 1990 a 2001 foram publicizados 23 casos de violência institucionalizada nas Forças Armadas
brasileiras. Entre esses casos aparecem: assassinatos, torturas – algumas resultantes em morte,
suicídios12 e mortes em treinamentos militares exaustivos.
DAS ATROCIDADES TRIBAIS AO EXTERMÍNIO DOS FAVELADOS

A cena é extremamente cruel, e meu punho a transcreve a duras penas; mas se o calafrio
que sinto servir para poupar nem que seja apenas uma vítima, se se deixar de inflingir
uma única tortura graças ao horror que passo a expor, será bem empregado o doloroso
sentimento que me toma, e essa esperança é minha recompensa. (VERRI; CARROTTI,
2000, p.57)

Há notícias de prática de tortura desde a Antiguidade. Segundo Gonzaga (1993), o relato


mais antigo sobre este dispositivo é um “fragmento egípcio relativo a um caso de profanadores
de túmulos” (p.32). A tortura se encontra presente em toda a história da humanidade. Desde a
antiguidade com os egípcios, persas, gregos e romanos, passando pela Idade Média com os
suplícios públicos e a Inquisição, depois com os grandes descobrimentos e, mais tarde, com o
advento do capitalismo industrial. Escravidão, guerras, regimes ditatoriais, punição aos
criminosos ou uma forma de controle para uma determinada parcela da população, a tortura
aparece em diferentes momentos e contextos sempre com a intenção de intimidar, silenciar e
reprimir.
Segundo os historiadores Alec Mellor e Ryley Scott (apud MATTOSO, 1986), pode-se
dividir a história da tortura em três fases. A primeira fase seria a das atrocidades tribais da dita
tortura pré-clássica. A segunda é a chamada tortura institucionalizada das tiranias e impérios
antigos, medievais e modernos. E por último, temos a tortura tida como clandestina nas
repúblicas e nas ditaduras contemporâneas. É importante frisar que qualquer forma de
classificação e divisão da história desta prática é muito limitada.

                                                             
12
Entre os casos de suicídio dois chamam mais atenção. O primeiro deles é o de Emerson Santos de Melo (1992), 20
anos, soldado do Exército que servia no 3° Batalhão Especial de Fronteira (Macapá). Ele tomou uma mistura de
medicamentos e veio a falecer, anteriormente deixou um bilhete dizendo: “como já disse antes esse é o pior ano de
minha vida. Nunca pensei que um dia iria passar por tantas humilhações de uma vez só na vida”. O outro caso é o do
estudante do Colégio Militar do Rio de Janeiro Celestino José Rodrigues Neto (1990), 14 anos, que, segundo sua
mãe, consultou um livro durante uma prova de Geografia, o que acarretou à humilhação pública diante dos colegas e
da mãe no pátio do colégio. Suicidou-se dois dias depois, deixando uma carta com um pedido de desculpas para a
mãe.  
LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com
Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN:
9788544403

A fase das atrocidades tribais nos apresenta diversas modalidades de tortura que atingem
a diferentes objetivos. Um deles é entender esta violência como uma provação, como um ritual
de iniciação à vida adulta e à religião. O futuro guerreiro tinha o dever de aguentar com bravura
e firmeza, sem gritar e sem implorar piedade, marcando o início de outra etapa da vida. Nesta
fase temos alguns exemplos de castigos catalogados e classificados em códigos: código de
Dungi; código de Hamurabi; Tora e Pentateuco; código turiano; tortura probatória na Grécia; e a
tortura probatória em Roma: o quaestio.
Segundo Verri e Carrotti (2000), o uso sistemático da tortura, na Europa, ocorreu após o
século XI, atingindo seu apogeu entre os séculos XIII e XVIII, com a Inquisição, período
histórico em que a segunda fase da tortura é diretamente relacionada. Alguns fatos exemplificam
a fase: os cristãos perseguidos e torturados no Império Romano, e posteriormente, a Igreja
Católica levando à frente a Santa Inquisição. A perseguição dos seguidores de Cristo ilustra a
tortura probatória: “em vez da confissão de um crime, o que se exigia era a regeneração da fé”.
(MATTOSO, 1986; ROZA, 2003; BIAZEVIC, 2006). Ela era entendida como um “instrumento
de salvação de almas”. Pode-se compreender isto a partir do caso espanhol: a rainha Isabel
recebeu permissão do papa para “purificar seus súditos”. Entre 1481 e 1517, estima-se que 13
mil pessoas tenham sido queimadas vivas e outras 17 mil condenadas a diversos tipos de punição
(CHINELLI, VITURINO, 2004) pela Inquisição. A tortura não era um monopólio da Igreja,
estava presente nos Estados europeus, tanto com viés probatório, quanto com viés punitivo
(ROZA, 2003), além de servir como intimidação.
É importante destacar que o direito criminal clássico dava uma grande importância à
confissão do acusado. O modelo inquisitorial de interrogatório colocava a tortura como um dos
dois métodos utilizados – o outro era o juramento – de busca da verdade. A verdade era
arrancada a partir da violência física, e depois repetida diante do juiz. Assim, se chegava a uma
confissão "espontânea". Foucault nomeou este funcionamento do interrogatório como "suplício
da verdade". A tortura era legal, estava presente nos códigos jurídicos, isto é, era uma prática
regulamentada. (FOUCAULT, 2005; VERRI, CARROTTI, 2000)
Dessa forma, o suspeito que sofria a tortura ordenada pelo juiz era submetido a uma série
de provas, que vão tendo sua severidade aumentada. Segundo Foucault (idem), o torturado ganha
enquanto está suportando as sevícias e perde quando confessa. Se o acusado não confessasse, o
juiz, ou se via obrigado a retirar as acusações, ou o acusado, pelo menos, não seria condenado à
morte. Por isso, quando se tinha muitas provas contra alguém que teria cometido um crime
bárbaro existia a recomendação de que o acusado não fosse submetido ao suplício do
LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com
Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN:
9788544403

interrogatório, pois, caso ele resistisse, não seria condenado à pena capital. Temos assim, com a
tortura legal, além do fato de fazer confessar, um quê de duelo entre juiz e acusado.
(FOUCAULT, 2005; VERRI, CARROTTI, 2000)
Nesse sentido, um ato de instrução e um elemento de punição encontram-se misturados
num mesmo momento. O castigo é utilizado como método investigativo. O suplício no
interrogatório era (é) uma forma parcial de punição. Usando as palavras de Foucault (2005, p.
38)
A tortura judiciária, no século XVIII, funciona nessa estranha economia em que o ritual
que produz a verdade caminha a par com o ritual que impõe a punição. O corpo
interrogado no suplício constitui o ponto de aplicação do castigo e o lugar de extorsão
da verdade. E do mesmo modo que a presunção é solidariamente um elemento de
inquérito e um fragmento de culpa, o sofrimento regulado da tortura é ao mesmo tempo
uma medida para punir e um ato de instrução.

O mesmo autor acredita que o suplício é uma técnica balizada por normas legais. O
suplício, como pena,
(...) deve obedecer a três critérios principais: em primeiro lugar, produzir uma certa
quantidade de sofrimento que se possa, se não medir exatamente, ao menos apreciar,
comparar e hierarquizar; a morte é um suplício na medida em que ela não é
simplesmente privação do direito de viver, mas a ocasião e o termo final de uma
graduação calculada de sofrimentos: desde a decapitação — que reduz todos os
sofrimentos a um só gesto e num só instante: o grau zero do suplício — até o
esquartejamento que os leva quase ao infinito, através do enforcamento, da fogueira e
da roda, na qual se agoniza muito tempo; a morte suplício é a arte de reter a vida no
sofrimento, subdividindo-a em ‘mil mortes’ [...] O suplício repousa na arte quantitativa
do sofrimento. Mas não é só: esta produção é regulada. O suplício faz correlacionar o
tipo de ferimento físico, a qualidade, a intensidade, o tempo dos sofrimentos com a
gravidade do crime, a pessoa do criminoso, o nível social de suas vítimas. Há um
código jurídico da dor; a pena, quando é supliciante, não se abate sobre o corpo ao
acaso ou em bloco; ela é calculada de acordo com regras detalhadas: número de golpes
de açoite, localização do ferrete em brasa, tempo de agonia na fogueira ou na roda (o
tribunal decide se é o caso de estrangular o paciente imediatamente, em vez de deixá-lo
morrer, e ao fim de quanto tempo esse gesto de piedade deve intervir), tipo de mutilação
a impor (mão decepada, lábios ou língua furados) [...] um longo saber físico-penal [...]
Além disso, o suplício faz parte de um ritual. É um elemento na liturgia punitiva, e que
obedece a duas exigências. Em relação à vítima, ele deve ser marcante: destina-se, ou
pela cicatriz que deixa no corpo, ou pela ostentação de que se acompanha, a tornar
infame aquele que é sua vítima; o suplício, mesmo se tem como função ‘purgar’ o
crime, não reconcilia; traça em torno, ou melhor, sobre o próprio corpo do condenado
sinais que não devem se apagar; a memória dos homens, em todo caso, guardará a
lembrança da exposição, da roda, da tortura ou do sofrimento devidamente constatados.
E pelo lado da justiça que o impõe, o suplício deve ser ostentoso, deve ser constatado
por todos, um pouco como seu triunfo. (idem, p. 31-32)

A redução dos suplícios públicos, ainda segundo Foucault (2005), ocorre com a grande
transformação política – em toda a Europa – de 1760 a 1840. A execução passou a ser um
segredo entre a justiça e o condenado. Mas não chegou totalmente ao fim, as torturas persistiram,
em diferentes lugares.
LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com
Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN:
9788544403

No fim do século XVIII, Beccaria (2005), além de Verri e Carrotti (2000) denunciaram a
tortura como sendo o resto das barbáries de uma outra época. No Brasil, a tortura é um
dispositivo presente desde o início da colonização. Os índios, que não eram considerados
humanos pelos colonizadores portugueses, sofriam todos os tipos de suplícios e violências. Os
escravos negros vindos da África eram comercializados como mercadorias. Os “perigosos”,
criminosos e perseguidos pela Inquisição, também eram torturados. Os trabalhadores na década
de 1930, no Estado Novo, quando reivindicavam seus direitos sofriam represálias físicas e
emocionais. Durante a ditadura civil-militar (1964 – 1985), os “subversivos” que lutavam contra
o regime foram violentamente perseguidos.
Observa-se que a tortura só foi oficialmente condenada a partir do artigo 5º da
Constituição Federal de 1988, afirmando que “ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a
penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”, a partir da luta de movimentos sociais
na Constituinte. A tortura, no entanto, permanece de diversas formas na sociedade brasileira.
“VERÁS QUE UM FILHO TEU NÃO FOGE À LUTA”: O ANALISADOR CADETE
LEPOENTE

A Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), primeira escola militar das Américas,
foi criada em 1792, com o nome de Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho, na
cidade do Rio de Janeiro. Atualmente, está localizada no município de Resende, estado do Rio
de Janeiro, que dista cerca de 170 km da capital fluminense. Esta é responsável pela formação
básica dos oficias do Exército brasileiro13, ou seja, a AMAN é a primeira etapa para a formação
dos oficiais do Exército. Os alunos são majoritariamente oriundos da Escola Preparatória de
Cadetes do Exército (EsPCEx), localizada na cidade de Campinas.
Ao entrar na academia os alunos recebem o título de cadetes. São quatro anos de curso,
em que estes recebem instruções militares e fazem diversas disciplinas acadêmicas, que são
divididas em fundamentais e profissionais. Existe esta divisão nas disciplinas porque as
primeiras têm conteúdos que poderiam ser aprendidos fora da academia, definido por Castro
(1990) como o “embasamento cultural necessário para o prosseguimento na carreira” (p.11), já
as outras são estritamente militares, definidas pelo mesmo autor como de “conhecimento técnico
necessário para atuar até o posto de capitão” (idem). As instruções militares são constituídas de

                                                             
13
A AMAN é a primeira etapa para se atingir o generalato. O cadete após este curso se torna aspirante-a-oficial.
Alguns anos depois, no posto de capitão, o oficial tem a possibilidade de cursar a Escola de Aperfeiçoamento de
Oficiais (EsAO). E quando atingir a patente de coronel poderá aspirar uma vaga na Escola de Comando e Estado-
Maior do Exército (ECEME). Assim, podendo chegar a ser general.
LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com
Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN:
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treinamentos diversos – físico, sobrevivência e aptidões, além de marchas e conhecimento de


regulamentos.
A partir desse espaço, é possível observar a materialidade do conceito de invenção de
tradições (HOBSBAWM, 1984; CASTRO, 2002), a partir dos ritos de iniciação e dos
treinamentos. Para isso, será analisada a realidade da AMAN no final da década de 1980 e início
da década de 1990, recorte temporal onde se encontra a morte do cadete Márcio Lapoente da
Silveira, utilizado neste trabalho como analisador do treinamento militar. Apesar de o caso
estudado datar de duas décadas atrás, a maior parte dos aspectos referentes à Academia não
apresentou mudanças significativas em relação aos dias de hoje. Explica-se assim a mudança de
tempo verbal (passado/presente) utilizada no texto.
No período de adaptação, anterior à matrícula, os novos alunos ainda não são
considerados cadetes e sim candidatos a cadetes. Constituído por treinamento coletivo de
marchas, continências, posturas militares, educação física, entre outros, tem como objetivo levar
à desistência os que não têm “vocação” para a carreira militar. Além disso, de 6 às 22h do dia
são ocupadas com atividades, entre elas o “exercício de vivacidade” que são ordens dadas em
sequência rápida por oficiais, geralmente tenentes, sem uma finalidade aparente, como, por
exemplo, subir e descer escadas carregando peso ou montar e desmontar equipamentos. Nesse
período, os candidatos não têm licenciamento, ou seja, não podem ir para suas casas nos finais de
semana – em torno de duas semanas a um mês, o que faz parte da aferição da vontade e
possibilidade deles de transcenderem as vidas “comuns”. Terminado este período, os
remanescentes são matriculados, passando a ser cadetes, e participam da solenidade de passagem
pelo Portão Monumental, que separa física e simbolicamente a academia e o mundo exterior. Na
entrada, encontra-se escrito: “Entrada dos novos cadetes”, já na saída, encontram 4 anos depois
“Saída dos novos aspirantes”.
Os trotes, terminantemente proibidos pelo regulamento e passível de punições
disciplinares, começam a partir da matrícula, quando inicia o contato entre a nova turma e o
restante do corpo discente. Tradicionalmente, constituem-se de imitação de animais, limpeza de
alojamentos, contação de histórias, corrida, flexão por longos períodos de tempo. Sobre o
mesmo, um recruta relata “é aquele negócio: aqui na academia é lugar para homem, não é lugar
pra criança e nem viadinho” (CASTRO, 1990, p.29). Alguns cadetes e oficiais apresentam outras
explicações, uns dizem que o trote é uma tradição, já outros acreditam que o trote tem uma
função pedagógica porque o “bicho” (o aluno do 1° ano) aprende a obedecer e o aspirante (4°
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Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN:
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ano) a ordenar/comandar. Além disso, os alunos relatam a importância deste para gerar uma
aproximação entre os cadetes.
A noite de São Bartolomeu marca o trote coletivo mais famoso e de longa tradição na
academia, uma vez que antecede a cerimônia de entrega dos espadins de Caxias. Esta se dá na
metade do primeiro ano e é quando os bichos passam a ser considerados oficialmente cadetes. Os
trotes diminuem, mas a pressão dos oficiais, principalmente dos tenentes e capitães, permanece.
De acordo com Castro (1990),
no curso básico da AMAN o novato passa pelos rituais que levam à passagem da
condição de bicho à de cadete, que coincide com a passagem de condição de paisano à
de militar. A distinção entre militares e paisanos é o passo primordial, instaurador, do
espírito militar. (p. 51)

O treinamento militar é transversal a todo processo de lapidação do espírito militar, ou


seja, acontece do início ao fim da estadia na Academia. O treinamento instrui para capacitá-los a
longas caminhadas com obstáculos naturais, a corridas, a rastejar para “escapar dos tiros
inimigos” (CASTRO, 1990, p. 59). Além disso, são treinados para suportar a falta de sono, a
fome, a falta de conforto, o cansaço. Todos esses elementos conformam o que Castro (1990)
chama de vibração, que é o que totaliza, o que faz pensar no grupo como uma coisa só. Nesse
sentido, entende-se que os infantes representam a “caricatura” da formação do espírito militar,
uma vez que, através do treinamento mais pesado, desenvolvem características fiéis do que é
entendido por militar.

CADETE LAPOENTE, PRESENTE!

Márcio Lapoente da Silveira nasceu em 1972, no Rio de Janeiro e, aos dezessete anos,
ingressou na AMAN. Apesar da saudade que sentia, Carmem Lúcia, sua mãe, acreditava que, na
Academia, o filho estaria protegido da insegurança da rua, pois temia que ele fosse vítima de
assaltos e da violência. Em suas palavras, eternizadas no documentário Cadete Lapoente (2009)
Márcio foi para a academia e a gente sentia muita falta dele. Eu lembro que às vezes eu
mesma dizia para ele: ‘pô, Márcio, você vai lá para a academia’. Ele ia para a academia
domingo à noite e só voltava na 6ª feira. Aí quando a gente deixava ele na rodoviária e
dizia: poxa, Márcio, você vai pra lá e eu vou morrer de saudade, mas a única coisa de
bom que tem é que lá eu acho que você está seguro.

Infelizmente, não estava.


Márcio sempre comentava em casa sobre os treinamentos. Dizia que, apesar de serem
rigorosos, era possível fazê-los. No entanto no primeiro fim de semana do mês de outubro de
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1990, Márcio estava temeroso. Sua mãe relata que ele estava tenso, pois o instrutor que iria
comandar o treinamento era tido como “mau” e “perverso”.
Na terça-feira, dia 09 de outubro, segundo o jornal O Dia de 26 de agosto de 1991
(TANCREDO, 2010), a turma de cadetes do primeiro ano acordou às três e meia da manhã para
se preparar para a realização de uma marcha acelerada – exercício convencional no treinamento.
Seus materiais contavam com fuzil, mochila carregada de apetrechos pesando aproximadamente
treze quilos. A marcha tinha como fim o campo de exercícios militares que ficava a 4,5
quilômetros do alojamento. De imediato, já impressiona a distância e o tempo para percorrê-la.
Às sete horas, o responsável pela instrução, tenente Antônio Carlos de Pessoa - apesar de
não ser o único oficial a participar do treinamento - sentindo a falta de alguns cadetes, refaz o
caminho a fim de encontrá-los e estimulá-los a chegar ao campo de exercícios. Vários estavam
exaustos, alguns já se arrastavam e Lapoente, por sua vez, era carregado por outros dois colegas.
O tenente, ao se deparar com tal cena, se enfurece e manda os dois que carregavam o rapaz a
largá-lo e seguirem. Após depreciá-lo, obrigou-o a ir sozinho até o fim do percurso.
Ao chegar ao campo de exercícios, Lapoente cai ao chão. De Pessoa passa a desferir uma
enxurrada de xingamentos ao cadete, dizendo que ele estava fazendo "corpo mole" e que era
fraco. Neste momento, o tenente obriga-o a descer e subir diversas vezes uma rampa e iniciar
exercícios de solo. Após a repetição sucessiva do exercício, o cadete, ainda munido de fuzil e
mochila, cai e, por isso, passa a receber chutes nas costas, nas pernas e na cabeça – lugares fatais.
Ainda assim, é obrigado a continuar. Ao cair de novo, é socorrido por seus colegas que logo
foram repreendidos. Após uma nova sessão de pontapés, Lapoente é obrigado a realizar flexões.
Não tendo mais forças para continuar, desmaia. Durante este processo, embora outros cadetes
também tenham passado mal, o tenente-instrutor De Pessoa usa o episódio como exemplo para
que os outros alunos entendam que isto é o que acontece com os recrutas que não querem treinar,
ou, novamente, em suas palavras, com os que fazem "corpo mole".
É importante salientar que as falas de reprovação dos outros alunos para com o que estava
ocorrendo, eram silenciadas pelo medo e pelo respeito à hierarquia. O Capitão Leal, o médico e
os demais tenentes, também presentes, não se posicionaram. Os abusos no treinamento podem
ser entendidos, portanto, como uma prática comum naquele espaço.
A já conhecida sessão se repete. Chutes, pontapés e xingamentos são proferidos ao rapaz,
mas é aprimorada: desta vez, ele recebe diversos golpes desferidos por fuzil em sua mão
esquerda. Ao recuperar, minimamente, os sentidos, Capitão Novaes diz a ele que "a sua cara é de
quem vai morrer". Mais uma vez, desfalece e De Pessoa realiza diversos cortes em seu braço
LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com
Michel Foucault: transversalizando em psicologia, história e educação.Curitiba : CRV, 2015, p. 163-182. Impresso, ISBN:
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com uma faca e joga terra por cima, com o intuito de, segundo o próprio, simular um
formigueiro para que o cadete se reanimasse. Isto não aconteceu, o que fez com que os
instrutores pedissem para que o médico presente o socorresse. Após examiná-lo, o médico diz
que não tem o que fazer naquelas condições e que o rapaz deve ser mandado imediatamente ao
hospital da AMAN.
No entanto, Lapoente só é retirado do campo de exercícios uma hora após o veredicto do
médico. Neste meio tempo, ele ficou exposto ao sol aguardando a chegada da ambulância. Já no
hospital local, averiguou-se que o cadete deveria ser transferido para o Hospital Central do
Exército (HCE), em Triagem, Rio de Janeiro, a mais de 180 quilômetros do local do ocorrido,
uma vez que ali não se teria condições de tratá-lo.
Com a chegada de Márcio ao HCE, a família é avisada. No entanto, é proibida a visita
dos mesmos ao cadete, pois, segundo os responsáveis pelo cuidado médico, o momento não era
apropriado, pois ele estaria com meningite. Após duas horas, é dada a notícia do falecimento de
Lapoente. Neste momento, a mãe desesperada invade o quarto em que o filho estava e vê
diversas marcas em seu corpo. A mão, disforme pelos golpes de fuzil, é o que mais chama sua
atenção. Apesar de afirmarem que o rapaz tinha morrido no HCE, o laudo apresenta que a morte
aconteceu na Via Dutra, ou seja, horas antes do informado aos pais.
A transferência foi alvo de muitas críticas à época. A ambulância que fez o translado do
cadete era muito velha e, devido à falta de ventilação e ao calor muito forte, fez-se necessário
viajar com as portas traseiras abertas. Além disso, os envolvidos no caso afirmavam que o
hospital local não tinha condições estruturais de atender tal problemática e por isso era
necessária a transferência para o HCE. Contudo, a cidade de Resende possuía hospitais que eram
adequados para atender o cadete.
A partir do ocorrido, a família buscou a Justiça Militar a fim de averiguar o que realmente
tivera ocorrido e para que os responsáveis respondessem criminalmente por tal ato. Em um
primeiro momento, decretou-se a absolvição de De Pessoa, por supostamente não ter culpa no
ocorrido, uma vez que o rapaz morrera de meningite. Não satisfeitos com a decisão, os familiares
recorrem e um novo inquérito militar culpabiliza o tenente, pois considera que houve
negligência, abusos e excessos no treinamento. No entanto, em nenhum momento, o caso é
entendido como tortura.
Os familiares dos recrutas que eram testemunhas, começam a fazer pressão para que os
pais do cadete deixem o caso ''pra lá'', considerando que isto não traria a vida de Lapoente de
volta. Segundo fala de Carmen, mãe do cadete, "[a luta] não trará a vida de Márcio de volta, mas
LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com
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poderá evitar que outros morressem". Esta posição das famílias dos colegas de Marcio pode ser
entendida como uma resposta ao medo que sentiam a partir das ameaças que estavam sofrendo.
A família de Lapoente também sofria, no entanto, significava a luta de outra maneira.
A família de Lapoente luta por anos para a condenação dos autores da violência que o
mesmo sofreu. Entre idas e vindas nos trâmites da justiça brasileira, após absolvições e recursos
à responsabilização do oficial De Pessoa – condenado pelo Superior Tribunal Militar à pena por
“maus tratos à inferior hierárquico” – em sede criminal, somente em 2006 ocorreu o julgamento
com a condenação da União e do oficial a pagarem uma pensão mensal, a contar da morte até a
data em que Lapoente completaria 71 anos, mais o pagamento de danos morais (TANCREDO,
2010). Decisão, mais uma vez, contestada pelos réus. Importa destacar que
foi formulado junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização
dos Estados Americanos (OEA), pedido de condenação do Estado brasileiro pela não
punição criminal do causador direto do evento criminoso, bem como pela injustificada
demora na solução das ações, o que remeteu a investigação sobre a morte do Cadete
Lapoente para a Corte Internacional. (idem)

A partir da luta, o caso, apesar de não ser o único, foi o que mais teve repercussão na
mídia. Ainda assim, poucos espaços foram abertos para esta discussão. Fritz Utzeri, colunista do
Jornal do Brasil, à época, escreveu diversos artigos a fim de publicizar o ocorrido e cobrar uma
resposta dos responsáveis, para que, segundo suas próprias palavras, ''o corporativismo não
acobertasse, mais uma vez, esses casos". Ele considerava que o episódio não era fruto de uma
fatalidade, mas sim um ato recorrente que constituía tortura. Além disso, Fritz, baseado em
relatos de outros recrutas, publicou que Lapoente não foi o único a passar mal naquele dia, mas
foi a "bola da vez".
Outro canal de divulgação foi o programa Sem Censura da TV Brasil, apresentado por
Leda Nagle. Os pais de Lapoente foram convidados para uma entrevista de relato e discussão do
ocorrido. Mas durante o programa, um capitão e um tenente do exército chegaram para ouvir o
que eles tinham a dizer. Colocaram-se em um ponto do estúdio em que era possível a observação
sem que fossem filmados. A apresentadora, então, avisou aos pais sobre a presença deles e
perguntou se eles se sentiam intimidados e eles disseram que sim, mas que iriam continuar a
entrevista. Além disso, os mesmos foram ameaçados por diversas vezes. A mãe conta em
documentário14 que certa vez, logo após ter sido capa do Jornal do Brasil, foi questionada se não
tinha medo de ser “atropelada” na rua. A todo momento tentava-se censurar verdades, silenciar
suas vozes, interromper a luta.
                                                             
14
ALVARENGA, Reizinho. Cadete Lapoente. (documentário). Rio de Janeiro, 2008.
 
LIPKE, J. C. P.; BICALHO, P. P. G. Caso Lapoente: da disciplina à tortura, do treinamento à violência de Estado In: Estudos com
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9788544403

Em 2012, o Exército Brasileiro pediu, oficialmente, desculpas aos familiares de Márcio


pela tortura e maus tratos durante a formação da AMAN. Em seu discurso, de acordo com
matéria da revista Caros Amigos do dia 09 de outubro do mesmo ano, disposta em seu sítio na
internet,
antes de descerrar uma placa alusiva ao filho e demais cadetes mortos, Carmen Lucia
Lapoente da Silveira lembrou que a sua família adotou o lema “Esqueçamos o luto e
vamos à luta“ que resultou no reconhecimento oficial do excesso cometido pelo
Exército. A mãe do cadete morto na Aman, em seu discurso exortou os militares a
respeitarem os direitos humanos e darem ênfase a essa matéria nos currículos de
formação dos oficiais militares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS – “ESQUEÇAMOS O LUTO E VAMOS À LUTA”

Faz-se necessário eternizar o caso Lapoente para conquistar mais testemunhas, que
segundo Gagnebin (2006)
também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável
do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a
história do outro: não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a
transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente
essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a
ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente. (p.56)

A testemunha não é só a que vê algo acontecer, mas também a que recebe, se apropria e
repassa a história, dando “novamente um sentido humano ao mundo” (p. 56), para que nunca se
esqueça e nem se repita. Testemunhos historicamente marcados por memórias de interdições,
medos, imobilizações e isolamentos. (BICALHO, 2014). O sentido deste texto é fazer destas
memórias potência de falas, seguranças, mobilizações e vínculos.

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