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No mês em que o ECA completa 30 anos, especialistas afirmam que pandemia

agrava ainda mais o cenário de violações dos direitos de crianças e adolescentes

O Brasil participou ativamente das discussões internacionais que culminaram, em 1989, na


Convenção Sobre os Direitos da Criança, da Organização das Nações Unidas (ONU), assinada por
196 países.

Antes mesmo de o acordo ter sido ratificado no país, em 1990, os conceitos debatidos na ONU
contribuíram para a inclusão do Artigo 227 na Constituição Federal de 1988, a partir do qual
tornou-se “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao
jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão”.

Aprovado dois anos após a Constituição, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é fruto do
Artigo 227 e consolida todo o debate que o antecedeu, declarando crianças e adolescentes
sujeitos de direito, aos quais devem ser garantidas a proteção integral e as oportunidades de
desenvolvimento em condições de liberdade e de dignidade.

O documento é considerado uma conquista por defensores de direitos, juristas, especialistas da


área e representantes da sociedade civil e contribuiu para a redução de índices de evasão escolar,
mortalidade infantil e trabalho infantil. Trinta anos depois, no entanto, o cenário é de desafios que
têm sido agravados pela pandemia de Covid-19.

Para Ariel de Castro Alves, conselheiro do Conselho Estadual de Direitos Humanos de São Paulo
(Condepe) e ex-conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
(Conanda), parte significativa do ECA ainda não foi implementada. “Muitas vezes, a lei acaba sendo
tratada apenas como uma ‘carta de intenções’”, observa.

O redeGIFE conversou com o advogado e especialista em gestão de políticas públicas de direitos


humanos e segurança pública e também com Eva Cristina Dengler, gerente de programas e
relações empresariais da Childhood Brasil.

No final de abril, a Childhood Brasil lançou a campanha O Covid-19 também é perigoso para
crianças e adolescentes, além de iniciativas em parceria com outras organizações, tais como o
projeto Crescer Sem Violência, responsável, entre outras ações, pela
campanha #EmCasaSemViolência e pela série Que Corpo é Esse?.

“Nosso objetivo é alertar toda a sociedade sobre a necessidade de um olhar ainda mais atento
para nossas crianças durante esse período de confinamento social”, explica a gerente.

Confira a entrevista na íntegra:

redeGIFE: Pesquisas, veículos de imprensa e organizações de referência na área da infância e


adolescência têm demonstrado um expressivo aumento no número de casos de violência e abuso
de crianças e adolescentes, sobretudo no ambiente doméstico. Como você avalia a influência do
atual contexto de crise gerado pela pandemia do novo coronavírus sobre esse fenômeno?
Ariel de Castro Alves: No contexto do isolamento social, muitas vítimas estão confinadas com
seus agressores e reféns dos violadores. Denúncias que envolvem maus tratos e violências contra
crianças e adolescentes, geralmente, são levadas aos serviços de proteção por meio dos
educadores e cuidadores. Com escolas e creches fechadas, essas situações de violência têm se
agravado, sendo necessárias redes comunitárias de proteção com apoio de vizinhos e agentes
sociais.

redeGIFE: A que se deve essa maior exposição de crianças e adolescentes e o consequente


aumento de casos de violência e abuso?

Eva Cristina Dengler: Há dois grandes riscos: a doença em si e a exposição de crianças e


adolescentes a situações de vulnerabilidade durante o período de confinamento social. A
diminuição ou perda do contato com adultos protetores, o aumento no tempo que passam online
e o estresse familiar, em razão das mudanças na rotina, são alguns dos fatores que expõem nossas
crianças e adolescentes ao aumento da violência doméstica, a situações de aliciamento e a um
maior risco de contato com conteúdos sexuais nas plataformas digitais.

redeGIFE: Como esse cenário contribui para o aumento das desigualdades no que se refere ao
campo da infância e adolescência? Há especificidades do contexto brasileiro que contextualizam
esse desafio? Se sim, quais?

Ariel: A situação da infância e juventude tem se agravado com a desestruturação de programas


sociais e educacionais, assim como com o enfraquecimento dos Conselhos de Defesa de Direitos.
O aprofundamento da crise econômica e social, junto com a pandemia, tem potencializado
mazelas como orfandade, abandono, exploração sexual e do trabalho infantil, exclusão
educacional, situação de rua, criminalidade infanto-juvenil, entre outras violações dos direitos de
crianças e adolescentes. Com isso, os poucos avanços obtidos nos 30 anos do ECA poderão
desmoronar rapidamente.

redeGIFE: Qual é a situação atual do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente


frente a todos esses desafios?

Eva: Sabemos que existem fatores de vulnerabilidade que incidem diretamente sobre a violência
sexual, entre eles desigualdades sociais relacionadas a raça, gênero e etnia. A falta de
conhecimento sobre os direitos da infância e adolescência também contribui para o aumento das
violações e de subnotificação.

Casos de violação de direitos humanos de crianças e adolescentes são, tradicionalmente,


subnotificados. Calcula-se que menos de 10% sejam notificados às autoridades. Os canais de
denúncia nem sempre são conhecidos ou acessíveis às vítimas. No caso dos adultos, a orientação
é para que denunciem qualquer suspeita pelo Disque 100 ou 180, pelo aplicativo Direitos
Humanos Brasil ou por meio da delegacia online de sua região. Caso presencie uma situação de
violência contra criança ou adolescente, a orientação é comunicar a Polícia Militar pelo 190.

redeGIFE: Outra área bastante afetada pela disseminação da Covid-19 no país é a educação. Com
o fechamento das escolas, já são inúmeros os prejuízos projetados pelas redes de ensino e por
especialistas da área no que se refere ao direito de crianças e adolescentes à aprendizagem. Como
essa discussão se conecta ao debate relacionado à garantia dos direitos de crianças e adolescentes
estabelecidos pelo ECA?
Ariel: Educação é um dos principais direitos previstos no ECA e no artigo 227 da Constituição
Federal, entre outros artigos da própria Constituição. O fechamento de creches e escolas em razão
do necessário isolamento social tem contribuído para o aumento da subnotificação dos casos de
violência doméstica, já que os educadores são fundamentais para que as denúncias das crianças
cheguem aos órgãos de proteção e apuração. Além disso, a suspensão temporária das aulas
escolares presenciais tem gerado fome, já que muitos estudantes dependem da merenda escolar
para se alimentar, além de mais desigualdades educacionais porque muitos alunos não possuem
acesso à internet, celulares ou computadores para o ensino à distância ou mesmo um cômodo da
casa adequado para que possam estudar. Muitas das famílias sequer são alfabetizadas, de modo
que não conseguem ajudar os estudantes nas tarefas escolares.

redeGIFE: Quais recomendações podem ser apontadas para a prevenção de novos casos e para o
enfrentamento dos desafios?

Eva: Criar um ambiente de diálogo aberto e seguro com crianças e adolescentes é o primeiro
passo, pois o abuso sexual ocorre, na maioria das vezes, sob um pacto de silêncio. Os adultos
devem estar mais presentes nas atividades cotidianas de crianças e adolescentes sob sua
responsabilidade, lembrando que a maioria das regras que se aplicam em relação à proteção e
segurança também vale para o ambiente digital.

É sempre importante ressaltar que a educação é uma das formas mais eficazes de prevenir e
enfrentar o abuso sexual contra crianças e adolescentes. A violência só vai cessar quando for
denunciada. Por isso, o diálogo com crianças e adolescentes deve acontecer desde sempre, já que
o abuso ou a exploração sexual acontece em todas as faixas etárias.

redeGIFE: Que papéis e iniciativas você destacaria por parte dos diversos setores da sociedade
(público, privado e sociedade civil) para enfrentar os efeitos e impactos da pandemia sobre
crianças e adolescentes, sobretudo aqueles em situação de maior vulnerabilidade? Essas ações têm
sido suficientes para responder aos desafios colocados? Se não, a quais necessidades ainda faltam
respostas?

Ariel: Temos visto inúmeras organizações e empresas mobilizadas, além da solidariedade de


pessoas físicas. Todo esse movimento solidário tem gerado mobilizações comunitárias
significativas em comunidades como Paraisópolis e Heliópolis, em São Paulo, por exemplo. Mas,
pela falta de uma integração maior com os governos e do apoio do poder público, essas ações
acabam sendo pontuais.

redeGIFE: Como o marco dos 30 anos do ECA, completados este mês, se coloca no atual contexto?

Eva: O ECA estabelece direitos fundamentais e inalienáveis a crianças e adolescentes brasileiros,


entre eles o direito à educação, à saúde e ao lazer. Toda criança e todo adolescente têm, por lei, o
direito a um ensino de qualidade e gratuito, a assistência médica e odontológica prioritária e o
direito de brincar, praticar esportes e se divertir.

O ECA é um marco extremamente importante para a proteção dos direitos de crianças e


adolescentes, estabelecendo que é responsabilidade do Estado, da sociedade e da família garantir
uma infância e adolescência dignas, protegidas e livres de qualquer tipo de violência. O Estatuto
assegurou um novo tratamento de questões relacionadas à proteção de crianças e adolescentes,
elevando esse público à categoria de sujeitos de direitos em situação de absoluta prioridade.
redeGIFE: Que avanços é possível destacar a partir do Estatuto e que desafios precisam ser
endereçados, sobretudo no pós-pandemia?

Ariel: O ECA estabeleceu obrigações e responsabilizações aos familiares, à sociedade e ao poder


público diante da necessidade de proteção integral e especial das crianças e adolescentes.

Desencadeou importantes mudanças normativas, doutrinárias, institucionais e jurisdicionais no


país nesses 30 anos de vigência. Gerou muitos avanços, como a ampliação do acesso de crianças e
adolescentes às escolas públicas; a criação dos Conselhos Tutelares e das Varas da Infância e
Juventude; a diminuição da mortalidade infantil; o reordenamento dos abrigos e das unidades de
internação; a instituição de programas e serviços de enfrentamento aos maus-tratos, abusos,
exploração sexual e ao trabalho infantil; maior participação de empresas e entidades no
financiamento e na gestão de programas e serviços de proteção e apuração.

Porém, alguns números preocupam. Um estudo divulgado pelo Fundo das Nações Unidas para a
Infância [Unicef] demonstra que 32 crianças e adolescentes com idades, principalmente, entre 10 e
17 anos, são assassinados por dia no país. Em 2019, o Disque 100 recebeu 86,8 mil denúncias de
violações dos direitos de crianças e adolescentes. No estado de São Paulo, conforme dados da
Secretaria de Segurança Pública, foram registrados 2.141 casos de estupro de vulneráveis no
primeiro trimestre deste ano. Ainda, em torno de 2,4 milhões de crianças e adolescentes são
explorados com trabalho infantil, conforme dados do Fórum Nacional de Erradicação do Trabalho
Infantil. O relatório Cenário Nacional da Infância e Adolescência 2019, da Fundação Abrinq,
concluiu que 47,8% das crianças e adolescentes (20 milhões), de 0 a 14 anos, vivem em situação de
pobreza.

Esses números, que mostram um cenário já grave e que poderá se agravar ainda mais com a
pandemia, revelam que parte significativa do ECA ainda não foi implementada e, muitas vezes, a
lei acaba sendo tratada apenas como uma ‘carta de intenções’, com baixa efetividade. A prioridade
absoluta orçamentária será ainda mais necessária diante dos efeitos catastróficos da crise. A
integração com o Estado e a maior participação da iniciativa privada e da sociedade civil também
farão toda a diferença.

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