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Antes mesmo de o acordo ter sido ratificado no país, em 1990, os conceitos debatidos na ONU
contribuíram para a inclusão do Artigo 227 na Constituição Federal de 1988, a partir do qual
tornou-se “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao
jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão”.
Aprovado dois anos após a Constituição, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é fruto do
Artigo 227 e consolida todo o debate que o antecedeu, declarando crianças e adolescentes
sujeitos de direito, aos quais devem ser garantidas a proteção integral e as oportunidades de
desenvolvimento em condições de liberdade e de dignidade.
Para Ariel de Castro Alves, conselheiro do Conselho Estadual de Direitos Humanos de São Paulo
(Condepe) e ex-conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
(Conanda), parte significativa do ECA ainda não foi implementada. “Muitas vezes, a lei acaba sendo
tratada apenas como uma ‘carta de intenções’”, observa.
No final de abril, a Childhood Brasil lançou a campanha O Covid-19 também é perigoso para
crianças e adolescentes, além de iniciativas em parceria com outras organizações, tais como o
projeto Crescer Sem Violência, responsável, entre outras ações, pela
campanha #EmCasaSemViolência e pela série Que Corpo é Esse?.
“Nosso objetivo é alertar toda a sociedade sobre a necessidade de um olhar ainda mais atento
para nossas crianças durante esse período de confinamento social”, explica a gerente.
redeGIFE: Como esse cenário contribui para o aumento das desigualdades no que se refere ao
campo da infância e adolescência? Há especificidades do contexto brasileiro que contextualizam
esse desafio? Se sim, quais?
Eva: Sabemos que existem fatores de vulnerabilidade que incidem diretamente sobre a violência
sexual, entre eles desigualdades sociais relacionadas a raça, gênero e etnia. A falta de
conhecimento sobre os direitos da infância e adolescência também contribui para o aumento das
violações e de subnotificação.
redeGIFE: Outra área bastante afetada pela disseminação da Covid-19 no país é a educação. Com
o fechamento das escolas, já são inúmeros os prejuízos projetados pelas redes de ensino e por
especialistas da área no que se refere ao direito de crianças e adolescentes à aprendizagem. Como
essa discussão se conecta ao debate relacionado à garantia dos direitos de crianças e adolescentes
estabelecidos pelo ECA?
Ariel: Educação é um dos principais direitos previstos no ECA e no artigo 227 da Constituição
Federal, entre outros artigos da própria Constituição. O fechamento de creches e escolas em razão
do necessário isolamento social tem contribuído para o aumento da subnotificação dos casos de
violência doméstica, já que os educadores são fundamentais para que as denúncias das crianças
cheguem aos órgãos de proteção e apuração. Além disso, a suspensão temporária das aulas
escolares presenciais tem gerado fome, já que muitos estudantes dependem da merenda escolar
para se alimentar, além de mais desigualdades educacionais porque muitos alunos não possuem
acesso à internet, celulares ou computadores para o ensino à distância ou mesmo um cômodo da
casa adequado para que possam estudar. Muitas das famílias sequer são alfabetizadas, de modo
que não conseguem ajudar os estudantes nas tarefas escolares.
redeGIFE: Quais recomendações podem ser apontadas para a prevenção de novos casos e para o
enfrentamento dos desafios?
Eva: Criar um ambiente de diálogo aberto e seguro com crianças e adolescentes é o primeiro
passo, pois o abuso sexual ocorre, na maioria das vezes, sob um pacto de silêncio. Os adultos
devem estar mais presentes nas atividades cotidianas de crianças e adolescentes sob sua
responsabilidade, lembrando que a maioria das regras que se aplicam em relação à proteção e
segurança também vale para o ambiente digital.
É sempre importante ressaltar que a educação é uma das formas mais eficazes de prevenir e
enfrentar o abuso sexual contra crianças e adolescentes. A violência só vai cessar quando for
denunciada. Por isso, o diálogo com crianças e adolescentes deve acontecer desde sempre, já que
o abuso ou a exploração sexual acontece em todas as faixas etárias.
redeGIFE: Que papéis e iniciativas você destacaria por parte dos diversos setores da sociedade
(público, privado e sociedade civil) para enfrentar os efeitos e impactos da pandemia sobre
crianças e adolescentes, sobretudo aqueles em situação de maior vulnerabilidade? Essas ações têm
sido suficientes para responder aos desafios colocados? Se não, a quais necessidades ainda faltam
respostas?
redeGIFE: Como o marco dos 30 anos do ECA, completados este mês, se coloca no atual contexto?
Porém, alguns números preocupam. Um estudo divulgado pelo Fundo das Nações Unidas para a
Infância [Unicef] demonstra que 32 crianças e adolescentes com idades, principalmente, entre 10 e
17 anos, são assassinados por dia no país. Em 2019, o Disque 100 recebeu 86,8 mil denúncias de
violações dos direitos de crianças e adolescentes. No estado de São Paulo, conforme dados da
Secretaria de Segurança Pública, foram registrados 2.141 casos de estupro de vulneráveis no
primeiro trimestre deste ano. Ainda, em torno de 2,4 milhões de crianças e adolescentes são
explorados com trabalho infantil, conforme dados do Fórum Nacional de Erradicação do Trabalho
Infantil. O relatório Cenário Nacional da Infância e Adolescência 2019, da Fundação Abrinq,
concluiu que 47,8% das crianças e adolescentes (20 milhões), de 0 a 14 anos, vivem em situação de
pobreza.
Esses números, que mostram um cenário já grave e que poderá se agravar ainda mais com a
pandemia, revelam que parte significativa do ECA ainda não foi implementada e, muitas vezes, a
lei acaba sendo tratada apenas como uma ‘carta de intenções’, com baixa efetividade. A prioridade
absoluta orçamentária será ainda mais necessária diante dos efeitos catastróficos da crise. A
integração com o Estado e a maior participação da iniciativa privada e da sociedade civil também
farão toda a diferença.