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POR QUE SOU FILÓSOFO 1

“A filosofia é realmente o maior dos bens e o mais precioso, aos olhos de Deus, e
só ela nos conduz e aproxima dele. E são verdadeiramente santos os que à filosofia
consagram a sua inteligência. Mas o que seja em definitivo e para que foi aos homens
concedida a capacidade especulativa, é coisa que escapa à maior parte. De outra
maneira, sendo a filosofia uma só, não haveria platónicos, nem estóicos, nem
peripatéticos, nem teoréticos, nem pitagóricos. Vou explicar-vos como conquistou ela
tantas cabeças. Aconteceu que os primeiros que se lhe dedicaram se tornaram célebres;
os sucessores que os continuaram, impelidos pela admiração da força de ânimo, do
domínio de si, da novidade das doutrinas dos seus mestres, só consideraram verdade o
que deles tinham aprendido, sem fazerem qualquer investigação pessoal. Estes, por sua
vez, transmitiram aos seus discípulos aqueles mesmos ensinamentos e outros
semelhantes: assim, cada escola tomou o nome do pai da sua doutrina.
Também eu, no princípio, desejando tratar com algum destes [filósofos] me
coloquei nas mãos de um estóico e passei com ele bastante tempo; mas como não
adiantava no conhecimento de Deus (nem ele próprio sobre isso sabia nada, nem o
julgava necessário), abandonei-o e dirigi-me a outro, a quem chamavam peripatético,
homem perspicaz, segundo ele próprio se considerava. Após os primeiros dias, pediu-
me que lhe pagasse, para que o nosso trabalho se tornasse proveitoso. Por esta mesma
razão o deixei, de modo nenhum o tendo por filósofo. Mas, como o meu espírito
ardentemente desejava ouvir o que de mais importante há na filosofia, dirigi-me a um
celebérrimo pitagórico que muito se gloriava do seu saber. Logo que lhe falei, ansiando
tornar-me seu ouvinte, disse-me:
- Pois bem: - que estudaste de música, astronomia e geometria? Ou imaginas que
chegarás a contemplar alguma coisa daquilo que conduz à felicidade, sem teres
aprendido primeiro essas ciências, que hão-de desprender do sensível a alma e torná-la
apta para o inteligível, de modo a poder ver o próprio belo e o próprio bem?
Tendo feito um grande elogio daquelas ciências, que apresentou como necessárias,
logo que lhe confessei que as não conhecia, despediu-me. Entristeceu-me, como é
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Justino, o Mártir: filósofo e apologista, nascido em Nablus (Palestina, séc. II); após a sua conversão
rumou a Roma onde escreveu as suas Apologias, dirigidas a Antonino Pio, e o Diálogo com Trifão,
considerado a mais antiga apologia cristã contra os judeus; revestido do manto de filósofo, Justino foi o
primeiro a empregar as categorias aristotélicas e a terminologia filosófica no pensamento cristão, e a
reconciliar fé e razão.
natural, ter fracassado na minha esperança, tanto mais que me parecia que ele sabia
alguma coisa. Por outro lado, considerando o tempo que teria que gastar naquelas
disciplinas, não suportava o adiamento.
Assim preocupado, decidi-me a ir ter com os platónicos (pois eram tidos em grande
apreço); e, com um homem inteligente que há pouco tinha chegado à nossa cidade e
muito se distinguia entre os platónicos, tive eu largas conversas, adiantava, e cada dia
fazia grandes progressos. Entusiasmava-me a compreensão das coisas incorpóreas, e a
contemplação das ideias dava asas ao meu espírito; parecia-me que rapidamente me
tinha tornado sábio, e a minha ingenuidade fazia-me esperar que sem demora ia ver
Deus. Pois este é o objectivo da filosofia de Platão.
Neste estado, querendo uma vez encher o espírito de solidão e evitar a presença
dos homens, saí para um campo, não muito longe do mar. Junto já daquele sítio em que
haveria de encontrar-me a sós comigo, ia-me seguindo a pouca distância um velho, de
aspecto não desagradável e afável e digno semblante.
- Conheces-me? – disse ele. Respondi que não.
- Por que, portanto, me olhas assim? – disse.
- Estou admirado – contestei – de que tenhas vindo a este mesmo lugar que eu, pois
não esperava ver aqui ninguém.
- Ando preocupado – respondeu – por causa de alguns dos meus que se
ausentaram, e vim por isso eu mesmo ver se os descubro por qualquer lado. A ti, porém,
que te traz?
- Gosto destes passeios assim – disse – em que nada me distrai e posso conversar
comigo mesmo. Estes lugares são muito propícios à reflexão [philología].
- És, portanto, um cultor das palavras [philólogos] e não um cultor da acção e da
verdade, nem te preocupa ser antes um homem de acção do que sofista?
- O que é que alguém pode fazer de maior e de melhor do que mostrar que a razão
governa todos e, descobrindo-a e apoiando-nos nela, considerar os erros dos outros e ver
como naquilo que fazem nada há de perfeito nem de agradável a Deus? Pois, sem a
filosofia e a recta razão, ninguém pode dizer-se sensato. É portanto necessário que todos
se dediquem à filosofia como ao maior e mais importante trabalho, pondo o resto em
segundo e terceiro lugar. Tudo o mais, se estiver unido à filosofia, ainda será aceitável,
mas, se se separa dela, torna-se pesado e vil para quem com isso se ocupa.
- A filosofia, portanto – replicou – constitui a felicidade?
- Seguramente, e só ela.
- Diz-me então, se podes, o que é a filosofia e qual é a felicidade que ela dá.
- A filosofia – respondi eu – é a ciência do ser e o conhecimento da verdade; e a
felicidade é a recompensa desta ciência e deste conhecimento.
- E a que chamas tu Deus?
- Aquele que é sempre o mesmo sem mudança e é causa da existência de todas as
outras coisas, tal é propriamente Deus – respondi-lhe; e, como me ouvia de bom grado,
continuou a interrogar-me:
- Ciência não é um nome comum a muitas coisas diversas? Em todas as artes,
aquele que sabe de alguma delas, na estratégia, na náutica, na medicina, diz-se sábio. É
na mesma, tanto para as coisas divinas como para as humanas? Há alguma ciência que
nos dê a conhecer as coisas divinas e humanas e nos mostre o que nelas há de divino e
de justiça?
- Precisamente.
- O quê? Conhecer o Homem e conhecer a Deus é o mesmo que saber música,
aritmética, astronomia, ou algo de semelhante?
- De modo nenhum – retorqui.
- Portanto, não me respondeste bem – disse ele. Uns conhecimentos Vêm-nos da
aprendizagem, ou de certo exercício, e outros vêm de visão directa. Se te disserem que
na Índia há um animal diferente de todos os outros, deste modo ou daquele, não ficarás
a saber como é, se o não vires ou se não ouvires alguém que o tenha visto.
- Decerto que não.
- Como – continuou – podem, portanto, os filósofos pensar com exactidão ou dizer
alguma coisa de verdade acerca de Deus, se não sabem nada dele, nem dele conhecem
nada por terem visto ou ouvido?
(…)
- Então – disse eu – a quem vamos tomar por mestres ou onde buscar ajudar, se
nem estes viram a verdade?
- Existiram há muito tempo uns homens, mais antigos do que esses que são
considerados filósofos, bem-aventurados, justos e predilectos de Deus, que, inspirados
pelo Espírito Santo, falaram e anunciaram o futuro que de facto agora está a acontecer:
são chamados profetas. Estes são os únicos que viram a verdade e a anunciaram aos
Homens, sem recearem ninguém, nem a ninguém adularem, sem se deixarem dominar
pela vã glória, mas dizendo só o que viram e ouviram, cheios do Espírito Santo.
Conservam-se ainda os seus escritos, e quem os ler e lhes der fé muito poderá aprender
sobre os princípios e sobre o fim das coisas, e acerca de tudo o que um filósofo deve
saber. Não é em forma de demonstração que expuseram, visto que acima de qualquer
demonstração eram testemunhas fidedignas da verdade, mas as coisas que aconteceram
e estão a acontecer obrigam-nos a acreditar neles. Também pelos milagres que fizeram
são dignos de ser acreditados, pois glorificavam o autor do Universo, Deus e Pai, e
anunciavam aos Homens Cristo, seu filho, enviado por ele. (…) Mas tu, antes de mais
nada, roga que se te abram as portas da luz, pois não é quem quer que pode ver e
compreender estas coisas, mas só aquele a quem Deus e o seu Cristo o concede.
Tendo dito isto, e muito mais que não é agora tempo de referir, foi-se embora,
recomendando-me que continuasse a meditar naquilo; e nunca mais o vi. Mas logo em
minha alma se acendeu um fogo, e amor pelos profetas e por aqueles amigos de Cristo
me invadiu. Reflectindo sobre a conversa, achei que aquela era a única filosofia
verdadeiramente segura e proveitosa.
Deste modo e por esta razão sou filósofo. Desejaria que todos tivessem os mesmos
sentimentos que eu e se não afastassem da doutrina do salvador. Ela possui na verdade
uma certa majestade, temível e capaz de assustar os que se afastam do recto caminho;
àqueles, porém, que nela meditam dá um suavíssimo repouso.
Se, portanto, te preocupas contigo mesmo, se desejas a salvação e confias em
Deus, visto que não é alheio a estas coisas, poderás, conhecendo a Cristo e iniciando-te
nos mistérios, alcançar a felicidade.”
(Diálogo com Trifão, 2-3 e 7-8; trad. de J.M. da Cruz Pontes)

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