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APONTAMENTOS DE FONÉTICA E FONOLOGIA DO PORTUGUÊS1

Independentemente da teoria em que se enquadre qualquer análise fonológica, o linguista


deve, primeiramente, conhecer as características físicas e articulatórias dos sons da língua que
pretenda estudar. Por exemplo, na identificação e descrição dos traços distintivos inerentes a
um dado segmento fonológico (fonema), não se procede por livre arbítrio nem por
desconhecimento da realidade física subjacente, pelo contrário, procura-se inventariar ou
hierarquizar todas as características físicas que lançarão as bases para o estudo dos aspectos
fonológicos.
Parece ser coerente reconhecer que “o estudo dos sistemas fonológicos das línguas exige
naturalmente um conhecimento desenvolvido das características dos sons – sua face
directamente apreensível –, sem o que esse estudo se tornaria numa mera construção teórica
sem possibilidades de verificação. A fonética é assim uma base indispensável de fonologia”
(Mateus at al., 1990: 297), uma disciplina cujo foco se centra na descrição dos traços físico-
articulatórios, necessários para a compreensão dos fenómenos fonológicos. Em termos mais
simples, esta abordagem incide mais na classificação tradiconal dos sons.
A classificação tradicional dos sons da língua baseia-se nas suas propriedades articulatórias,
resultantes da maneira como é modulado, na cavidade oral ou na cavidade nasal, o ar expelido
dos pulmões. Deste modo, os sons da língua portuguesa classificam-se em consoantes, vogais e
semivogais/glides.
I. Consoantes
Os sons consonânticos são produzidos com a obstrução total ou parcial da corrente expiratória
na sua passagem pelo tracto vocálico. “Tradicionalmente, distinguem-se dois grandes
parâmetros classificatórios específicos das consoantes: o modo de articulação, que consiste no
modo de passagem do ar pelo tracto vocal e o ponto de articulação, que se traduz na região do
tracto vocal em que se situa a maior constrição imposta pelos articuladores” (Mateus at al. 1990:
47). Além destes dois pressupostos classificatórios, consideram-se ainda a posição do véu
palatino, afastado ou encostado à parede da faringe, que influi na articulação dos sons nasais
ou não nasais (orais), e, por último, a vibração ou não das cordas vocais, que determina os sons
vozeados (“sonoros”) ou não vozeados (“surdos”).
Quanto ao modo de articulação, as consoantes classificam-se em oclusivas [-contínuas]: [p, b, t,
d, k, g, m, n, ɲ]; contristivas [+ contínuas], que podem ser fricativas: [f,v, s,z, ∫, ʒ], laterais: [l, λ]
e vibrantes: [ɾ, r, R].
Em relação ao ponto de articulação, as consoantes podem ser: bilabiais: [p, b, m]; labiodentais:
[f, v]; linguodentais: [t, d, s, z,]; alveolares: [l, ɾ, r, n]; palatais [∫,ʒ, ɲ, λ]; velares: [k, ɡ]; uvular
[R].
Em termos do papel das cordas vocais (vozeamento ou não vozeamento), estas consoantes
podem ser vozeadas: [b, d, g, z, ʒ] e todas as laterais, vibrantes e nasais; e não vozeadas: [p, t,
k, s, ∫ ]. O papel das cavidades oral e nasal permite caracterizar as consoantes como nasais: [m,
n, ɲ] e não nasais (orais): as restantes que não fazem parte da classe das primeiras. Não se
incluem aqui as variantes contextuais, regionais e individuais de algumas consoantes, que
ocorrem em alguns dialetos da variedade do português de Portugal e as variedades do
português falado no Brasil, Angola e outros país de expressão portuguesa.
Esta classificação pode resumir-se nos elementos da tabela seguinte, com destaque para os
critérios de modo de articulação (vertical) e zona/ponto de articulação (horizontal). Quando

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Matéria elaborada com base em vários trabalhos, com destaque para os apresentados na bibliografia,
abaixo.
aparecem dois sons numa mesma celula e coluna (casos particulares das oclusivas e das
fricativas), o da esquerda classifica-se como não vozeado (surdo) e o da direita, como vozeado
(sonoro); as nasais, apesar de serem oclusivas, constituem uma classe à parte, pela sua própria
natureza de nasalidade.
Sistema consonântico do Português

Bilabiais Labio- Linguo- Alveolares Palatais Velares Uvular


dentais dentais
Oclusivas p b t d k g
Fricativas f s z ∫ ʒ
v
Líquidas Laterais l ʎ ɫ
vibrantes ɾ r R
Nasais m n ɲ

Desdobrando o elementos deste quadro, temos a seguinte classificação de cada som


individualmente:
[p] – consoante oclusiva bilabial não vozeada (surda) oral: pata
[b] – consoante oclusiva bilabial vozeada (sonora) oral: bata
[t] – consoante oclusiva linguodental não vozeada (surda) oral: tela
[d] – consoante oclusiva linguodental vozeada (sonora) oral: dela
[k] – consoante oclusiva velar não vozeada (surda) oral: colo
[g] – consoante oclusiva velar vozeada (sonora) oral: golo
[f] – consoante fricativa labiodental não vozeada (surda) oral: fila
[v] – consoante fricativa labiodental vozeada (sonora) oral: vila
[s] – consoante fricativa linguodental não vozeada (surda) oral: cinco
[z] – consoante fricativa linguodental não vozeada (sonora) oral: zinco
[∫] – consoante fricativa palatal não vozeada (surda) oral: chuva

[ʒ] – consoante fricativa palatal vozeada (sonora) oral: hoje


[l] – consoante lateral alveolar: livro
[ʎ] – consoante lateral palatal: olho
[ɫ] – consoante lateral velar: alto; pinhal

[ɾ] – consoante vibrante simples alveolar: caro; corda


[r] – consoante vibrante múltipla alveolar: rosa; morro
[R] – consoante vibrante uvular: roda; carro
[m] – consoante oclusiva bilabial nasal: amo
[n] – consoante oclusiva linguodental nasal: ano
[ɲ] – consoante oclusiva palatal nasal: anho
II. Vogais

As vogais são produzidas com a livre passagem do fluxo de ar expirado, quase sem obstáculo,
pelo tracto vocálico, uma vez que os articuladores se mantêm suficientemente afastados. A
posição em que se encontram a língua e os lábios determinará, portanto, a diferença entre os
diversos sons vocálicos. Por exemplo, da posição da língua, conforme se eleva mais ou menos,
e do grau de abertura dos lábios, na pronúncia desta ou daquela vogal, dependerão as
características físicas e articulatórias dos sons vocálicos produzidos.

Assim, quatro critérios básicos têm sido apresentados para a caracterização física das vogais,
nomeadamente: i. a região de articulação, que tem a ver com a zona da cavidade bucal onde a
língua toca para modificar o fluxo de ar, obtendo-se as vogais: anteriores ou palatais: [i, е, ε];
posteriores ou velares:[ɔ, ο, u] centrais: [а, ɐ] ii. o grau de abertura (timbre2), podendo ser
fechadas: [i, ɨ, u]; médias:[е, ɐ, ο] e abertas: [ε, а, ɔ]; iii. o papel das cavidades bucal e nasal,
que tem a ver com a posição do véu palatino durante a passagem da corrente expiratória: orais:
[i, е, ε, ɨ, a, ɐ,ɔ, ο, u] e nasais: [ĩ, ẽ, ɐ̃, õ, ũ ]; iv. intensidade, de base mais acústica do que
articulatória, tem a ver com a qualidade física da vogal, dependendo da força expiratória, a
amplitude da vibração das cordas vocálicas. Daqui resultam as vogais tónicas (acentuadas),
aquelas sobre as quais recai o acento tónico, formando as sílabas pronunciadas com maior
intensidade, e as átonas (não acentuadas), sem acento tónico. A posição do acento (de
intensidade) na palavra será determinante na classificação das vogais como sendo tónicas ou
átonas. É assim que surge, por exemplo, a vogal [ɨ], fechada e central, que só ocorre no PE.
As vogais do português podem ainda ser classificadas de acordo com dois parâmetros: a
projecção dos lábios e o movimento de recuo ou avanço da raiz da língua. Quanto ao primeiro
parâmetro, as vogais podem apresentar os seguintes traços: i. arredondado [u, o, ɔ]; e iii. [i, e,
ɨ, ε, ɐ, a]; e em relação ao segundo parâmetro, as vogais podem ser: i. recuado [ɨ, u, ɐ, a, u, o,
ɔ]; e ii. não recuado [i, e, ε].
O quadro seguinte procura sintetizar o essencial desta descrição, com destaque para os critérios
de grau de abertura (vertical) e ponto de articulação (horizontal):
Sistema vocálico do português (vogais orais)

Anteriores Centrais Posteriores


Não arredondado Arredondado
Fechadas i ɨ u
Médias e  ɐ o
Abertas  ε a ɔ
Não recuado Recuado

2
Timbre é a “qualidade acústica que resulta de uma composição do tom fundamental com os harmónicos”
(Cunha e Cintra, 1999 [1984]: 35). Esta característica está relacionada com a maior ou menor elevação da
língua no momento da articulação. Em Mateus at al 2003, considera-se que, em função da altura da elevação
da língua, as vogais podem ser: baixas ([ε, a, ō]), médias ([e, α, o] ), altas ([i, ə, u]).
Sistema vocálico do português (vogais nasais)

Anteriores Centrais Posteriores


Não arredondado Arredondado
Fechadas ĩ ũ
Médias ẽ  ɐ̃ õ
Abertas  
Não recuado Recuado
Na variedade do Português Europeu (padrão), existem apenas cinco vogais nasais (fechadas e
médias), restringindo a ocorrência das vogais abertas e a fechada central com timbre nasal.

Classificação individual das vogais:

[i] – vogal anterior/palatal fechada e oral [não arredondado e não recuado]: vida
[е] – vogal anterior/palatal média e oral [não arredondado e não recuado]: belo
[ε] – vogal anterior/palatal aberta e oral [não arredondado e não recuado]: pé
[ɨ] – vogal central fechada e oral [não arredondado e recuado]: pedinte
[a] – vogal central aberta e oral [não arredondado e recuado]: pá
[ɐ] – vogal central média e oral [não arredondado e recuado]: cada
[ɔ] – vogal posterior/velar aberta e oral [arredondado e recuado]: pó
[ο] – vogal posterior/velar média e oral [arredondado e recuado]: bolo
[u] – vogal posterior/velar fechada e oral [arredondado e recuado]: fumo
[ĩ] – vogal anterior/palatal fechada e nasal [não arredondado e não recuado]: sim
[ẽ] – vogal anterior/palatal média e nasal [não arredondado e não recuado]: lenço
[ɐ̃] – vogal central média e nasal [não arredondado e recuado]: lã
[õ] – vogal posterior/velar média e nasal [arredondado e recuado]: ponto
[ũ ] – vogal posterior/velar fechada e nasal [arredondado e recuado]: fundo

III. Semivogais ou glides3

As semivogais têm as características articulatórias das vogais, mas uma duração menor, não
podendo constituir núcleo de sílaba, ocorrendo sempre junto de uma vogal com a qual formam
ditongos4. Som “que está a meio caminho físico entre a produção de uma vogal e a de uma
consoante” (Barbosa, 1994: 56). Distinguem-se também das vogais por não serem acentuadas
nem poderem constituir o núcleo da sílaba, ao contrário daquelas. Em português só existem

3
Glide, designação adoptada do termo inglês glide, que significa “som de transição”. Uns atribuem o
género masculino ao vocábulo “o glide” (cf. Andrade, 1992), outros é feminino, “a glide” (cf. Mateus,
1982).
4
Os ditongos podem ser crescentes (falso ditongo = G + V: diário [diárju]). Neste caso, as semi-vogais
podem chamar-se também semi-consoantes (cf. Mateus 1982); ou decrescentes (verdadeiros ditongos = V
+ G: cai [kaj]). Para mais detalhes sobre a descrição dos ditongos em português, ver Cunha e Cintra (1984;
e edições seguintes), no capítulo sobre a descrição dos sons.
duas semivogais/glides orais e duas nasais, tendo as mesmas características que as suas vogais
correspondentes:

Semivogais/glides do português

Palatais Centrais Velares

Orais j w

Nasais ȷ̃ w᷉

Exemplos:

[j] pai [ȷ ̃ ] põe

[w] pau [w᷉] pão

ACTIVIDADES

I. Nos exercícios A e B, ligue os sons, à esquerda, aos seus traços correspeondentes, à direita,
(segue o exemplo da descrição de [ʒ]):
Som A. Modo de articulação B. Modo de articulação
[m] fricativa velar
[v] oclusiva uvular
[l] nasal palatal
[k] fricativa labiodental
[R] oclusiva bilabial
[t] lateral dental
[ʒ] vibrante alveolar

II. Primeiro, represente foneticamente os sons sublinhados nas palavras seguintes e, depois,
classifique-os de acordo com os critérios fonético-artiulatórios tradicionais:
a) palhaço; b) ondulante; d) virtuoso; e) montar
III. Represente foneticamente todos os sons das seguintes:
a) covid; b) pandemia; c) cobaia; d) virulência; e) vinheta
BIBLIOGRAFIA
Andrade, E. (1992). Temas de Fonologia. Lisboa: Edições Colibri.
Cunha, C. e Cintra, L. (1984). Nova gramática do Português contemporâneo. Lisboa: Editora Sá da Costa.
Duarte, I. (2000). Língua Portuguesa. Instrumento de análise. Lisboa: Universidade Aberta.
Faria, I. H. (1996). Introdução à Linguística geral e portuguesa. Lisboa: Caminho.
Mateus, M. H. M. (1975). Aspectos da Fonologia Portuguesa. Lisboa: Centro de Estudos Filológicos.
Mateus, M. H. M. (1982). Fonética, Fonologia e Morfologia do Português. Lisboa: Unoversidade Aberta.
Mateus, M. H. M. (2003). Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho.
Morais, J. B. (1994). Introdução ao estudo da Morfologia e Fonologia do Português. Coimbra: Almedina.

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