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PÍTULO 12

Expressão tectônica
VITTORIO GREGOTTI . O EXERCÍCIO DO DETALHE
O in te re s s e p e la te c tô n ic a a p ro x im a te o ria s e estilos divergentes na crítica
p ó s -m o d ern a . D e m e tri P o rp h yrio s , por e x e m p lo , d e fe n d e a tectônica (cap.1)
o p ro m e te n d o "c o n s tru ir p a u la tin a m e n te um a ontologia da construção |...] um
m
o
discurso te c tô n ic o q u e , a lé m d e tratar da pragm ática do abrigo, tam bém repre-
sente sua própria te c tô n ic a c o m o m ito " .
Porphyrios d e fe n d e e s p e c ific a m e n te a transform ação m im ética da arquite­
tura clássica e a m itificação da construção vernacular
Um in te re ss e a n á lo g o p e lo f a z e r p o d e ser e n co n tra d o e m trabalhos pós-m oder-
nos muito d iverso s, c o m o os d e T a d a o A n d o (cap 10) e Juhani Pallasmaa (cap. 9),
Morphosis e Frank Is ra e l, S te v e n H oll e M a rio B otta. A im portância atual do fazer
baseia-se na ideia de q u e a a m p lific a ç ã o da c o n stru ç ão pode ser uma fonte de sig­
nificado. T ra ta -s e d e um re fle x o do in te re s s e fe n o m e n o ló g ic o pela "coisidade” da
arquitetura e e m sua c a p a c id a d e de reu n ir (cap. 9). Para esses arquitetos, a tectônica
e o detalhe s ig n ifica tivo c o n s titu e m u m a crítica tanto às fórm ulas convencionais do
modernismo o rto d o x o c o m o à s u p e rfic ia lid a d e do historicism o pós-m oderno. A cons­
trução, com o pro ce ss o de " fo rm a ç ã o " , d e s e n v o lv e -s e às vezes com o uma narrativa
material com o, por e x e m p lo , nos te lh a d o s p a rcia lm e n te revestidos do Pavilhão Pine-
cote de Faye J o n e s . D e ix a r a e s tru tu ra a m o stra, que um a parte da arquitetura m o­
derna e pós-m o d ern a ass o cia à a u te n tic id a d e , coincide com o "desvelam ento" que
Martin H eid eg g er co n sid e ra um a to p o é tic o
Para Vittorio G regotti, a arquitetura (d ifere n tem e n te da construção] está nos detalhes,
e ele lamenta que os a rq u ite to s c o n te m p o râ n e o s pareçam ter se esquecido disso. O
detalhamento revela as propriedades dos m ateriais pela aplicação das leis da construção
e torna inteligíveis as decisões do projeto O detalhe tam bém coloca em questão o pro­
blema da hierarquia, porque sugere um a possível relação entre a parte e o todo.
Do te m p o dos e x ím io s d e ta lh e s de C ario Scarpa e Franco Albini para cá, os ar­
quitetos p e rd e ram a c a p a c id a d e d e usar o d e ta lh e para dar sentido a mudanças es­
truturais na a rq u ite tu ra . G re g o tti a firm a q u e a citação estilística historicista e o sim ­
bolismo visual popu lista o c u p a m hoje o lugar do detalh e, o que evidencia a "crise da
linguagem a rq u ite tô n ic a ". Ele m e n c io n a o classicism o para constatar que os detalhes
podem o ferecer o o rn a m e n to sig n ifica tivo que a tu a lm e n te é procurado erroneam ente
nopastiche. Se, por essa razão, P orp hyrios se e m p en h a num a autêntica revitalização
do clássico, os p ro jeto s d e G re g o tti são neorracionalistas e se apoiam nas tradições
do moderno e do clássico (cap. 7).
Gregotti afirm a que a natureza autorreflexiva da arquitetura exige que se repense o
detalhe como um problem a essencial da arquitetura. Este ensaio, assim como o que vem
em seguida, de M a rco Frascari, e o artigo "P erspectivas para um regionalismo critico",
de Kenneth Fram pton (cap. 11), todos publicados entre 1983 e 1984, refletem e incen-

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tivam um "retorno tectônico às coisas". A expressão tectônica da arquitetura pode
enriquecer a experiência sensorial e intelectual da construção.

1. Demetri Porphyrios, "Classicism is not a Style’\ A rch ite ctural D esign: C lassicism is not a Style
5-6, 1982, p. 56.

VITTORIO GREGOTTI

0 exercício do detalhe
O detalhe é seguramente um dos elementos mais reveladores da transformação da
linguagem da arquitetura. Já manifestamos muitas vezes a opinião sobre como essa
linguagem perdeu nos últimos anos sua capacidade de dar sentido às mudanças es­
truturais no campo da arquitetura. Sua evidente redundância e obsessão pelo novo e
pelo diferente esvaziou todas as diferenças significativas. No entanto, as construções
que fazemos ganham uma forma, e esta adquire automaticamente uma capacidade de
comunicação com a linguagem.
Por essa razão, é importante examinar a sua constituição, da qual o detalhe - para
citar a famosa frase de August Perret‘7 / n y a pas de détail dans la construction” [Não
há detalhe na construção] - certamente não é só uma questão de detalhe. É claro que
o detalhamento não depende necessariamente de um princípio diretor global. Mesmo
que exista uma relação intrínseca com esse princípio, o exercício do detalhamento
não é uma simples recusa de decisões gerais, mas lhes dá forma, representa-as de
modo reconhecível e ordenado em suas várias partes.
Nas décadas de 1950 e 1960, o detalhe teve defensores de destaque na Itália, como
Franco Albini, Cario Scarpa e Mario Ridolfi, para os quais a análise e a visibilidade
dos materiais, propiciadas pelas leis da construção e formação do objeto arquitetônico,
eram o principal apoio do uso do detalhamento. Não é difícil ver que o detalhe elo­
quente daquele período foi substituído por outro de reduzido conteúdo expressivo, ou
mesmo pelo retorno ao princípio diretor.
Não se trata propriamente de uma eliminação do detalhe, mas de uma mudança
no tratamento de sua relação hierárquica com o todo, que se tornou às vezes muito
mais sofisticada e complexa. A ligação entre os pavimentos, a relação dos materiais c
seus diferentes usos práticos e simbólicos tornaram-se mais explícitos e, pela primeira
vez, adquiriram expressividade. Isso teve um duplo significado. Por um lado, repre-
sentou uma negação do valor da construção como assunto relevante para a expressão
arquitetônica, o que concorreu para a progressiva abstração do detalhe e a perda de in­
teresse pelo manejo dos materiais seguindo um modelo de modernidade que remonta
à arquitetura do fim do século x ix e do Iluminismo. Por outro lado, houve uma dis­
cussão, não tanto sobre a possível eloquência do detalhe, mas sobre a especificidade de
seu valor expressivo e de sua composição técnica, em face de uma crise da linguagem
arquitetônica como linguagem de objetos, e tendo em vista uma reavaliação da ideia
de relação e de modificação, do lugar físico e histórico e do contexto da especificidade
e da diferença. Em ambos os casos, a afasia expressiva resultante, embora com diferen­
tes significados, foi rapidamente substituída por um novo interesse pela decoração, ou
pelo ornato (para usar a distinção de [ Ernesto N. ] Rogers entre esses dois termos), que
se manifestou na peculiar adesão à citação estilística, em frequente transgressão das
regras metodológicas da arquitetura contemporânea.
Disso resultaram reconciliações apressadas com a tradição e a história, falsas so­
luções derivadas de processos comunicativos, a busca de um consenso no nível mais
baixo da cultura de massa e, o que é pior para a arquitetura, a perda da prática, da
tradição e do saber acumulados. Os arquitetos se deixaram levar pela ilusão de que
a citação é um substituto eficiente para o detalhe como um sistema de articulação na
linguagem arquitetônica, e de que uma “concepção grandiosa” e global pode contro­
lar e automaticamente impregnar cada aspecto do projeto e de sua execução, exceto a
própria abstenção do detalhe, o que discutivelmente acentuou a falta de influência das
técnicas construtivas como um fator da expressão. A consequência dessa ideia para a
obra construída muitas vezes é a desagradável sensação de uma maquete ampliada, de
uma falta de articulação das partes em diíerentes escalas: paredes que parecem feitas
de papelão recortado, janelas e portas inacabadas; em suma, um relaxamento geral
da tensão entre o desenho e o editício construído. É falso pensar que a cultura da in­
dústria ou da construção (culturas atualmente distanciadas do projeto) pode resolver
o problema do detalhe; isso até pode ser conveniente ou económico para o arquiteto,
mas leva a uma perda sem precedentes do prestígio da arquitetura. Não surpreende
que na arquitetura clássica, ao contrário, “o projeto geral, bem-medido e bem-propor-
cionado” (isto é, o croqui do projeto, o projeto desenvolvido em escala e em maquete,
segundo [Antonio Averlino] Filarete) contivesse pouquíssimas indicações de detalhes:
o detalhe na construção e o detalhe na decoração exprimiam uma herança cultural
comum ao projeto e à construção, o que criava uma unidade de intenções que hoje é
completamente desconhecida.
Quanto a esse aspecto, sabe-se que a dissociação entre decoração e detalhe
foi praticada durante muitos séculos, às vezes com grande sucesso. No passado, a
dissociação exprimia uma discussão cont ínua acerca das regras clássicas “sobre o
ornamento na arquitetura” , que tinha o objetivo de compreendê-lo e rearticulá-lo.

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Mas, de acordo com certas teorias, com o a de [Leon B attista] A lberti, a noção de
ornamento era muito mais próxim a da form a expressiva do que a do enfeite rebus­
cado, e a memória dos antigos vínculos entre o rn am en to e co n stru ção sem pre exis­
tiu para atestar a integridade da arquitetura. Até o adm irável uso dos fragm entos
clássicos como detalhes arquitetônicos exem plares na arq u itetu ra m edieval era um
testemunho da perfeição daquela integridade. A tecnologia e a cu ltu ra do design
(no sentido produtivo, segundo a lógica da indú stria) in u n d a ra m “indevidam ente”
o campo da arquitetura. Isso se deve à fraqueza de nossa disciplina e à sua incapa­
cidade de reintegrar aos horizontes da arquitetura todas essas técnicas, que certa­
mente formam a base indestrutível do processo atual de co n stru ção e, portanto, do
exercício do detalhamento.

(“The Exercise of Detailing” foi extraído de Casabella n. 492, jun. 1983, p. 11. Cortesia do
autor e da editora.)

MARCO FRASCARI . 0 DETALHE NARRATIVO

[
Como Vittorio Gregotti, 0 arquiteto Marco Frascari situa a origem do significado em
arquitetura na construção, especialm ente nas "junções form ais e reais" entre ma­
teriais ou espaços. Nesse influente ensaio, Frascari privilegia a junção - 0 detalhe
apresentação

original - como geradora da construção e, portanto, do sentido. O detalhe tectó-


nico é, portanto, 0 lócus da inovação e da invenção. Frascari define a arquitetura
como 0 resultado do projeto de detalhes, e de sua resolução e substituição

Apesar de funcionar de modo pragm ático, o d etalh e "fértil" tam bém pode
ser visto como uma expressão estética da estrutura e do uso da edificação. A leitura
semiológica de Frascari afirma que o detalhe é a unidade m ínim a de significação na
produção de sentido em arquitetura. Assim com o Vittorio G regotti fez em "O exercício
do detalhe" (neste capítulo), Frascari tom a com o exem plo a obra de Cario Scarpa, por­
que "cada detalhe conta a história de sua feitura, localização e d im en sionam ento". A
noção de narrativa permeia todo o artigo, por exem plo, na provocadora ideia de que as
junções são pretextos para gerar novos textos. E isso é possível, alega Frascari, porque
0 detalhe ou junção pode impor sua ordem ao todo. Assim , a tectónica inclui uma série
interminável de ideias arquitetónicas.
A '* téchne do logos", que se pode traduzir como a produção do discurso, é o que Fras­
cari denomina de construing Como Martin Heidegger, Frascari se interessa pelas cone­
xões etimológicas entre as palavras, nesse caso, entre constructing (edificar) e construing
/conferir ordem e inteligibilidade ao mundo, isto é, construir o significado).
Na análise de Heidegger, o construir (bauen) está ligado à edificação, ao habitar e
ao cultivar ou cuidar. Heidegger afirma ainda que habitar é o objetivo da vida e depende
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do construir. A conexão linguística com a fenom enologia empresta credibilidade ao nexo
estabelecido por Frascari entre c o n s tru c tin g (detalhes e significado) e construing m ea-
ning [construir o significado). U m a rápida digressão pela psicologia da percepção
contribui para esclarecer seu argum ento de que o detalhe é a estrutura perceptual I
da apreensão da arquitetura dotada de sentido. A ênfase em devolver a arquitetura I
às suas origens na tectônica, vista com o geradora do significado, leva o ensaio de I
Frascari a percorrer vários tem as pós-m odernos de grande relevância. ■!

MARCO FRASCARI

0 detalhe
A comunidade da arquitetura tradicionalmente atribui a máxima “ Deus está nos deta­
lhes” a Mies van der Rohe.1 A versão alemã do axioma, Der liebe Gott síeckí in Deínily
que pode ter sido a fonte original da máxima de Mies, foi usada por Aby Warburg
para falar da base iconográfica da pesquisa na história da arte. A versão francesa é
atribuída a Gustave Flaubert e, nesse caso, sua referência é um modo de produção
literária.2 O denominador comum nesses diferentes usos e formas sugere que o deta­
lhe é uma expressão do processo de significação, isto é, a vinculação de significados a
objetos feitos pelo homem. Assim, os detalhes são os loci de uma ordem do saber em
que a mente descobre sua própria inteligibilidade, isto é, seu logos.'
0 objetivo deste ensaio é demonstrar a (unção dos detalhes como geradores, uma
função tradicionalmente atribuída à planta, e mostrar que a tecnologia, com seus dois
aspectos d e “ téch n e do lo g o s " e de “ logos da i c c h n e é a base da compreensão do pa­
pel dos detalhes. Em outras palavras, o aspecto de construction (edificação) e o aspecto
de construing (atribuição de significado) da arquitetura manifestam-se igualmente no
detalhe. Difícil de dimensionar em uma definição tradicional, o detalhe arquitetônico
pode ser definido como a união da construção material [construction], resultado do
logosda té c h n e , com a construção do significado [construing], fruto da (cchne do logo*.
Os detalhes são muito mais que elementos secundários; pode-se dizer que são as
unidades mínimas de significação na produção arquitetônica de significados. Essas uni­
dades foram escolhidas e separadas em células espaciais ou em elementos compositi-
vos, módulos ou medidas, na alternância de vazios e cheios ou na relação entre dentro
efora.5A fecundidade da sugestão de que o detalhe é a unidade mínima de produção se
deve ao duplo papel da tecnologia, que unifica o tangível e o intangível na arquitetura.
0 francês Jean Labatut, formado na Beaux-Arts francesa e professor em Princeton na

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área de arquitetura, fez a seguinte observação: “Quaisquer que sejam os espaços aéreos,
as superfícies e as dimensões envolvidas, o estudo preciso e a execução esmerada dos
detalhes comprovam a grandeza da arquitetura.‘O detalhe conta a história” /’
As possibilidades de inovação e invenção estão nos detalhes, e é com eles que os
arquitetos harmonizam o ambiente mais inusitado, difícil e desordenado criado pela
cultura.7A ideia de que a arquitetura é o resultado da solução, substituição e desenho
de detalhes sempre foi uma concepção latente no pensamento dos arquitetos. Ou seja,
há uma certa verdade no chavão clássico da crítica à arquitetura que diz: “ Isso poderia
ser uma excelente arquitetura se os detalhes tivessem sido mais bem trabalhados” . A
aplicação cuidadosa dos detalhes é a maneira mais importante de evitar erros de cons­
trução nas duas dimensões da atividade profissional do arquiteto: a ética e a estética.
De fato, a arte do detalhamento está na união de materiais, elementos, componentes e
partes de uma construção de modo funcional e estético. A complexidade dessa arte de
juntar elementos é tão grande que um detalhe que funciona bem num edifício pode
dar errado noutro por razões muito sutis.8
A discussão do papel do detalhe no processo de significação na arquitetura se desenvol­
verá em duas partes e em dois domínios distintos mas interligados: o teórico e o empírico.
A primeira parte procura entender o conceito de detalhe em diferentes níveis da
produção arquitetônica. O resultado da pesquisa é a identificação conceituai do deta­
lhe ao ato de juntar e o reconhecimento de que os detalhes em si podem impor uma
ordem ao todo a partir de sua ordem própria. Consequentemente, a compreensão e a
execução dos detalhes constituem o processo básico por meio do qual devem desen­
volver-se as teorias e as práticas arquitetônicas.
A segunda parte analisa a arquitetura de Cario Scarpa (1906-1979), arquiteto ve-
neziano. Louis Kahn comentou que na arquitetura de Scarpa “o detalhe é a adoração
da natureza” . A produção arquitetônica de Scarpa, em que o culto à execução de jun­
ções é quase obsessivo, nos permitirá fazer uma interpretação empírica do detalhe no
processo de significação do ponto de vista de um modo definido culturalmente de
construction [edificação] e de um construing. Nas obras de Scarpa, as relações entre 0
todo e as partes e as relações entre o artífice e o desenhista permitem fundamentar di­
retamente in corpore vili a identidade dos processos de percepção e de produção, isto
é, a união da edificação com a construção de sentido na feitura e no uso dos detalhes.
Os dicionários definem “detalhe” como uma parte pequena com relação a um
todo maior. Na arquitetura essa definição é contraditória, se não desprovida de sen­
tido. Uma coluna é tanto um detalhe como um todo maior, e um templo redondo
clássico, uma totalidade, às vezes é um detalhe quando é uma lanterna no topo de
um domo. Na literatura arquitetónica, colunas e capitéis são detalhes clássicos, mas
também o são os piani nobili, os pórticos e as pérgulas. O problema da escala e da
dimensão nessas classificações e a relação entre edículas e edifícios tornam as defini-
ções de dicionário inúteis na arquitetura. Pode-se afirmar, porém, que todo elemento
arquitetônico definido com o detalhe sem pre é uma junção. Os detalhes às vezes são
“juntas materiais” , com o no caso de um capitel, que é a ligação entre o fuste de uma
coluna e a arquitrave, às vezes são “juntas form ais” , como um pórtico que é a ligação
entre um espaço interno e um espaço externo. Assim, os detalhes são um resultado
direto da diversidade de funções que existe na arquitetura. São as expressões mediatas
ou imediatas da estrutura e do uso das edificações.g
A origem etim ológica da palavra “detalhe” não ajuda a entender seu uso na ar­
quitetura.10 A palavra surgiu na literatura arquitetónica nos textos teóricos france­
ses do século x v iii e a partir da França o termo se difundiu em toda a Europa. Essa
difusão beneficiou-se do acoplam ento do termo ao conceito de “estilo” e da forte
influência da crítica e da teoria literária entre os arquitetos neoclássicos franceses.
Nicolas Boileau-Despréaux, na prim eira parte de seu livro, VArt Poétique, de 1670,
condenando o uso de detalhes supérfluos em poemas, fez uma analogia entre um
palácio e um poema, am bos sobrecarregados de detalhes.11 No século x vn i, essa ana­
logia já era bastante conhecida, e Giovanni Battista Piranesi, imputando-a a Montes-
quieu, criticou-a como trivial ao defender sua teoria arquitetónica das construções
altamente detalhadas.12
Foram os teóricos franceses da architccturc parlante que consolidaram formal­
mente 0 papel do detalhe na produção arquitetónica. Na analogia da “arquitetura fa­
lante”, os detalhes arquiteturais foram interpretados como palavras que formam uma
frase.E,assim como a escolha das palavras e do estilo define a natureza de uma frase, a
escolha dos detalhes e do estilo define o caráter de um edifício. Essa poderosa função
do detalhe também foi assinalada por John Soane em uma de suas conferências sobre
arquitetura:“ Nunca será demais a atenção dedicada à produção do caráter peculiar de
cada construção, não só em seus aspectos gerais, mas também nos pequenos detalhes;
até um friso, por diminuto que seja, contribui para aumentar ou reduzir o caráter do
conjunto de que faz parte” .13
Na tradição da Beaux-Arts, a definição do papel do detalhe como originador do
caráter das edificações motivou a criação de um processo gráfico peculiar de estudá-lo,
a analytique. Nessa representação gráfica do projeto ou da observação de um edifício
os detalhes têm um papel predominante. Eles são dispostos em diferentes escalas na
tentativa de discernir o diálogo entre as partes na construção do texto do edifício. As
vezes,0 edifício aparece em sua totalidade no desenho, mas geralmente é representado
numa escala minúscula, de modo que mais parece um detalhe entre detalhes. O mé­
todo de representação gráfica e composição usado por Piranesi em suas gravuras para
estudara M a g n ific e n z a da arquitetura romana é a origem da aiuilytiquc e de seu papel
na construção de sentido da arquitetura. As gravuras são uma interpretação gráfica,
fortemente influenciada por Vico, da visão de Cario l.odolfi do ambiente construído

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como um somatório de detalhes inadequados que serão substituídos por outros mais
apropriados.14 Outra forma de analytique, que ilustra a arquitetura italiana, podia ser
vista no verso das notas da lira italiana.
É importante notar que a analytique, como análise gráfica de detalhes, desenvolveu-
se numa época em que os arquitetos não tinham de preparar desenhos para especificar
a construção dos detalhes. Os desenhos quase não continham indicações de detalhes
e dimensões. O arquiteto ficava completamente dependente do trabalho dos seus arte­
sãos. Os artesãos-construtores não precisavam de desenhos para mostrar detalhes cuja
execução era de conhecimento geral. A construção dos detalhes era dividida entre os
vários oficiais que possuíam os conhecimentos necessários para executá-los. Os mes­
mos artesãos que forneceram informações para a Encyclopédie de [Denis] Diderot e
[Jean le Rond] D’Alembert eram perfeitamente aptos para desenhar com a exatidão
do artista, e a analytique era tão somente uma fonte para entender o papel organizador
de um único detalhe no conjunto da composição.15
Numa sociedade movida por razões de ordem predominantemente econômica,
a produção de detalhes, que se iniciara antes do desenvolvimento da sociedade in­
dustrial e fora motivada por outras necessidades culturais, tornou-se problemática.
Não sendo mais considerados repositórios culturais e sociais duradouros, os edifícios
passaram a ser vistos como investimentos econômicos e deliberadamente planeja­
dos para ter uma vida útil curta. Duas reações extremas se desenvolveram a partir da
mudança de escopo das edificações. Uma delas foi que as várias profissões ligadas à
construção não mais inferiam a execução dos detalhes a partir dos desenhos do pro­
jeto. Os detalhes eram estudados e resolvidos na prancheta. A arte do desenhista foi
substituída pela habilidade do trabalhador manual, e o desenvolvimento de “detalhes
reais” foi substituído por procedimentos virtuais. Desse ponto de vista, o detalhe não
fazia mais parte do edifício; não era mais visto como uma junção, mas como um dese­
nho de execução. Um Glossário Americano de Construção define a palavra “detalhe”
como “o esboço em escala grande de qualquer parte de um projeto arquitetônico” .16
Um glossário francês foi ainda mais preciso: “ Detalhe: Especificação ou descrição do
trabalho a ser realizado na execução de uma construção” .17 De acordo com essa de­
finição, “detalhes” são meios verbais e gráficos de controlar o trabalho de operários
sem vocação profissional específica e despreparados para executar suas tarefas, até
mesmo, talvez, desonestos financeiramente.
A segunda reação à mudança do papel do detalhe pode ser exemplificada pela
arquitetura produzida pelo movimento Arts and C rafts.18 Esse movimento via no
detalhe um instrumento de redenção dos trabalhadores. A perícia e os conhecimen­
tos aplicados à execução dos detalhes foram devolvidos aos trabalhadores. A perícia
profissional era o parâmetro exclusivo para a feitura dos detalhes, que eram consi­
derados por si mesmos como um aperfeiçoamento da tradição construtiva. O co-
nhecimento dos detalhes e das especialidades correlatas era indispensável para que
o arquiteto exercesse sua profissão, já que lhe competia escolher os trabalhadores
certos para os detalhes certos.
Essa dualidade na produção física do detalhe se repetiu na concepção intelectual
do detalhe. Recorrendo a uma analogia conceituai, pode-se definir a arquitetura como
um sistema em que existe uma “arquitetura total” , o enredo, e uma arquitetura dos
detalhes, a narrativa. A arquitetura dos detalhes baseia-se

no constante processo de inserir no sistema desenhos de elementos extrassistemáticos


e de expulsar elementos sistemáticos para a área não sistêmica [...] A pedra que os
construtores num sistema consolidado e estabilizado rejeitam, porque acham supér­
flua e desnecessária, acaba se tornando a base do sistema subsequente.19

Vista por esse ângulo, a arquitetura é a arte da escolha apropriada dos detalhes para imaginar
ahistória. Um enredo com detalhes apropriados desenvolve-se numa boa “narrativa”.
A arquitetura como a arte do apropriado é o tema da teoria de Leon Battista Al-
berti. Ele pensa a arquitetura como a arte da escolha dos detalhes apropriados, cujo
resultado é a beleza, que é, em si, um objetivo importante. Alberti define a beleza como
Yconcinnitas’ [harmonia] de todos os detalhes na união a que pertencem” ; em outras
palavras, a beleza é a união habilidosa de partes segundo uma norma de que nada pode
ser acrescentado, subtraído ou modificado sem prejuízo para o conjunto. Quase to­
dos interpretaram esse princípio como significando que um edifício deve ser um todo
completo e acabado, uma arquitetura total. No entanto, Alberti não aplica o princípio
ao edifício concreto, mas ao edifício criado no pensamento.20 A junção, isto é, o deta­
lhe, é o lugar de encontro da construção ideada com a construção real. Um exemplo
perfeito dessa união entre função mental e representação física é a fachada do Palazzo
Rucellai, projeto de Alberti, em Florença. Apesar de a fachada estar incompleta - e a in-
completude é evidente - , os detalhes estão completos e nada pode ser acrescentado ou
subtraído que não prejudique a harmonia do todo. Os sulcos das junções das placas de
pedra que compõem o grosso revestimento de schiacciato florentino (representando a
estrutura de colunas e vigas das três ordens clássicas superpostas em relação com as ja­
nelas arqueadas e paredes de fechamento) solucionam o problema matemático das re­
lações entre as partes da fachada. As junções nem sempre são verdadeiras e o formato
das pedras não é tão regular quanto parece; sulcos falsos foram cavados nas pedras
para completar a arquitetura do detalhe e ao mesmo tempo servir-lhe de prova.
A busca da “ Beleza” para Alberti é a procura de uma relação precisa entre o deta­
lhe e o significado que lhe é dado. A beleza é o resultado do processo de significação e
zconcmnitas é o processo de obtê-la. A concinnitas é a correspondência de três requi­
sitos básicos: i) numeruSy 2) f in itio , 3) c o llo c a tio .2I

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Numerus é um sistema de cálculo. “A técnica de calcular faz parte da técnica de
construir casas.”22 Portanto, os números são instrumentos para dar significado. A
arquitetura contém elementos e para construir é necessário estabelecer correlações
numéricas entre eles. Em um trifório, três arcos são articulados a quatro colunas para
formar uma janela ou portal serliano. A prova está nos detalhes, nas molduras, capi­
téis, bases e na chave de arco. Para Alberti, “a numerologia” é uma técnica para a se­
leção de figuras e, por conseguinte, mostra que os detalhes se relacionam com formas
memoráveis, como o corpo humano ou as figuras cosmológicas.23
Finitio é um procedimento matemático para a definição da dimensão das direções
em que está articulado o espaço de objetos arquitetônicos. As arestas dos corpos tridi­
mensionais da arquitetura são definidas por um sistema de proporções. Proporção ou
“analogia” é o uso de relações numa mensuração.24 Um sistema analógico é um con­
junto de normas para a criação e a combinação de detalhes. Uma medida básica, ou
módulo, é a norma a partir da qual derivam todos os comprimentos, larguras e alturas,
e cada detalhe é medido de acordo com essa norma. Portanto, todas as partes de um
edifício deverão manter uma relação inteligível e direta entre si. Essa relação perma­
nece estável mesmo quando sua forma ainda não tem uma expressão verbalizada.
Collocatio é a composição por lugar, isto é, a colocação funcional dos detalhes. A
função, nesse caso, não se limita apenas às dimensões práticas e estruturais, mas inclui
também dimensões históricas e estéticas.25 Portanto, a colocação dos detalhes tem es­
treita relação com os outros dois requisitos: os números e as analogias. Desse modo, o
detalhe não é definido pela escala, mas a escala é o instrumento para controlá-lo.
A construção geométrica e matemática do detalhe arquitetônico não é de maneira
alguma uma questão técnica e deveria ser entendida como concernente ao problema
filosófico dos fundamentos da arquitetura ou da geometria; em última instância, é um
problema que pertence ao âmbito das teorias da percepção.
Os processos de projetação, ordenação de materiais e construção de uma casa
são técnicas da mesma forma que a geometria é uma técnica com a qual o arquiteto, o
construtor e o usuário de uma casa transformam o signo apropriado a fim de prever a
ocorrência de determinados eventos. A técnica da geometria engendra uma estrutura
que permite descrever o mundo construído, proporciona um arcabouço conceituai
no qual o arquiteto, o construtor e o usuário podem encaixar sua experiência empí­
rica. A geometria mostra como derivar uma forma de outra por transformação.
Dessa maneira, a geometria não enuncia fatos, mas proporciona as formas com as
quais os fatos são enunciados. A geometria oferece um quadro conceituai ou linguís­
tico para a construção física e a construção intelectual de um edifício. As estruturas
geométricas concretizadas nos detalhes arquitetônicos não enunciam fatos, mas for­
necem uma estrutura para enunciar fatos dentro de uma determinada “escala” . Elas
proveem o modo de fazer comparações que estabelecem relações expressivas entre os

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detalhes arquitetônicos apreendidos pela visão. A noção de detalhes apreendidos indi­
vidualmente pode ser ilustrada pelo fenôm eno da “ visão indireta” , que Hermann von
Helmholtz explica da seguinte m aneira:

O olho é um instrumento óptico de amplíssimo campo de visão, mas apenas uma


pequena parte bem delimitada desse campo de visão produz imagens claras. O campo
inteiro corresponde a um desenho em que as partes mais importantes do todo são
cuidadosamente traçadas, mas o entorno é apenas esboçado, e de forma tanto mais
rudimentar quanto mais distante está do objeto principal. No entanto, graças à mobi­
lidade do olho, é possível examinar minuciosamente, um atrás do outro, cada ponto
sucessivo do campo visual.26

A pesquisa de Helmholtz sobre a percepção visual convenceu-o de que os estímulos


sensoriais apenas indicam os sinais da presença da arquitetura, mas não nos oferecem
um entendimento adequado dela. Esses sinais, isto é, os detalhes, adquirem um sig­
nificado em virtude do qual se tornam transmissores de conhecimento, que agem por
um longo processo de associação e com paração, e mediante um conjunto de relações
geométricas.27
As relações geométricas concretizadas nos detalhes de um ambiente construído
ou de um ambiente natural determ inam a compreensão do campo visual mais amplo.
A relação ou proposição geom étrica da base do pilar fasciculado do Alto Gótico ex­
pressa por si mesma cada aspecto da superestrutura imposta. Essas relações resultam
da transformação em pedra do segundo requisito da escolástica, o “arranjo de acordo
com um sistema de partes hom ólogas e partes de partes” .28 Assim, apesar de forma­
rem um todo invisível, os detalhes são percebidos e compreendidos individualmente.
Walter Benjamin define da seguinte maneira o problema da percepção dos deta­
lhes na arquitetura:

Os edifícios são apreendidos de duas maneiras: pelo uso e pela percepção, ou seja,
pelo tato e pela visão [...] A apreensão tátil se realiza não tanto pela atenção como pelo
hábito. No que diz respeito à arquitetura, o hábito determina em grande medida até
mesmo a recepção óptica.29

Trata-se de uma teoria em pírica que considera toda percepção do espaço como de­
pendente de convenções e que entende não só as qualidades, mas inclusive os detalhes
como nada mais que sinais, cujos significados são aprendidos pela experiência. Essas
convenções formam a base da arquitetura entendida como existência, forma e locali­
zação de objetos externos. Helmoltz denomina-as de percepções. '1’ As percepções são
ideias ou sinais de objetos que resultam de uma interpretação das sensações que se

545
realiza por meio de processos de inferência geométrica inconsciente. A colocação de
detalhes tem um papel fundamental nesses processos de inferência. As sensações visu­
ais guiadas por sensações táteis são as causas das proposições geométricas. Na arquite­
tura, tocar num corrimão, subir degraus ou caminhar no espaço entre dois muros, do­
brar uma esquina e reparar numa viga no teto resultam da coordenação de sensações
visuais e táteis. A localização desses detalhes dá origem às convenções que vinculam
um significado a uma percepção. A noção do espaço arquitetônico que é assim obtida
decorre da associação das imagens visuais dos detalhes pela visão indireta, com a rela­
ção geométrica materializada em formas, dimensões e localização, que é desenvolvida
pelo tato e pelo caminhar por entre os edifícios.
A arte do detalhe está presente em sua forma mais refinada e culta na obra de Cario
Scarpa. Uma boa maneira de começarmos a analisar o conceito de detalhe na arquite­
tura de Scarpa é citar as palavras de Louis Kahn:

Na obra de Cario Scarpa


Beleza
é a primeira impressão
Arte
a primeira palavra
depois o espanto
logo a percepção interior da Forma
o senso da totalidade de elementos inseparáveis.
O desenho consulta a Natureza
para dar existência aos elementos.
Uma obra de arte manifesta
a integridade da Forma entre a
sinfonia das formas selecionadas
para os elementos. Nos elementos
a junção inspira o ornamento, sua
celebração.
O detalhe é a adoração da Natureza.31

A “adoração da junção” na arquitetura de Scarpa é uma ilustração perfeita da concinni-


tas de Alberti. Cada detalhe conta a história de sua feitura, localização e dimensiona­
mento. A seleção dos detalhes adequados é consequência da escolha de papéis funcio­
nais. Os detalhes da arquitetura de Scarpa não resolvem apenas funções práticas, mas
também funções históricas, sociais e individuais.32
De modo geral, pode-se caracterizar a arquitetura de Scarpa como a combinação
dos princípios da arquitetura orgânica, na formulação de Frank Lloyd Wright, com
um experiente aproveitam ento da habilidade do artesão do Vêneto e uma mistura de
tecnologias m odernas e antigas. Contudo, essa definição ainda é insuficiente, porque,
se Scarpa tomou conhecim ento da arquitetura de Wright de modo passivo, pela ob­
servação de fotografias e desenhos, seu contato com o artesanato venetense era ativo e
prático, baseado no trabalho e no trato cotidiano com pedreiros, carpinteiros, vidrei-
ros e ferreiros de Veneza. O resultado é uma arquitetura moderna em que há bem mais
que espaços funcionais e estruturas racionais. A doutrina funcionalista está presente
na obra de Scarpa, mas a funcionalidade é mediada pela busca da representação e da
expressão no processo da execução. A arquitetura de Scarpa se rebela contra a pura
estrutura lógica e defende a união de res e verba, isto é, a união da representação com a
função. Esse princípio governa a mudança da ênfase da arquitetura de Scarpa da estru­
tura para a expressão. Em seus objetos arquitetónicos, a téchne do logos, a construção
do significado, é a maneira de produzir os sinais que são os detalhes. O logos da téchne,
a edificação [constructing], fruto da expressão dos artesãos-construtores do Vêneto, na
criação dos detalhes com o sinais. De fato, os edifícios de Scarpa revelam uma busca
permanente entre a forma real (construída) e a forma virtual (percebida). O constante
manejo das discrepâncias entre as formas reais e as formas virtuais é o seu método de
obter expressão. “ Em arquitetura’', disse Scarpa certa vez, “não existe a boa ideia. Só
existe expressão.” 33
Uma boa análise do papel do detalhe nos edifícios de Scarpa somente pode ser
realizada pela contínua com paração entre, por um lado, os desenhos e objetos cons­
truídos e, por outro, as referências históricas, práticas e formais que originaram cada
detalhe. É preciso, além disso, exam iná-los de dois pontos de vista. De um lado, en­
tendendo que o uso dos detalhes em Scarpa resulta da interface entre o projeto e
o trabalho dos artesãos no local da obra e a constante “ verificação sensorial” dos
detalhes durante a montagem do edifício. Scarpa inventou uma rotina cotidiana de
visitar o canteiro de obras durante a noite para inspecionar com uma lanterna a exe­
cução e a expressão dos detalhes. À luz do dia, seria impossível focar os detalhes sele­
tivamente. Com esse procedimento, o fenômeno da visão indireta se torna um fator
importante na tomada de decisões no processo de projeto. A lanterna funciona como
um análogo tanto do processo visual como do movimento do olho através do seu
campo perceptivo (focando apenas em um ponto enquanto o olhar percorre tudo
oque está ao redor). Outro arquiteto veneziano, Piranesi, usou a mesma técnica de
visitar o local, as obras que queria estudar e representar em suas gravuras sobre as
Antichità Romane. Para escolher a “expressão dos fragmentos” , isto é, dos detalhes,
Piranesi usava a luz de uma vela.31
De outro lado, os detalhes de Scarpa também são fruto de um jogo intelectual re­
alizado a partir dos “desenhos de trabalho” que são fruto da interação do projeto com
o trabalho do desenhista. O jogo consiste em equiparar a construção de uma represen­

547
tação e a construção de um edifício. A relação entre desenhos e edificações costuma
ser vista como uma representação cartesiana baseada na comparação visual de linhas.
Contudo, os desenhos de Scarpa mostram a verdadeira natureza dos desenhos arqui­
tetônicos, isto é, o fato de que são representações resultantes de construções. Eles são
uma interpretação de juízos perceptivos sobrepostos ao processo real de construção
física de um objeto arquitetônico. As linhas, as marcas no papel, são a transformação
de um sistema de representação para outro, a transformação de sinais adequados com
vista à predição de determinados eventos arquitetônicos. Em outras palavras, de um
lado estão os fenômenos da construção e da transformação pelos construtores; de ou­
tro lado estão os fenômenos da construção de significados e da transformação por
parte dos possíveis usuários. Em consequência disso, no mesmo desenho, estão pre­
sentes várias camadas de pensamento.
0 projeto é elaborado com a mesma técnica do desenho. O contínuo processo de
inferência em que se baseia o processo de projeto transforma-se numa sequência de mar­
cas no papel que são análogas aos processos de constructing e de construing. O pedaço de
papel escolhido para suportar o lento processo de construção de um projeto apresenta
seções verticais e horizontais simultâneas, bem como elevações do objeto projetado. Os
desenhos são cercados por vinhetas sem moldura, que analisam tridimensionalmente
qualquer junção do objeto, como se fizesse uma previsão do papel de cada detalhe na
criação do texto inteiro e na percepção dos detalhes pela “visão indireta” . Os desenhos
de Scarpa não definem futuros objetos arquitetônicos como simples somatório de linhas,
superfícies e volumes, mas apresentam o processo de transformação dos detalhes de um
sistema de representação para outro, do desenho para o edifício.
Nos desenhos de Scarpa pode-se ter a “ prova” do sistema de adequação que regula
a percepção da arquitetura. As representações de estruturas tridimensionais numa su­
perfície bidimensional são a conclusão lógica da interação existente entre percepções
visuais e táteis. A parte central do desenho geralmente mostra construções gráficas
que poderíamos chamar de desenho técnico. Mas não é nada do que tradicionalmente
identificamos como plantas, seções e elevações. Os desenhos de Scarpa não são me­
ras soluções de geometria descritiva cartesiana; são descrições da futura percepção
de como o objeto foi executado. Os componentes visuais da percepção são analisados
em função de um detalhe e não do todo, enquanto as percepções táteis são exami­
nadas em função do conjunto. Os desenhos mostram componentes não visíveis, mas
que são o resultado e a projeção da construção e da interpretação do significado - o
edifício mental de Alberti. São o produto dos efeitos na memória dos sentidos do tato
e da visão na feitura e na utilização da obra de arquitetura. Os desenhos nunca estão
completamente terminados; somente fragmentos e partes deles estão concluídos. Esse
método revela por analogia que a arquitetura de Scarpa, apesar de ser uma totalidade,
não pode ser caracterizada como um todo consumado. Uma totalidade arquitetônica
é um fenômeno composto de detalhes unificados por um “artifício” , um princípio es-
truturante. Esse princípio, na arquitetura de Scarpa, é a ordem gerada pelo uso e pela
compreensão de ideias arquitetônicas clássicas, como o projeto da fachada.35
Scarpa é um Magister Ludiye seus edifícios são textos em que os detalhes consti­
tuem a unidade mínima de significação. As junções entre diferentes materiais, formas
e espaços são pretextos para criar textos. A influência mútua entre esses comentários e
textos precedentes na arquitetura de Scarpa é sempre um problema de junções, e na
junção ele consegue mudar as convenções. Isso é possível porque muitos dos seus
textos arquitetônicos são comentários eruditos a textos anteriores e, em muitos casos,
como num scholium medieval, a interface do comentário com o texto original gera um
terceiro texto. No projeto do anexo da Gipsoteca Canoviana,36 em Possagno, Scarpa
conseguiu mudar a convenção que pede que as paredes do fundo de uma coleção de
esculturas em gesso sejam de cor. A solução de Scarpa foi pôr as esculturas brancas
contra uma parede toda branca banhada de luz, mas sem iluminar diretamente as
peças. 0 problema e a solução estão no uso da luz. Scarpa resolveu-os num detalhe
do encontro de três paredes em um canto cercado de vidro. Numa palestra proferida
na Universidade de Veneza (1976), Scarpa descreveu a execução arquitetônica desse
canto. 0 efeito de luz é produzido por um manejo formal. A solução da causa formal
resolve a causa final. Ele a descreveu como um “ recorte do azul do céu” , uma causa
formal, mas o resultado foi a iluminação da parede, a causa final. Nada descreve me­
lhor esse detalhe do que as palavras do próprio Scarpa:

Eu gosto de muita [...] luz natural: eu queria recortar o azul do céu. Depois 0 que eu
queria era um nicho de vidro no alto [... ] O canto de vidro se torna um bloco azul em­
purrado para cima e para dentro (do edifício), a luz ilumina as quatro paredes. Minha
inclinação por soluções formais me levou a preferir uma transparência absoluta. Por
isso, eu não quis botar o canto de vidro dentro de uma moldura. Foi um tour de force,
porque não era possível obter aquela ideia de transparência total. Quando superpo­
nho os vidros, continuo vendo o canto, especialmente se 0 vidro é grosso. Dentro de
uma moldura, ele também ficaria visível. Mas aí, além disso, num dia claro, se poderia
vero reflexo. Olha, quando eu vi o reflexo [...] odiei a mim mesmo. Não tinha pensado
naquilo. São erros que a gente faz pensando, agindo, fazendo e, portanto, é preciso ter
uma mente dupla, tripla, a mente de um ladrão, de um homem que faz conjecturas,
que gostaria de roubar um banco, e é preciso ter o que eu chamo de presença de espí­
rito, uma atenção sempre alerta para entender tudo o que está se passando. '

0 desenvolvimento da arquitetura nos projetos de Scarpa avança por degraus e etapas.


E esses degraus e etapas estão nos detalhes. Cada um representa uma solução provi­
sória que não se deve tomar com o um resultado definitivo. Scarpa inventa detalhes
cujas funções se tornam claras som ente após terem sido usadas em vários projetos.
0 alcance dessas funções arquitetônicas varia do entendimento imediato ao mediato
do significado de cada detalhe. Esse uso criativo de detalhes ajusta-se perfeitamente
à concepção de [Ludwig] W ittgenstein sobre o uso criativo da linguagem. O signifi­
cado “exato” , isto é, a função das palavras, só se torna conhecido por um uso poste­
rior. A função de um detalhe num projeto se clarifica com sua reapresentação, isto é,
nova utilização. O detalhe muitas vezes parece incompleto e vago relativamente ao
seu princípio estruturante, mas visto que ele unifica por si só a função e a re-apresen-
tação, a re-utilização faz com que ele se converta em um catalisador criativo, torna-se
um detalhe fértil. A ré-utilização dos detalhes é análoga à re-utilização de leitmotifs
em Wagner.38 Os leitmotifs são recursos estruturais usados por Wagner para montar
e reconstruir a arquitetura da ópera internamente e são as menores unidades de sig­
nificação no texto musical. Os detalhes de Scarpa são recursos estruturais usados para
montar por dentro o texto arquitetônico.
Um exemplo do detalhe fértil na arquitetura de Scarpa é o uso do motivo do zig-
gurat [zigurate]. A função arquitetônica desses detalhes férteis aparece no Cemitério
Brion em S. Vito d’Altivole e na fachada e interiores do Banca Popolare di Verona.
No cemitério, o zigurate é executado em concreto moldado, e é uma celebração da
possibilidade da moldagem com o gerador de ornatos. No banco, principalmente na
fachada principal, o zigurate é uma p r im a dorm a em rosso verona , o mármore verme­
lho local com que é feito, que lembra um brocado.
A primeira vez que Scarpa usou esse detalhe foi no tratamento cosmético de uma
fachada provisória, executado com o empilhamento de blocos de concreto na frente do
Pavilhão Italiano na Bienal de Veneza de 1962. Mas, como Heráclito já observara, a raiz
àecosmesisé cosmos. Esse mesmo detalhe ornamental foi usado como ordem principal
no projeto de Scarpa para o Museu de Castelvecchio em Verona. O motivo zigurate foi
a solução encontrada para o arremate das camadas sucessivas de paredes da fachada
do prédio para deixar à mostra a junção virtual entre as paredes originais e a réplica
romântica do muro frontal construído por Antonio Avena em 1924. No Museu de Cas­
telvecchio, a estátua equestre medieval de Cangrande e a estrutura que a sustenta ocu­
pam um lugar que dá vista do balcão, da ponte e do pátio logo abaixo. Essa disposição
permite que se veja a estátua de perto e de baixo, tal como se podia vê-la no seu local
original, no santuário de Cangrande. Essa junção dá origem a todo o texto que fala so­
bre a organização espacial do Museu de Castelvecchio. Assim, ela é a origem da solução
formal do museu e do texto no contexto.
Um projeto mais antigo da plataforma que sustenta a estátua de Cangrande mos­
tra-a como o pretexto para a celebração da junção virtual determinada por sua locali­
zação. Esse desenho revela que a ideia do zigurate toi a origem da parede. As camadas
sucessivas de parede são unidades independentes e cada uma se expressa num zigurate

551
vertical. 0 espaço que é aberto pelo corte da parede da fachada serve a toda a com­
posição do novo arranjo imaginado por Scarpa para o museu. O espaço, uma junção
virtual, é a principal articulação no percurso do museu, mas é, ao mesmo tempo, uma
“junção negativa” na articulação das massas no Castelvecchio. O espaço aberto, em vez
de separar, ajuda a ligar as massas da esquerda e da direita do castelo. Essas massas
situam-se dos dois lados da torre que articula a junção entre a ponte sobre o rio Adige
e o castelo. A escolha do zigurate como terminação da parede estabelece uma transi­
ção entre o lado interno e o lado externo da articulação. O zigurate deixa visíveis os
materiais dessa complexa articulação arquitetônica, formada de planos verticais que
definem uma relação de moldura com a estátua de Cangrande, o eixo visual da articu­
lação. O detalhe em zigurate também é usado em muitas outras partes do museu. No
estudo para o projeto da entrada, Scarpa lança mão desse detalhe fértil para resolver o
problema da junção das pedras usadas no piso e para solucionar a profunda abertura
das janelas na grossa espessura das paredes medievais.
O detalhe do zigurate também é largamente utilizado no projeto do Cemitério de
Brion. O material, concreto moldado in loco> dá novo significado ao detalhe. A intera­
ção da forma com o material desloca o detalhe fértil do domínio de uma produção sub
specie utilitatis para o de uma produção sub specie aeternitatis. É concebido como uma
“ruína” carregada de lembranças eternas. É um detalhe perfeito para a arquitetura de
um cemitério, um lugar de lembranças. Assim usado, o zigurate prova ser um detalhe
fértil. Um detalhe comprova sua fertilidade quando deixa de ser uma linguagem arqui­
tetônica privada e se torna acessível a todos por meio de uma produção coletiva. Um
exemplo célebre dessa fertilidade é o da janela serliana, que, após ser usada por Palla-
dio, tornou-se um detalhe-padrão conhecido como janela palladiana. De fato, o zigu­
rate scarpiano foi copiado por muitos arquitetos em seus projetos, mas hoje é usado
na arquitetura coletiva e se tornou um padrão nos cemitérios do Vêneto. O templo
neoclássico in antis, que foi muito usado nas capelas familiares, modificou-se em vir­
tude de um novo modelo de referência. O detalhamento das ordens dórica ou toscana
foi substituído por um novo tipo, uma nova ordem, o zigurate scarpiano em concreto
moldado in loco.
Concluindo esta discussão sobre o papel do detalhe como unidade mínima no
processo de significação (isto é, na manipulação do significado), é importante rea­
firmar que a arquitetura é tanto uma arte como uma profissão, fato que se deduz do
conhecimento gerado pelo detalhe como junção. A arquitetura é uma arte porque se
ocupa não só da necessidade primordial do abrigo, mas também da união de espaços
e materiais de uma maneira significativa. E isso se realiza por meio de junções formais
e reais. É na junção, isto é, no detalhe fértil, que têm lugar tanto a construção física
\constructing\ como a construção do significado [construing].
Além disso, é importante para complementar nossa análise sobre o papel essencial
da junção como o lugar onde se dá o processo de significação lembrar que o signifi­
cado da palavra arte, em sua raiz indo-europeia original, é “junção” . Conforme escre­
veu Louis Kahn:

A junção é o começo do ornamento


E é preciso distingui-la da
Decoração que é simplesmente aplicada.
O ornamento é a adoração da junção.39

[“The Tell-the-Tale Detail” foi originalmente publicado em v ia 7: The Building of Archi-


tecture, 1984, pp. 23-37. Reproduzido com autorização do autor e da editora. (O título ori­
ginal tece um jogo de palavras entre detail (detalhe) e the tale (o conto) e tell (contar), difi­
cilmente reprodutível em português, com a mesma sonoridade, graça e eficácia semântica.
Uma tradução aproximada poderia ser algo como “o detalhe que talha a trama”, ( n . r .t .)]

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A noção do detalhe como processo de significação encontra-se desde Leibniz até Raimundo Lúlio.
3. Ao tomar nota rapidamente dos dados referentes a essa máxima, tive um la p s u s c a la m i, e cm
vez de escrever G o d [Deus] com um 0 somente, dupliquei a letra, escrevendo 00. Mais tarde, na
mesma página do meu caderno de anotações, escrevi uma nota retirada de uma passagem do
tratado de arquitetura de Vitrúvio, D e A r c h it e t t u r a (compilação e comentários de S. Ferri, Roma:
1960, p. 10). Dias depois, ao rever essas notas, surpreendeu-me a presença da transcrição quase
platônica de uma máxima quase aristotélica — “ G o o d l i e s in t h e d e t a i l s ' [O bom está nos deta­
lhes) — ao lado de uma anotação que dizia que Calímaco, o autor mítico do capitel coríntio, cujo
nome em grego significa “Aquele que busca ardorosamente a beleza” , tinha sido apelidado de
K a t a t e x it e c h n o s pelos atenienses. Com essa longa e complicada alcunha, os atenienses reconhe­
ciam que a obra de Calímaco era fruto de uma atividade desenvolvida pelo método racional com
vistas a um objetivo produtivo específico, e ele era um mestre nisso. T éch n e é o retlexo na ação
que se materializa nos detalhes (M. Isardi Parente, Tech n é. [Florença: 1966)). Esse curioso erro
de ortografia e a associação de palavras levaram-me a pensar no papel da téch n e na produção da
arquitetura e no processo de significação em arquitetura.
4. No detalhe arquitetônico, as normas práticas (tecnologia) e as normas estéticas (semiótica) for­
mam uma relação dialética. O detalhe é a unidade da produção na arquitetura. Sobre a origem
dessa teoria no século xvni, ver Marco Frascari “ Sortes Architectii in the Eighteenth-Century
Veneto” , tese de doutorado, Universidade da Pensilvânia, 1981.
5. Para um exame e uma discussão dos diversos elementos e teorias elaborados pela semiótica arquite­
tural, veja Martin Krampen, M e a n i n g in th e U r b a n F n v i r o n m e n t . Londres, 1979, pp. 6-91.
8 J. Labatut, “An Approach to Architectural Composition” , M o d u l u s 9, 1964, pp. 55-63.
7. Roger Scruton em Aesthetic o f Architecture. Princeton: 1979, pp. 77ss, mostra uma abordagem
diferente, mas chega à m esma conclusão.
8. Um exemplo é o desm oronam ento da Biblioteca Marciana de Veneza. Em sua primeira obra
veneziana, J. Sansovino, na realidade um habilidoso “ proto” , usou detalhes romanos (maniera
Romana) que não funcionaram no am biente de Veneza. Ver T. Temanza, Vite deipiü Celebri
Architetti e Scultori Veneziani. Veneza: 1778.
9. Na arquitetura, as funções dependem tanto da construção em si como de quem as utiliza ou or­
ganiza seu uso. O costum e e o uso repetido são o fundamento das funções. A arquitetura não
só realiza, como indica suas funções, e podem os organizá-la em quatro horizontes funcionais:
prático, histórico, social e individual. Sobre os quatro horizontes funcionais e uma tipologia das
funções, veja J. M ukarovsky, “ The Place o f the Aesthetic Function Among the Other Functions in
Architecture” , in Structure, Sign and Function. New Haven: 1978, pp. 240-243.
10. A origem co m e rc ia l fr a n c e s a da palavra, que distingue entre vender fatias de pizza e vender pizzas
inteiras, a lé m d e a f i r m a r q u e os detalhes são pedaços, não ajuda a entender o detalhe c o m o junção
ou c o m b in a ç ã o , e su a r e la ç ã o não subalterna com as totalidades. Um termo melhor e mais signifi­
cativo é o ita lia n o particolari architettonici, que também tem conexões com as teorias literárias do
século x v i i i , p o r e x e m p l o , com a noção de particolareggiamento, de Antonio Conti.
11. Nicolas Boileau-Despréaux, L ’Artpocticjue 1, 1670; repr. Paris, 1966, p. 158.
12. G. B. Piranesi, “ Parere” , 1765, in J. Wilton-Ely íorg.j, The Polemicai Works, Franborough: 1972.
111. Soane, Lectureson Architecture, Londres: 1929, p. 177.
14. Para uma discussão sobre a origem da analytique no jardim de Lodoli, em S. Francesco delia
Vigna, ver Frascari, uSortes Architectii'\ op. cit.
15. Sobre o papel da analytique e do processo de detalhamento, ver a discussão da teoria do partico-
lareggiamento, de Antonio Conti, em Frascari, “ Sortes Architectii", op.cit., pp. 141-150.
16. G. O. Gamey, The American Glossary o f Architcctural Tcrms. Chicago: 1887.
17. D. Ramée, Dictionnaire Général des Tertnes d'Architecture. Paris: 1868.
18. Movimento que criticou a Revolução Industrial pela desintegração promovida na organização
da sociedade, do trabalho e da cultura. C o m o alternativa a essa desintegração, o movimento pro­
punha a retomada das artes e ofícios medievais, do artesanato, como forma de restabelecer a uni­
dade do homem e da comunidade, o prazer no trabalho e o vínculo entre os materiais, 0 local e a
produção, [ n . r . t .]

19. J. Lotman, “The Dynamic Model o f a Semiotic System” , Semiótica 21, n. 3-4,1977, p. 194.
20. Leon Battista Alberti, De Re Aedijicatoria (Bolonha: 1782). O princípio do nihil addi é explicado
no primeiro volume, mas teoricamente desenvolvido nos volumes seis e sete. Sobre essa nova in­
terpretação do conceito, veja a análise do papel da “ decoração nos pequenos templos”: “e ti pare
che, vi si possa, vi si debba aggiungcre,\
21. Alberti elabora essa noção tripartite de beleza no volume sete, ix, 5, pp. 229-230.
21 Ludwig Wittgenstein, Remarks on the Foundation o f Mathematics ( a , 11, 14, j; cf. 11, 47, e v, 46).
Oxford: 1956.
23. Sobre o uso do corpo humano como referência básica do design e fonte de medidas, veja Marco
Frascari, “A ‘Measure’ in Architecture: A Medical-Architectur Theory by Simone Stratico, Archi-
tetto Veneto” . Res, Spring 1985.
24. Para 0 conceito de analogia em arquitetura, ver Ferri (org.), Vitrúvio, pp. 30 ss.
25. Mukarovsky, Jan, “ The Place o f the Aesthetic Function” , op. cit., pp. 240 243.

555
26. H. von Helmholtz, Über Geometrie. Damstadt: 1968, p. 218.
27. R. Torretti, Philosophyof Geometry. Dordrecht: 1978, pp. 162-171.
28. Erwin Panofsky, Gothic and Scholasticims. Nova York: 1946.
29. Walter Benjamin, ílluminations. Nova York: 1968, p. 242.
30. Torretti, Philosophy of Geometry, op. cit., p. 168.
31. Accademia Oiimpica, Cario Scarpa. Vicenza: 1974, p. 1.
32. Mukarovsky, “The Place of Aesthetic Function”, op. cit., pp. 240-243.
33. Cario Scarpa, “Frammenti, 1926-78” , Rassegna 7,1981, p. 82.
34. H. Focillom, Piranesi. Bolonha: 1962, p. 66.
35. Scarpa, “Frammenti”, op. cit.: pp. 83-84.
36. Uma ampliação do museu em forma de igreja cristã, construído em 1836, para guardar as matri­
zes em gesso das esculturas de Antonio Canova. [N.T.]
37. Ibid., pp. 83-84.
38. Para uma discussão sobre o uso de “detalhes férteis”, ver a análise do “ motivo fértil” em Anton
Ehrenzweig, The Hidden OrderofArt. Londres: 1962.
39. Louis Kahn, Light is the Theme. Forth Worth: 1975, p. 43.

KENNETH FRAMPTON . RAPPEL À UORDRE, ARGUMENTOS

L
EM FAVOR DA TECTÔNICA
apresentação

Nessa "cham ada à o rd e m ", Kenneth F ram p ton a rg u m e n ta que c o n s tru ir é, em


prim eiro lugar, um ato tectôn ico, e não um a a tiv id a d e c e n o g rá fica O edifício é
ontológico, uma presença ou uma "c o is a ", e se d is tin g u e de um signo. Essa abor­
dagem é uma outra tentativa de d e fin ir a "e s s ê n c ia " da a rq u ite tu ra , co m o as que
0 fazem pela função ou pelo tipo. Para Fram pton, a essê ncia está na m anifestação
poética da estrutura, com o sugere a p o ié s is [criaçãol grega (e h eideggeriana): um ato de
fazer e revelar, que é a tectônica. N este ensaio polê m ico , Fram p ton id e n tifica "a unidade
estrutural como a essência irredutível da form a a rq u ite tô n ic a ", que por isso m ere ce mais
atenção que a invenção do espaço e a busca da novidade.
Frampton afirma que uma poética da construção o fe re ce a p ossib ilida de de resistir à
m e rc a n tiliz a ç ã o do abrigo e à predom inância da abordagem pós-m o de rn a do galpão deco­
rado no projeto arquitetônico propalado por R obert V enturi, D enise S co tt B ro w n et alii A
tectônica é um poderoso antídoto contra essa tendência, porque é "a e s tilís tic a ", interna à
disciplina (isto é, autônoma) e mítica.
Alinhando-se à tese de M artin H eidegger de que o lugar da hum anidade é sobre a terra
e sob 0 céu, Frampton sugere que os arquitetos precisam re fle tir sobre as consequências
ontológicas de construir edificações com paredes pesadas e m aciças ou com estruturas
leves. Estes são dois sistemas de edificação o postos do p on to de vida cosm ológico, que
evocam a oposição entre terra e céu, entre solidez e desm aterialização. Para acentuar a
importância dessas oposições, Frampton afirm a a im portância do m ito de origem alterna­
tivo que Gottfned Semper descreveu em T h e F o u r E le m e n ts o f A r c h ite c t u r e (Os quatro
elementos da a rq u ite tu ra ] (1 8 5 2 ). S e m p e r c o n tra p ô s à base tipológica da cabana prim itiva
de origem clássica, de M a rc -A n to m e L a u g ie r, s e u s q u a tro e le m e n to s de base tectômca de­
duzidos da h ip ó te s e d e u m a ca b a n a c a rib e n h a verna cu lar: a te rro (dique), lareira, armação
e telhado, e m e m b ra n a e n v o ltó ria . E m vez de c o n s tru ir um a estrutura feita de um só tipo
de material, S e m p e r p ro p õ e u m a fu n d a ç ã o pesada, fincada no solo, com uma estrutura
leve e tapum es p or cim a, e as c o n e x õ e s e xig id a s e n tre as duas partes. Frampton associa a
fenomenologia de H e id e g g e r à o rig e m e s p e c ific a m e n te m aterial da arquitetura para reivin­
dicar uma tectôn ica q ue e x p re s s e sua c o n s t r u ç ã o e suas relações com a terra e com o céu.
Semper enfatiza as o rig e n s t ê x t e i s d a t e c t ô m c a e s u g e r e que o nó foi a primeira junta
Para Frampton, a ju n ç ã o é " o n e x o e m t o r n o d o q u a l o edifício com eça a existir e se ar­
ticula com o p re s e n ç a ". A ju n ç ã o p o d e t e r f u n ç õ e s id e o l ó g i c a s ou referenciais no sentido
de que as d ife re n ç a s c u ltu ra is s e m a n i f e s t a m n a s t r a n s i ç õ e s articuladas e nas junções
que com põem um a s in ta x e t e c t ô m c a V i t t o r i o G r e g o t t i e M a r c o Frascari tam bém sugerem,
neste capítulo, que o d e ta lh e t e m u m p a p e l s i m b ó l i c o
A junção é um e le m e n to e s s e n c i a l , n ã o u m d e t a l h e g r a t u i t o , e p o r is s o evita a p o s s ib i­
lidade do con sum o c o n s p íc u o q u e a s s o l a a a r q u i t e t u r a c o n t e m p o r â n e a e a red uz a estilos
da moda. A tectôn ica ta m b é m t e m u m p a p e l d e d e s t a q u e n u m a r t ig o a n te r io r d e F ra m p to n
sobre o re gio na lism o c r í t i c o ( c a p . 1 1 1 E m b o r a n o p r e s e n t e e n s a io e le p a reç a a fa s ­
tar-se do regionalism o, a t e c t ô m c a p e r m a n e c e c o m o u m a im p o r t a n t e a lte rn a tiv a de
resistência à h o m o g e n e iza çã o d o a m b i e n t e c o n s t r u í d o . N o s e u nvro d e 1995, S tu d ie s
in T e cto nic C u ltu re (E stud os s o b r e a c u l t u r a t e c t ô n i c a ] , F r a m p t o n a p r o fu n d a a d is c u s ­
são sobre esse c o m p o n e n te e s s e n c i a l d a a r q u i t e t u r a

KENNETH FRAMPTON

Rappel à 1'ordre:
argumentos em favor
da tectônica
Escolhi tratar do tema da tectônica por vários motivos, entro os quais a tendência
atual de reduzir a arquitetura à cenografia. Essa atitude nasce em resposta ao triunfo
generalizado do galpão decorado de Robert Venturi, isto ê, â síndrome prevalente de
empacotar o abrigo como uma mercadoria gigante. Entre as vantagens da abordagem

557
cenográfica está o fato de os resultados serem inteiramente amortizáveis, com todas as
consequências que isso traz para o futuro do ambiente. Estou pensando, é claro, não na
doce decadência do romantismo do século x ix , mas na indigência total da cultura do
consumo. Acompanhando esses preocupantes prognósticos, está a dissolução geral das
referências estáveis do mundo moderno - o fato de que os preceitos que regem quase
todos os discursos, excetuando a aparente autonomia da ciência e da tecnologia, se
tornaram extremamente tênues. Boa parte disso já fora prevista, meio século atrás, por
Hans Sedlmayr, quando ele escreveu, em 1914:

O deslocamento do centro de gravidade espiritual do homem para a esfera do inorgânico,


a incerteza quanto ao seu lugar no mundo inorgânico poderia muito bem ser designada
de perturbação cósmica no microcosmo do homem, o qual começa hoje a evidenciar um
desenvolvimento unilateral de suas faculdades naturais. No extremo oposto, há uma per­
turbação das relações macrocósmicas decorrente do privilégio especial e da proteção de
que hoje desfruta o mundo orgânico - quase sempre à custa, para não dizer destruição,
do mundo inorgânico. O estupro e a destruição da terra que alimenta o homem são um
exemplo óbvio que reflete, por sua vez, 0 desvio do microcosmo humano para o espiritual.1

Para lutar contra essa perspectiva de degeneração cultural, podemos recorrer a certas
posições de retaguarda na intenção de recuperar uma base de resistência. Estamos hoje
numa situação parecida com a do crítico Clement Greenberg que, em seu ensaio, de 1965,
UA pintura moderna” tentou reformular as bases da pintura nos seguintes termos:

Depois que 0 Iluminismo lhes negou todas as tarefas que elas podiam seriamente to­
mar a si, parecia que as artes estavam prestes a ser assimiladas ao entretenimento puro
e simples, e o próprio entretenimento parecia pronto a ser assimilado, como a religião,
à terapia. As artes somente poderiam se salvar desse nivelamento por baixo se de­
monstrassem que a espécie de experiência que proporcionavam era válida por si só, e
não seria obtida a partir de nenhuma outra atividade.2

Se nos perguntarmos qual poderia ser uma base equivalente de resistência para a ar­
quitetura, teremos de procurá-la em um fundamento material semelhante, isto é, a
arquitetura deve necessariamente expressar-se na forma estrutural e construtiva. A
ênfase que estou dando à segunda, em lugar do pré-requisito do fechamento espacial,
deriva de uma tentativa de valorizar a arquitetura moderna do século xx mais em ter­
mos de continuidade e inflexão do que da originalidade como um fim em si mesmo.
Em seu ensaio,de i98o,“Avant-Garde and Continuity” [Vanguarda e continuidade)
o arquiteto italiano Giorgio Grassi comentou da seguinte maneira o impacto da arte de
vanguarda sobre a arquitetura:
[...] quanto às vanguardas do movimento moderno, elas invariavelmente seguem
os passos das artes figurativas. [...] Cubismo, suprematismo, neoplasticismo etc.
são formas de pesquisa que nasceram e se desenvolveram no domínio das artes fi­
gurativas, e somente depois de repensadas foram transpostas para a arquitetura. É
realmente patético assistir aos arquitetos daquele período “ heroico” , e os melhores
deles, tentando a duras penas se adaptar a todos aqueles “ ismos” : fazendo experiên­
cias confusas por conta de um fascínio pelas novas doutrinas, avaliando-as, só para
depois se darem conta de sua ineficácia [...].3

Se é desconcertante ter de ad m itir uma possível ruptura fundamental entre as


origens figurativas da arte abstrata e a base construtiva da forma tectônica, essa
constatação também pode ter um efeito libertador, porque nos oferece um ponto
de apoio para questionar a invenção do espaço como um fim em si mesmo: uma
pressão a que a arquitetura m oderna tem sido desrespeitosamente submetida. Em
vez de ficar repetindo os tropos vanguardistas, ou de aderir ao pastiche histori-
cista,ou ainda à supérflua m ultiplicação de projetos escultóricos, todos contendo
uma dimensão arbitrária porque não se baseiam nem na estrutura nem na cons­
trução, os arquitetos podem voltar à unidade estrutural como essência irredutível
da forma arquitetônica.
Dispensa dizer que não estam os aludindo à revelação mecânica da construção,
masà manifestação de um a estrutura potencialmente poética, no sentido original
da palavra grega poiésis, com o ato de criar e revelar. Embora eu esteja bem cons­
ciente das implicações conservadoras do polêmico ensaio de Grassi, as percepções
críticas ali contidas nos levam a questionar a própria ideia do novo numa época que
oscila entre o desenvolvim ento de uma cultura de resistência e a tendência a cair
num esteticismo desprovido de valores. Provavelmente, a avaliação mais equilibrada
de Grassi tenha sido feita pelo crít ico catalão Ignasi Solà-Morales Rubió, quando ele
escreveu que

[Grassi] pressupõe que a arquitetura é um olício, quer dizer, a aplicação prática de um


saber estabelecido mediante regras que correspondem a diferentes níveis de interven­
ção. Assim, não há no pensamento de Grassi nenhuma concepção da arquitetura como
solução de problemas, inovação ou invenção ex-novo, já que ele está interessado em
mostrar o caráter dado, evidente e permanente do saber na produção de arquitetura.
[...] O ensaio de Grassi nasce de uma reflexão sobre os recursos essenciais da dis­
ciplina e se concentra nos meios específicos que determinam não só as escolhas es­
téticas, mas também o conteúdo ético de sua contribuição cultural. Por meio desses
canais de vontade política e ética, a preocupação do Iluminismo [...| sai enriquecida
em seu matiz mais crítico. Não é só a superioridade da razão e da análise da forma que

559
é indicada; antes, é o papel crítico (no sentido kantiano do termo), isto é, o juízo de
valores, cuja falta é muito sentida na sociedade de hoje [...]
No sentido de que a arquitetura de Grassi é uma metalinguagem, uma reflexão
sobre as contradições de sua prática, sua obra adquire o atrativo de algo que é tanto
frustrante como nobre [...]4

A definição da palavra “ tectônica” no dicionário, como “pertinente à edificação ou à


construção em geral; construtivo, construtor, usado especialmente para referir-se à ar­
quitetura e às artes da mesma família” , é um tanto redutiva para nossos fins, porque
estamos pensando não só no componente estrutural em si, mas também na sua ampli­
ficação formal relativamente ao conjunto de que faz parte. A palavra “ tectônica” , desde
que começou a ser usada em meados do século x ix , nos escritos de Karl Bõtticher e
Gottfried Semper, indica não só a probidade material e estrutural de uma obra, mas
também uma poética do construir subjacente à prática da arquitetura e das artes afins.
As primeiras manifestações do moderno, que datam de pelo menos dois séculos,
e o advento bem mais recente do pós-moderno estão indissociavelmente ligados às
ambiguidades introduzidas na arquitetura ocidental pela primazia do cenográfico no
mundo burguês. No entanto, a essência da edificação continua a ter um caráter mais
tectônico do que cenográfico e pode-se inclusive argumentar que se trata, sobretudo,
de um ato de construção em vez de um discurso que pressupõe a superfície, a planta e
o volume, para citar os “três lembretes da arquitetura” , de Le Corbusier. Isso nos per­
mite asseverar que o ato de construir é mais ontológico do que representacional e que
a forma construída é antes uma presença do que a representação de uma ausência. Na
terminologia de Martin Heidegger, poderíamos pensá-la como “coisa” mais do que
como “signo” .
Escolhi tratar desse tema porque me parece necessário que os arquitetos revejam
suas posições, visto que a tendência hoje predominante é de reduzir toda expressão
arquitetônica a uma cultura do consumo. Como esse tipo de resistência tem poucas
chances de ser aceito de modo geral, adotar uma posição de “ retaguarda” parece ser
mais adequado do que o pressuposto duvidoso de que é possível perpetuar o van-
guardismo. Apesar de uma preocupação com a estrutura, a ênfase na forma tectônica
não favorece necessariamente nem o construtivismo nem o desconstrutivismo. Nesse
sentido, pode-se argumentar que a tectônica é “aestilística” e, além disso, não busca
legitimar-se na ciência, na literatura ou na arte.
Proveniente do grego, a palavra tectônica deriva de tektonikós, que significa car­
pinteiro ou construtor. Esta, por sua vez, provém do sânscrito taksan, que se refere ao
ofício da carpintaria e ao uso do machado. Há indícios de um termo similar no védico,
em que mais uma vez a palavra se refere à carpintaria. Em grego, a palavra tectônica
aparece em Homero e alude à carpintaria e à arte da construção em geral. A conotação
poética do termo aparece pela prim eira vez em Safo, onde o tékton, o carpinteiro, toma
o papel do poeta. Esse significado sofre uma evolução posterior, quando deixa de ser
uma coisa específica e física, com o a carpintaria, e assume a noção mais genérica de
construção, tornando-se, mais tarde, um aspecto da poética. Em Aristófanes, encon­
tramos a mesma ideia associada à maquinação e à criação de falsificações. Essa evolu­
ção etimológica sugere uma passagem gradual do ontológico para o representacional.
Por fim, o termo latino architectus deriva do grego archi (pessoa que tem poder de
mando) e tékton (um artesão ou construtor).
A mais antiga referência ao termo “ tectónica” data de 1656, quando aparece num
glossário com o significado de “ relativo à construção” , e isso se dá quase um século
depois do primeiro uso da palavra arquiteto, em 1563. Em 1850, 0 scholar alemão
oriental K. O. Müller definiu o termo de maneira mais genérica como “ um grupo de
artes que formam e aperfeiçoam recipientes, implementos, habitações e locais de reu­
nião”. 0 termo é formulado pela prim eira vez com um sentido moderno por Karl
Bõtticher, em Tektonik der Hellenen [Tectónica dos helenos], de 1843-52, e no ensaio
deGottffied Semper Os quatro elementos da arquitetura, do mesmo período. Sempler
desenvolveu o conceito posteriorm ente em seu estudo inacabado, 0 estilo nas artes
técnicas e tectônicas ou uma estética prática, publicado entre 1863 e 1868.
A palavra “ tectónica” não pode ser totalmente desvinculada do sentido tecnoló­
gico, e é isso que lhe dá uma certa ambivalência. Quanto a isso, podem-se identificar
três condições distintas: 1) o objeto tecnológico, que surge diretamente em resposta a
uma necessidade instrumental; 2) o objeto cenográfico, que pode ser usado indiferen­
temente para aludir a um elemento ausente ou escondido; 3) o objeto tectônico, que
pode ser visto de dois modos: o objeto tectônico ontológico e o objeto tectônico repre­
sentacional. O primeiro m odo envolve um elemento construtivo, modelado de forma
a enfatizar seu papel estático e seu status cultural. Este é o tectônico que aparece na
interpretação de Bõtticher da coluna dórica. O segundo envolve a representação de um
elemento construtivo que está presente, mas escondido. Esses dois modos podem ser
considerados análogos à distinção que Spencer estabeleceu entre o técnico-estrutural e
0 simbólico-estrutural.
À parte essas distinções, Semper dividiu a forma construída em dois procedimen­
tos materiais separados: a tectónica da estrutura, em que elementos de comprimentos
variados são combinados para abarcar um campo espacial, e a estercotòniica da massa
comprimida que, embora possa incluir o espaço, é construída pelo empilhamento de
unidades idênticas. O termo estereotômica vem da palavra grega que significa sólido,
stereotóSy e corte, tomés. No prim eiro caso, o material normalmente usado ao longo da
história é a madeira ou seus equivalentes como o bambu, o vime e a cestaria. No se­
gundo caso, um dos materiais mais comuns é o tijolo ou os equivalentes do tijolo aptos
àcompressão, como a rocha, a pedra ou a terra batida e, mais tarde, o concreto armado.

561
Houve exceções importantes a essa divisão, principalmente onde, visando à perma­
nência, a pedra foi cortada, trabalhada e erigida de modo a tomar a forma e a função
de uma armação. Embora esses fatos sejam tão conhecidos que quase não é preciso
repeti-los, geralmente ignoramos as consequências ontológicas dessas diferenças, isto
é, o modo pelo qual a armação tende para o aéreo e para a desmaterialização da massa,
enquanto esta tende para o telúrico, encravando-se cada vez mais fundo na terra. Uma
tende para a luz, a outra para a escuridão. Esses opostos gravitacionais, imaterialidade
da armação e materialidade da massa, simbolizam os dois opostos cosmológicos aos
quais elas aspiram: o céu e a terra. Apesar de nossa era científico-tecnológica altamente
secularizada, essas polaridades ainda constituem em larga medida os limites de nossas
experiências de vida. O exercício da arquitetura empobreceu-se a um nível tal que dei­
xamos de reconhecer esses valores transculturais e o modo como permanecem latentes
em todas as formas estruturais. Na realidade, essas formas servem para nos lembrar,
seguindo Heidegger, que objetos inanimados também podem evocar o “ser” e, por meio
dessa analogia com nosso corpo, percebemos o corpo de um edifício como se fosse lite­
ralmente um ente físico. O que nos traz de volta ao privilégio dado por Semper à junção
como elemento tectônico primordial, o nexo fundamental em torno do qual o edifício
começa a existir, isto é, articula-se como uma presença em si.
A ênfase de Semper na junção sugere que a expressão da transição sintática funda­
mental se dá na passagem da base estereotômica à estrutura tectônica, e que essas tran­
sições constituem a essência mesma da arquitetura: são os principais constituintes que
fazem uma cultura da construção diferenciar-se de outra.
Há um valor espiritual intrínseco nas particularidades de uma determinada jun­
ção, na“coisidade” do objeto construído, tanto que a junção genérica se torna mais um
ponto de condensação ontológica do que mera conexão. Basta pensar nos trabalhos de
Cario Scarpa para ter uma ideia da manifestação contemporânea desse atributo.
O primeiro volume da quarta edição do livro de Karl Bõtticher, Tektonik der Hel-
lenerty foi publicado em 1843, dois anos depois da morte de [Karl Friedrich] Schinkel,
em 1841. Três outros volumes saíram sucessivamente durante a década seguinte, 0
último em 1852, mesmo ano da publicação dos Quatro elementos da arquitetura, de
Semper. Bõtticher desenvolveu nesse livro, sob vários ângulos, o conceito de tectô­
nica. Em um primeiro nível, ele idealizou uma combinação conceituai criada pelo
entrelaçamento adequado dos elementos construtivos. Simultaneamente articula­
das e integradas, essas combinações foram consideradas com o a form a-corpo, ou
Kõrperbilden, que tanto garantem o acabamento material de um edifício como per­
mitem que essa função seja reconhecida como uma forma simbólica. Em outro nível,
Bõtticher distinguiu entre a Kernform, ou núcleo, e a Kunstform , ou revestimento
decorativo, este último com a finalidade de representar e simbolizar a condição ins­
titucional da obra. De acordo com Bõtticher, este invólucro ou revestimento devia
ser capaz de revelar a essência íntim a do núcleo tectônico. Ao mesmo tempo, Bõt-
ticher insistiu em dizer que é preciso diferenciar a forma estrutural indispensável
do seu enriquecimento, independentem ente de este último ser a mera definição
da forma dos elementos técnicos, com o no caso da coluna dórica, ou da cobertura
com revestimento de sua form a básica. Posteriormente, Semper adaptou a noção
deKunstform à ideia de B ekleidung, ou seja, ao conceito de literalmente “ revestir” a
trama de uma estrutura.
Bõtticher foi muito influenciado pela ideia do filósofo )osef von Schelling de que
a arquitetura transcende o mero pragmatismo da construção porque assume uma sig­
nificação simbólica. Tanto para Schelling como para Bõtticher, o inorgânico não tinha
nenhum significado simbólico e, por isso, a forma estrutural somente podia adquirir
valor simbólico por sua capacidade de engendrar analogias entre a forma orgânica e a
tectônica. Mas era preciso evitar todo tipo de imitação direta da forma natural; ambos
pensavam que a arquitetura só podia ser imitativa se imitasse a si mesma. Essa opinião
tende a corroborar o argumento de Grassi de que a arquitetura sempre se diferenciou
das artes figurativas, ainda que suas formas possam ser percebidas como análogas às
da natureza. Nessa qualidade, a arquitetura funciona ao mesmo tempo como metáfora
econtraste com o que é naturalmente orgânico. Remontando o desenvolvimento desse
pensamento, podemos citar o texto de Semper intitulado “ Teoria da beleza formal” , de
1856, em que ele não associava mais a arquitetura à pintura e à escultura, como artes
plásticas, mas à dança e à música, como artes cósmicas, ou seja, como uma arte que
cria um mundo ontológico e não com o uma forma representacional. Semper consi­
derava essas artes como as mais importantes não apenas por serem simbólicas, mas
também porque expressavam a secreta compulsão lúdico-erótica do homem de acom­
panhar uma cadência, fazer um colar, tecer um desenho e, desse modo, praticar a deco­
ração de acordo com um princípio rítmico.
Os quatro elementos da arquitetura, de 1852, encerra o debate, uma vez que Semper
acrescentou uma dimensão antropológica específica à noção de forma tectônica. O
esquema teórico de Semper representa uma ruptura fundamental com a regra huma­
nista de quatrocentos anos da utilitas,firm itas e venustas, que primeiramente funcio­
nou como tríade das intenções da arquitetura romana e depois como alicerce da teoria
arquitetônica pós-vitruviana. A reformulação radical de Semper nasceu de sua obser­
vação de um modelo de cabana caribenha durante a Grande Exposição de 1851. A reali­
dade empírica da simplicidade desse abrigo levou Semper a rejeitar a cabana primitiva
de Laugier, aduzida em 1763 como forma primordial de abrigo, para consubstanciar 0
paradigma do frontão triangular da arquitetura neoclássica. Os Quatro Elementos de
Semper revogavam essa afirmação hipotética e propunham, em vez dela, uma concei-
tuação antropológica que compreendia: 1) uma lareira, 2) um aterro, 3) uma armação e
umtelhado, e 4) uma membrana envoltória.

563
Apesar de rejeitar a autoridade neoclássica, o modelo elementar de Semper nem
por isso deixava de dar primazia à armação sobre a massa com primida. Ao mesmo
tempo, sua tese quadripartite reconhecia a importância fundamental do aterro, isto é,
de uma massa telúrica que de uma forma ou de outra serve para alicerçar a armação, a
parede ou o Mauer no terreno.
Essa marcação, conformação e preparação do terreno mediante uma terraplena-
gem tinha numerosas ramificações teóricas. De um lado, isolava a membrana envoltó-
ria como ato diferenciador, de modo que o textural podia ser literalmente identificado
com a natureza protolinguística da produção têxtil que Semper considerava ser a base
de todas as civilizações. Por outro lado, conforme observou Rosem ary Bletter, ao privi­
legiar o aterro como forma básica fundamental, Semper conferiu relevância simbólica
a um elemento não espacial, a lareira, que quase sempre era parte inseparável da terra-
plenagem. A expressão “preparar o terreno” e o uso metafórico da palavra “ fundação”
relacionam-se claramente com a primazia do aterro e da lareira.
Semper fundamentou sua teoria da arquitetura em mais de uma acepção, num
fator fenomênico de fortes implicações sociais e espirituais. Afirm ou que a origem
da lareira estava ligada à do altar, e, como tal, era o nexo espiritual da forma arqui­
tetônica. Nesse sentido, a lareira contém importantes significados. A palavra deriva
do verbo latino aedificare, o qual, por sua vez, está na origem da palavra inglesa
edifice, que significa, literalmente,“ fazer uma lareira” . As conotações institucionais
latentes tanto em lareira como em edificar estão ainda sugeridas no verbo edify
[edificar], que significa educar, fortalecer e instruir.
Influenciado pelas descobertas linguísticas e antropológicas de sua época, Sem­
per interessou-se pela etimologia do termo edificação. Assim , distinguiu a solidez de
uma muralha fortificada feita de pedra, conforme indica a palavra M auer, da estru­
tura leve e preenchida da parede de taipa, por exemplo, das construções residenciais
medievais, para as quais usa o termo Wand. A expressão mais vívida desta distinção
fundamental está na reconstrução de uma cidade medieval alemã realizada por Karl
Gruber. Tanto Mauer como Wand se fundem na palavra wall [parede em inglês],
mas esta última, no alemão, se relaciona com a palavra que indica vestir, Gewand> e
com o termo Winden, que quer dizer bordar. Coerentemente com a primazia que
conferiu à tecelagem, Semper sustentava que o artefato estrutural básico primitivo
era o nó, que predominava nas construções nômades, principalm ente nas tendas
dos beduínos em seu interior. Cabe notar, nesse sentido, a análise de Pierre Bourdieu
da casa dos beduínos, em que o tear é identificado com o lugar de honra da mulher
e o sol do interior. Sabe-se que existem conotações etim ológicas nessa associação,
e que Semper tinha ciência disso, principalmente no que diz respeito à relação en­
tre nó e junçãOy o primeiro termo sendo indicado em alemão por die Knoten, e o
segundo por die Naht. No alemão moderno, as duas palavras estão relacionadas a

564
die Verbidung, que se pode traduzir à letra com o “a ligação” . Todas essas indicações
tendem a apoiar a tese de Sem per de que o elemento constitutivo básico da arte de
construir é a junção.
A primazia dada por Sem per ao nó parece confirmar-se na pesquisa de Gunther
Nitschke sobre os rituais japoneses de união e separação, conforme exposto em seu
ensaio original “ Shi-M e”, de 1979. Na cultura xintoísta, esses rituais prototectônicos de
união são ritos agrários de renovação, que indicam a um só tempo a estreita associa­
ção entre construir, habitar, cultivar e ser, tratada por Martin Heidegger em seu ensaio
“Construir, habitar, pensar” , de 1954.
A distinção estabelecida por Sem per entre tectônica e estereotômica nos leva de
volta aos recentes argum entos teóricos do arquiteto italiano Vittorio Gregotti, que
propõe que a marcação do terreno, mais do que a cabana primitiva, é o ato tectônico
primordial. No discurso que proferiu em 1983 na Liga Internacional de Nova York,
Gregotti declarou que:

[...] O pior inimigo da arquitetura moderna é o conceito de espaço considerado


exclusivamente em termos de suas exigências técnicas e econômicas, indiferente à
ideia do local.
O ambiente construído que nos cerca é, em nossa opinião, a representação física
de sua história e o modo pelo qual acumulou diferentes níveis de significado para
compor a qualidade específica do local, não só pelo que aparenta ser em termos per-
ceptuais, mas pelo que é em termos estruturais.
A geografia é a descrição de como os sinais da história se converteram em formas,
por isso o projeto arquitetônico tem a missão de revelar a essência do contexto geo-
ambiental mediante a transformação de sua forma. O ambiente não é, portanto, um
sistema em que a arquitetura se dilui. Ao contrário, é a matéria mais importante para
desenvolver o projeto.
De fato, com o conceito de local e o princípio do assentamento, 0 ambiente se
torna a essência da produção arquitetônica. Dessa posição privilegiada, podemos
imaginar novos princípios e metodologias de projeto. Princípios e métodos que dão
precedência à localização numa área específica. Trata-se de um ato de conhecimento
do contexto que sai da modificação arquitetônica [os grifos são meus. k f ]. A origem
da arquitetura não é a cabana primitiva, a caverna ou 0 mito da “ Casa de Adão no
Paraíso” . Antes de transformar um suporte em uma coluna, uma cobertura em um
tímpano, antes de pôr pedra sobre pedra, o homem colocou uma pedra no solo para
reconhecer um terreno no meio de um universo desconhecido, a fim de dar-se conta
dele e modificá-lo. Como todo ato de reconhecimento, este requeria ações radicais e
evidente simplicidade. Desse ponto de vista, existem somente duas atitudes impor­
tantes em relação ao contexto. As ferramentas da primeira são a mimese, a imitação

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orgânica e a exposição da complexidade. As ferramentas da segunda são a avaliação
das relações físicas, a definição formal e a interiorização da complexidade.5

Pensando na tectônica, pode-se propor um novo ângulo de interpretação da história


da arquitetura moderna, porque, quando se reinterpreta toda a sua trajetória à luz das
lentes da téchne, determinados padrões afloram e outros não resistem. Por essa óptica,
pode-se reconhecer um impulso tectônico que atravessa o século e une vários traba­
lhos arquitetônicos independentemente da diversidade de suas origens. Nesse processo,
afinidades conhecidas são reforçadas, enquanto outras não conseguirão resistir e até
conexões não percebidas poderão emergir, asseverando a importância dos critérios
que jazem além das diferenças estilísticas superficiais. Assim, apesar de todas as idios­
sincrasias estilísticas, um nível bem semelhante de articulação tectônica é visível en­
tre a Bolsa de Valores de Hendrik Petrus Berlage, de 1895, o Edifício Larkin, de Frank
Lloyd Wright, de 1904, e o edifício de escritórios do Central Beheer, de Herman Hert-
zberger, construído em 1974. Em todos se verifica uma articulação de vãos e suportes
que implicam uma sintaxe tectônica, cuja força gravitacional passa da terça à tesoura,
ao consolo, à mísula, ao arco, ao pilar e ao botaréu. A transferência técnica dessa carga
passa por uma série de transições e junções devidamente articuladas. Em cada um des­
ses projetos, a articulação construtiva engendra uma subdivisão espacial e vice-versa,
e 0 mesmo princípio pode ser encontrado em outras obras do século x x que têm aspi­
rações estilísticas completamente diferentes. Assim, há uma preocupação comparável
com a exposição das junções na arquitetura de Auguste Perret e na de Louis Kahn. Em
cada um desses exemplos, a junção assegura a integridade e a existência da forma to­
tal, apesar de aludirem a antecedentes referenciais e ideológicos diversos. Onde Perret
se volta para 0 classicismo estruturalmente racionalizado do ideal grego-gótico, que
remonta à França do começo do século xviii, Kahn evoca um “arcaísmo atemporal” ,
tecnologicamente avançado, mas espiritualmente antigo.
Pode-se argumentar que a inspiração primordial de todas essas obras provém
tanto de Viollet-le-Duc como de Semper, embora seja evidente que a concepção de
Wright da forma construída como uma trama têxtil ampliada e petrificada, patente
em seus blocos de casas texturizadas da década de 1920, provém diretamente da prio­
ridade cultural dada por Semper à produção têxtil e ao nó como a unidade tectônica
primordial. É razoável dizer que Kahn sofreu a influência tanto de Wright como da
linha das Beaux-Arts franco-americana, derivada de Eugene Viollet-le-Duc e da École
des Beaux-Arts. Essa genealogia particular nos permite reconhecer os elos que ligam
o Laboratório Richards, de Kahn, de 1959, ao Edifício Larkin, de Wright. Encontra-
se em ambos uma semelhante tendência ao uso de texturas em xadrez, dividindo as
massas e suas várias unidades em espaços servidores e servidos. Além disso, há uma
preocupação comum com a expressividade conferida aos serviços mecânicos, como se
tivessem a mesma im portância h ierárquica do arcabouço estrutural. Os monumentais
tubos de ventilação em tijolos do L ab orató rio Richards estão prefigurados, por assim
dizer, nos bastiões de tijolos, dúcteis e ocos, que definiam os enormes quadriláteros
das quinas do Edifício L arkin . A p esar de desm aterializados, há uma discriminação
comparável entre os espaços servid ores e os espaços servidos no Centro Sainsbury de
1978.de Norman Foster, com bin ados com uma tendência similar a conferir expressi­
vidade aos serviços m ecânicos. E aqui encontram os mais uma prova de que, no século
xx,a tectônica não concerne exclusivam ente à form a estrutural.
A abordagem altamente tectônica de Wright e sua influência nas últimas fases do
movimento m oderno têm sido su bestim adas, já que Wright é, sem sombra de dú­
vida, a influência prim ordial em arquitetos europeus tão diversos como Cario Scarpa,
Franco Albini, Leonardo Ricci, G in o Vallc e Um berto Riva, para me limitar à linha­
gem italiana de Wright. Uma conexão w rightiana semelhante passa pela Escandinávia
e Espanha, unindo figuras diversas com o Jorn Utzon, Xavier Saenz de Oiza e mais
recentemente Rafael M oneo, que por sinal foi aluno de ambos.
Cabe dizer algumas palavras sobre o papel crucial da junção no trabalho de Scarpa
echamar a atenção para o caráter sintaticam ente tectónico de sua arquitetura. Essa
dimensão foi brilhantemente caracterizada por M arco Frascari em seu ensaio sobre a
reciprocidade do constructing e do c o n s t r u in g :

Tecnologia é uma palavra estranha. Sempre íoi diíícil definir seu campo semântico. Há
mudanças de sentido, em diferentes épocas e diíerentes lugares, na palavra “ tecnologia”,
de acordo com seus componentes originais de tcch nc e logos* como uma relação especular
entre a téchne do logos e o logos da tcch nc. Na época do Iluminismo, a retórica da tcchnc
do logos foi substituída pelo logos da tc c h n c , de teor científico. Entretanto, na arquitetura
de Scarpa essa substituição não ocorreu. A tecnologia está presente nas duas formas com
uma qualidade quiasmática. Traduzir essa presença quiasmática na linguagem própria da
arquitetura é como dizer que não existe construção física sem uma construção do signifi­
cado, nem construção do significado sem uma construção física.'1

Em outro trabalho, Frascari fala sobre a irredutível importância da junção não só na


obra de Scarpa mas em todos os em preendim entos tectónicos. No ensaio intitulado “O
detalhe narrativo” , Frascari escreve:

A arquitetura é uma arte porque se ocupa não só da necessidade original de propor­


cionar abrigo, mas também de juntar espaços e materiais de uma maneira significativa,
0 que pode se dar por meio de junções formais ou reais. E na junção, isto é, no detalhe
fértil, que têm lugar tanto a construção material \constru cting\ c o m o a construção tio
significado [construing]. Vale complementar nossa analise sobre o papel essencial da

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junção como o lócus do processo de significação, lembrando que o significado da pa­
lavra arte na raiz indo-europeia original é “junção” .7

Se a obra de Scarpa se destaca pela importância atribuída à junção, o valor fecundante


da contribuição de Utzon à evolução da forma tectônica moderna reside em sua in­
terpretação dos Quatro Elementos de Semper. Isso fica especial mente evidente em
todos os seus “pagodes/pódios” , que invariavelmente se desfazem sobre o terrapleno,
com uma espécie de lareira integrando-se ao pódio e ao telhado, e como uma mem­
brana tão fina quanto um tecido assumindo a forma do “ pagode” , a despeito de este
elemento de coroamento de telhados compreender uma abóbada de concha ou uma
laje dobrada (cf. a Ópera de Sidney, de 1973, e a Igreja Bagsvaerd, de 1977). E diz algo
também sobre o aprendizado de Moneo com Utzon, que uma articulação semelhante
entre 0 aterro e a cobertura seja visível em seu museu arqueológico romano concluído
em 1986 na cidade de Mérida, Espanha.
Já dissemos que a tectônica se encontra suspensa entre uma série de oposições, so­
bretudo, a do ontológico com o representacional. Porém outras condições dialógicas es­
tão envolvidas na definição da forma tectônica, principalmente o contraste entre a cul­
tura da estereotomia pesada e a cultura da tectônica leve. A primeira implica a alvenaria
portante e tende ao telúrico e à opacidade. A segunda, a treliça desmaterializada e tende
ao céu e à translucidez. De um lado da balança, temos o terrapleno de Semper, reduzido
nos tempos primitivos, como nos lembra Gregotti, à marcação do terreno. De outro,
temos as aspirações desmaterializadas, etéreas, do Palácio de Cristal, de Joseph Paxton,
que Le Corbusier certa vez descreveu como a vitória da luz sobre a gravidade. Levando
em conta que poucas obras são inteiramente uma coisa ou outra, pode-se dizer que a
poética da construção provém em parte da inflexão e do posicionamento do objeto
tectônico. Assim, o terrapleno se estende verticalmente para transformar-se em arco ou
abóbada, ou alternativamente recua, primeiro, para se converter no suporte transverso
de uma simples treliça e, depois, para se transformar em um pódio que se ergue da terra,
no qual toda uma estrutura se ancora. Outros contrastes servem para levar avante esse
movimento dialógico, como 0 macio e o áspero, no nível do material (cf. Adrian Stokes),
ou o escuro e 0 claro, no plano da iluminação.
Finalmente, é preciso dizer alguma coisa sobre a im portância da “quebra” ou
“disjunção” em contraste com a significação da junção. Refiro-me àquele ponto em
que as coisas se rompem em vez de se conectarem; àquele fulcro significativo em que
um sistema, superfície ou material, termina abruptamente para ceder lugar a outro.
O significado pode então estar contido no jogo entre “junção” e “quebra” e, nesse
sentido, a ruptura pode ter tanto significado como a conexão. Essas considerações
sensibilizam a arquitetura aos riscos semânticos a que se expõem todas as formas de
articulação, desde a superarticulação das junções à subarticulação da forma.
PÓS-ESCRITO: FORMA TECTÔNICA E CULTURA CRÍTICA

Como observou Siegfried Giedion na introdução de seu estudo em dois volumes O


eterno presente (1962), entre os impulsos mais profundos da cultura moderna na pri­
meira metade do século x x estava o desejo da “ transvanguarda” de retornar à atempo-
ralidade de um passado pré-histórico: de recuperar alguma dimensão de um eterno
presente, distante do pesadelo da história e além das compulsões do progresso dos ins­
trumentos. Esse ímpeto se insinua novamente hoje como terreno potencial a partir do
qual se pode resistir à mercantilização da cultura. No âmbito da arquitetura, a tectônica
se infiltra como uma categoria mítica com a qual se entra em um mundo antiprocessual,
no qual 0 “fazer-se presente” das coisas novamente facilitará a aparência e a experiência
dos homens. Além das aporias da história e do progresso, e fora dos confinamentos rea-
donários do historicismo e da neovanguarda, h á possibilidade de uma contra-história
marginal. Esta é a história prim itiva do logos a que Vico aludiu em sua Nuova Scienza,
numa tentativa de aduzir a lógica poética da instituição. Uma marca da natureza radical
do pensamento de Vico é sua insistência em que o conhecimento não pertence apenas
ao domínio do fato objetivo, mas é também consequência do desenvolvimento subjetivo
“coletivo” do mito arquetípico, isto é, um repositório daquelas verdades simbólicas exis-
tenriais que residem na experiência hum ana.' O mito crítico da junção tectônica aponta
para esse momento atemporal destacado da continuidade do tempo.

[“Rappel à 1’ordre. The case for the te cton ic ” foi publi cado originalmente em A rclu te ctu ra l
D esign 60, n. 3-4,1990, pp. 19-25. C o r te s ia do autor e dos editores. ]

1. Hans Sedlmayr, Art in Crisis: T h e L o s t C e n t r e . Nova York e Londres: Hollis and Cárter Spoitis-
woode, Ballantyne &Co., Ltd., 1957, p. 164.
2-Clement Greenberg,“Modernisl Painting” , 1965, in Gregory Battcock (org.), T h e N e w A r t. Nova
York: Dalton Paperbach, 1966, pp. 101-102.
3. Giorgio Grassi,“Avant-Garde and Co n lin u ity” , O p p o s i t i o n s 21, verão de 1980, pp. 26-27.
4.Ignasi de Solà-Morales Rubió,“Criticai Discipline” , O p p o s i t i o n s 23, inverno de 1981, pp. 148-150.
5. Vittorio Gregotti, “Lecture at the New York Architectural League” , S e e t io n A , v. L n. 1. Montreal:
February/March 1983.
6. Marco Frascari,“Technometry and the Work o f Cario Scarpa and Mario Ridolf", P r o c e e J in g s ot
theACSA National Conference on T e c h n o d o o n i . Washington: 1987.
7. Marco Frascari,“0 Detalhe Narrativo”, neste capítulo.
8. Ver Joseph Mali,“Mythology and Co unter- History : The New Criticai Art ot'Vico and lovce” .

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