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Expressão tectônica
VITTORIO GREGOTTI . O EXERCÍCIO DO DETALHE
O in te re s s e p e la te c tô n ic a a p ro x im a te o ria s e estilos divergentes na crítica
p ó s -m o d ern a . D e m e tri P o rp h yrio s , por e x e m p lo , d e fe n d e a tectônica (cap.1)
o p ro m e te n d o "c o n s tru ir p a u la tin a m e n te um a ontologia da construção |...] um
m
o
discurso te c tô n ic o q u e , a lé m d e tratar da pragm ática do abrigo, tam bém repre-
sente sua própria te c tô n ic a c o m o m ito " .
Porphyrios d e fe n d e e s p e c ific a m e n te a transform ação m im ética da arquite
tura clássica e a m itificação da construção vernacular
Um in te re ss e a n á lo g o p e lo f a z e r p o d e ser e n co n tra d o e m trabalhos pós-m oder-
nos muito d iverso s, c o m o os d e T a d a o A n d o (cap 10) e Juhani Pallasmaa (cap. 9),
Morphosis e Frank Is ra e l, S te v e n H oll e M a rio B otta. A im portância atual do fazer
baseia-se na ideia de q u e a a m p lific a ç ã o da c o n stru ç ão pode ser uma fonte de sig
nificado. T ra ta -s e d e um re fle x o do in te re s s e fe n o m e n o ló g ic o pela "coisidade” da
arquitetura e e m sua c a p a c id a d e de reu n ir (cap. 9). Para esses arquitetos, a tectônica
e o detalhe s ig n ifica tivo c o n s titu e m u m a crítica tanto às fórm ulas convencionais do
modernismo o rto d o x o c o m o à s u p e rfic ia lid a d e do historicism o pós-m oderno. A cons
trução, com o pro ce ss o de " fo rm a ç ã o " , d e s e n v o lv e -s e às vezes com o uma narrativa
material com o, por e x e m p lo , nos te lh a d o s p a rcia lm e n te revestidos do Pavilhão Pine-
cote de Faye J o n e s . D e ix a r a e s tru tu ra a m o stra, que um a parte da arquitetura m o
derna e pós-m o d ern a ass o cia à a u te n tic id a d e , coincide com o "desvelam ento" que
Martin H eid eg g er co n sid e ra um a to p o é tic o
Para Vittorio G regotti, a arquitetura (d ifere n tem e n te da construção] está nos detalhes,
e ele lamenta que os a rq u ite to s c o n te m p o râ n e o s pareçam ter se esquecido disso. O
detalhamento revela as propriedades dos m ateriais pela aplicação das leis da construção
e torna inteligíveis as decisões do projeto O detalhe tam bém coloca em questão o pro
blema da hierarquia, porque sugere um a possível relação entre a parte e o todo.
Do te m p o dos e x ím io s d e ta lh e s de C ario Scarpa e Franco Albini para cá, os ar
quitetos p e rd e ram a c a p a c id a d e d e usar o d e ta lh e para dar sentido a mudanças es
truturais na a rq u ite tu ra . G re g o tti a firm a q u e a citação estilística historicista e o sim
bolismo visual popu lista o c u p a m hoje o lugar do detalh e, o que evidencia a "crise da
linguagem a rq u ite tô n ic a ". Ele m e n c io n a o classicism o para constatar que os detalhes
podem o ferecer o o rn a m e n to sig n ifica tivo que a tu a lm e n te é procurado erroneam ente
nopastiche. Se, por essa razão, P orp hyrios se e m p en h a num a autêntica revitalização
do clássico, os p ro jeto s d e G re g o tti são neorracionalistas e se apoiam nas tradições
do moderno e do clássico (cap. 7).
Gregotti afirm a que a natureza autorreflexiva da arquitetura exige que se repense o
detalhe como um problem a essencial da arquitetura. Este ensaio, assim como o que vem
em seguida, de M a rco Frascari, e o artigo "P erspectivas para um regionalismo critico",
de Kenneth Fram pton (cap. 11), todos publicados entre 1983 e 1984, refletem e incen-
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tivam um "retorno tectônico às coisas". A expressão tectônica da arquitetura pode
enriquecer a experiência sensorial e intelectual da construção.
1. Demetri Porphyrios, "Classicism is not a Style’\ A rch ite ctural D esign: C lassicism is not a Style
5-6, 1982, p. 56.
VITTORIO GREGOTTI
0 exercício do detalhe
O detalhe é seguramente um dos elementos mais reveladores da transformação da
linguagem da arquitetura. Já manifestamos muitas vezes a opinião sobre como essa
linguagem perdeu nos últimos anos sua capacidade de dar sentido às mudanças es
truturais no campo da arquitetura. Sua evidente redundância e obsessão pelo novo e
pelo diferente esvaziou todas as diferenças significativas. No entanto, as construções
que fazemos ganham uma forma, e esta adquire automaticamente uma capacidade de
comunicação com a linguagem.
Por essa razão, é importante examinar a sua constituição, da qual o detalhe - para
citar a famosa frase de August Perret‘7 / n y a pas de détail dans la construction” [Não
há detalhe na construção] - certamente não é só uma questão de detalhe. É claro que
o detalhamento não depende necessariamente de um princípio diretor global. Mesmo
que exista uma relação intrínseca com esse princípio, o exercício do detalhamento
não é uma simples recusa de decisões gerais, mas lhes dá forma, representa-as de
modo reconhecível e ordenado em suas várias partes.
Nas décadas de 1950 e 1960, o detalhe teve defensores de destaque na Itália, como
Franco Albini, Cario Scarpa e Mario Ridolfi, para os quais a análise e a visibilidade
dos materiais, propiciadas pelas leis da construção e formação do objeto arquitetônico,
eram o principal apoio do uso do detalhamento. Não é difícil ver que o detalhe elo
quente daquele período foi substituído por outro de reduzido conteúdo expressivo, ou
mesmo pelo retorno ao princípio diretor.
Não se trata propriamente de uma eliminação do detalhe, mas de uma mudança
no tratamento de sua relação hierárquica com o todo, que se tornou às vezes muito
mais sofisticada e complexa. A ligação entre os pavimentos, a relação dos materiais c
seus diferentes usos práticos e simbólicos tornaram-se mais explícitos e, pela primeira
vez, adquiriram expressividade. Isso teve um duplo significado. Por um lado, repre-
sentou uma negação do valor da construção como assunto relevante para a expressão
arquitetônica, o que concorreu para a progressiva abstração do detalhe e a perda de in
teresse pelo manejo dos materiais seguindo um modelo de modernidade que remonta
à arquitetura do fim do século x ix e do Iluminismo. Por outro lado, houve uma dis
cussão, não tanto sobre a possível eloquência do detalhe, mas sobre a especificidade de
seu valor expressivo e de sua composição técnica, em face de uma crise da linguagem
arquitetônica como linguagem de objetos, e tendo em vista uma reavaliação da ideia
de relação e de modificação, do lugar físico e histórico e do contexto da especificidade
e da diferença. Em ambos os casos, a afasia expressiva resultante, embora com diferen
tes significados, foi rapidamente substituída por um novo interesse pela decoração, ou
pelo ornato (para usar a distinção de [ Ernesto N. ] Rogers entre esses dois termos), que
se manifestou na peculiar adesão à citação estilística, em frequente transgressão das
regras metodológicas da arquitetura contemporânea.
Disso resultaram reconciliações apressadas com a tradição e a história, falsas so
luções derivadas de processos comunicativos, a busca de um consenso no nível mais
baixo da cultura de massa e, o que é pior para a arquitetura, a perda da prática, da
tradição e do saber acumulados. Os arquitetos se deixaram levar pela ilusão de que
a citação é um substituto eficiente para o detalhe como um sistema de articulação na
linguagem arquitetônica, e de que uma “concepção grandiosa” e global pode contro
lar e automaticamente impregnar cada aspecto do projeto e de sua execução, exceto a
própria abstenção do detalhe, o que discutivelmente acentuou a falta de influência das
técnicas construtivas como um fator da expressão. A consequência dessa ideia para a
obra construída muitas vezes é a desagradável sensação de uma maquete ampliada, de
uma falta de articulação das partes em diíerentes escalas: paredes que parecem feitas
de papelão recortado, janelas e portas inacabadas; em suma, um relaxamento geral
da tensão entre o desenho e o editício construído. É falso pensar que a cultura da in
dústria ou da construção (culturas atualmente distanciadas do projeto) pode resolver
o problema do detalhe; isso até pode ser conveniente ou económico para o arquiteto,
mas leva a uma perda sem precedentes do prestígio da arquitetura. Não surpreende
que na arquitetura clássica, ao contrário, “o projeto geral, bem-medido e bem-propor-
cionado” (isto é, o croqui do projeto, o projeto desenvolvido em escala e em maquete,
segundo [Antonio Averlino] Filarete) contivesse pouquíssimas indicações de detalhes:
o detalhe na construção e o detalhe na decoração exprimiam uma herança cultural
comum ao projeto e à construção, o que criava uma unidade de intenções que hoje é
completamente desconhecida.
Quanto a esse aspecto, sabe-se que a dissociação entre decoração e detalhe
foi praticada durante muitos séculos, às vezes com grande sucesso. No passado, a
dissociação exprimia uma discussão cont ínua acerca das regras clássicas “sobre o
ornamento na arquitetura” , que tinha o objetivo de compreendê-lo e rearticulá-lo.
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Mas, de acordo com certas teorias, com o a de [Leon B attista] A lberti, a noção de
ornamento era muito mais próxim a da form a expressiva do que a do enfeite rebus
cado, e a memória dos antigos vínculos entre o rn am en to e co n stru ção sem pre exis
tiu para atestar a integridade da arquitetura. Até o adm irável uso dos fragm entos
clássicos como detalhes arquitetônicos exem plares na arq u itetu ra m edieval era um
testemunho da perfeição daquela integridade. A tecnologia e a cu ltu ra do design
(no sentido produtivo, segundo a lógica da indú stria) in u n d a ra m “indevidam ente”
o campo da arquitetura. Isso se deve à fraqueza de nossa disciplina e à sua incapa
cidade de reintegrar aos horizontes da arquitetura todas essas técnicas, que certa
mente formam a base indestrutível do processo atual de co n stru ção e, portanto, do
exercício do detalhamento.
(“The Exercise of Detailing” foi extraído de Casabella n. 492, jun. 1983, p. 11. Cortesia do
autor e da editora.)
[
Como Vittorio Gregotti, 0 arquiteto Marco Frascari situa a origem do significado em
arquitetura na construção, especialm ente nas "junções form ais e reais" entre ma
teriais ou espaços. Nesse influente ensaio, Frascari privilegia a junção - 0 detalhe
apresentação
Apesar de funcionar de modo pragm ático, o d etalh e "fértil" tam bém pode
ser visto como uma expressão estética da estrutura e do uso da edificação. A leitura
semiológica de Frascari afirma que o detalhe é a unidade m ínim a de significação na
produção de sentido em arquitetura. Assim com o Vittorio G regotti fez em "O exercício
do detalhe" (neste capítulo), Frascari tom a com o exem plo a obra de Cario Scarpa, por
que "cada detalhe conta a história de sua feitura, localização e d im en sionam ento". A
noção de narrativa permeia todo o artigo, por exem plo, na provocadora ideia de que as
junções são pretextos para gerar novos textos. E isso é possível, alega Frascari, porque
0 detalhe ou junção pode impor sua ordem ao todo. Assim , a tectónica inclui uma série
interminável de ideias arquitetónicas.
A '* téchne do logos", que se pode traduzir como a produção do discurso, é o que Fras
cari denomina de construing Como Martin Heidegger, Frascari se interessa pelas cone
xões etimológicas entre as palavras, nesse caso, entre constructing (edificar) e construing
/conferir ordem e inteligibilidade ao mundo, isto é, construir o significado).
Na análise de Heidegger, o construir (bauen) está ligado à edificação, ao habitar e
ao cultivar ou cuidar. Heidegger afirma ainda que habitar é o objetivo da vida e depende
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do construir. A conexão linguística com a fenom enologia empresta credibilidade ao nexo
estabelecido por Frascari entre c o n s tru c tin g (detalhes e significado) e construing m ea-
ning [construir o significado). U m a rápida digressão pela psicologia da percepção
contribui para esclarecer seu argum ento de que o detalhe é a estrutura perceptual I
da apreensão da arquitetura dotada de sentido. A ênfase em devolver a arquitetura I
às suas origens na tectônica, vista com o geradora do significado, leva o ensaio de I
Frascari a percorrer vários tem as pós-m odernos de grande relevância. ■!
MARCO FRASCARI
0 detalhe
A comunidade da arquitetura tradicionalmente atribui a máxima “ Deus está nos deta
lhes” a Mies van der Rohe.1 A versão alemã do axioma, Der liebe Gott síeckí in Deínily
que pode ter sido a fonte original da máxima de Mies, foi usada por Aby Warburg
para falar da base iconográfica da pesquisa na história da arte. A versão francesa é
atribuída a Gustave Flaubert e, nesse caso, sua referência é um modo de produção
literária.2 O denominador comum nesses diferentes usos e formas sugere que o deta
lhe é uma expressão do processo de significação, isto é, a vinculação de significados a
objetos feitos pelo homem. Assim, os detalhes são os loci de uma ordem do saber em
que a mente descobre sua própria inteligibilidade, isto é, seu logos.'
0 objetivo deste ensaio é demonstrar a (unção dos detalhes como geradores, uma
função tradicionalmente atribuída à planta, e mostrar que a tecnologia, com seus dois
aspectos d e “ téch n e do lo g o s " e de “ logos da i c c h n e é a base da compreensão do pa
pel dos detalhes. Em outras palavras, o aspecto de construction (edificação) e o aspecto
de construing (atribuição de significado) da arquitetura manifestam-se igualmente no
detalhe. Difícil de dimensionar em uma definição tradicional, o detalhe arquitetônico
pode ser definido como a união da construção material [construction], resultado do
logosda té c h n e , com a construção do significado [construing], fruto da (cchne do logo*.
Os detalhes são muito mais que elementos secundários; pode-se dizer que são as
unidades mínimas de significação na produção arquitetônica de significados. Essas uni
dades foram escolhidas e separadas em células espaciais ou em elementos compositi-
vos, módulos ou medidas, na alternância de vazios e cheios ou na relação entre dentro
efora.5A fecundidade da sugestão de que o detalhe é a unidade mínima de produção se
deve ao duplo papel da tecnologia, que unifica o tangível e o intangível na arquitetura.
0 francês Jean Labatut, formado na Beaux-Arts francesa e professor em Princeton na
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área de arquitetura, fez a seguinte observação: “Quaisquer que sejam os espaços aéreos,
as superfícies e as dimensões envolvidas, o estudo preciso e a execução esmerada dos
detalhes comprovam a grandeza da arquitetura.‘O detalhe conta a história” /’
As possibilidades de inovação e invenção estão nos detalhes, e é com eles que os
arquitetos harmonizam o ambiente mais inusitado, difícil e desordenado criado pela
cultura.7A ideia de que a arquitetura é o resultado da solução, substituição e desenho
de detalhes sempre foi uma concepção latente no pensamento dos arquitetos. Ou seja,
há uma certa verdade no chavão clássico da crítica à arquitetura que diz: “ Isso poderia
ser uma excelente arquitetura se os detalhes tivessem sido mais bem trabalhados” . A
aplicação cuidadosa dos detalhes é a maneira mais importante de evitar erros de cons
trução nas duas dimensões da atividade profissional do arquiteto: a ética e a estética.
De fato, a arte do detalhamento está na união de materiais, elementos, componentes e
partes de uma construção de modo funcional e estético. A complexidade dessa arte de
juntar elementos é tão grande que um detalhe que funciona bem num edifício pode
dar errado noutro por razões muito sutis.8
A discussão do papel do detalhe no processo de significação na arquitetura se desenvol
verá em duas partes e em dois domínios distintos mas interligados: o teórico e o empírico.
A primeira parte procura entender o conceito de detalhe em diferentes níveis da
produção arquitetônica. O resultado da pesquisa é a identificação conceituai do deta
lhe ao ato de juntar e o reconhecimento de que os detalhes em si podem impor uma
ordem ao todo a partir de sua ordem própria. Consequentemente, a compreensão e a
execução dos detalhes constituem o processo básico por meio do qual devem desen
volver-se as teorias e as práticas arquitetônicas.
A segunda parte analisa a arquitetura de Cario Scarpa (1906-1979), arquiteto ve-
neziano. Louis Kahn comentou que na arquitetura de Scarpa “o detalhe é a adoração
da natureza” . A produção arquitetônica de Scarpa, em que o culto à execução de jun
ções é quase obsessivo, nos permitirá fazer uma interpretação empírica do detalhe no
processo de significação do ponto de vista de um modo definido culturalmente de
construction [edificação] e de um construing. Nas obras de Scarpa, as relações entre 0
todo e as partes e as relações entre o artífice e o desenhista permitem fundamentar di
retamente in corpore vili a identidade dos processos de percepção e de produção, isto
é, a união da edificação com a construção de sentido na feitura e no uso dos detalhes.
Os dicionários definem “detalhe” como uma parte pequena com relação a um
todo maior. Na arquitetura essa definição é contraditória, se não desprovida de sen
tido. Uma coluna é tanto um detalhe como um todo maior, e um templo redondo
clássico, uma totalidade, às vezes é um detalhe quando é uma lanterna no topo de
um domo. Na literatura arquitetónica, colunas e capitéis são detalhes clássicos, mas
também o são os piani nobili, os pórticos e as pérgulas. O problema da escala e da
dimensão nessas classificações e a relação entre edículas e edifícios tornam as defini-
ções de dicionário inúteis na arquitetura. Pode-se afirmar, porém, que todo elemento
arquitetônico definido com o detalhe sem pre é uma junção. Os detalhes às vezes são
“juntas materiais” , com o no caso de um capitel, que é a ligação entre o fuste de uma
coluna e a arquitrave, às vezes são “juntas form ais” , como um pórtico que é a ligação
entre um espaço interno e um espaço externo. Assim, os detalhes são um resultado
direto da diversidade de funções que existe na arquitetura. São as expressões mediatas
ou imediatas da estrutura e do uso das edificações.g
A origem etim ológica da palavra “detalhe” não ajuda a entender seu uso na ar
quitetura.10 A palavra surgiu na literatura arquitetónica nos textos teóricos france
ses do século x v iii e a partir da França o termo se difundiu em toda a Europa. Essa
difusão beneficiou-se do acoplam ento do termo ao conceito de “estilo” e da forte
influência da crítica e da teoria literária entre os arquitetos neoclássicos franceses.
Nicolas Boileau-Despréaux, na prim eira parte de seu livro, VArt Poétique, de 1670,
condenando o uso de detalhes supérfluos em poemas, fez uma analogia entre um
palácio e um poema, am bos sobrecarregados de detalhes.11 No século x vn i, essa ana
logia já era bastante conhecida, e Giovanni Battista Piranesi, imputando-a a Montes-
quieu, criticou-a como trivial ao defender sua teoria arquitetónica das construções
altamente detalhadas.12
Foram os teóricos franceses da architccturc parlante que consolidaram formal
mente 0 papel do detalhe na produção arquitetónica. Na analogia da “arquitetura fa
lante”, os detalhes arquiteturais foram interpretados como palavras que formam uma
frase.E,assim como a escolha das palavras e do estilo define a natureza de uma frase, a
escolha dos detalhes e do estilo define o caráter de um edifício. Essa poderosa função
do detalhe também foi assinalada por John Soane em uma de suas conferências sobre
arquitetura:“ Nunca será demais a atenção dedicada à produção do caráter peculiar de
cada construção, não só em seus aspectos gerais, mas também nos pequenos detalhes;
até um friso, por diminuto que seja, contribui para aumentar ou reduzir o caráter do
conjunto de que faz parte” .13
Na tradição da Beaux-Arts, a definição do papel do detalhe como originador do
caráter das edificações motivou a criação de um processo gráfico peculiar de estudá-lo,
a analytique. Nessa representação gráfica do projeto ou da observação de um edifício
os detalhes têm um papel predominante. Eles são dispostos em diferentes escalas na
tentativa de discernir o diálogo entre as partes na construção do texto do edifício. As
vezes,0 edifício aparece em sua totalidade no desenho, mas geralmente é representado
numa escala minúscula, de modo que mais parece um detalhe entre detalhes. O mé
todo de representação gráfica e composição usado por Piranesi em suas gravuras para
estudara M a g n ific e n z a da arquitetura romana é a origem da aiuilytiquc e de seu papel
na construção de sentido da arquitetura. As gravuras são uma interpretação gráfica,
fortemente influenciada por Vico, da visão de Cario l.odolfi do ambiente construído
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como um somatório de detalhes inadequados que serão substituídos por outros mais
apropriados.14 Outra forma de analytique, que ilustra a arquitetura italiana, podia ser
vista no verso das notas da lira italiana.
É importante notar que a analytique, como análise gráfica de detalhes, desenvolveu-
se numa época em que os arquitetos não tinham de preparar desenhos para especificar
a construção dos detalhes. Os desenhos quase não continham indicações de detalhes
e dimensões. O arquiteto ficava completamente dependente do trabalho dos seus arte
sãos. Os artesãos-construtores não precisavam de desenhos para mostrar detalhes cuja
execução era de conhecimento geral. A construção dos detalhes era dividida entre os
vários oficiais que possuíam os conhecimentos necessários para executá-los. Os mes
mos artesãos que forneceram informações para a Encyclopédie de [Denis] Diderot e
[Jean le Rond] D’Alembert eram perfeitamente aptos para desenhar com a exatidão
do artista, e a analytique era tão somente uma fonte para entender o papel organizador
de um único detalhe no conjunto da composição.15
Numa sociedade movida por razões de ordem predominantemente econômica,
a produção de detalhes, que se iniciara antes do desenvolvimento da sociedade in
dustrial e fora motivada por outras necessidades culturais, tornou-se problemática.
Não sendo mais considerados repositórios culturais e sociais duradouros, os edifícios
passaram a ser vistos como investimentos econômicos e deliberadamente planeja
dos para ter uma vida útil curta. Duas reações extremas se desenvolveram a partir da
mudança de escopo das edificações. Uma delas foi que as várias profissões ligadas à
construção não mais inferiam a execução dos detalhes a partir dos desenhos do pro
jeto. Os detalhes eram estudados e resolvidos na prancheta. A arte do desenhista foi
substituída pela habilidade do trabalhador manual, e o desenvolvimento de “detalhes
reais” foi substituído por procedimentos virtuais. Desse ponto de vista, o detalhe não
fazia mais parte do edifício; não era mais visto como uma junção, mas como um dese
nho de execução. Um Glossário Americano de Construção define a palavra “detalhe”
como “o esboço em escala grande de qualquer parte de um projeto arquitetônico” .16
Um glossário francês foi ainda mais preciso: “ Detalhe: Especificação ou descrição do
trabalho a ser realizado na execução de uma construção” .17 De acordo com essa de
finição, “detalhes” são meios verbais e gráficos de controlar o trabalho de operários
sem vocação profissional específica e despreparados para executar suas tarefas, até
mesmo, talvez, desonestos financeiramente.
A segunda reação à mudança do papel do detalhe pode ser exemplificada pela
arquitetura produzida pelo movimento Arts and C rafts.18 Esse movimento via no
detalhe um instrumento de redenção dos trabalhadores. A perícia e os conhecimen
tos aplicados à execução dos detalhes foram devolvidos aos trabalhadores. A perícia
profissional era o parâmetro exclusivo para a feitura dos detalhes, que eram consi
derados por si mesmos como um aperfeiçoamento da tradição construtiva. O co-
nhecimento dos detalhes e das especialidades correlatas era indispensável para que
o arquiteto exercesse sua profissão, já que lhe competia escolher os trabalhadores
certos para os detalhes certos.
Essa dualidade na produção física do detalhe se repetiu na concepção intelectual
do detalhe. Recorrendo a uma analogia conceituai, pode-se definir a arquitetura como
um sistema em que existe uma “arquitetura total” , o enredo, e uma arquitetura dos
detalhes, a narrativa. A arquitetura dos detalhes baseia-se
Vista por esse ângulo, a arquitetura é a arte da escolha apropriada dos detalhes para imaginar
ahistória. Um enredo com detalhes apropriados desenvolve-se numa boa “narrativa”.
A arquitetura como a arte do apropriado é o tema da teoria de Leon Battista Al-
berti. Ele pensa a arquitetura como a arte da escolha dos detalhes apropriados, cujo
resultado é a beleza, que é, em si, um objetivo importante. Alberti define a beleza como
Yconcinnitas’ [harmonia] de todos os detalhes na união a que pertencem” ; em outras
palavras, a beleza é a união habilidosa de partes segundo uma norma de que nada pode
ser acrescentado, subtraído ou modificado sem prejuízo para o conjunto. Quase to
dos interpretaram esse princípio como significando que um edifício deve ser um todo
completo e acabado, uma arquitetura total. No entanto, Alberti não aplica o princípio
ao edifício concreto, mas ao edifício criado no pensamento.20 A junção, isto é, o deta
lhe, é o lugar de encontro da construção ideada com a construção real. Um exemplo
perfeito dessa união entre função mental e representação física é a fachada do Palazzo
Rucellai, projeto de Alberti, em Florença. Apesar de a fachada estar incompleta - e a in-
completude é evidente - , os detalhes estão completos e nada pode ser acrescentado ou
subtraído que não prejudique a harmonia do todo. Os sulcos das junções das placas de
pedra que compõem o grosso revestimento de schiacciato florentino (representando a
estrutura de colunas e vigas das três ordens clássicas superpostas em relação com as ja
nelas arqueadas e paredes de fechamento) solucionam o problema matemático das re
lações entre as partes da fachada. As junções nem sempre são verdadeiras e o formato
das pedras não é tão regular quanto parece; sulcos falsos foram cavados nas pedras
para completar a arquitetura do detalhe e ao mesmo tempo servir-lhe de prova.
A busca da “ Beleza” para Alberti é a procura de uma relação precisa entre o deta
lhe e o significado que lhe é dado. A beleza é o resultado do processo de significação e
zconcmnitas é o processo de obtê-la. A concinnitas é a correspondência de três requi
sitos básicos: i) numeruSy 2) f in itio , 3) c o llo c a tio .2I
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Numerus é um sistema de cálculo. “A técnica de calcular faz parte da técnica de
construir casas.”22 Portanto, os números são instrumentos para dar significado. A
arquitetura contém elementos e para construir é necessário estabelecer correlações
numéricas entre eles. Em um trifório, três arcos são articulados a quatro colunas para
formar uma janela ou portal serliano. A prova está nos detalhes, nas molduras, capi
téis, bases e na chave de arco. Para Alberti, “a numerologia” é uma técnica para a se
leção de figuras e, por conseguinte, mostra que os detalhes se relacionam com formas
memoráveis, como o corpo humano ou as figuras cosmológicas.23
Finitio é um procedimento matemático para a definição da dimensão das direções
em que está articulado o espaço de objetos arquitetônicos. As arestas dos corpos tridi
mensionais da arquitetura são definidas por um sistema de proporções. Proporção ou
“analogia” é o uso de relações numa mensuração.24 Um sistema analógico é um con
junto de normas para a criação e a combinação de detalhes. Uma medida básica, ou
módulo, é a norma a partir da qual derivam todos os comprimentos, larguras e alturas,
e cada detalhe é medido de acordo com essa norma. Portanto, todas as partes de um
edifício deverão manter uma relação inteligível e direta entre si. Essa relação perma
nece estável mesmo quando sua forma ainda não tem uma expressão verbalizada.
Collocatio é a composição por lugar, isto é, a colocação funcional dos detalhes. A
função, nesse caso, não se limita apenas às dimensões práticas e estruturais, mas inclui
também dimensões históricas e estéticas.25 Portanto, a colocação dos detalhes tem es
treita relação com os outros dois requisitos: os números e as analogias. Desse modo, o
detalhe não é definido pela escala, mas a escala é o instrumento para controlá-lo.
A construção geométrica e matemática do detalhe arquitetônico não é de maneira
alguma uma questão técnica e deveria ser entendida como concernente ao problema
filosófico dos fundamentos da arquitetura ou da geometria; em última instância, é um
problema que pertence ao âmbito das teorias da percepção.
Os processos de projetação, ordenação de materiais e construção de uma casa
são técnicas da mesma forma que a geometria é uma técnica com a qual o arquiteto, o
construtor e o usuário de uma casa transformam o signo apropriado a fim de prever a
ocorrência de determinados eventos. A técnica da geometria engendra uma estrutura
que permite descrever o mundo construído, proporciona um arcabouço conceituai
no qual o arquiteto, o construtor e o usuário podem encaixar sua experiência empí
rica. A geometria mostra como derivar uma forma de outra por transformação.
Dessa maneira, a geometria não enuncia fatos, mas proporciona as formas com as
quais os fatos são enunciados. A geometria oferece um quadro conceituai ou linguís
tico para a construção física e a construção intelectual de um edifício. As estruturas
geométricas concretizadas nos detalhes arquitetônicos não enunciam fatos, mas for
necem uma estrutura para enunciar fatos dentro de uma determinada “escala” . Elas
proveem o modo de fazer comparações que estabelecem relações expressivas entre os
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detalhes arquitetônicos apreendidos pela visão. A noção de detalhes apreendidos indi
vidualmente pode ser ilustrada pelo fenôm eno da “ visão indireta” , que Hermann von
Helmholtz explica da seguinte m aneira:
Os edifícios são apreendidos de duas maneiras: pelo uso e pela percepção, ou seja,
pelo tato e pela visão [...] A apreensão tátil se realiza não tanto pela atenção como pelo
hábito. No que diz respeito à arquitetura, o hábito determina em grande medida até
mesmo a recepção óptica.29
Trata-se de uma teoria em pírica que considera toda percepção do espaço como de
pendente de convenções e que entende não só as qualidades, mas inclusive os detalhes
como nada mais que sinais, cujos significados são aprendidos pela experiência. Essas
convenções formam a base da arquitetura entendida como existência, forma e locali
zação de objetos externos. Helmoltz denomina-as de percepções. '1’ As percepções são
ideias ou sinais de objetos que resultam de uma interpretação das sensações que se
545
realiza por meio de processos de inferência geométrica inconsciente. A colocação de
detalhes tem um papel fundamental nesses processos de inferência. As sensações visu
ais guiadas por sensações táteis são as causas das proposições geométricas. Na arquite
tura, tocar num corrimão, subir degraus ou caminhar no espaço entre dois muros, do
brar uma esquina e reparar numa viga no teto resultam da coordenação de sensações
visuais e táteis. A localização desses detalhes dá origem às convenções que vinculam
um significado a uma percepção. A noção do espaço arquitetônico que é assim obtida
decorre da associação das imagens visuais dos detalhes pela visão indireta, com a rela
ção geométrica materializada em formas, dimensões e localização, que é desenvolvida
pelo tato e pelo caminhar por entre os edifícios.
A arte do detalhe está presente em sua forma mais refinada e culta na obra de Cario
Scarpa. Uma boa maneira de começarmos a analisar o conceito de detalhe na arquite
tura de Scarpa é citar as palavras de Louis Kahn:
547
tação e a construção de um edifício. A relação entre desenhos e edificações costuma
ser vista como uma representação cartesiana baseada na comparação visual de linhas.
Contudo, os desenhos de Scarpa mostram a verdadeira natureza dos desenhos arqui
tetônicos, isto é, o fato de que são representações resultantes de construções. Eles são
uma interpretação de juízos perceptivos sobrepostos ao processo real de construção
física de um objeto arquitetônico. As linhas, as marcas no papel, são a transformação
de um sistema de representação para outro, a transformação de sinais adequados com
vista à predição de determinados eventos arquitetônicos. Em outras palavras, de um
lado estão os fenômenos da construção e da transformação pelos construtores; de ou
tro lado estão os fenômenos da construção de significados e da transformação por
parte dos possíveis usuários. Em consequência disso, no mesmo desenho, estão pre
sentes várias camadas de pensamento.
0 projeto é elaborado com a mesma técnica do desenho. O contínuo processo de
inferência em que se baseia o processo de projeto transforma-se numa sequência de mar
cas no papel que são análogas aos processos de constructing e de construing. O pedaço de
papel escolhido para suportar o lento processo de construção de um projeto apresenta
seções verticais e horizontais simultâneas, bem como elevações do objeto projetado. Os
desenhos são cercados por vinhetas sem moldura, que analisam tridimensionalmente
qualquer junção do objeto, como se fizesse uma previsão do papel de cada detalhe na
criação do texto inteiro e na percepção dos detalhes pela “visão indireta” . Os desenhos
de Scarpa não definem futuros objetos arquitetônicos como simples somatório de linhas,
superfícies e volumes, mas apresentam o processo de transformação dos detalhes de um
sistema de representação para outro, do desenho para o edifício.
Nos desenhos de Scarpa pode-se ter a “ prova” do sistema de adequação que regula
a percepção da arquitetura. As representações de estruturas tridimensionais numa su
perfície bidimensional são a conclusão lógica da interação existente entre percepções
visuais e táteis. A parte central do desenho geralmente mostra construções gráficas
que poderíamos chamar de desenho técnico. Mas não é nada do que tradicionalmente
identificamos como plantas, seções e elevações. Os desenhos de Scarpa não são me
ras soluções de geometria descritiva cartesiana; são descrições da futura percepção
de como o objeto foi executado. Os componentes visuais da percepção são analisados
em função de um detalhe e não do todo, enquanto as percepções táteis são exami
nadas em função do conjunto. Os desenhos mostram componentes não visíveis, mas
que são o resultado e a projeção da construção e da interpretação do significado - o
edifício mental de Alberti. São o produto dos efeitos na memória dos sentidos do tato
e da visão na feitura e na utilização da obra de arquitetura. Os desenhos nunca estão
completamente terminados; somente fragmentos e partes deles estão concluídos. Esse
método revela por analogia que a arquitetura de Scarpa, apesar de ser uma totalidade,
não pode ser caracterizada como um todo consumado. Uma totalidade arquitetônica
é um fenômeno composto de detalhes unificados por um “artifício” , um princípio es-
truturante. Esse princípio, na arquitetura de Scarpa, é a ordem gerada pelo uso e pela
compreensão de ideias arquitetônicas clássicas, como o projeto da fachada.35
Scarpa é um Magister Ludiye seus edifícios são textos em que os detalhes consti
tuem a unidade mínima de significação. As junções entre diferentes materiais, formas
e espaços são pretextos para criar textos. A influência mútua entre esses comentários e
textos precedentes na arquitetura de Scarpa é sempre um problema de junções, e na
junção ele consegue mudar as convenções. Isso é possível porque muitos dos seus
textos arquitetônicos são comentários eruditos a textos anteriores e, em muitos casos,
como num scholium medieval, a interface do comentário com o texto original gera um
terceiro texto. No projeto do anexo da Gipsoteca Canoviana,36 em Possagno, Scarpa
conseguiu mudar a convenção que pede que as paredes do fundo de uma coleção de
esculturas em gesso sejam de cor. A solução de Scarpa foi pôr as esculturas brancas
contra uma parede toda branca banhada de luz, mas sem iluminar diretamente as
peças. 0 problema e a solução estão no uso da luz. Scarpa resolveu-os num detalhe
do encontro de três paredes em um canto cercado de vidro. Numa palestra proferida
na Universidade de Veneza (1976), Scarpa descreveu a execução arquitetônica desse
canto. 0 efeito de luz é produzido por um manejo formal. A solução da causa formal
resolve a causa final. Ele a descreveu como um “ recorte do azul do céu” , uma causa
formal, mas o resultado foi a iluminação da parede, a causa final. Nada descreve me
lhor esse detalhe do que as palavras do próprio Scarpa:
Eu gosto de muita [...] luz natural: eu queria recortar o azul do céu. Depois 0 que eu
queria era um nicho de vidro no alto [... ] O canto de vidro se torna um bloco azul em
purrado para cima e para dentro (do edifício), a luz ilumina as quatro paredes. Minha
inclinação por soluções formais me levou a preferir uma transparência absoluta. Por
isso, eu não quis botar o canto de vidro dentro de uma moldura. Foi um tour de force,
porque não era possível obter aquela ideia de transparência total. Quando superpo
nho os vidros, continuo vendo o canto, especialmente se 0 vidro é grosso. Dentro de
uma moldura, ele também ficaria visível. Mas aí, além disso, num dia claro, se poderia
vero reflexo. Olha, quando eu vi o reflexo [...] odiei a mim mesmo. Não tinha pensado
naquilo. São erros que a gente faz pensando, agindo, fazendo e, portanto, é preciso ter
uma mente dupla, tripla, a mente de um ladrão, de um homem que faz conjecturas,
que gostaria de roubar um banco, e é preciso ter o que eu chamo de presença de espí
rito, uma atenção sempre alerta para entender tudo o que está se passando. '
551
vertical. 0 espaço que é aberto pelo corte da parede da fachada serve a toda a com
posição do novo arranjo imaginado por Scarpa para o museu. O espaço, uma junção
virtual, é a principal articulação no percurso do museu, mas é, ao mesmo tempo, uma
“junção negativa” na articulação das massas no Castelvecchio. O espaço aberto, em vez
de separar, ajuda a ligar as massas da esquerda e da direita do castelo. Essas massas
situam-se dos dois lados da torre que articula a junção entre a ponte sobre o rio Adige
e o castelo. A escolha do zigurate como terminação da parede estabelece uma transi
ção entre o lado interno e o lado externo da articulação. O zigurate deixa visíveis os
materiais dessa complexa articulação arquitetônica, formada de planos verticais que
definem uma relação de moldura com a estátua de Cangrande, o eixo visual da articu
lação. O detalhe em zigurate também é usado em muitas outras partes do museu. No
estudo para o projeto da entrada, Scarpa lança mão desse detalhe fértil para resolver o
problema da junção das pedras usadas no piso e para solucionar a profunda abertura
das janelas na grossa espessura das paredes medievais.
O detalhe do zigurate também é largamente utilizado no projeto do Cemitério de
Brion. O material, concreto moldado in loco> dá novo significado ao detalhe. A intera
ção da forma com o material desloca o detalhe fértil do domínio de uma produção sub
specie utilitatis para o de uma produção sub specie aeternitatis. É concebido como uma
“ruína” carregada de lembranças eternas. É um detalhe perfeito para a arquitetura de
um cemitério, um lugar de lembranças. Assim usado, o zigurate prova ser um detalhe
fértil. Um detalhe comprova sua fertilidade quando deixa de ser uma linguagem arqui
tetônica privada e se torna acessível a todos por meio de uma produção coletiva. Um
exemplo célebre dessa fertilidade é o da janela serliana, que, após ser usada por Palla-
dio, tornou-se um detalhe-padrão conhecido como janela palladiana. De fato, o zigu
rate scarpiano foi copiado por muitos arquitetos em seus projetos, mas hoje é usado
na arquitetura coletiva e se tornou um padrão nos cemitérios do Vêneto. O templo
neoclássico in antis, que foi muito usado nas capelas familiares, modificou-se em vir
tude de um novo modelo de referência. O detalhamento das ordens dórica ou toscana
foi substituído por um novo tipo, uma nova ordem, o zigurate scarpiano em concreto
moldado in loco.
Concluindo esta discussão sobre o papel do detalhe como unidade mínima no
processo de significação (isto é, na manipulação do significado), é importante rea
firmar que a arquitetura é tanto uma arte como uma profissão, fato que se deduz do
conhecimento gerado pelo detalhe como junção. A arquitetura é uma arte porque se
ocupa não só da necessidade primordial do abrigo, mas também da união de espaços
e materiais de uma maneira significativa. E isso se realiza por meio de junções formais
e reais. É na junção, isto é, no detalhe fértil, que têm lugar tanto a construção física
\constructing\ como a construção do significado [construing].
Além disso, é importante para complementar nossa análise sobre o papel essencial
da junção como o lugar onde se dá o processo de significação lembrar que o signifi
cado da palavra arte, em sua raiz indo-europeia original, é “junção” . Conforme escre
veu Louis Kahn:
BIBLIOGRAFIA
553
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20. Leon Battista Alberti, De Re Aedijicatoria (Bolonha: 1782). O princípio do nihil addi é explicado
no primeiro volume, mas teoricamente desenvolvido nos volumes seis e sete. Sobre essa nova in
terpretação do conceito, veja a análise do papel da “ decoração nos pequenos templos”: “e ti pare
che, vi si possa, vi si debba aggiungcre,\
21. Alberti elabora essa noção tripartite de beleza no volume sete, ix, 5, pp. 229-230.
21 Ludwig Wittgenstein, Remarks on the Foundation o f Mathematics ( a , 11, 14, j; cf. 11, 47, e v, 46).
Oxford: 1956.
23. Sobre o uso do corpo humano como referência básica do design e fonte de medidas, veja Marco
Frascari, “A ‘Measure’ in Architecture: A Medical-Architectur Theory by Simone Stratico, Archi-
tetto Veneto” . Res, Spring 1985.
24. Para 0 conceito de analogia em arquitetura, ver Ferri (org.), Vitrúvio, pp. 30 ss.
25. Mukarovsky, Jan, “ The Place o f the Aesthetic Function” , op. cit., pp. 240 243.
555
26. H. von Helmholtz, Über Geometrie. Damstadt: 1968, p. 218.
27. R. Torretti, Philosophyof Geometry. Dordrecht: 1978, pp. 162-171.
28. Erwin Panofsky, Gothic and Scholasticims. Nova York: 1946.
29. Walter Benjamin, ílluminations. Nova York: 1968, p. 242.
30. Torretti, Philosophy of Geometry, op. cit., p. 168.
31. Accademia Oiimpica, Cario Scarpa. Vicenza: 1974, p. 1.
32. Mukarovsky, “The Place of Aesthetic Function”, op. cit., pp. 240-243.
33. Cario Scarpa, “Frammenti, 1926-78” , Rassegna 7,1981, p. 82.
34. H. Focillom, Piranesi. Bolonha: 1962, p. 66.
35. Scarpa, “Frammenti”, op. cit.: pp. 83-84.
36. Uma ampliação do museu em forma de igreja cristã, construído em 1836, para guardar as matri
zes em gesso das esculturas de Antonio Canova. [N.T.]
37. Ibid., pp. 83-84.
38. Para uma discussão sobre o uso de “detalhes férteis”, ver a análise do “ motivo fértil” em Anton
Ehrenzweig, The Hidden OrderofArt. Londres: 1962.
39. Louis Kahn, Light is the Theme. Forth Worth: 1975, p. 43.
L
EM FAVOR DA TECTÔNICA
apresentação
KENNETH FRAMPTON
Rappel à 1'ordre:
argumentos em favor
da tectônica
Escolhi tratar do tema da tectônica por vários motivos, entro os quais a tendência
atual de reduzir a arquitetura à cenografia. Essa atitude nasce em resposta ao triunfo
generalizado do galpão decorado de Robert Venturi, isto ê, â síndrome prevalente de
empacotar o abrigo como uma mercadoria gigante. Entre as vantagens da abordagem
557
cenográfica está o fato de os resultados serem inteiramente amortizáveis, com todas as
consequências que isso traz para o futuro do ambiente. Estou pensando, é claro, não na
doce decadência do romantismo do século x ix , mas na indigência total da cultura do
consumo. Acompanhando esses preocupantes prognósticos, está a dissolução geral das
referências estáveis do mundo moderno - o fato de que os preceitos que regem quase
todos os discursos, excetuando a aparente autonomia da ciência e da tecnologia, se
tornaram extremamente tênues. Boa parte disso já fora prevista, meio século atrás, por
Hans Sedlmayr, quando ele escreveu, em 1914:
Para lutar contra essa perspectiva de degeneração cultural, podemos recorrer a certas
posições de retaguarda na intenção de recuperar uma base de resistência. Estamos hoje
numa situação parecida com a do crítico Clement Greenberg que, em seu ensaio, de 1965,
UA pintura moderna” tentou reformular as bases da pintura nos seguintes termos:
Depois que 0 Iluminismo lhes negou todas as tarefas que elas podiam seriamente to
mar a si, parecia que as artes estavam prestes a ser assimiladas ao entretenimento puro
e simples, e o próprio entretenimento parecia pronto a ser assimilado, como a religião,
à terapia. As artes somente poderiam se salvar desse nivelamento por baixo se de
monstrassem que a espécie de experiência que proporcionavam era válida por si só, e
não seria obtida a partir de nenhuma outra atividade.2
Se nos perguntarmos qual poderia ser uma base equivalente de resistência para a ar
quitetura, teremos de procurá-la em um fundamento material semelhante, isto é, a
arquitetura deve necessariamente expressar-se na forma estrutural e construtiva. A
ênfase que estou dando à segunda, em lugar do pré-requisito do fechamento espacial,
deriva de uma tentativa de valorizar a arquitetura moderna do século xx mais em ter
mos de continuidade e inflexão do que da originalidade como um fim em si mesmo.
Em seu ensaio,de i98o,“Avant-Garde and Continuity” [Vanguarda e continuidade)
o arquiteto italiano Giorgio Grassi comentou da seguinte maneira o impacto da arte de
vanguarda sobre a arquitetura:
[...] quanto às vanguardas do movimento moderno, elas invariavelmente seguem
os passos das artes figurativas. [...] Cubismo, suprematismo, neoplasticismo etc.
são formas de pesquisa que nasceram e se desenvolveram no domínio das artes fi
gurativas, e somente depois de repensadas foram transpostas para a arquitetura. É
realmente patético assistir aos arquitetos daquele período “ heroico” , e os melhores
deles, tentando a duras penas se adaptar a todos aqueles “ ismos” : fazendo experiên
cias confusas por conta de um fascínio pelas novas doutrinas, avaliando-as, só para
depois se darem conta de sua ineficácia [...].3
559
é indicada; antes, é o papel crítico (no sentido kantiano do termo), isto é, o juízo de
valores, cuja falta é muito sentida na sociedade de hoje [...]
No sentido de que a arquitetura de Grassi é uma metalinguagem, uma reflexão
sobre as contradições de sua prática, sua obra adquire o atrativo de algo que é tanto
frustrante como nobre [...]4
561
Houve exceções importantes a essa divisão, principalmente onde, visando à perma
nência, a pedra foi cortada, trabalhada e erigida de modo a tomar a forma e a função
de uma armação. Embora esses fatos sejam tão conhecidos que quase não é preciso
repeti-los, geralmente ignoramos as consequências ontológicas dessas diferenças, isto
é, o modo pelo qual a armação tende para o aéreo e para a desmaterialização da massa,
enquanto esta tende para o telúrico, encravando-se cada vez mais fundo na terra. Uma
tende para a luz, a outra para a escuridão. Esses opostos gravitacionais, imaterialidade
da armação e materialidade da massa, simbolizam os dois opostos cosmológicos aos
quais elas aspiram: o céu e a terra. Apesar de nossa era científico-tecnológica altamente
secularizada, essas polaridades ainda constituem em larga medida os limites de nossas
experiências de vida. O exercício da arquitetura empobreceu-se a um nível tal que dei
xamos de reconhecer esses valores transculturais e o modo como permanecem latentes
em todas as formas estruturais. Na realidade, essas formas servem para nos lembrar,
seguindo Heidegger, que objetos inanimados também podem evocar o “ser” e, por meio
dessa analogia com nosso corpo, percebemos o corpo de um edifício como se fosse lite
ralmente um ente físico. O que nos traz de volta ao privilégio dado por Semper à junção
como elemento tectônico primordial, o nexo fundamental em torno do qual o edifício
começa a existir, isto é, articula-se como uma presença em si.
A ênfase de Semper na junção sugere que a expressão da transição sintática funda
mental se dá na passagem da base estereotômica à estrutura tectônica, e que essas tran
sições constituem a essência mesma da arquitetura: são os principais constituintes que
fazem uma cultura da construção diferenciar-se de outra.
Há um valor espiritual intrínseco nas particularidades de uma determinada jun
ção, na“coisidade” do objeto construído, tanto que a junção genérica se torna mais um
ponto de condensação ontológica do que mera conexão. Basta pensar nos trabalhos de
Cario Scarpa para ter uma ideia da manifestação contemporânea desse atributo.
O primeiro volume da quarta edição do livro de Karl Bõtticher, Tektonik der Hel-
lenerty foi publicado em 1843, dois anos depois da morte de [Karl Friedrich] Schinkel,
em 1841. Três outros volumes saíram sucessivamente durante a década seguinte, 0
último em 1852, mesmo ano da publicação dos Quatro elementos da arquitetura, de
Semper. Bõtticher desenvolveu nesse livro, sob vários ângulos, o conceito de tectô
nica. Em um primeiro nível, ele idealizou uma combinação conceituai criada pelo
entrelaçamento adequado dos elementos construtivos. Simultaneamente articula
das e integradas, essas combinações foram consideradas com o a form a-corpo, ou
Kõrperbilden, que tanto garantem o acabamento material de um edifício como per
mitem que essa função seja reconhecida como uma forma simbólica. Em outro nível,
Bõtticher distinguiu entre a Kernform, ou núcleo, e a Kunstform , ou revestimento
decorativo, este último com a finalidade de representar e simbolizar a condição ins
titucional da obra. De acordo com Bõtticher, este invólucro ou revestimento devia
ser capaz de revelar a essência íntim a do núcleo tectônico. Ao mesmo tempo, Bõt-
ticher insistiu em dizer que é preciso diferenciar a forma estrutural indispensável
do seu enriquecimento, independentem ente de este último ser a mera definição
da forma dos elementos técnicos, com o no caso da coluna dórica, ou da cobertura
com revestimento de sua form a básica. Posteriormente, Semper adaptou a noção
deKunstform à ideia de B ekleidung, ou seja, ao conceito de literalmente “ revestir” a
trama de uma estrutura.
Bõtticher foi muito influenciado pela ideia do filósofo )osef von Schelling de que
a arquitetura transcende o mero pragmatismo da construção porque assume uma sig
nificação simbólica. Tanto para Schelling como para Bõtticher, o inorgânico não tinha
nenhum significado simbólico e, por isso, a forma estrutural somente podia adquirir
valor simbólico por sua capacidade de engendrar analogias entre a forma orgânica e a
tectônica. Mas era preciso evitar todo tipo de imitação direta da forma natural; ambos
pensavam que a arquitetura só podia ser imitativa se imitasse a si mesma. Essa opinião
tende a corroborar o argumento de Grassi de que a arquitetura sempre se diferenciou
das artes figurativas, ainda que suas formas possam ser percebidas como análogas às
da natureza. Nessa qualidade, a arquitetura funciona ao mesmo tempo como metáfora
econtraste com o que é naturalmente orgânico. Remontando o desenvolvimento desse
pensamento, podemos citar o texto de Semper intitulado “ Teoria da beleza formal” , de
1856, em que ele não associava mais a arquitetura à pintura e à escultura, como artes
plásticas, mas à dança e à música, como artes cósmicas, ou seja, como uma arte que
cria um mundo ontológico e não com o uma forma representacional. Semper consi
derava essas artes como as mais importantes não apenas por serem simbólicas, mas
também porque expressavam a secreta compulsão lúdico-erótica do homem de acom
panhar uma cadência, fazer um colar, tecer um desenho e, desse modo, praticar a deco
ração de acordo com um princípio rítmico.
Os quatro elementos da arquitetura, de 1852, encerra o debate, uma vez que Semper
acrescentou uma dimensão antropológica específica à noção de forma tectônica. O
esquema teórico de Semper representa uma ruptura fundamental com a regra huma
nista de quatrocentos anos da utilitas,firm itas e venustas, que primeiramente funcio
nou como tríade das intenções da arquitetura romana e depois como alicerce da teoria
arquitetônica pós-vitruviana. A reformulação radical de Semper nasceu de sua obser
vação de um modelo de cabana caribenha durante a Grande Exposição de 1851. A reali
dade empírica da simplicidade desse abrigo levou Semper a rejeitar a cabana primitiva
de Laugier, aduzida em 1763 como forma primordial de abrigo, para consubstanciar 0
paradigma do frontão triangular da arquitetura neoclássica. Os Quatro Elementos de
Semper revogavam essa afirmação hipotética e propunham, em vez dela, uma concei-
tuação antropológica que compreendia: 1) uma lareira, 2) um aterro, 3) uma armação e
umtelhado, e 4) uma membrana envoltória.
563
Apesar de rejeitar a autoridade neoclássica, o modelo elementar de Semper nem
por isso deixava de dar primazia à armação sobre a massa com primida. Ao mesmo
tempo, sua tese quadripartite reconhecia a importância fundamental do aterro, isto é,
de uma massa telúrica que de uma forma ou de outra serve para alicerçar a armação, a
parede ou o Mauer no terreno.
Essa marcação, conformação e preparação do terreno mediante uma terraplena-
gem tinha numerosas ramificações teóricas. De um lado, isolava a membrana envoltó-
ria como ato diferenciador, de modo que o textural podia ser literalmente identificado
com a natureza protolinguística da produção têxtil que Semper considerava ser a base
de todas as civilizações. Por outro lado, conforme observou Rosem ary Bletter, ao privi
legiar o aterro como forma básica fundamental, Semper conferiu relevância simbólica
a um elemento não espacial, a lareira, que quase sempre era parte inseparável da terra-
plenagem. A expressão “preparar o terreno” e o uso metafórico da palavra “ fundação”
relacionam-se claramente com a primazia do aterro e da lareira.
Semper fundamentou sua teoria da arquitetura em mais de uma acepção, num
fator fenomênico de fortes implicações sociais e espirituais. Afirm ou que a origem
da lareira estava ligada à do altar, e, como tal, era o nexo espiritual da forma arqui
tetônica. Nesse sentido, a lareira contém importantes significados. A palavra deriva
do verbo latino aedificare, o qual, por sua vez, está na origem da palavra inglesa
edifice, que significa, literalmente,“ fazer uma lareira” . As conotações institucionais
latentes tanto em lareira como em edificar estão ainda sugeridas no verbo edify
[edificar], que significa educar, fortalecer e instruir.
Influenciado pelas descobertas linguísticas e antropológicas de sua época, Sem
per interessou-se pela etimologia do termo edificação. Assim , distinguiu a solidez de
uma muralha fortificada feita de pedra, conforme indica a palavra M auer, da estru
tura leve e preenchida da parede de taipa, por exemplo, das construções residenciais
medievais, para as quais usa o termo Wand. A expressão mais vívida desta distinção
fundamental está na reconstrução de uma cidade medieval alemã realizada por Karl
Gruber. Tanto Mauer como Wand se fundem na palavra wall [parede em inglês],
mas esta última, no alemão, se relaciona com a palavra que indica vestir, Gewand> e
com o termo Winden, que quer dizer bordar. Coerentemente com a primazia que
conferiu à tecelagem, Semper sustentava que o artefato estrutural básico primitivo
era o nó, que predominava nas construções nômades, principalm ente nas tendas
dos beduínos em seu interior. Cabe notar, nesse sentido, a análise de Pierre Bourdieu
da casa dos beduínos, em que o tear é identificado com o lugar de honra da mulher
e o sol do interior. Sabe-se que existem conotações etim ológicas nessa associação,
e que Semper tinha ciência disso, principalmente no que diz respeito à relação en
tre nó e junçãOy o primeiro termo sendo indicado em alemão por die Knoten, e o
segundo por die Naht. No alemão moderno, as duas palavras estão relacionadas a
564
die Verbidung, que se pode traduzir à letra com o “a ligação” . Todas essas indicações
tendem a apoiar a tese de Sem per de que o elemento constitutivo básico da arte de
construir é a junção.
A primazia dada por Sem per ao nó parece confirmar-se na pesquisa de Gunther
Nitschke sobre os rituais japoneses de união e separação, conforme exposto em seu
ensaio original “ Shi-M e”, de 1979. Na cultura xintoísta, esses rituais prototectônicos de
união são ritos agrários de renovação, que indicam a um só tempo a estreita associa
ção entre construir, habitar, cultivar e ser, tratada por Martin Heidegger em seu ensaio
“Construir, habitar, pensar” , de 1954.
A distinção estabelecida por Sem per entre tectônica e estereotômica nos leva de
volta aos recentes argum entos teóricos do arquiteto italiano Vittorio Gregotti, que
propõe que a marcação do terreno, mais do que a cabana primitiva, é o ato tectônico
primordial. No discurso que proferiu em 1983 na Liga Internacional de Nova York,
Gregotti declarou que:
565
orgânica e a exposição da complexidade. As ferramentas da segunda são a avaliação
das relações físicas, a definição formal e a interiorização da complexidade.5
Tecnologia é uma palavra estranha. Sempre íoi diíícil definir seu campo semântico. Há
mudanças de sentido, em diferentes épocas e diíerentes lugares, na palavra “ tecnologia”,
de acordo com seus componentes originais de tcch nc e logos* como uma relação especular
entre a téchne do logos e o logos da tcch nc. Na época do Iluminismo, a retórica da tcchnc
do logos foi substituída pelo logos da tc c h n c , de teor científico. Entretanto, na arquitetura
de Scarpa essa substituição não ocorreu. A tecnologia está presente nas duas formas com
uma qualidade quiasmática. Traduzir essa presença quiasmática na linguagem própria da
arquitetura é como dizer que não existe construção física sem uma construção do signifi
cado, nem construção do significado sem uma construção física.'1
567
junção como o lócus do processo de significação, lembrando que o significado da pa
lavra arte na raiz indo-europeia original é “junção” .7
[“Rappel à 1’ordre. The case for the te cton ic ” foi publi cado originalmente em A rclu te ctu ra l
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February/March 1983.
6. Marco Frascari,“Technometry and the Work o f Cario Scarpa and Mario Ridolf", P r o c e e J in g s ot
theACSA National Conference on T e c h n o d o o n i . Washington: 1987.
7. Marco Frascari,“0 Detalhe Narrativo”, neste capítulo.
8. Ver Joseph Mali,“Mythology and Co unter- History : The New Criticai Art ot'Vico and lovce” .