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SUMÁRIO
Entrevista Por uma cidadania multicultural EDITORA DIMENSÃO • V.14 • N.84 • NOV./DEZ. 2008 • ISSN 1413-1862 • R$ 23,00
v. 14 • n. 84 Nilma Lino Gomes
nov./dez. 2008
Biblioteca para
Crianças e Jovens Alan Roberto
O mundo de Buster
Dicionário Crítico
da Educação
Aprendizagem
Biblioteca para
Professores
Dominique Colinvaux
Agenda de
Educação e Cultura
A escola e o direito de aprender dos alunos
José Francisco Soares
na escola
Entrevista com
Nilma Lino Gomes
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editorial
O baobá e as
contas do cabelo
Perguntar aos alunos da Escola Municipal Monteiro Lobato, em Belo Horizonte,
o que eles sabem sobre o baobá pode ser o início de uma conversa animadora. “É uma
árvore linda e diferente porque os galhos parecem raízes. A gente tem a impressão que
ela está de cabeça para baixo. Tem até uma lenda...”, dispara Felipe Augusto de Souza
Amorim, 8 anos.
Originária da Costa do Marfim, a lenda do baobá encantou os alunos dessa esco-
la de Educação Infantil e de 1º Ciclo, que decidiu colocar as relações étnico-raciais no
eixo de seu projeto político-pedagógico. O trabalho é feito desde 2006, quando oito
professores da escola fizeram um curso de capacitação de 180 horas no Programa Ações
Afirmativas da UFMG.
Desde então, os alunos passaram a ter duas aulas semanais de cultura e história
africanas e afro-brasileiras. Quem visita a escola sente a presença do trabalho em dife-
rentes espaços. Na biblioteca há um bom acervo de literatura negra. No auditório são
realizadas apresentações de grupos culturais e exibidos documentários sobre a África. As
paredes das salas exibem inúmeros cartazes e mapas feitos pelas próprias crianças, que
aprenderam a construir a mancala e o bezette, jogos da tradição popular africana. Não
é só: o que mais se vê no pátio são os cabelos à moda afro, trançados com contas co-
loridas.
Não deixe de ler a entrevista com a professora da UFMG Nilma Lino Gomes.
Ela fala da construção de uma escola e uma sociedade mais democráticas e da importân-
cia de colocar em prática a Lei Federal nº 10.639 de 2003, que torna obrigatório o ensi-
no de história e cultura africanas e afro-brasileiras.
Boa leitura!
Rosangela Guerra
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sumário
5
Entrevista Por uma cidadania multicultural
Nilma Lino Gomes
14
Artigos Didática Magna e sua influência na pedagogia contemporânea
22
Ronaldo Aurélio Gimenes Garcia
32
Adriana Carolina Hipólito de Assis
40
Ana Maria Falsarella
44
Presença Infantil A criança pequena e a escrita: experiência em uma biblioteca da Espanha
Mônica Correia Baptista
52
Reportagem Pedagogia da comunidade
Marita Andrade e Rosangela Guerra
58
Biblioteca para
Crianças e Jovens
O mundo de Buster
Alan Roberto
60
Dicionário Crítico
da Educação
Aprendizagem
Dominique Colinvaux
66
Biblioteca para
Professores
A escola no singular e no plural
Shoko Kimura
70
Educar o Olhar Nas telas do projeto Janela Indiscreta
Milene Silveira Gusmão
76
Ponto de Vista A escola e o direito de aprender dos alunos
79
José Francisco Soares
Agenda de
Educação e Cultura
neste número
Nossa
A criança pequena e a escrita:
capa:
experiência em uma biblioteca Creoula da Bahia.
da Espanha
Cartão-postal,
Fotografia de Rodopho
Situada na pequena cidade de Parets del Vallès, na região Lindermann,
metropolitana de Barcelona, a biblioteca Can Butjosa c. 1890. Coleção
ocupa uma casa antiga, típica moradia de camponeses. particular de
Desde 1983, é um centro especializado em leitura monsenhor Jamil
infantil e juvenil, que desenvolve atividades destinadas à Nassif Abib.
formação do pequeno leitor.
Fundação: 1985
DIRETORIA: Gilberto Gusmão de Andrade
Zélia Almeida
CONSELHO EDITORIAL:
Angela Tonelli Vaz Leão, Angelo Barbosa Monteiro Machado, Carmem Lúcia Eiterer,
Carlos Roberto Jamil Cury, Ednéia Consolin Poli, Eduardo Fleury Mortimer,
Fátima Regina Teixeira de Salles Dias, Inês Assunção de Castro Teixeira, Iria Brzezinski,
Ivete Lara Camargos Walty, José de Sousa Miguel Lopes, Luciano Mendes de Faria Filho,
Lucíola Licínio de Castro Paixão Santos, Magda Becker Soares, Maria Antonieta Pereira,
Maria Aparecida Paiva Soares dos Santos, Maria da Conceição Pereira Bicalho,
Maria das Graças Rodrigues Paulino, Maria Emília Caixeta de Castro Lima,
Maria Inês Mafra Goulart, Marildes Marinho, Marilia Barcellos Guimarães,
Mírian Paura Sabrosa Zippin Grispun, Regina Leite Garcia,
Seja colaborador da revista. Regina Lúcia Couto de Melo e Samira Zaidan.
A reprodução de textos,
PROGRAMAÇÃO VISUAL: Espaço Gráfico
sem prévia autorização da
Editora, é proibida.
REVISÃO: Bárbara Sampaio e Maria Lina Soares Souza
entrevista
Nilma Lino Gomes
Por uma
N
Entrevista concedida a
ROSANGELA GUERRA.
entrevista
Nilma Lino Gomes
PP: Qual a importância da Lei Federal nº 10.639, de Nilma: Aos poucos, os educadores e as educadoras vão
2003? compreendendo que a questão racial diz respeito a todos
Nilma: A lei é importante em vários aspectos. Posso citar nós, independentemente do nosso pertencimento étni-
alguns: O primeiro ponto é que se trata de uma altera- co-racial. E, se desejamos construir uma escola e uma
ção da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação sociedade mais democráticas, temos que nos posicionar
Nacional), que inclui artigos ligados à obrigatoriedade na luta contra o racismo e contribuir para a superação de
do ensino de história e cultura africanas e afro-brasilei- estereótipos e preconceitos raciais. É uma questão de
ras. Dessa forma, a Lei nº 10.639, que acaba de ser alte- cidadania, mas não de uma cidadania abstrata. Eu diria
rada pela Lei nº 11.645, de 2008, (devido à inclusão da que é uma cidadania multicultural, algo que no Brasil
temática indígena), é uma lei nacional e, por isso, deve ainda tem sido muito pouco discutido.
ser cumprida em todas as escolas públicas e privadas da Lamentavelmente, na formação inicial, nos cursos
Educação Básica do País. de Pedagogia e Licenciatura e também nos bacharelados,
O segundo ponto a destacar é que essa lei é uma encontramos inúmeras resistências à inclusão da discus-
medida de ação afirmativa. Ela é fruto da ação histórica são sobre a África (de maneira crítica) e a questão afro-
do Movimento Negro e sua pressão sobre o Estado. brasileira. De um modo geral, tais discussões ainda ficam
Antes mesmo de a lei existir, várias ações nesse sentido já restritas às disciplinas optativas, ministradas pelos
eram realizadas em diferentes partes do País, porém, docentes interessados no tema. A África e a questão
como iniciativas isoladas do Movimento Negro ou de racial brasileira continuam invisíveis na grande maioria
intelectuais interessados no tema. das grades curriculares dos cursos de graduação e pós-
A lei desmistifica uma idéia muito presente no graduação, sobretudo na área da educação. Se somarmos
senso comum de que ação afirmativa se reduz às cotas (é a isso a questão de gênero e a questão geracional, teremos
bom esclarecer que eu concordo plenamente com as cotas um quadro ainda mais grave.
como medida de ação afirmativa!). A lei, assim como os As universidades têm sido um dos espaços mais
projetos de formação de professores para a diversidade resistentes. Porém, há algumas que se destacam nesse tra-
étnico-racial desencadeados pelo MEC, por estados e balho e são geralmente aquelas que possuem Núcleos de
municípios, também são medidas de ação afirmativa. Estudos Afro-brasileiros (NEABs) atuantes e críticos. De
Tudo isso nos ajuda a compreender o caráter polí- um modo geral, são os profissionais desses grupos que
tico, social, jurídico e pedagógico das ações afirmativas desencadeiam pesquisas e práticas, que ministram disci-
como políticas, ações e práticas públicas e privadas que plinas específicas sobre o tema na graduação e pós-gra-
visam a corrigir desigualdades historicamente impostas a duação (mesmo que sejam optativas), que realizam tra-
determinados grupos sociais e étnico-raciais de uma balhos de formação de professores e professoras voltados
sociedade. Portanto, a Lei nº 10.639 é mais do que para a diversidade étnico-racial e que dialogam com o
“inclusão”. É o reconhecimento da desigualdade racial Movimento Negro. São eles também que pressionam o
na educação e a garantia do direito à diferença. MEC e as secretarias de educação. É claro que existem
acadêmicos não vinculados aos núcleos que também rea-
PP: A lei tem conseguido abrir o debate sobre a ques- lizam estudos, intervenções e pesquisas. Mas, pela minha
tão racial na educação? experiência, eu diria que são muito poucos.
entrevista
Nilma Lino Gomes
PP: Em sua opinião, por que encontramos resistência Outro motivo que pode ser apontado é que a his-
na universidade em relação à cultura negra? tória e cultura africanas antes e depois da colonização, a
Nilma: A relação com o conhecimento implica, também, cultura negra e a questão racial brasileiras são campos de
relações de poder. Quando uma temática que durante investigação ainda em processo de consolidação.
anos foi silenciada ou tratada academicamente de forma Durante muito tempo, na universidade, a questão racial
distorcida – como é o caso da questão racial e da cultura e a cultura negra ficaram restritas a determinados grupos
negra – começa a conquistar espaço e visibilidade, produ- e centros de estudos que mais dialogavam entre si e com
zem-se mudanças, e estas afetam diretamente os setores os seus pares do que com a sociedade e com a Educação
acadêmicos que usufruem lugares privilegiados no con- Básica. No campo da história, por exemplo, existem
texto das relações de poder. Tal processo possibilita a muitos estudos sobre escravidão, mas poucos sobre o
explicitação de posicionamentos distintos sobre a relação continente africano antes da colonização. Na geografia,
entre a ciência e os movimentos sociais. Novos questio- temos poucas pesquisas e trabalhos sobre África e sobre
namentos sobre a forma como o “outro”, a diferença e a o negro na geografia do Brasil. Atualmente, alguns
diversidade têm sido tratados no campo da pesquisa cien- núcleos começaram a realizar essa discussão na universi-
tífica são desencadeados. O apogeu de uma determinada dade. No entanto, muitas vezes são vistos pelos colegas
forma de fazer ciência começa a ser questionado, e as suas da área como produtores de um discurso militante. A
lacunas, produção de invisibilidades e incoerências come- militância, aqui, não é entendida no seu sentido políti-
çam a ser desveladas. A questão racial é um dos temas que co. Ela é vista como produção de um discurso esvaziado,
provocam esse processo. E isso incomoda, gera descon- superficial. Essa acusação precisa ser questionada. Ela
fianças, inseguranças e resistências. Apesar de a universi- revela a intenção de esvaziamento do discurso e do tra-
dade sempre apregoar que é uma instituição aberta ao balho acadêmico realizado com seriedade por tantos in-
novo, é preciso admitir que existem, no seu interior, seto- telectuais que se debruçam sobre a temática racial. É
res muito fechados e muito conservadores, sobretudo, no também uma distorção intencional do caráter sério e
que se refere à relação com os movimentos sociais e suas indagador da própria militância. E, por último, revela
demandas ao campo do conhecimento. uma visão que acredita que a produção do conhecimen-
to pode se dar de forma separada da sua dimensão polí-
A África e a questão racial brasileira tica. Ora, todos nós sabemos que essa separação não é
possível. O conhecimento é produzido em um campo
continuam invisíveis na grande maioria
político, e isso implica posicionamentos daqueles que o
produzem e tensões entre as interpretações científicas
na área da educação.
Nilma: Os motivos são vários. Eu poderia destacar
alguns. Acho que as escolas, assim como a sociedade,
vivem sob a égide do mito da democracia racial. Essa
entrevista
Nilma Lino Gomes
crença de que vivemos relações raciais harmoniosas, de brasileiro, suas histórias, suas lutas e conquistas? É forte
que a miscigenação brasileira resolveu os problemas ainda a presença de imagens estereotipadas e opiniões
raciais no Brasil é algo terrível! Ela desvia o nosso olhar coladas no senso comum. As pessoas lêem pouco sobre o
das sérias conseqüências do racismo na nossa vida e em- tema e repetem várias distorções do assunto realizadas
bota o entendimento das pessoas. Esse mito, uma das pela mídia brasileira. Essa postura não deveria ser adota-
expressões do racismo ambíguo brasileiro, está enraizado da pelos educadores e educadoras.
na nossa cultura, na nossa política e na nossa educação.
Quando ficamos presos nas malhas do mito, simples- PP: Por que a diversidade cultural e étnico-racial brasi-
mente não reagimos diante do racismo e da desigualda- leira ainda não se tornou um dos eixos orientadores das
de racial, ou, quando os enxergamos, tendemos a desviar políticas, das práticas e dos currículos?
o nosso olhar e a nossa ação dizendo que se trata de uma Nilma: A Lei nº 10.639 é um passo importante nesse
questão pessoal, que é uma brincadeira ou que é uma sentido, mas para que ela realmente desencadeie uma
questão de classe. Ou, ainda, julgamos as pessoas negras política educacional efetiva há um longo caminho a per-
culpadas pelo próprio racismo que sofrem. correr. E para que o resultado desse percurso seja positi-
Quantas vezes já escutei frases dos docentes da vo, é necessário que se criem condições concretas para tal.
Educação Básica e de colegas da universidade dizendo Nesse caso, junto com a questão racial, outras dimensões
que “o negro discrimina a si mesmo”; “ o negro é discri- da diversidade deveriam e precisam ser contempladas na
minado porque é pobre”; “ações afirmativas e cotas são política educacional em nível federal, estadual e munici-
esmolas do Estado”; “as cotas vão ferir o mérito acadê- pal. Reconheço que existem várias ações do MEC e de
mico”; “as cotas vão causar uma divisão racial”. Na socie- algumas secretarias municipais e estaduais de educação,
dade e na escola brasileiras, desde a Educação Básica ao mas elas ainda não se tornaram um dos eixos centrais da
Ensino Superior, os docentes conseguem, muitas vezes, política. Não se vê, por exemplo, o mesmo investimento
ficar indignados diante do racismo, porém, continuam de tempo e quantidade de recursos que hoje seguem para
imóveis. Essa é uma das maneiras por meio das quais o as avaliações de desempenho, as provinhas e os provões,
mito da democracia racial opera em nossa sociedade. entre outros, aplicados à educação para a diversidade.
Tenho visto essa situação nas escolas e na universidade, e Esquece-se de que os resultados de desempenho –
várias pesquisas sobre educação e relações raciais revelam “medido pelas avaliações”– expressam não só situações
isso. objetivas ligadas às questões de ordem material, mas,
Acho que as escolas brasileiras, o currículo, os também, fatores intra-escolares, de ordem subjetiva, e
livros didáticos, a própria política educacional expressam nesses estão incluídas questões referentes à maneira
de várias formas esse mito, que ajuda a construir resistên- como as escolas lidam com valores, preconceitos e repre-
cias ao debate, à discussão e à implementação de práticas sentações sobre os considerados diferentes.
pedagógicas voltadas para a diversidade étnico-racial. Estão presentes também os resultados da inter-
A ignorância sobre a questão africana e afro-brasi- relação da escola com a sociedade e as duras condições de
leira nas escolas e nos cursos de formação inicial e conti- existência e sobrevivência vividas, principalmente, pelos
nuada de professores também tem ajudado a criar resis- setores populares. E é no interior desses grupos que se
tências. O que sabemos sobre a África? E sobre o negro encontra a maior parte da população negra brasileira.
entrevista
Nilma Lino Gomes
Penso que deveria haver uma preocupação pública e ins- subjugada ao trabalho infantil. Assim, poderemos con-
titucional do MEC e das secretarias estaduais e munici- tribuir para a desnaturalização das desigualdades. O pro-
pais de educação de todo o País em relação à superação fessor pode fazer um trabalho eficiente e muito mais
de práticas preconceituosas, visões negativas do negro e abrangente tomando a questão racial como eixo nortea-
de outros grupos étnico-raciais. Para isso, precisamos de dor e, a partir daí, ir ampliando e inserindo outras
vontade política, financiamento, formação inicial e con- dimensões sociais, culturais, artísticas, históricas e políti-
tinuada, material didático-pedagógico, pesquisas e mo- cas. Ele também poderá falar da real participação do
nitoramento das ações. negro em nossa sociedade como sujeito político, dar vi-
É importante destacar que essa minha crítica não sibilidade à presença do negro em nossa sociedade e no
invalida o reconhecimento de que já avançamos. E continente africano como constituinte da ação e das
muito desse avanço deve-se, sim, à existência da Lei nº lutas dos povos no mundo. A questão racial poderá ser o
10.639 e suas repercussões. Na realidade, a lei ajudou a tema a desencadear uma discussão mais ampla, e não
legitimar o trabalho sério que alguns núcleos, intelec- apenas uma ilustração ou um mero exemplo.
tuais e educadores que trabalham com a temática étnico-
PP: Como o professor da Educação Básica pode cons- Superior, os docentes conseguem,
entrevista
Nilma Lino Gomes
invés de lidar com o conflito. Não adianta tentar ameni- seriedade e compromisso profissional. A discussão críti-
zar o peso de uma prática ou xingamento racista deslo- ca e pedagógica da questão racial e africana na escola é
cando a discussão para o consenso de que “nós não deve- um direito. E, como tal, deve ser garantida.
mos tratar mal uns aos outros”. Na verdade, os alunos Acho que deveríamos também nos indagar criti-
precisam de uma formação maior em termos de trato e camente sobre as desigualdades raciais e sua imbrica-
respeito às diferenças. O grande desafio da lei é que a ção com as desigualdades sociais. Várias pesquisas re-
questão racial brasileira e a questão africana sejam incor- velam que raça e classe estão imbricadas. Portanto, já
poradas como mais uma discussão pedagógica, e que é hora de os educadores superarem o discurso de que
todos os alunos negros, brancos e de outros pertenci- o negro é discriminado somente porque é pobre e de
mentos étnico-raciais de escolas públicas e privadas dis- que as políticas universais atingem igualmente negros
cutam a diversidade étnico-racial brasileira quando falar- e brancos. É preciso conhecer as pesquisas que nos aju-
mos sobre as múltiplas expressões da diversidade. dam a compreender melhor essa situação. Há dados
A nossa grande dificuldade é que a diversidade – recentes do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica
entendida como a construção social, cultural, histórica e Aplicada) sobre a questão socioeconômica, racial e de
política das diferenças que se dá imersa nos contextos de gênero dos brasileiros que precisamos conhecer e com-
poder – seja tratada como um eixo curricular. No caso da preender. Se não tivermos ações afirmativas sérias no
questão racial, dentro dessa ampla temática, é importante Brasil, as desigualdades raciais e o racismo se arrasta-
que o professor se posicione como um profissional com rão ainda por muitos anos.
capacidade de discutir situações de racismo e preconceito
respeito às diferenças.
uma situação de violência racial para começar a agir.
entrevista
Nilma Lino Gomes
A outra sugestão é procurar conhecer melhor as ca ou, então, vão direto para a biblioteca sem uma apre-
lutas, os avanços, a resistência negra no Brasil. É impor- sentação aos docentes, os quais, muitas vezes, nem ficam
tante também conhecer a história da África sob o prisma sabendo. Aqui está mais uma contribuição da discussão
dos africanos, e não somente dos colonizadores ou neo- da temática racial: ela desvela uma das facetas da organi-
colonizadores. Há muita riqueza, sabedoria e beleza a zação hierarquizada da escola e, muitas vezes, a falta de
descobrir. Não temos somente uma história de pobreza, diálogo entre as várias instâncias. Por isso eu costumo
racismo, colonização e desigualdades quando falamos dizer que a questão racial também nos desafia a realizar
sobre o negro brasileiro e sobre a África. É preciso denun- o tão necessário e desejado trabalho coletivo na escola.
ciar o racismo (esse ponto nunca deverá sair da nossa É muito importante lembrar que não podemos
pauta!) e, ao mesmo tempo, lembrar as vitórias, as con- ficar apenas com a leitura da lei. Ela deve ser interpreta-
quistas. O povo africano e os negros brasileiros devem ser da junto com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
tratados, na educação, na sua dimensão histórica, políti- Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de
ca, cultural e social. E isso deve ser feito de forma crítica, História e Cultura Afro-brasileira e Africana, aprovadas
a fim de superarmos o mito da democracia racial. pelo Conselho Nacional de Educação, em 2004. As dire-
trizes podem ser “baixadas” no site do Ministério da
PP: Estão sendo produzidos materiais que contribuem Educação e do Conselho Nacional de Educação. Há tam-
para o ensino da cultura negra e da história da África? bém outras orientações para aplicação da lei disponíveis
Nilma: Existem produções interessantes sobre história e no site do MEC, sobretudo, na Secretaria de Educação
cultura africanas, mas muitas estão em língua estrangei- Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD) e no
ra e carecem de boas traduções. Também existem bons site www.dominiopublico.gov.br (Coleção Educação para
títulos nacionais (não muitos) sobre a África, mas nem Todos). O professor e a professora precisam saber da exis-
todos são de fácil acesso. Além disso, nem todas essas tência desses materiais e acessá-los.
produções têm como foco a Educação Básica. Também
há materiais produzidos pelo Ministério da Educação, PP: Você pode citar experiências bem-sucedidas nas
pelas secretarias estaduais e municipais sobre a questão escolas de Educação Básica?
racial no Brasil. A prefeitura de Belo Horizonte, por Nilma: Faço uma pesquisa em duas escolas municipais
exemplo, distribui para as escolas um kit com livros que de Belo Horizonte que incluíram a discussão da questão
podem ser usados no ensino de história e cultura africa- racial como eixo do projeto político pedagógico da esco-
nas e afro-brasileiras. A iniciativa privada começa, aos la (PPP) e que realizam ações pedagógicas interessantes.
poucos, a investir também. Essas extrapolam o conteúdo de história, envolvem a
No conjunto dos materiais produzidos a partir da comunidade, movimentos culturais e sociais etc. Vários
lei, nem tudo é de boa qualidade. É preciso avaliar com docentes dessas escolas buscam cursos de aperfeiçoa-
calma e espírito crítico. No caso da iniciativa pública, é mento e especialização na temática. Há também escolas
importante também que seja distribuída uma quantida- que realizam práticas com os materiais pedagógicos dis-
de suficiente de material para as escolas. Muitas vezes, tribuídos pela Secretaria Municipal de Educação de Belo
chegam produtos e materiais de qualidade às escolas e Horizonte. Recentemente, tive contato com um traba-
ficam parados na diretoria ou na coordenação pedagógi- lho realizado, desde 2007, pela Secretaria Municipal de
entrevista
Nilma Lino Gomes
Educação de Sabará, MG, que envolve a formação de tudo, em função da imigração. No entanto, com os go-
professores e práticas pedagógicas. Em Contagem, MG, vernos conservadores que começam a assumir o poder
há algumas escolas que também começam a realizar tra- em vários países europeus, a imigração e a relação desta
balhos. As experiências bem-sucedidas, em geral, estão com a diferença tem sido vista muito mais como um
mais relacionadas aos processos de formação continuada. problema a ser extirpado, e não como resultado da pró-
Há projetos de trabalho com alunos, comunidade e pria colonização e desigualdade no mundo. São proces-
movimentos sociais, mas esses são pouco conhecidos. sos que foram construídos e tiveram, ao longo da histó-
Em São Paulo foi realizado um grande trabalho, ria, a participação ativa dos próprios países europeus que
organizado pelo Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da hoje vivem o fenômeno do crescimento da imigração
Universidade Federal de São Carlos, com a formação de africana, latino-americana e, até mesmo, européia.
professores para a diversidade étnico-racial. O curso Não tenho conhecimento de outro país que
envolvia discussões presenciais e à distância e um bom tenha aprovado uma lei educacional como a Lei nº
material de apoio pedagógico. Em Salvador existem 10.639. Recentemente, tivemos uma conferência inter-
experiências muito interessantes tanto de grupos cultu- nacional em Salvador, e a maioria dos representantes dos
rais quanto da Secretaria Municipal de Educação. países africanos presentes ficou muito surpresa com a
Recentemente, foi instituída uma coordenadoria na nossa legislação. Pesquisadores norte-americanos me dis-
Secretaria de Estado de Educação da Bahia, a qual tem seram que nós conseguimos algo que eles ainda não con-
como um dos seus objetivos implementar a Lei nº seguiram. O Brasil inovou ao fazer a lei.
10.639. No Maranhão também há vários projetos, prin- Além dos aspectos apontados, a Lei nº 10.639 e
cipalmente envolvendo a comunidade quilombola e a suas diretrizes curriculares nacionais revelam mais uma
formação de professores. faceta do racismo ambíguo brasileiro. No nosso discur-
Penso que agora é o momento de começarmos a so, falamos que não existe racismo no Brasil e apelamos
pesquisar mais e avaliar as ações pedagógicas em sala de ao mito da democracia racial para dizer do caráter har-
aula, os projetos pedagógicos interdisciplinares que vêm monioso das relações raciais em nosso País. No entanto,
sendo desenvolvidos e o impacto desse processo na for- para que a discussão sobre a temática racial e africana
mação dos alunos. Embora a lei seja recente, já é hora de pudesse fazer parte do currículo das escolas públicas e
começarmos a pensar nesse aspecto. privadas brasileiras foi necessário instituir uma legislação
federal. Isso mostra a maneira ambígua e tensa como
PP: Como é a situação em outros países? lidamos com a diversidade étnico-racial no Brasil.
Nilma: Infelizmente, o que temos visto hoje é a xenofo-
bia cada vez mais acirrada. Aos poucos, as pessoas estão
Nilma Lino Gomes participou do progra-
percebendo a importância de uma política voltada para
ma “Pensar a educação, Pensar o Brasil”, da rádio
a diversidade e, dentro desta, a questão racial. Se houves-
UFMG Educativa. Para baixar o arquivo de
se uma conscientização, uma educação para a diversida-
áudio, acesse o site da Presença Pedagógica.
de, nós não teríamos chegado ao estado atual em que é
www.presencapedagogica.com.br
preciso intervir em situações de confronto. Na Europa
tem havido uma preocupação com essas questões, sobre-
Dimensão
Didática Magna e
sua influência na
pedagogia
contemporânea
RONALDO AURÉLIO GIMENES GARCIA *
* Doutorando em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina, professor de Educação Básica da rede estadual de ensino de
São Paulo, bolsista do Programa Bolsa Mestrado da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo.
E-mail: gimenesgarcia@uol.com.br
N
Didática Magna e sua influência na pedagogia contemporânea
No final da Idade Média e início da modernida- da organização dos hussistas, além da preocupação com
de, a Europa estava mergulhada em conflitos religiosos. a educação, estava também o cuidado em preservar o
A reforma protestante ganhava cada vez mais adeptos e idioma local. No início, todo o conteúdo era transmiti-
estimulava o florescimento de novas seitas, como foi o do na língua vernácula, porém, como forma de concor-
caso da doutrina dos Irmãos Morávios, da qual Comênio rência com as escolas católicas, o ensino passou a ser
e sua família participavam. O clima de perseguições, ministrado também em latim.
guerras e constante instabilidade política, foi, portanto, Comênio iniciou seus estudos na escola dos
característica marcante da vida do autor de Didática Irmãos. Por volta dos 16 anos ficou órfão e, após con-
Magna, João Amos Comênio. Pensar um novo tipo de cluir os seus estudos secundários, foi para uma univer-
sociedade e de educação, conduzidas pela solidariedade e sidade em Herborn, na Alemanha. No ambiente uni-
pelo conhecimento como forma de aproximar-se de versitário tomou contato com importantes obras e
Deus, foi o objetivo maior desse pensador, que deixou pensadores, como Andrea, Campanella e Vives. As
marcas definitivas no estudo e na prática pedagógica dos utopias dessa época iriam marcar definitivamente o
últimos quatro séculos da humanidade. pensamento do autor de Didática Magna, levando-o a
Comênio nasceu no final do século XVI na pensar em uma solução pacífica para os conflitos reli-
Morávia, região que pertencia ao Reino da Boêmia, hoje giosos de um período histórico dominado pela intole-
República Tcheca. Os moradores daquela região rância. Conheceu também o pensamento pedagógico
seguiam os preceitos religiosos de Jan Huss, reitor da de Johann Heinrich Alsted e o método didático de
Universidade de Praga. A seita local tinha um forte Ratke. Após o retorno, Comênio assumiu a direção da
apego às Escrituras Sagradas e rigidez de costumes, com escola dos Irmãos e começou a produzir seus primei-
notório apelo religioso em favor da fraternidade do ros estudos.
grupo. Segundo Gasparin (1997), desde o início os Disputas internas entre a dinastia de Habsburgo,
Irmãos se preocupavam em desenvolver a educação de sob o comando do rei espanhol Felipe II, avançavam na
todos, incluindo adultos, crianças, jovens e mulheres. região da Boêmia. O rei Frederico V (protestante) é
Talvez este tenha sido um dos motivos da preocupação destituído e Fernando II (católico) é coroado, incenti-
de Comênio com a educação, haja vista que é pratica- vando um forte movimento de perseguição aos não-
mente impossível separar a obra pedagógica do autor de católicos. Teve início a Guerra dos Trinta Anos, que
sua militância religiosa. afastou Comênio de sua terra natal e o condenou ao
A origem dos Irmãos Morávios remonta ao sécu- exílio para o resto de sua vida. Foi durante essa crítica
lo XV. Eles estavam sob a liderança de Jan Huss. Havia fase que o autor escreveu a maior parte de suas obras,
uma proposta de reforma religiosa aliada à autonomia da entre elas a Didática Magna. Kulesza (1992) afirma que
região e ao fortalecimento da língua e da cultura boêmias durante essa época o ilustre pensador morávio aproxi-
(KULESZA, 1992). Devido à perseguição religiosa, mou-se de estudos como a cabala, a alquimia e o mis-
Huss foi condenado e queimado vivo pelo Tribunal da ticismo. Chegou mesmo a fazer parte da Ordem
Inquisição em 1415. Com isso, os conflitos se intensifi- Rosacruz. A influência dos místicos e fanáticos foi tão
caram, o que motivou os adeptos do hussismo a conti- grande na obra de Comênio que ele publicou ensaios
nuarem na sua luta de resistência. Como característica condenando o método cartesiano.
sábios, haurindo o conhecimento das coisas tão- de ensino. No entanto, existe uma diferença fundamen-
somente em seu próprio arquétipo. Seja, pois, deter- tal entre ambos. Bacon estava interessado em comprovar
minado que: I. Tudo deve ser deduzido dos princí- suas teses empiristas, ou seja, chegar à verdade através da
pios imutáveis das coisas. II. Nada deve ser ensinado experimentação científica. O autor de Didática Magna
por autoridade pura e simples, mas por demonstra- tinha a intenção de utilizar-se do experimento como
ções sensíveis e racionais. III. Nada deve ser ensina- método de aprendizagem, uma vez que o conhecimento
do apenas pelo método analítico, mas pelo sintético sensível era mais eficiente que os livros e a memorização
(COMÊNIO, 2006, p.192-193). sem sentido. Segundo Barros (1971), o pensador da
Boêmia acreditava que a verdade estava instalada no
Podemos evidenciar no fragmento acima uma interior do ser humano. Ela pode ser revelada, tanto pela
clara influência do método experimental de Francis leitura das Sagradas Escrituras quanto no contato direto
Bacon. Comênio leu a obra do referido filósofo e procu- com a natureza. Dessa constatação decorre uma série de
rou empregar alguns de seus princípios no seu método implicações na análise da obra comeniana.
Se a verdade não precisa ser buscada
no mundo exterior, como pensavam Bacon
e outros empiristas, o método didático
comeniano era um instrumento de revela-
ção da Verdade Divina. Por isso não podia
excluir ninguém, pois todo ser humano pos-
suía dentro de si a capacidade de chegar à
verdade e à glória de Deus. Na concepção
de Comênio, antes do pecado original, o
homem era lúcido e pleno conhecedor do
Plano Divino; porém, com a queda, sua
mente tornou-se obscura e afastada da ver-
dade. A tarefa principal da educação era res-
gatar o homem do pecado e o trazer de volta
ao plano celeste.
Uma vez que a verdade pode ser expe-
rimentada no convívio com a natureza, o
método pedagógico também deveria basear-se
nas leis naturais para produzir o melhor resul-
tado. Por isso Comênio pensou em um siste-
ma de ensino organizado por diferentes níveis,
respeitando assim o estágio de desenvolvimen-
to do indivíduo (escola materna, escola verná-
cula, escola latina, academia).
Hieronymus, Theoderich von Prag, 1348-1380
É interessante observar que o ensino organizado suportar qualquer tipo de trabalho honesto, uma vez
em diferentes níveis apresenta semelhanças com os está- que, mantendo as suas mentes e corpos ocupados em ati-
gios de desenvolvimento mental propostos por Jean vidades contínuas, sérias e agradáveis, estariam distantes
Piaget, que, inclusive, realizou estudos sobre a obra de dos vícios.
Comênio. Na tradução italiana da Didática Magna cons- As crianças aprendiam por imitação (do bom ou
ta uma análise prévia feita pelo autor da psicogênese do do ruim), mais uma aproximação com o pensamento
conhecimento. Nos diferentes graus de organização da piagetiano. Por esse motivo, o papel dos pais era impor-
escola comeniana, o currículo não variava, mas apenas o tante como exemplos de honestidade e também como
método de ensinar. Como o conhecimento já estava pre- guardiães da disciplina familiar. Além dos professores, os
sente no espírito do aluno, não se acrescentava nada além pais reforçavam a moral difundida pela escola e molda-
daquilo que o aluno já trazia de maneira inata. A função vam os indivíduos de acordo com as regras. Estas, por
das escolas e dos professores era, por meio do método sua vez, seriam buscadas nas palavras dos sábios e nas
adequado, despertar o saber imanente do indivíduo. Sagradas Escrituras.
O aprender fazendo, defendido pelo autor da Na opinião do pensador morávio, a escola sem
Boêmia, não se restringia apenas ao campo de aprendi- disciplina era um moinho sem água. Ela era essencial
zagem das ciências físicas e naturais; ele avançava para o para fazer com que tudo funcionasse bem e em harmo-
campo da moral, assunto que recebeu um capítulo intei- nia. Daí a grande ênfase dada a essa questão. Um ambi-
ro na Didática Magna. Havia uma verdadeira compulsão ente escolar disciplinado contribuía para a organização,
em frear os desejos e as vontades. Para isso, segundo o estimulava a aprendizagem e atraía a atenção dos jovens
pensamento comeniano, só se podia aprender a obedecer e crianças. Se isso não ocorresse, a culpa era dos profes-
obedecendo e a exercer a justiça sendo justo. As princi- sores. Os castigos físicos, tão presentes na educação
pais virtudes eram a prudência, a temperança, a fortale- medieval, continuaram existindo, mas seriam utilizados
za (no sentido de resistir às paixões) e a justiça. A razão somente em último caso. Antes de fazer uso deles,
era a grande responsável por guiar os impulsos humanos, Comênio propunha uma série de procedimentos, como
pois somente a sabedoria poderia levar os alunos a julga- advertências, repreensões e até mesmo a coerção psicoló-
rem as coisas pelo seu justo valor. Ao contrário de uma gica. O autor foi perspicaz em perceber os efeitos da
educação contemplativa e de recitações, que prevaleceu repreensão em público, dos elogios, da ironia e das com-
durante o período medieval, Comênio enfatizava a petições como eficientes mecanismos de controle sobre o
necessidade de o educando interiorizar os valores morais comportamento dos alunos. A esse respeito dizia: “Mas
e, além disso, exercer uma espécie de autovigilância para isso é essencial que o preceptor esteja presente e que
sobre o próprio comportamento. se comporte com seriedade e sem afetação, que repreen-
Como nas demais disciplinas da escola, os méto- da e faça corar quem achar mais negligente, elogiando
dos de aprendizagem também deviam acompanhar o em público os mais capazes” (COMÊNIO, 2006,
desenvolvimento do aluno de acordo com a sua faixa p.313).
etária. As crianças, desde cedo, deveriam ser condiciona- Também no caso da disciplina escolar, havia uma
das a obedecer aos mais velhos e a fazer mais a vontade perceptível preocupação de Comênio em ministrar os
dos outros do que as próprias. Os jovens deveriam castigos e repreensões de maneira moderada, de certo
modo tentando convencer o outro que aquilo era para o A comparação entre a escola e o funcionamento de
seu bem. “Educar os jovens para a Igreja e para Deus... uma máquina revelava uma antecipação daquilo que viria
para que possam e saibam amar e reverenciar os que edu- a ser a instituição escolar, principalmente após o advento
cam, não apenas se deixando conduzir aonde convém, da revolução industrial e da sociedade de classes. Em
mas desejando ardentemente” (COMÊNIO, 2006, outras palavras, a gênese da escola de massas com todas as
p.315). Indiretamente, o autor de Didática Magna esta- suas características: grande número de alunos; transmissão
va lançando mão dos mecanismos de condicionamento de conhecimentos científicos; livros didáticos e manuais
através do reforço positivo ou negativo que a psicologia adaptados para guiar o trabalho do professor; olhar vigi-
experimental iria formular somente no século XIX. lante dos mestres e diretores; castigos e advertências para
Nesse e em outros aspectos podemos identificar a mo- os que se negarem a cooperar. Era um modelo de organi-
dernidade do pensador da Morávia, cuja proposta reve- zação cuja maior função era moldar indivíduos de corpos
lava um evidente avanço em relação às práticas pedagó- e mentes dóceis, como Michel Foucault (1994) verificou
gicas do período medieval. em seus estudos sobre as instituições burguesas.
Foi justamente a metodologia de ensino que As repetições, os exames constantes, as competi-
mais repercussão trouxe ao pensamento comeniano. A ções entre os alunos eram estratégias de aprendizagem
proposta envolvia uma ampliação do acesso à escola descritas na Didática Magna para estimular todos os
para todas as pessoas, de todas as idades e sexos. Essa saberes que já foram impressos por Deus nas mentes dos
era a intenção religiosa de salvar a alma da humanida- homens. Eram, na realidade, exercícios para clarificar o
de para Deus, portanto a ninguém seria negada a opor- que ficou obscurecido com a queda. Os objetivos da
tunidade de se salvar. Para tal objetivo, as pequenas ins- escola, vistos sob esse ângulo, seriam multiplicar o
tituições escolares do período medieval não serviam número de pessoas instruídas em favor da própria huma-
mais, era necessário aumentar a quantidade de alunos nidade e da difusão da fé cristã.
para um mesmo mestre. A organização da escola era Entre o antropocentrismo candente do
comparada a uma máquina de imprensa, pela qual Renascimento e o velho teocentrismo medieval, estava
Comênio era fascinado: Comênio. Ao propor um método universal de ensino, o
autor de Didática Magna estava de fato inserido na men-
O papel são os alunos, cuja mente é impressa com os talidade de sua época, vislumbrando a sociedade e a
caracteres da ciência. Os caracteres tipográficos são os escola do capitalismo industrial. A valorização da disci-
livros escolares e todos os outros instrumentos didáti- plina, do trabalho honesto, da educação para grandes
cos, por meio dos quais as matérias que devem ser massas, do aprender fazendo, do controle do tempo, a
aprendidas são impressas com facilidade nas mentes. coerção psicológica ao invés dos castigos físicos eram
A tinta é a voz do mestre, quando a partir dos livros, indícios de uma nova ordem ou ética protestante e do
ele transmite o sentido das coisas para as mentes dos espírito capitalista, tal qual pensou Max Weber (2002)
alunos. A prensa é a disciplina escolar, que predispõe em sua célebre obra. Lutero, Calvino e Comênio tinham
e obriga todos a observar os ensinamentos pensamentos convergentes nesses aspectos. Não é por
(COMÊNIO, 2006, p.364). acaso que foram tidos como reformadores.
Referências
Sugestões de leitura
Retomando aqui a questão inicial que motivou este
texto, podemos dizer que a Didática Magna, escrita sob
uma perspectiva barroca (tentando conciliar religião e ciên-
cia), possui elementos mais do que suficientes para justifi- BARROS, R. S. M. Ensaios sobre educação. São Paulo:
Edusp; Grijaldo, 1971.
cá-la como uma obra precursora da pedagogia moderna. Ali COMÊNIO, J. A. Didática Magna. 3 ed. São Paulo: Martins
estavam os elementos que marcaram e continuam a exercer Fontes, 2006.
uma forte influência sobre as pedagogias contemporâneas. FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1994.
GASPARIN, J. L. Comênio: a emergência da modernidade na
Para isso basta um trabalho comparativo entre Comênio e educação. Petrópolis: Vozes, 1997.
as teorias construtivistas. Pensando no Brasil e na nossa rea- HOBSBAWM, E. A era das revoluções. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1995.
lidade educacional, podemos verificar que a proposta bási-
KULESZA, W. Comenius: a persistência da utopia em educa-
ca da Didática Magna sequer foi plenamente consolidada ção. Campinas: Educamp, 1992.
entre nós, ou seja, “a arte de ensinar tudo a todos” ainda não WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo.
São Paulo: Martin Claret, 2002.
conseguiu se impor no País como um todo.
com a novela
de rádio
ADRIANA CAROLINA HIPÓLITO DE ASSIS *
* Mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
E-mail: carolbas@terra.com.br
N
Brincando com a novela de rádio
Nem sempre foi clara a idéia do que é literatura mou, muito antes de a sociedade ser inserida na lingua-
infantil, tanto do ponto de vista pedagógico quanto esté- gem escrita, sobre o “jouer” presente nas canções de
tico. Sua classificação manifestou-se à medida que a gesta, cuja perspectiva estava para a performance do brin-
sociedade inseriu a infância em seu seio, quer com o car e, com ela, a recepção do público participante das
intuito de preservá-la no âmbito familiar, quer de inseri- narrativas oralizadas. Tal experiência estética também é
la nas instituições escolares. Assim, na atualidade, a apli- observada por Paz, em Signos em Rotação (1990), que
cação da literatura infantil está quase sempre correlacio- situa o brincar e o jogar dentro do campo poético como
nada às áreas da pedagogia ou, quando não, da psicolo- uma atividade inerente ao humano. A poesia é um dos
gia, como aponta o clássico estudo feito por Bettelheim, primeiros gestos do humano, a sintonia perfeita com o
em A Psicanálise dos contos de fadas (2004). Daí surge o corpo, com o ritmo pulsante do coração, por isso ela car-
grande debate, permeado de encontros e desencontros, rega consigo a sonoridade, a dança, a canção. Nesse sen-
que lhe conferem ora o estatuto utilitário – advindo tido, o poético prescinde de qualquer artificialismo
desde as máximas horacianas de cunho moralizante às advindo da escrita, embora o ritmo, a poesia e a narrati-
discussões e contornos pedagógicos que associam a lite- va confundam-se com a própria linguagem. O mundo
ratura infantil ao domínio do corpo (leitura e escrita) e moderno, afirma Paz (1990), perdeu o sentido mais cru
às regras sociais –, ora o estatuto da “inutilidade” poéti- e primevo da palavra e, conseqüentemente, do brincar.
ca fixada desde as teorias aristotélicas, na Arte Poética. As crianças, ao iniciarem sua escolarização, muito embo-
Dentro dessa lógica, o mercado se movimenta em busca ra este seja um período riquíssimo, deixam de “armar
do grande filão infantil e procura, na maior parte das cenários imaginários em que o espaço, o tempo e o acon-
vezes, aquilatar aspectos vendáveis associando a literatu- tecimento só existem para ela” (ZILBERMAN, 1982,
ra infantil ao utilitarismo: uma ferramenta que tem por p.27) para, aos poucos, esquecerem sua referência icôni-
função mediar o universo infantil com o mundo, propi- ca com o mundo, na qual viam tudo como se fosse a pri-
ciando, por meio da leitura, o domínio lingüístico, o meira vez. Um olhar que muito nos lembra as narrativas
ensinamento moral, o confronto entre a criança e reali- míticas e as suas derivações: as narrativas folclóricas e os
dade adulta (ZILBERMAN, 1982, p.13). contos de fadas. De modo correlato, Benjamin, em O
Uma das características mais importantes quando Narrador (1983), observa essa perda pelo desapareci-
se pensa em literatura infantil é o jogo, em que se equi- mento das “trocas experienciais”, isto é, a mágica troca
libram, de forma meio tensa, os veios pedagógicos, tera- do ouvir e do narrar uma história. Todas as narrativas
pêuticos e a liberdade do brincar estético. Uma tensão infantis evidenciam algo advindo da tradição oral, mas,
sutil, na medida em que os primeiros se ocupam de ao longo dos anos, esta tem sido esquecida.
garantir à criança o desenvolvimento intelectual e os O homem “primitivo” verifica Mielietinski em A
segundos a experiência poética, isto é, sem uma determi- Poética do mito (1987), mantinha-se inseparável da natu-
nação disciplinar advinda de um complexo de regras reza circundante, uma unidade com o mundo natural e,
que, geralmente, os adultos propõem com o intuito de por isso, as narrativas míticas ganhavam presença mági-
adaptá-lo às regras sociais e lingüísticas. A criança, quan- ca com a realidade, na medida em que atribuíam à pala-
do experiencia esteticamente, o faz naturalmente, pois vra a concretude dos objetos: eram meios propiciatórios.
repete aquilo que o medievalista Zumthor (1993) afir- Essa relação “mito-poética” é uma constante no universo
infantil, onde o quintal se transforma no espaço para catártica do modelo humano, uma vez que a criança
brincar de piratas; de contos de fadas, em que o cabe- era inserida, entre outros fatores, nos ritos de passa-
lo curto fica comprido ao se colocar um pano na cabe- gem. Daí observarmos, nas narrativas, uma mescla
ça para se brincar de Rapunzel; de homem aranha, que entre o fantástico e o maravilhoso (TODOROV,
escala os sofás e prateleiras da casa etc. As crianças imi- 1975) na exploração do elemento sobrenatural, no
tam, mesmo sem saber, as imagens, os sons e os textos qual o real e o imaginário se concretizam como aceitos
cristalizados culturalmente como um eco narrativo dos no espaço interior da criança. Assim, os animais falam,
ancestrais. Ao repetirem o gesto, as narrativas mitoló- os objetos ganham dimensões exóticas, os enredos –
gicas demonstravam o caráter modelar e coletivo no cuja tônica constante são as histórias de bicho papão,
seio da comunidade arcaica, na medida em que perpe- de bruxa –, em que o medo só se equilibra à medida
tuavam o exemplo a ser seguido com o intuito de orde- que a criança começa a compreender o jogo ordenador
nar o caos social; já nos contos de fadas, essa repetição que perpassa todo e qualquer conto de fadas: o final
transmutava para o indivíduo, para imitação (mimesi) feliz, no qual o medo se dissipa.
nes tocavam para interagir com a produção. Tal caracte- princípio, é preciso fazer com que a criança aprenda a
rística se assemelha às cantigas medievais que, embora ouvir os sons do mundo, ouvindo o corpo. Este seria o
apresentassem frases e estruturas mecanicamente repeti- primeiro estágio: entrar em contato com a materialidade
tivas – fórmulas do tipo “vocês vão escutar uma canção” do ritmo do coração ou da respiração e depois com a
(p.37), um correlato do “era uma vez” presente nos con- própria música fazê-la descobrir que a música chama o
tos de fadas –, sempre ganhavam o frescor de uma nova corpo para dançar, para transformar o ritmo em gesto.
interpretação, pois se constituíam pelo nomadismo de Quase sempre fazemos isso. Ao escutarmos uma música
múltiplas vocalidades reatualizadas em diversos gêneros começamos, sem querer, a coreografá-la e, para isso, não
que favoreciam a migração de temas, de mitos, de ciran- é preciso ser nenhum bailarino ou expert em música,
das, de modinhas etc. A obra performatizada (seja canti- muito embora este seja um dos mecanismos mais efica-
ga ou conto de fadas) era o brinquedo, uma troca de zes de se ampliar, como afirma Medaglia (2003), o reper-
experiência poética. Uma troca em que não havia alto ou tório musical, ao oferecer à criança clássicos, jazz, MPB,
baixo, sagrado ou profano, mas pura “carnavalização”, rock, samba etc., só para ouvir com o corpo.
troca na qual entravam em jogo as cirandas das vozes A segunda maneira de ouvir se dá no plano da
que, para Bakhtin (1981), não poderia ser pensada sem emoção, do ouvir emotivo. A música, tal como a palavra,
a polifonia da música. “torna-se um adjetivo”. Externamos esses adjetivos quan-
do ouvimos a música de um filme e achamos que a emo-
• com a emoção;
emoção elucidada pela música, pôr a emoção no papel.
Quase sempre começa a surgir uma correspondência
plástica entre o som e o sentido, mas é importante que a
música seja instrumental, sem letra, para que a criança
• com o intelecto. possa descobrir, na emoção, a dramatização na palavra.
Já na última modalidade, ouvimos as estruturas
do som intelectualmente: como organizar os sons e a
maneira de articulá-los. Aqui temos um pequeno entra-
Parte dessas manifestações orais descritas, tão bri- ve quando se trata de crianças, uma vez que essa moda-
lhantemente, por Zumthor apresenta correlato com as lidade necessitaria de conhecimento musical concreto.
“Maneiras de Ouvir”, a que nos referimos acima, de Nesse estágio a criança irá se deter no “senso da escuta e
Moraes (1991), uma vez que entram em diálogo com as na disposição de pensar a música, de combinar a percep-
performances do corpo e da voz. Moraes ressalta que, a ção das sonoridades”, a integração corporal, como afir-
ma Wisnik (1989, p.11). Os leigos da estrutura musical caminham conjuntamente no processo de construção da
também podem pensar intelectualmente a música, na novela no ato performático. Os meios, nessa etapa, se
medida em que constroem, dentro do repertório musi- fecham em um círculo metalingüístico que se auto-refe-
cal, as trilhas, incluindo, é claro, o som correlacionado à rencializa, formando um “casamento perfeito” entre eles,
sonoplastia que irá compor o texto narrativo. Cada no- isto é, a trilha, a sonoplastia e a narrativa se iconizam. A
vela de rádio tem de ser medida e pensada dentro dos criança, ao aprender as três maneiras de ouvir, vai, aos
contornos de sua organização estrutural. Nesta fase, os poucos, ganhar apuro estético ao pensar, antecipada-
três campos – o ouvir com o corpo, o ouvir com emoção mente, nos efeitos que a sonoridade causa nos recepto-
e o ouvir com o intelecto – atingem o ápice, pois todos res/ouvintes. Logo, o ouvir com emoção, por exemplo,
passa a ser o ouvir com emoção
estética, a sonoplastia passa a ser
um recurso de teatralização do som
com a intenção prévia de mexer o
campo sensório/háptico do recep-
tor, a trilha sonora ganha consistên-
cia musical quando se explicam,
sucintamente, alguns andamentos
musicais, tais como o allegro, para
situações narrativas mais leves e ale-
gres, e o largo, para narrativas mais
dramatizadas.
Mas, não se pode pensar “as
maneiras de ouvir” sem pensar na
construção do script, uma vez que a
criança, ao criar uma narrativa,
terá de pensar em toda a ação per-
formática. Desse modo, entram
em cena dois aspectos que podem
variar, dependendo do público-
alvo e do tipo de narrativa a ser tra-
balhada. O primeiro seria fazer a
junção das estruturas narrativas
dos contos maravilhosos ou dos
textos fantásticos com os contribu-
tos fornecidos por Medaglia
(2003) no contexto das novelas de
rádio.
Jardim de rosas, Klee, 1920
Os contos maravilhosos e os fantásticos são uma A trilha sonora e a sonoplastia, neste sentido, são
possibilidade de a criança entrar concretamente na histó- elementos poderosos de provocação, quer da imaginação
ria, de pactuar com ela, pois é introduzida nos bosques da do ouvinte, conduzindo-o ao mundo da fantasia, quer
ficção, como assegura Eco (1999). Elas sabem que se trata de indução comercial, de merchandising; por isso, jamais
de um mundo ficcional, sobrenatural, e embarcam no podem ser vistos como mero pano de fundo.
jogo; por isso, as fadas, gnomos ou os ogros das Crônicas
caindo no telhado ou mesmo do som de uma descarga ção ao próprio Medaglia (2003), que explica a ação
de banheiro, hoje suplantado pela tecnologia, o que não performativa daqueles que construíam as antigas no-
inviabiliza o processo, mas retira os atores do jogo lúdi- velas de rádio, nas quais, geralmente, a equipe toda
co. O processo de construção das trilhas sonoras era produzia esteticamente e, ao mesmo tempo, se diver-
milimetricamente estudado, o perfil de cada persona- tia. No caso, brincar é essencial, mas brincar observan-
gem ou de cada situação possibilitava a criação de um do as regras do jogo.
Referências
efeito musical, e este poderia, até mesmo, interferir na
Sugestões de leitura
ação, invertendo o sentido semântico do script: havia
inversões paródicas nas quais as cenas que deveriam
conter requinte ganhavam um tom satírico e profana-
dor. Medaglia cita, entre outras, uma passagem interes- BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo:
santíssima da novela Bem-Amado, da Rede Globo. Nela, Perspectiva, 2006.
a personagem central BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoievski. Rio
de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.
Odorico Paraguassu apronta o diabo com os seus BENJAMIN, Walter et. al. (Trad. José Lino Grünnewald). O
semelhantes em Sucupira, arma mil sacanagens com Narrador In: Textos Escolhidos: Walter Benjamin, M.
Hokheimer, T. Adorno, J.Habermas, São Paulo: Abril Cultural,
umas pessoas e, por fim, entra pelo cano. No final do 1983.
episódio, ele, derrotado, tranca-se em seu escritório e
BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos contos de fadas.
fica curtindo a fossa do insucesso de sua malandra- Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.
gem. Vendo o estado de depressão do cara, o sonoplas- ECO, Umberto. Seis Passeios nos Bosques da Ficção.
ta colocou uma música triste. Ora, naquele momen- São Paulo: Cia das Letras, 1999.
to, todo mundo ficou com pena dele e o som trans- MEDAGLIA, Júlio. Trilha sonora/ A música como (p)arte da
formou um bandido em mocinho (MEDAGLIA, narrativa In: Música Impopular. São Paulo: Global, 2003.
2003, p.246). MIELIETINSKI, E.M. A Poética do mito. Rio de Janeiro:
Forense Universitária: 1987.
Toda a temperatura dramática está presente na MORAES, J.J. de. O que é música. São Paulo: Brasiliense,
1991.
trilha sonora e na sonoplastia; assim, Medaglia afirma
que um bom músico é também um bom dramaturgo, PAZ, Octavio. Signos em Rotação. São Paulo: Perspectiva,
1990.
pois até mesmo o silêncio serve como acento de peso
ou de expressão dramática na teatralização sonora. TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. São
Paulo: Perspectiva, 1975.
Ao fazer referência a tantas atividades, pode
WISNIK, José Miguel. O som e o sentido, uma outra histó-
parecer complicado para uma criança construir uma ria das músicas. São Paulo, Cia. das Letras, 1989.
novela de rádio, uma vez que entra em jogo uma série
ZILBERMAN, R.; MAGALHÃES, Lígia C. O Estatuto da
de semioses (ações sígnicas) na construção do texto. literatura Infantil. In: Literatura infantil: autoritarismo e
Entretanto, gostaria de lembrar as considerações apre- emancipação. São Paulo: Ática, 1982.
sentadas no início deste texto sobre o jogo lúdico que ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz. São Paulo: Cia das
a experiência estética pode possibilitar, fazendo men- Letras, 1993.
como vai?
ANA MARIA FALSARELLA *
* Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pesquisadora do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas
em Educação, Cultura e Ação Comunitária) e professora do curso de graduação em Pedagogia da Universidade Bandeirante de São
Paulo (Uniban).
E-mail: anamariafal@uol.com.br
H
E a família, como vai?
Houve um tempo em que as famílias “davam responsáveis pelo fracasso escolar, os professores vagam
educação” e as escolas “ensinavam”. As responsabilida- entre sentimentos de saudosismo (“No meu tempo não
des eram bem demarcadas, e cada um sabia o que lhe era assim!”), comiseração (“Pobres crianças, com pais
competia. Nesse tempo, os professores ganhavam bem. desse jeito!”), auto-piedade (“Pobres de nós que temos
O magistério era quase o único ofício que uma “moça que trabalhar com todo tipo de aluno!”), medo (“Não
de família” poderia exercer, pois estava ligado à função vou me meter com filho de traficante!”) e revolta (“Não
de maternagem. É verdade que grande parte das crian- foi pra isso que estudei.”). Daí para atitudes acusatórias
ças não ia à escola, mas as que iam “eram interessadas” é um simples passo: “Os pais já não ensinam valores nem
e, pasmem!, “respeitavam os professores!”. Os alunos impõem limites aos filhos; nós, professores, temos que
moravam com o pai e a mãe. As mães só trabalhavam assumir tudo!”; “Se o pai não liga, não sou eu que vou
“fora” se “precisassem”, caso (coitadas!) seus maridos ligar”; “Pra que vou me preocupar em ensinar se eles só
não ganhassem o suficiente para sustentar a família. vêm à escola pra comer?”; “Esses meninos não se adap-
Pois bem, esse tempo de “Éden na escola”, de escola tam, não aprendem”.
O tipo de família que está se rompendo é a mono- tinham que submeter suas escolhas profissionais e amo-
gâmica e heterossexual do século XIX. Ela tinha como rosas às necessidades familiares.
função, no capitalismo então nascente, assegurar o funcio- Até nos meios operários, as mulheres só trabalha-
namento econômico da sociedade, a formação da mão-de- vam para ajudar no sustento dos filhos e suprir as neces-
obra e a transmissão do patrimônio. A família, célula da sidades da família. A intervenção do Estado se resumia a
reprodução social por excelência, assegurava o bom anda- controlar as famílias pobres quando elas não cumpriam
mento da sociedade civil, essencial à estabilidade do bem seu papel de cuidar da prole.
Estado. Era a instância primária de formação de bons Para Perrot (1993), a família patriarcal era ambí-
cidadãos, o que significava, para a época, cidadãos nacio- gua, ninho e nó ao mesmo tempo: ninho, porque era o
nalistas, patriotas e conscientes dos valores tradicionais. refúgio, o local de intercâmbio afetivo, a barreira contra
Na família patriarcal os casamentos privilegiavam agressões externas, inviolável, protegida da vida privada
alianças entre famílias; as moças eram vigiadas de perto, pelo “muro da casa”; nó, porque era fechada, normativa,
pois destinadas ao casamento e à vida caseira. A figura do palco incessante de conflitos e intrigas, quase secreta.
pai dominava; seus interesses prevaleciam sobre os da Junto às mudanças nas relações de produção tra-
mulher e dos filhos. A esposa deveria contentar-se ao zidas pelas novas tecnologias e ao aumento da participa-
intramuros da casa, à fidelidade absoluta. Os filhos ção feminina no mercado de trabalho, os métodos de con-
tracepção evoluíram e liberaram a mulher para ter exclusividade de ser o cabeça do casal e há uma ten-
filhos quando assim o quisesse. Os avanços na bioética dência à maior participação masculina nos afazeres
permitem que um casal gere um filho sem sequer se domésticos e na educação dos filhos.
conhecer. Há que optar, então, por uma definição mais
Neste novo panorama, a família tradicional ficou abrangente de família. O que define a nova família são
deslocada. As rupturas a que assistimos hoje na família as funções desempenhadas por seus membros em suas
são a culminância de um longo processo, que fez surgir interrelações, com características de lealdade, afeição e
o individualismo moderno, com base no desejo de feli- pertinência, sendo que nenhuma configuração familiar
cidade, de escolher os amores e a própria profissão. pode ser considerada melhor ou pior do que outra.
Custos e vantagens são difíceis de calcular. O Sistema aberto, sempre em transformação, recebendo e
aumento da solidão que acompanha as separações pode enviando sinais do e para o ambiente extrafamiliar,
ser creditado aos custos. Quanto aos benefícios, em lugar num movimento da adaptação a demandas sociais
de enumerá-los, basta perguntar: Que jovem, que emergentes, a família é o que lhe é possível ser em fun-
mulher gostaria de voltar ao velho modelo? Talvez só os ção de seu contexto, dos valores de seu grupo social e
mais frágeis e inseguros optassem pelo antigo modelo. de sua própria capacidade de adaptação a mudanças.
Mas uma nova configuração de família está a Em resumo: vivendo num dado contexto, “que pode
caminho: a que tenta conciliar liberdade individual com ser fortalecedor ou esfacelador de suas possibilidades e
laços afetivos de solidariedade familiar. Não é a família potencialidades” (BRANT DE CARVALHO, 2006,
em si que é recusada, mas o modelo rígido e normativo. p.15), a família não pode ser analisada em separado. E,
Rejeita-se o nó, não o ninho. qualquer que seja sua configuração, precisa de valida-
O lar ainda oferece abrigo, proteção e calor ção e de reconhecimento do seu modo de ser.
humano em um mundo de dura sobrevivência econômi- Em cursos relacionados à formação humana, ao
ca e emocional, mas novos modelos de família são possí- se tratar o tema, há que estar atento a “alguns inquie-
veis, mais igualitários nas relações entre os sexos e entre tantes sintomas de etnocentrismo ou de preconceito
as gerações, mais flexíveis quanto à temporalidade e aos que tem a família, sobretudo a família das classes po-
componentes, mais abertos aos desejos pessoais. pulares, como alvo privilegiado” (MELLO, p.52). No
No Brasil, os grandes centros urbanos não são banco dos réus, a família das classes populares é julga-
exceções a esse retrato. A família numerosa de antiga- da incompetente, e seus membros adultos são desqua-
mente, composta por pai, mãe, muitos filhos, avós, lificados culturalmente. As representações coletivas
tios e tias solteiros, passa por um enxugamento e pela relacionadas à família são idealizadas, impregnadas por
tendência à nuclearização: cresce o número de famílias expectativas de promoção de cuidados, proteção e
e diminui seu tamanho médio, coexistindo um leque afeto, de criação de vínculos relacionais e de formação
de possíveis arranjos familiares. Famílias à moda anti- moral e comportamental dos novos membros. Quando
ga, centralizadas na figura paterna ainda podem ser a família não está organizada conforme esse ideal, mas
encontradas e partilham espaço e tempo com outras segundo as necessidades que lhe são peculiares, essa dis-
formadas por mãe e filhos, por exemplo. Mesmo em crepância entre a família-modelo e a família-real cons-
seu formato tradicional, o marido não mais tem a titui o estigma da “família desorganizada”.
Em resumo, a escola pode se posicionar de forma tural e dos valores do subgrupo social onde a criança está
includente ou excludente. Ao colocar-se como superior inserida; do conceito que os pais têm de seus filhos. Esse
à família, a escola inviabiliza o diálogo. Pelo contrário, o conhecimento dá pistas à escola sobre o quê e como a
contato frutífero com as famílias possibilita à escola o criança pensa e em quê e como a escola pode contar com
conhecimento das condições concretas do contexto a família e aliar-se a ela para promover a educação das
familiar do aluno e de sua comunidade; do universo cul- crianças e adolescentes.
• descarregar problemas
A escola é excludente quando só
conversa com os pais para:
• queixar-se da conduta da criança
• informar sobre seu mau aproveitamento
Referências
Sugestões de leitura
MELLO, Sylvia Leser. Família: perspectiva teórica e
observação factual. In: BRANT DE CARVALHO,
Maria do Carmo (Org.). A família contemporânea em
debate. São Paulo: Educ-Cortez, 2006, pp.51-60.
BRANT DE CARVALHO, Maria do Carmo (Org.). A PATTO, Maria Helena S. A família pobre e a escola
família contemporânea em debate. São Paulo: Educ- pública: anotações sobre um desencontro. Psicologia-
USP, nos 1-2, 1992, pp.107-121.
Cortez, 2006.
PERRENOUD, Philippe. Não mexa na minha avalia-
DELLAGNELLO, Lúcia. A participação das famílias na ção, In: Avaliação – entre duas lógicas. Porto Alegre:
escola pública. São Paulo. [palestra proferida no Artmed, 1999, pp. 145-160.
Centro de Estudos e Pesquisas em Educação,
PERROT, Michelle. O nó e o ninho. In: Veja 25 anos –
Cultura e Ação Comunitária, 26.02.1998].
Reflexões para o futuro. São Paulo: Abril Ed.,1993,
DIAS, Maria Luiza. Vivendo em família. São Paulo: pp.74-81.
Moderna, 1992. SAYÃO, Roseli. Quando o problema é da escola, não
dos pais. São Paulo: Folhaequilíbrio, 28.09.2000, p.4.
MACEDO, Rosa M. A família diante das necessidades
escolares dos filhos. In: OLIVEIRA, Vera B. de; SAYÃO, Roseli. Bilhetes perturbam relação com a
BOSSA, Nadia A. [Orgs.]. Avaliação psicopedagógica escola. São Paulo: Folhaequilíbrio, 9.08.2001, p.14.
da criança de 0 a 6 anos. Petrópolis-RJ: Vozes, 1994, SAYÃO, Roseli. As tarefas que a escola não cumpre.
pp.183-206. São Paulo: Folhaequilíbrio, 22.09.2004, p.12.
al
cion
a Na
liotec
da Bib
acervo
Fotógrafo não identificado,
Lições de Escola,
por
Machado de Assis
N
CILZA BIGNOTTO *
Neste ano de comemorações relacionadas aos “na Rua do Costa, um sobradinho de grade de pau”.
100 anos da morte de Machado de Assis, o “bruxo do Estamos em 1840, “no fim da Regência”, conforme nos
Cosme Velho” tem visitado com mais freqüência ainda conta o narrador, em primeira pessoa. Havia poucas, dis-
as escolas brasileiras. Nas salas de aula, crianças e persas e mal-aparelhadas escolas no Rio de Janeiro e, fora
jovens de várias idades lêem suas obras, discutem-nas, da corte, o descalabro educacional era ainda maior. Era
fazem atividades sobre elas – muitas vezes trapacean- comum, na época, que as escolas funcionassem na casa
do, como se descobre em alguns sites da internet que dos mestres e que eles mesmos produzissem o material
“ajudam” a preparar trabalhos de pesquisa em troca de didático necessário para suas aulas, já que havia escassez
alguns reais. de livros apropriados.
A corrupção não é algo novo no ambiente escolar. O narrador inicia o conto afirmando que, naque-
Pelo contrário, ela é um dos temas do Conto de Escola, la manhã azul de maio, decidira ir à escola por medo das
publicado por Machado em 1884, na Gazeta de surras do pai, homem “ríspido e intolerante” que sonha-
Notícias, e posteriormente reunido na coletânea Várias va para o filho “uma grande posição comercial”. Vale a
Histórias, de 1886. Para conhecer corruptor e corrompi- pena transcrever a chegada do menino à sala de aula,
do, entremos com Machado na escola do conto, que era seguida pela entrada de seu mestre:
* Doutora em Teoria e História Literária pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da Unicamp, e professora de Língua
Portuguesa nas Faculdades de Campinas (Facamp).
E-mail: cilzab@uol.com.br
Subi a escada com cautela, para não ser ouvido do pela sala. Os meninos, que se conservaram de pé
mestre, e cheguei a tempo; ele entrou na sala três ou durante a entrada dele, tornaram a sentar-se. Tudo
quatro minutos depois. Entrou com o andar manso estava em ordem; começaram os trabalhos.
do costume, em chinelas de cordovão, com a jaqueta
de brim lavada e desbotada, calça branca e tesa e Esse parágrafo pinta um quadro bastante vívido
grande colarinho caído. Chamava-se Policarpo e das práticas escolares daquele início de século XIX.
tinha perto de cinqüenta anos ou mais. Uma vez Alunos que esperam em pé o mestre entrar; mestre que
sentado, extraiu da jaqueta a boceta de rapé e o lenço usa chinelas, como outros retratados no período, e que,
vermelho, pô-los na gaveta; depois relanceou os olhos logo ao chegar, tira do bolso uma caixa de rapé, cujo
conteúdo será utilizado por ele durante a aula.
Não havia classes mistas, portanto Pilar, o narra-
dor, interage apenas com meninos. Terminada a
lição, ele põe-se a observar pela janela o vôo de
um papagaio e a “recortar narizes no papel ou na
tábua, ocupação sem nobreza nem espiritualida-
de, mas em todo caso ingênua”. É impossível
não sentir familiaridade com essa criança de
1840, que sonha em empinar papagaios
enquanto apóia o livro de gramática nos joelhos
e que reproduz o nariz do mestre em “cinco ou
seis atitudes diferentes”.
Naquela classe e naquele tempo, porém,
havia a palmatória “pendurada do portal da jane-
la, à direita, com os seus cinco olhos do diabo”,
lembrando os castigos que esperavam meninos
que desrespeitassem o andamento da rotina esco-
lar. Talvez por medo desses castigos, que o afeta-
vam mais que aos outros, Raimundo, o filho do
professor, oferece a Pilar uma moeda de prata “em
troca de serviços; ele me daria a moeda, eu lhe
explicaria um ponto da lição de sintaxe”. Pilar
estranha a oferta, pois já havia ajudado o colega
antes, sem receber pagamento algum. Mas, fasci-
nado pela proposta, aceita-a. O acerto entre os
meninos, porém, é delatado ao professor por um
colega, de nome Curvelo, e ambos terminam rece-
bendo “doze bolos” de palmatória em cada mão
Rua São Clemente/ Rio de Janeiro, Bernard Wiegandt, 1884, óleo sobre tela.
é conceito A
Pilar vai para casa humilhado, cheio de planos de
vingança. Pretende procurar a moeda de prata, atirada à
rua pelo professor; pretende bater em Curvelo. Mas, na
manhã seguinte, encontra “uma companhia do batalhão
de fuzileiros, tambor à frente, rufando”, e decide segui-la:
presença infantil
A criança pequena
e a escrita:
experiência em uma
biblioteca da Espanha
MÔNICA CORREIA BAPTISTA *
presença infantil
A criança pequena e a escrita: experiência em uma biblioteca da Espanha
do. Desde o momento em que nascem, as crianças já são apresentam elementos que as tornam coerentes com os
sujeitos neste mundo e, como tal, desenvolvem capaci- aspectos característicos do universo infantil, tais como a
dades que as ajudam a descrevê-lo, compreendê-lo e com forma lúdica de construir significados para o que se faz,
ele interagir. A aprendizagem da língua escrita é um des- para o que se vê e para aquilo que se experimenta; a sim-
ses conhecimentos que muito precocemente invadem o plicidade e a espontaneidade da imaginação e da criati-
território das crianças e lhes despertam a atenção. vidade e a facilidade de crer naquilo que se fantasia. O
Quer consideremos o ponto de vista da criança direito da criança à linguagem escrita não deve, portan-
como um ser competente, cognitivamente capaz de for- to, privá-la do direito de ser criança, e há muitas manei-
mular hipóteses, de interagir com os signos e símbolos ras de se respeitarem ambas as coisas.
veiculados socialmente, quer consideremos as caracterís- A aprendizagem da leitura e da escrita, na
ticas da sociedade contemporânea, a linguagem escrita Educação Infantil, deve considerar ainda dois aspectos
deve ser compreendida como um bem cultural com o centrais. O primeiro deles refere-se ao significado da apro-
qual as crianças devem interagir, mas, sobretudo, do qual priação desse objeto do conhecimento. Conforme argu-
devem ter o direito de se apropriar como forma de inclu- mentam Solé y Teberosky (2001, p.482), a alfabetização
são na sociedade. não consiste unicamente em aprender a ler e a escrever
Além de garantir que integre o cotidiano infantil, para reproduzir o conhecimento que outros elaboraram,
a linguagem escrita deve ser trabalhada por meio de mas, sim, em capacitar os sujeitos a usar de forma autôno-
estratégias capazes de respeitar as características da infân- ma essas habilidades como ferramentas capazes de cons-
cia. Tanto a linguagem escrita quanto sua aprendizagem truir conhecimentos:
Foto: Mônica Correia Batista
presença infantil
A criança pequena e a escrita: experiência em uma biblioteca da Espanha
logia da escrita e, ao mesmo tempo, se torne um usuá- Além de uma biblioteca com as funções ampliadas,
rio competente desse sistema. Can Butjosa se caracteriza por ser uma biblioteca infanto-
presença infantil
A criança pequena e a escrita: experiência em uma biblioteca da Espanha
Considerações finais
crianças menores e de seus pais, inclui a realização de
empréstimos, palestras periódicas sobre a literatura e a
prática de contar histórias, encontros com autores e asses-
soria constante por parte dos profissionais da biblioteca. Diferentemente do que se acreditou até algumas
Estão vinculados ao serviço da Bebeteca projetos como a décadas atrás, muitos estudos têm comprovado que o
Mesa Camilla, a Hora do Conto e outras atividades. contato precoce da criança com a cultura escrita favo-
rece uma ampla gama de aprendizagens fundamentais
Mesa Camilla para a aquisição e apreensão desse sistema. Além disso,
Esse programa trata de dar suporte aos pais e mães também se tem ressaltado que alguns conceitos, habi-
nos momentos de escolher contos para seus filhos. Ao se lidades e atitudes em relação à leitura e à escrita são
discutir a prática de leitura de contos, também se discu- adquiridos, muitas vezes, fora do contexto de escolari-
tem temas relacionados à educação dos filhos e a sua for- zação e resultam de interações específicas entre os
mação como leitores. A sessão, que acontece uma vez ao membros da família ou da comunidade. Essas intera-
mês, se inicia com a leitura compartilhada entre adultos ções ou “práticas letradas”, além de simples entreteni-
e crianças de um conto. Após a roda de história, os pais mento, criam condições favoráveis para que as crianças
se deslocam para o andar de cima da biblioteca, enquan- pensem e elaborem hipóteses sobre o funcionamento
to as crianças (entre zero e seis anos de idade) permane- do sistema de escrita, se apropriem paulatinamente das
cem com voluntários que lhes mostram livros, gravuras regularidades e irregularidades desse sistema, desenvol-
ou lhes contam histórias. No grupo de pais, um dos vam o gosto pela leitura e a apreciação estética,
coordenadores da biblioteca faz a mediação, propondo ampliem seu vocabulário, se habituem ao estilo formal
temas, fazendo perguntas, orientando o debate, regulan- da linguagem escrita, sejam capazes de reproduzir o
do o tempo das falas e propondo leituras. Durante a reu- discurso direto das personagens, entre inúmeras outras
nião, o grupo desfruta de um lanche organizado coleti- potencialidades.
vamente por todos os integrantes. Transcorridos uns 50 Como argumentamos acima, o fato de as socieda-
minutos, os pais voltam a se encontrar com os filhos, e des contemporâneas se caracterizarem como sociedades
um novo conto é compartilhado entre todos. grafocêntricas confere um amplo papel social à língua
escrita e nos alerta para o fato de que o processo de
A Hora do Conto aprendizagem abarcasse uma grande gama de agentes
O objetivo central da Hora do Conto, segundo mediadores e de espaços de formação. Coerente com essa
Escardó I Bas (2003), é fazer com que as crianças abordagem, a perspectiva apresentada por Soler (2003)
propõe que se desloque o foco da leitura como um pro- Neste artigo, ao considerarmos as práticas desen-
cesso de interação entre a criança e o texto para um pro- volvidas em um espaço educativo não formal, pretende-
cesso mais amplo, no qual se inserem os adultos e as rela- mos, de um lado, ressaltar a importância de que a forma-
ções que se estabelecem entre esses sujeitos e o texto. A ção de leitores seja compartilhada por outras instâncias
idéia central é que o processo de alfabetização seja além da escolar e, de outro lado, descrever uma experiên-
dependente da coordenação de aprendizagens que se cia bem-sucedida que integra atividades destinadas à for-
desenvolvem em diferentes espaços e por meio de dife- mação do pequeno leitor e o respeito às suas capacida-
rentes inter-relações. des, potencialidades e desejos.
Referências
Sugestões de leitura
SARMENTO, M.; PINTO, M. As crianças e a infância: definin-
do conceitos, delimitando o campo. In: PINTO, M.; SARMEN-
TO, M. J. (Coord.). As crianças: contextos e identidades.
Braga: Universidade do Minho, 1997, p.31-73.
BAPTISTA, M. Intervenciones psicoeducativas en la primera
infancia y el desarrollo de habilidades relacionadas con la lec- SOLÉ, I.; TEBEROSKY, A. La enseñanza y el aprendizaje de
tura y la escritura. 2008. 520 f. Tese de doutorado (Educação) la alfabetización: una perspectiva psicológica. In: C. COLL, J.;
– Facultad de Ciencias de la Educación. Universidad PALACIOS; A. MARCHESI (Coord.) Desarrollo psicológico y
Autónoma de Barcelona, Bellaterra, 2008. educación. Madrid: Alianza, 2001, v.2, p.461-485.
BARTON, D. Algunas cosas que saben los niños de lectura y SOLER, M. Lectura dialógica. La comunidad como entorno
escritura antes del inicio de la enseñanza primaria. In: ESPAÑA. alfabetizador. In: Teberosky, A.; SOLER, M. (Comp.).
Ministerio De Educación, Cultura y Deportes. Investigaciones
Contextos de alfabetización inicial. Barcelona: Horsori, 2003,
sobre el inicio de la lectoescritura en edades tempranas. Madri:
p. 47-63.
Estilo Estugraf Impresores, 2004, p.103-117.
VYGOTSKY, L.S. El desarrollo de los procesos psicológicos
ESCARDÒ I BAS, M. La biblioteca, un espacio de conviven-
superiores. 2. ed. Barcelona: Crítica, 2003.
cia. Madri: Anaya, 2003.
LEONTIEV, A. N. Os princípios psicológicos da brincadeira pré- VYGOTSKY, L.S. La imaginación y el arte en la infancia.
escolar. In: VYGOTSKY, L.S.; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. 6.ed. Madri: Akal, 2003.
Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 8.ed. São
Paulo: Ícone, 2001, p. 119-142. http://bibut.parets.org
reportagem
Pedagogia da
comunidade
MARITA ANDRADE *
ROSANGELA GUERRA *
Arquivo PBH
* Jornalistas.
repor tagem
Pedagogia da comunidade
Pautado pela idéia da pedagogia da comunidade, munitário. É ele quem elabora a matriz curricular do
o Programa Escola Integrada é muito mais do que uma programa, sempre buscando um diálogo entre o conteú-
simples extensão de jornada. Os alunos ficam nove horas do das diferentes disciplinas e as atividades realizadas
por dia na escola: lancham, almoçam e tomam banho. fora do espaço da escola. A seleção das atividades leva em
Por meio de parcerias com organizações não-governa- conta as necessidades e interesses dos alunos, o perfil da
mentais, universidades e com outras secretarias da comunidade e é feita nas seguintes áreas: desenvolvi-
Prefeitura de Belo Horizonte, a Secretaria Municipal de mento social e pessoal; arte, cultura, lazer, esporte; co-
Educação pôde oferecer as condições para a operaciona- nhecimentos específicos e acompanhamento escolar.
lização do programa. Neusa Macedo exemplifica: “Na Região Leste da cidade
Para selecionar as escolas participantes do progra- há viadutos decorados com mosaicos. Muitos alunos
ma, foi feito um mapeamento em 2006 das que tinham demonstraram interesse em aprender a arte do mosaico,
um maior número de famílias cadastradas no Programa arte que faz parte do dia-a-dia deles”.
Bolsa Família. Além disso, priorizaram-se as escolas que O professor comunitário tem também uma
estão próximas a parques, praças, clubes e outros espaços importante função: identificar pessoas talentosas que
que possam receber os alunos. vivem no entorno da escola. Elas são remuneradas e
Cada escola tem um professor responsável pelo capacitadas para participarem do programa como
Programa Escola Integrada, o chamado professor co- agentes comunitários. Um sábado por mês assistem a
palestras e fazem oficinas
Arquivo PBH
Mantemos uma conversa contínua com todos os par- tânicas. Muito antes de entrar no ônibus para fazer a
ceiros. Isso é a bússola para direcionar as novas ações”, viagem, os alunos localizaram o Instituto no mapa e
acrescenta. Foi através dessa troca de idéias que a secre- navegaram pelo site www. inhotim.org.br
taria conseguiu melhorar alguns aspectos do programa De volta à escola, fizeram relatórios criativos, lin-
como, por exemplo, oferecer vale-transporte para os uni- dos desenhos da natureza, de peças artísticas e deles mes-
versitários que são estagiários no Programa Escola mos enquanto observaram tudo isso. Não foi só. Os
Integrada. jardins e a horta da escola ganharam objetos feitos nas
Arquivo PBH
Ela conhece todos
os caminhos dos bairros
Taquaril e Alto Vera
Cruz, que levam à Escola
Municipal George Ricar-
do Salum, na região leste
de Belo Horizonte.
Cláudia Aparecida de
Almeida foi aluna dessa
escola, onde hoje é pro-
fessora comunitária. “Sou
do morro, cursei Peda-
gogia e fui a primeira
pessoa da minha família
a se formar em facul-
dade”, diz. Sempre fa-
lante, ela conta que a
idéia de embelezar a
escola é fruto do progra-
A imaginação voa e embeleza os espaço da comunidade.
ma Escola Integrada.
Tudo começou com o planejamento de uma
viagem ao Inhotim Instituto Cultural, que fica no Com a Escola Integrada, as pessoas e os saberes da
município de Brumadinho, a 60 km de Belo Horizonte. comunidade ganharam visibilidade e reconhecimento.
Com um acervo importante de arte contemporânea bra- “Quebrou-se o muro da escola”, diz Cláudia. Vestidos
sileira, Inhotim surpreende pela beleza natural. Está com a camiseta do programa, o que identifica e dá sen-
localizado numa reserva de mata atlântica e cerrado e timento de pertencimento, os alunos andam em grupos
tem ainda uma vasta área de jardins com coleções bo- pelo bairro a caminho dos espaços onde participam de
repor tagem
Pedagogia da comunidade
Arquivo PBH
Arquivo PBH
Aula de arte
ao ar livre.
Desafiados a encontrar uma solução criativa, os centes. A participação não é obrigatória. É feita por
alunos circularam pelos becos das vilas, conversando adesão de professores, pais e alunos, que assinam um
com as pessoas. Aos poucos, foram surgindo idéias e termo de compromisso.
também o planejamento para colocá-las em prática. O O secretário municipal de educação de Belo
dono de um ferro-velho disse que gostaria que eles Horizonte, Hugo Vocurca, explica que programas como
fizessem um trabalho de mosaico na fachada de seu esta- esse deparam com limitações orçamentárias do município
belecimento. Encorajados a imaginar e ousar, os alunos para serem colocados em prática. Entretanto, depois de
pintaram borboletas em um muro, que virou uma espé- algumas tentativas e de conhecer propostas bem-sucedidas
cie de referência para quem anda na comunidade. Os desenvolvidas por escolas dos municípios de Nova Iguaçu,
pedidos para que as crianças façam intervenções artísti- RJ, e da cidade de São Paulo, a Secretaria Municipal de
cas na comunidade não param de chegar à escola. Afinal, Belo Horizonte acabou encontrando um caminho.
todos ali querem valorizar o lugar onde moram e alegrar Com a perspectiva de que a educação é uma
os caminhos por que passam diariamente. responsabilidade de todos, o Programa Escola Integrada
Responsabilidade de todos
foi criado pela Secretaria Municipal de Planejamento em
parceria com as demais secretarias da Prefeitura, inte-
grando diversas ações do município. Para o secretário,
O Programa Escola Integrada começou em 2006 no Programa Escola Integrada há um trabalho de edu-
como um projeto piloto em sete escolas da rede muni- cação ambiental, educação para o trânsito, saúde etc.,
cipal de Belo Horizonte. Este ano, cerca de 50 escolas em que não só os alunos, mas todos, estão envolvidos no
participam dele, atendendo a 15 mil crianças e adoles- processo educativo da comunidade.
O mundo
de Buster
A
ALAN ROBERTO *
REUTER, Bjarne.
O mundo de
Buster.
Acabei de ler O mundo de Buster, sabe então – não é um sofredor a lamen-
Tradução: Ana
do autor dinamarquês Bjarne Reuter, e tar-se de sua sorte, mas alguém que apren-
Carolina
estou aqui escrevendo sobre ele. Talvez de a encontrar os próprios caminhos num
Oliveira.
não devesse estar, pois o ideal é que os mundo que, como sabemos, pode ser bem
Ilustrações:
bons livros (como todas as coisas boas) cruel: o das crianças.
Flávio Fargas. permaneçam imersos no silêncio, para O que se descobre quando começa-
Belo Horizonte: que cada um possa pescar seu mistério. mos a ler? Que a chave usada por Buster
Dimensão, 2008. Falar sobre eles tira algo da sua beleza. para abrir as portas necessárias é o humor...
Mas se não o fizermos, como comparti- principalmente. Principalmente porque o
lhar o belo com aqueles que ainda não personagem é sonhador e criativo, poético
tiveram a oportunidade de se ver diante e mágico (literalmente) e sabe muito bem
dele? Como indicar? Como dizer “Leia O como utilizar-se desses recursos.
Mundo de Buster” sem falar sobre ele? Aliás, este é o “porém” do livro.
Uma frase da contracapa reflete Ele começa com um humor intenso e, ao
bem o que vem no restante do livro: “um mesmo tempo, sutil, com referências
aprendiz de mágico que não se sai bem nas metafóricas de tirar o fôlego. Mas,
aulas de Matemática e Educação Física, depois, parece-me que o autor encontra
mas descobre como se virar na vida”. Isto dificuldades de manter o ritmo, como se
me fez sentir vontade de abrir o livro e tivesse gasto toda sua energia nos primei-
descobrir como e por quais meios o apren- ros 50 metros e não conseguisse recupe-
diz se vira. Além do mais, criou uma sim- rar o fôlego para manter a velocidade alu-
patia natural pelo personagem, que – já se cinante das braçadas.
* Escritor.
O humor continua permeando todo o gem analítica do livro, por educadores que jul-
livro. As metáforas se tornam mais raras, o guem pertinente a discussão. Ao mesmo
que pode ser visto como um sinal de qualida- tempo pertencem inteiramente ao universo do
de, pois o excesso delas tira o caráter de sur- livro, ou seja, não estão ali apenas para que o
presa. E a história continua seguindo um fio autor possa emitir sua opinião sobre eles. Nada
condutor de magia e irreverência, que tornam melhor do que abordar um tema importante
impossível não sermos cúmplices do grande sem parecer que o estamos fazendo.
“Buster Oregon Mortensen” e seus “arrisca- Enfim, O mundo de Buster é um livro
dos” truques arrancados da cartola, ou pior (- impregnado de magia e encantamento, costu-
melhor), da garganta. rado por um texto enxuto carregado de humor.
O livro aborda ainda dois assuntos que O autor faz questão de citar ruas e locais do seu
poderiam levar a um escorregão “discursivo”, universo particular, para, assim, imprimir um
do tipo “lição de moral”, que tanto mal faz à caráter universal ao texto, pois o mundo de
literatura infanto-juvenil: o problema físico da Buster é o mundo em que todos nós estivemos,
irmã de Buster e a morte de sua vizinha. Mas estamos ou estaremos, um mundo de dores e
o autor soube evitá-lo muito bem. São assun- perdas, mas que pode ser encarado com magia
tos que podem ser levantados, numa aborda- e humor.
Aprendizagem
Sem título,, Rodrigo de Castro, 2000. Óleo sobre tela, 140 x 100 cm.
DOMINIQUE
COLINVAUX *
DICIONÁRIO CRÍTICO
da escola o locus por excelência da aprendiza- sempre a conteúdos, isto é, a algo a ser apreendi-
gem. Assim explica a grande familiaridade da do por alunos ativamente envolvidos com o ato
educação com o tema. Fala-se muito sobre o de aprender, em um contexto específico: a sala
aprender e suas dificuldades e, não raro, se de aula, com suas regras, convites e interdições.
convoca a aprendizagem (ou sua falta) para Sobretudo, a aprendizagem na escola se articula
explicar as diversas dimensões da realidade com o ensino, caracterizado como um processo
educacional. Mas tudo isso pode resultar em orientado de intervenção que tem por objetivo
uma escolarização do conceito, que leva a precisamente promover a aprendizagem.
Os caminhos do processo de
esquecer que a aprendizagem é um processo de
ensino-aprendizagem escolar
vida. E, aprender, na escola, um processo mul-
tifacetado – porque simultaneamente cogniti-
vo, social, emocional, lingüístico – e multide-
terminado por fatores de ordem política, Se a aprendizagem escolar é processo
social, institucional e curricular. orientado para a aquisição dos conteúdos cur-
É preciso também reconhecer que, na riculares, então é necessário discutir em que
DICIONÁRIO CRÍTICO • APRENDIZAGEM
Sem título,, Rodrigo de Castro, 2002. Óleo sobre tela, 120 x 180 cm.
rência lógica e imediata de uma ação que mente desconhecidos, certamente miste-
lhe é anterior, qual seja, a ação de ensinar. riosos, às vezes de difícil compreensão.
Em outras palavras, a aprendizagem seria Entre os dois – o porto seguro, familiar e
processo previsível e controlável que se su- confortável, e novos horizontes de com-
bordina ao ensino, dele dependendo para preensão e de vida – está a ‘corda bamba’,
acontecer. Por isso, se o professor ensina, o o ‘pulo do gato’, o lançar-se à aventura de
aluno deveria aprender. E, se isso não ocor- descobrir o que não se conhece… Ao
rer, o problema estaria no aluno, talvez por- ensino cabe a difícil, embora apaixonante,
que não tivesse prestado a devida atenção, responsabilidade de criar condições para a
ou em decorrência de hipotéticas lacunas e travessia de todos.
deficiências das etapas anteriores de escola-
Referências
rização, ou ainda, devido a alguma suposta
Sugestões de leitura
limitação intelectual.
No entanto, a experiência mostra – e
as pesquisas hoje explicam – que aprender
DICIONÁRIO CRÍTICO • APRENDIZAGEM
porto seguro, um estado de coisas relati- WILSON, R.A.; KEIL, F.C. (Eds) The MIT
Encyclopedia of the Cognitive Sciences. A
vamente confortável porque conhecido, Bradford Book, The MIT Press, 1999.
para alcançar novos horizontes, inicial-
publi dimensão
EDITORA DIMENSÃO
A escola no
singular e no
plural
O
MEDEIROS,
Regina (Org).
A escola no
SHOKO KIMURA *
singular e no
plural: um
estudo sobre O livro Escola no singular e no Também foi necessário cuidado na
violência e
drogas nas
plural: um estudo sobre violência e drogas escolha das seis escolas pesquisadas, loca-
escolas. Belo
nas escolas resultou de uma pesquisa rea- lizadas nos mais diversos contextos
Horizonte:
li za da pela Pontifícia Universidade sociais, para que fosse possível compor
Autêntica, 2006.
Católica de Minas Gerais (PUC Minas uma amostragem representativa do uni-
216 páginas.
– São Gabriel), entre maio de 2005 e verso da cidade. A pesquisa estendeu-se
julho de 2006, em seis esco las de pelos entornos das escolas, pois estas não
Ensino Médio de Belo Horizonte. foram tratadas como ilhas; pelo contrá-
Alunos, professores e demais profissio- rio, a escola dialoga com outros espaços.
nais da educação foram indagados sobre Quando se faz uma pesquisa, le-
a relação entre violência e drogas na vantam-se alguns indícios ou suposições
escola, questão difícil de ser pesquisada, como ponto de partida. Assim, os pressu-
pois demanda coleta de dados. postos da pesquisa foram:
educar o olhar
Nas telas do
projeto Janela
Indiscreta
MILENE SILVEIRA GUSMÃO *
A
“... a câmera é um olho sobre o mundo.”
A significativa expressão do cineasta Glauber carrinho, criando efeitos que projetavam imagens de
Rocha chama a atenção para a poderosa mediação que o mortos ilustres como Voltaire, Lavoisier, Guilherme
cinema propicia entre o homem e o mundo. Olhar para Tell, entre outros. Em 1839, com a invenção, por
a vida através das narrativas imagéticas produzidas pelo Daguerre, do daguerreótipo, a imagem ocidental entrou
cinema potencializou o sentido da visão no século XX. na era mecânica. Nesse período, iniciou-se, segundo o
No século XXI, o mundo das imagens cada vez mais pre- autor, a longa transição das artes plásticas para as indús-
ponderante e homogêneo necessita de novos olhares, trias visuais, chegando-se à primeira exposição fotográ-
especialmente de olhares mais sensíveis e profundos fica, em 1859, no Salon des Beaux-Arts, em Paris, e,
sobre a complexidade das relações e experiências con- depois, em 1895, à primeira projeção dos irmãos
temporâneas. Ver cinema, mais que isso, ler cinema exige Lumière. Podem-se observar, nesse rápido passeio, os
melhor compreensão dos desdobramentos que essa desenvolvimentos técnicos que exigiram do olhar
potente arte pode provocar nas pessoas. humano aprendizados e adaptações que operaram e
Acervo: Projeto Janela Indiscreta
Tanto a história como a arqueologia apontam continuam operando ampliações e/ou restrições nos
muitos indícios da antiga preocupação do homem com processos de significação da vida.
a gráfica do movimento. O desejo de imitar, reproduzir A constituição de uma cultura audiovisual no
ou representar, por meio da pintura, os aspectos da vida decorrer do século XX, que se tornou preponderante
e da natureza sempre fez parte do cotidiano humano. com o surgimento do cinema e, depois, da televisão,
Segundo Debray (1994, p.262), a arqueologia do superou, na opinião de Castells (1999, p.354), a in-
audiovisual poderia ter começado realmente com o fogo fluência da comunicação escrita no coração e na alma da
e as sombras da caverna; e a crítica de cinema, com maioria das pessoas. Para o autor, esse processo histórico
Platão. A câmara escura, sob o nome de sténope, remon- remonta à invenção do alfabeto, por volta do ano 700
ta à antigüidade. A projeção luminosa começou no a.C., na Grécia, o que tornou possível o preenchimento
século XVII, com a lanterna mágica, que foi, por seu da lacuna entre o discurso oral e o escrito. Este conceito
turno, um apêndice da câmara escura. A imagem ani- possibilitou grande transformação qualitativa na comu-
mada apareceu no século XVIII, com a invenção, sob a nicação humana, provocando o que Havelock (apud
Revolução Francesa, do trevelling, pelo belga Robertson, Castells, 1999, p.353) chamou de um novo estado da
o inventor das Fantasmagories, que fazia deslizar sobre mente, “a mente alfabética”. Essa condição viabilizou a
os trilhos, por detrás de uma tela, uma lanterna em um transformação qualitativa da comunicação humana, pos-
* Doutora em Ciências Sociais pela UFBa. Pesquisadora em cinema vinculada ao Grupo de Pesquisa em Memória, Cultura
e Desenvolvimento do Programa de pós-praduação em Ciências Sociais da UnB. Coordenadora do Programa Janela
Indiscreta Cine-Vídeo Uesb.
educar o olhar
sibilitando, séculos depois, a alfabetização. Foi o alfabe- espaços sociais, o programa promove atividades que pos-
to que, no Ocidente, proporcionou a infra-estrutura sibilitam a utilização do cinema como meio preponde-
mental para a comunicação cumulativa. Castells (1999, rante para formação cultural e educacional. Atualmente,
p.353) argumenta que a nova ordem alfabética, embora são estas as principais ações do programa:
Cinema na Uesb
permitisse o discurso racional, separava a comunicação
escrita do sistema audiovisual de símbolos e percepções,
tão importantes para a expressão plena da mente huma-
na. Assim, ao se estabelecer uma hierarquia social entre Esta ação coloca em prática a experiência de
a cultura alfabetizada e a expressão audiovisual, o preço “cinema-fórum” e abre discussões sobre a leitura cine-
pago pela adoção da prática humana do discurso escrito ma to grá fi ca, a par tir de comen tá rios temá ti cos.
foi relegar o mundo dos sons e imagens, durante um Articula parcerias com os cursos de graduação e pós-
bom tempo, aos bastidores das artes. No entanto, é esse graduação da Uesb, convidando professores dos diver-
movimento de formação de uma cultura audiovisual, sos departamentos para leituras e comentários dos fil-
herdeiro das ambiências das artes e do mundo público da mes. Quando solicitada para a grade de programação,
liturgia, que vai possibilitar uma outra transformação tec- esta atividade também está presente nos diversos
nológica de dimensões históricas similares na virada do eventos realizados pelos departamentos, cursos e seto-
milênio, qual seja: a integração, em redes interativas, de res administrativos da universidade. Isso inclui a pro-
vários modos de comunicação conectando, num mesmo moção de mostras temáticas (exibição de três a cinco
sistema, as modalidades escrita, oral e audiovisual da filmes seqüenciais com um único tema). As sessões
comunicação humana através da articulação potencial de acontecem todas as terças-feiras, às 19h30min, no
textos, imagens e sons. Essa nova condição, que influi de Teatro Glauber Rocha, de Vitória da Conquista,
forma significativa nos modos de consumo e significação durante todo o período letivo.
Cinema Itinerante
da vida na contemporaneidade, exige, principalmente
dos educadores e dos especialistas culturais, a compreen-
são da nova ordem imagética, constituída por uma outra
gramática, que sintetiza imagens, sons e legendas. Esta ação diz respeito ao primeiro desdobramen-
Essas reflexões dão suporte às ações desenvolvi- to das atividades do Janela Indiscreta desde a sua
das pela equipe de trabalho do Janela Indiscreta Cine- implantação. Tem como objetivo exibir filmes, preferen-
Vídeo Uesb, que, desde 1992, realiza, na Universidade cialmente brasileiros, nos distritos, povoados e cidades
Estadual do Sudoeste da Bahia, campus de Vitória da da região sudoeste e em outras localidades da Bahia. Já
Conquista, e em outras cidades da região, um conjunto foram atendidas inúmeras solicitações de prefeituras,
de práticas ligadas à divulgação da produção cinemato- escolas e de eventos culturais e educacionais realizados
gráfica audiovisual clássica e contemporânea. Tendo nos municípios, criando oportunidade para o contato
como objetivo primordial reavivar o sentido do cinema, com o cinema em lugares onde geralmente não existem
através do exercício da leitura coletiva da obra cinema- salas de exibição ou onde a prática de leitura cinemato-
tográfica, a partir da exibição de filmes, posteriormente gráfica não é explorada. Realiza-se de fevereiro a novem-
acompanhados por comentários temáticos, em diversos bro, conforme disponibilidade da equipe de trabalho.
Esta atividade busca dar suporte ao trabalho A ação criada em parceria com a Pró-Reitoria de
com o cinema na sala de aula, a partir das demandas Graduação (Prograd) e a Comissão Permanente do
das instituições de ensino, principalmente as escolas Vestibular (Copeve), foi é iniciada no segundo semes-
públicas. Um dos principais focos é a formação do tre de 2004, a partir da exibição de filmes brasileiros e
público jovem para o cinema e, mais especificamente, estrangeiros acompanhados de comentários temáticos,
para o cinema brasileiro, buscando o interesse do alu- visa especialmente à inserção do cinema como possibi-
nado pelos temas abordados nos filmes relacionados lidade de leituras e análises de textos no programa de
com os conteúdos curriculares e a sua interdisciplinari- estudos para os concursos vestibulares realizados pela
dade. Nessas atividades, o Janela Indiscreta tanto se Uesb. Essa atividade, nos últimos anos, tem compro-
desloca até as escolas como traz a escola para o espaço vado que os filmes, como consideram alguns educado-
do projeto na universidade. res renoma dos, permitem novas inter preta ções e
Acervo: Projeto Janela Indiscreta
educar o olhar
melhor compreensão da realidade. É desenvolvida nos gráficas, e a formação de público por meio de exibições de
meses de setembro, outubro e novembro (de quinta a filmes brasileiros. Para tanto, ofereceu, em 20 municípios
sábado), nas três cidades-sede dos campi da Uesb da região sudoeste da Bahia com população abaixo de 40
(Vitória da Conquista, Jequié e Itapetinga). mil habitantes, oficinas sobre a relação cinema-educação
Mostra Cinema Conquista observação de Bourdieu (apud Duarte, 2002, p.13), quan-
do afirma que a experiência do cinema contribui para
Foi idealizada no início de 2004, como conse- desenvolver o que se pode chamar de “competência para
qüência de várias atividades que já vinham sendo reali- ver”, isto é, uma certa disposição, valorizada socialmente,
zadas pela Uesb, por meio do Janela Indiscreta, e do para analisar, compreender e apreciar qualquer história
compromisso da Prefeitura Municipal de Vitória da contada em linguagem cinematográfica.
Conquista, por meio da Secretaria de Cultura e Turismo,
Referências
de incluir a cidade natal de Glauber Rocha na lista de
Sugestões de leitura
centenas de festivais e mostras de cinema realizadas em
todo o País. Em suas quatro edições, a Mostra Cinema
Conquista vem democratizando o acesso da população
da região sudoeste da Bahia à produção cinematográfica BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento.
São Paulo: Edusp; Porto Alegre, Zouk, 2007.
brasileira e mundial, por meio de: exibições de filmes e
vídeos, de diversos formatos, temas e localidades; da rea- CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e
Terra, 1999.
lização de seminários, com a participação de realizado-
res, estudantes e representantes do meio audiovisual; ofi- DEBRAY, Régis. Vida e morte da imagem: uma história do
olhar no ocidente. Rio de Janeiro: Vozes, 1994.
cinas e cursos de formação audiovisual, com profissio-
nais da área; lançamentos de livros e exposições, com DEBRAY, Régis. Manifestos midiológicos. Rio de Janeiro:
Vozes, 1995.
temas relacionados ao cinema brasileiro e mundial.
DUARTE, Rosália. Cinema e Educação. Belo Horizonte:
As ações do Programa Janela Indiscreta Cine-Vídeo Autêntica, 2002.
Uesb estão ancoradas na compreensão de que a obra cine-
GUSMÃO, Milene. Dos cineclubes ao Janela Indiscreta:
matográfica, por sua natureza, se completa e se realiza no memória e cinema em Vitória da Conquista. In: Recortes de
ato da exibição e, quando recepcionada coletivamente, Memória: cultura, tradição e mito em Vitória da Conquista e
região. Vitória da Conquista: Museu Regional, Uesb, 2002.
proporciona efeitos, sentimentos e percepções diferencia-
das daquelas vivenciadas quando assistida individualmen- GUSMÃO, Milene. Memória, cinema e educação: algumas
considerações sobre cineclubes, Estado e Igreja Católica no
te. Além disso, considera-se que a leitura coletiva de um Brasil pós-1930. In: Lombardi, J.C; Casimiro, A.P.B.S e
filme amplia a capacidade de percepção dos homens e dos Magalhães, L.D.R. (orgs.). História, cultura e educação.
Coleção Educação Contemporânea. Campinas, S.P: Autores
diversos modos de significação da vida. Algo próximo da Associados, 2006.
ponto de vista
A escola e o
direito de aprender
dos alunos
JOSÉ FRANCISCO SOARES *
Sem título, Rodrigo de Castro, 2003. Óleo sobre tela, 120 x 180 cm.
* Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais e coordenador do Grupo de Avaliação em
Medidas Educacionais (GAME – FaE/UFMG).
ponto de vista
percurso até que os testes cumpram de forma adequada entre si em até quase três anos de escolarização. Trata-se
sua dupla função de monitoramento e melhoria. Como de uma diferença muito grande, já que todas as escolas
são milhões de alunos no ensino básico, os testes são a têm acesso aos mesmos humanos e materiais.
única maneira de se verificar se o direito ao aprendizado Este pequeno exercício mostra que há no sistema
de todos os alunos está atendido. Mas, além disso, devem educacional brasileiro informações sobre como melhorar
gerar informações com relevância pedagógica que permi- o aprendizado dos alunos e, portanto, atendê-los de
tam a melhoria do projeto pedagógico da escola. forma mais completa em seus direitos. Infelizmente, a
Um passo importante neste debate foi dado área de pesquisa que procura sistematizar estas experiên-
com a introdução da Prova Brasil. Os resultados de cias – a busca do efeito da escola – não recebeu, ainda, a
sua segunda aplicação, em 2007, foram recentemente devida atenção de nossos pesquisadores educacionais.
divulgados. Nesta prova, os alunos são submetidos a Essa área de pesquisa, que muitas vezes recebe o nome
um conjunto de questões que permitem medir, por mais polêmico de Escolas Eficazes, já produziu, interna-
exemplo, sua capacidade de leitura, ou seja, sua capa- cionalmente, um corpo de conhecimentos muito úteis.
cidade de compreender textos escritos, utilizá-los e Tais conhecimentos permitem identificar o tipo de esco-
refletir sobre eles de forma a atingir seus objetivos, las que reúnem as condições para oferecer uma educação
desenvolver seus conhecimentos e participar critica- de boa qualidade e, assim, fornecem elementos para me-
mente da sociedade. lhorar os resultados das outras. No Brasil, ainda são pou-
Usando os dados da Prova Brasil, realizada em cos os estudos que caracterizaram e propuseram explica-
2007, e uma classificação do nível socioeconômico das ções para as diferenças no aprendizado de alunos de
escolas de Belo Horizonte, pode-se constatar que nesta escolas semelhantes. O desenvolvimento desses estudos
cidade há escolas públicas, tanto estaduais como muni- certamente trará contribuições importantes para que o
cipais, que, embora atendendo a um alunado de nível “direito à educação” possa ser concretizado, no nosso
socioeconômico equivalente, têm resultados que diferem país, como “direito à aprendizagem”.
educacional”,
PEDAGÓGICA CAXAMBU
Data: 14 a 16 de novembro de 2008
Local: Centro de Convenções – Caxambu, MG.
Inf: www.conexaeventos.com.br - (31) 3225-7678
PEDAGÓGICA FORMIGA
Data: 28 a 30 de novembro de 2008
Local: Formiga, MG.
Inf: www.conexaeventos.com.br - (31) 3225-7678
ENCONTRO DE EDUCADORES
Data: 20 a 23 de janeiro de 2009
Local: FEAD - Belo Horizonte, MG.
Inf: www.cte.etc.br - (31) 3274-0199
GOIÁS
ALAGOAS P.D. ARAÚJO PERNAMBUCO – PARAÍBA
LINS E JATOBÁ LTDA. Araguaia, 306 – Qd. 39 – Lt. 46 – VIA LIVROS
Av. Dr. Júlio Marques Luz, 772 –- Jatiúca Centro – 74030-075 – Goiânia/GO Av. Oliveira Lima, 955 – Soledade
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