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Sonia Rodrigues

COMO
ESCREVER
SÉRIES

ROTEIRO A PARTIR DOS MAIORES


SUCESSOS DA TV
Este livro é dedicado a meu pai,
Nelson Rodrigues, que considerava
afrodisíaco escrever para televisão.

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
AUTORIA PARA SÉRIES

ELEMENTOS DA NARRATIVA
HISTÓRIA-BASE, STORY LINE , PENSATA
MUNDO INCONFUNDÍVEL
VEROSSIMILHANÇA
DANDO VIDA AO MUNDO INCONFUNDÍVEL
PERSONAGEM:
faz porque pode, porque o espectador
acredita e porque a trama necessita
DANDO VIDA AOS PERSONAGENS: ações e falas
JORNADA DO HERÓI: de si mesmo e da narrativa

DESENVOLVIMENTO DA TRAMA & ESTRATÉGIAS NARRATIVA


ETAPAS E ATOS
O FORMATO AINDA MAIS ESPECÍFICO NAS SÉRIES DRAMÁTICAS
TIPOS DE APRESENTAÇÃO DE PROJETOS DE SÉRIES ESTRATÉGIAS NARRATIVAS EM
SÉRIES DRAMÁTICAS
ENGENHARIA REVERSA:
CONHECENDO O DNA DE SÉRIES
POR QUE ENGENHARIA REVERSA?

LEVANTANDO SUA PRÓPRIA SÉRIE


SEU REPERTÓRIO E SUA SÉRIE: primeiro pré-requisito
CONSTRUÇÃO DE PERSONAGEM PARA A PRÓPRIA SÉRIE: segundo pré-requisito
ESCREVENDO UM SPEC DE SÉRIE JÁ EXISTENTE
ESCREVENDO A PRÓPRIA SÉRIE
ROTEIRO DO PRIMEIRO EPISÓDIO
RELEITURA DO PRIMEIRO ROTEIRO
LENDO SEU ROTEIRO DE NOVO
ÚLTIMAS SUGESTÕES

SÉRIES DRAMÁTICAS NO BRASIL: ENTREVISTAS COM QUEM


FAZ
ROBERTO D’AVILA
PAULO MORELLI
JOSÉ HENRIQUE FONSECA

AGRADECIMENTOS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

APRESENTAÇÃO

AUTORIA
PARA SÉRIES

Sou uma mulher de sorte. Nascida e criada entre contadores de


histórias, todos os meus desejos, no chão da narrativa, foram atendidos.
Roteirizei alguns documentários, um deles premiado em vários
festivais. Publiquei 27 livros de prosa. Participei de sala de roteiristas de
duas telenovelas. Escrevi dois projetos de séries de TV. Ministrei dezenas
de oficinas de escrita para roteiristas. Li e dei pareceres, nos últimos dez
anos, sobre cerca de 500 roteiros de cinema e de TV.
Em meio a tudo isso, fiz um doutorado em Literatura e transformei,
com Maurício Mota, minha tese num jogo de criar histórias chamado
Autoria. Um jogo para estimular o aparecimento de novos escritores e
também para estimular pessoas que gostam de histórias a entender como
elas são feitas.
Quatro observações sobre o que aprendi nesta minha vida dupla de
gente que escreve e gente que estuda e pesquisa:
Cada forma narrativa tem uma poética própria.
As séries são a narrativa do século XXI. Elas são para o nosso
século o que o romance foi para o século XIX e o cinema para o século XX.
Roteiro de série dramática é o mais difícil de se escrever porque é a
escrita que mais depende do domínio técnico.
Imaginação e criatividade não substituem conhecimento de
estrutura.
Em todos os roteiros que leio e escrevo procuro observar qual a
história-base, se o mundo está bem levantado, se a trama é coesa, se a
estrutura narrativa e os diálogos entregam o prometido na story line , na
sinopse.
Quando um roteirista desconhece os parâmetros do formato, o
resultado é algum tipo de monstrengo. Sem conhecer ou sem respeitar os
meandros da narrativa, o roteirista pode até fazer um monstrengo atraente,
mas, em geral, a produção fracassa, trazendo frustração para todos os
envolvidos em sua criação.
Para inovar, para ser criativo é necessário se conhecer muito o
formato que se deseja subverter.
Nelson Rodrigues, gênio brasileiro autodidata de todo tipo de
narrativa, recomendava que nós não devíamos permanecer no complexo de
vira-latas do mundo. Ele era, assumidamente, admirador do pragmatismo de
Hollywood. Como ele, penso que podemos aprender muito com o que se
faz no exterior. É possível que, em algum momento, superemos, até, as
séries estrangeiras.
Hoje, no entanto, criadores brasileiros têm muito a aprender com as
séries americanas, inglesas e uma francesa examinadas aqui. Aprender
imprimindo nossa marca, produzindo um conteúdo brasileiro e, ao mesmo
tempo, universal.
Este livro pretende contribuir com outros esforços para que as
incursões brasileiras ao drama seriado na TV reverta-se em conteúdo de
qualidade.
Espero que, ao mesmo tempo, as pessoas que assistem às séries
possam satisfazer a curiosidade que, por acaso, tenham de como são feitos
esses programas de TV de que gostam tanto.
No Brasil, quem gosta de séries dramáticas conhece muito e tem
opiniões a respeito delas. Este é um fenômeno interessante. O que um não
roteirista ganha entendendo como se escreve uma série de TV? Ganha de
presente entender a narrativa de ficção de sua época e, com isso, ganha a
possibilidade de entender melhor o nosso mundo.
A narrativa, através dos tempos, teve sempre esta função: a de
partilhar aventuras que não vivemos, mas gostaríamos de ter vivido. A de
possibilitar nossa convivência com personagens que não conhecemos
pessoalmente, mas que aumentam a nossa compreensão do humano.
Espero que, ao final da leitura, este livro tenha contribuído para os
profissionais da escrita e para os que buscam nas séries emoção,
entretenimento e reflexão.
Uma explicação sobre as possibilidades de leitura do que escrevi: o
livro está dividido em cinco partes. As três primeiras podem ser lidas, eu
espero, de forma independente.
Na primeira, temos conceitos da Poética para que você conheça o
jogo dramático, mas com exemplos quase exclusivamente de séries. Todo
escritor levanta um mundo para seus personagens. Na série dramática, um
mundo e um conjunto de personagens que ficarão com o público durante
anos, se a série der certo. Desse mundo e seus personagens é que trata a
primeira parte do livro.
Na segunda , estrutura narrativa, personagens e papéis, etapas da
narrativa e desenvolvimento de trama. Especificidades do formato e
estratégias narrativas de séries dramáticas são os temas.
Na terceira, temos a engenharia reversa de séries dramáticas.
Como espectador de séries nossa tendência é assistir a partir da
trama. Às vezes, pela ótica do personagem com quem nos identificamos
mais. Mesmo quem escreve roteiros para outras mídias mantém, na maioria
das vezes, a tendência de assistir de forma mais passiva. Assistir fazendo a
engenharia reversa é essencial.
A quarta parte do livro, “Levantando sua própria série”, reflete
minha experiência de roteirista e de líder de grupos criativos.
Minha sugestão é a de que você não vá para a quarta seção do livro
sem ter lido as três primeiras.
Essa divisão está relacionada à impossibilidade, no meu
entendimento, de que um roteirista escreva uma série sem saber o que é
história, qual a diferença entre elementos e etapas da narrativa ou sem
entender o que é essencial e incidental na construção de um personagem ou
uma trama.
Ao final, temos uma quinta parte pequena, mas valiosa: entrevistas
com quem faz série dramática no Brasil.
Uma observação: procurei me concentrar em exemplificar, na
medida do possível, apenas os primeiros episódios das séries para que você
tenha o prazer (e o dever, de certa forma) de assistir ao restante das
temporadas.
Steven Johnson publicou, em 2005, um livro sobre como os games e
a TV contribuem, com as infinidades de conexões que apresentam, para
tornar as pessoas mais inteligentes .
Espero que ao final da leitura de Como escrever séries você
concorde que as séries aqui estudadas têm tantas conexões que, de verdade,
contribuem para aumentar nossa competência de espectador.

ELEMENTOS
DA NARRATIVA
HISTÓRIA-BASE,
STORY LINE, PENSAT A

Elementos da narrativa fazem parte do conjunto de decisões autorais


que vai estabelecer um enredo, um plot .
O primeiro e lemento da narrativa que importa em qualquer obra é a
história que se vai contar. Story line , logline , tudo começa na definição de
qual é a história. É importante saber qual história se vai contar e é muito
arriscado não saber qual é.
Certa feita escrevi um romance e por volta da página 150 descobri
que estava contando a história errada. Precisei jogar fora 90 páginas do que
estava escrito porque eu trocara o protagonista, sem perceber. É claro que
em literatura é mais fácil o escritor se perder. É possível escrever um livro
sem planejamento, usando apenas a imaginação e a experiência acumuladas
como bússola.
Em roteiro, não saber qual é a história que se vai contar é a maior
perda de tempo e trabalho que pode existir.
Numa obra, em qualquer formato, a história é o fator estável. O
enredo, dado pelos elementos da narrativa, é variável. Uma mesma story
line pode resultar numa trama completamente diferente, dependendo de
quais elementos variáveis o roteirista imagina para a narrativa.
A estrutura narrativa é composta de história e enredo. O mais
importante dessa breve definição é que a medida de autoria é dada pela
maneira como os elementos da narrativa articulam o enredo.
Na Grécia antiga, nos concursos dramatúrgicos, em Atenas, os
autores partiam da mesma história e compunham enredos distintos. Por
isso, Jocasta se enforca no final da peça Édipo Rei , de Sófocles, e continua
viva em As fenícias , de Eurípedes.
Por que estou citando os gregos num livro sobre séries? Porque o
teatro grego deixou a que talvez seja a melhor lição para um roteirista: não
importa se a história já foi contada. O que importa é como você combina os
elementos da narrativa para tornar o enredo marcante.
Numa série, alguém precisa ou quer alguma coisa é a história A.
Se esse alguém vai ficar com a pessoa que ama é a história B.
Parece simples, mas o senso comum leva muitos roteiristas a
perderem de vista o óbvio: conseguir o que quer e ter amor na vida faz parte
do ideal da maioria das pessoas.
Story line se estabelece com um protagonista, um objetivo do
protagonista e um obstáculo entre o personagem e o que deseja alcançar.
De novo os gregos: a Odisseia , de Homero, tem uma história-base
que é “líder militar precisa terminar com uma guerra para voltar para sua
mulher e seu filho”.
Protagonista: Líder militar, no caso Ulisses ou Odisseu; objetivo:
voltar para Itaca, para Penélope e o filho pequeno; obstáculo: a Guerra de
Troia que se arrasta já há nove anos.
Essa é a mesma história-base do megassucesso em cinema Tropa de
Elite e de um sem-número de tramas de teatro, literatura, cinema e TV,
através dos séculos.
Para atingir seu objetivo, Ulisses prendeu, torturou, matou, enganou
e inventou o Cavalo de Troia. Mesmo assim, na volta para casa, ainda
precisou seduzir, comprar, convencer, enganar e matar. Dá ou não dá uma
série essa história?
Já a Ilíada , também de Homero, conta a história dos vencedores e
acaba enaltecendo a coragem e a resistência dos vencidos. Inclusive pelo
título, porque Ílion é outro nome para Troia.
Identificando a história-base da Ilíada pelo lado dos troianos
teríamos: “família se vê envolvida em guerra quando um dos seus filhos
rouba a mulher de anfitrião poderoso”.
Do ponto de vista dos gregos seria: “amigos de homem poderoso
são envolvidos numa longa guerra quando convocados para ajudá-lo a
recuperar a esposa roubada por um visitante”.
Já a Odisseia , como foi dito anteriormente, é a trajetória de um
herói: Ulisses ou Odisseu.
De qualquer forma, nas duas versões da story line propostas é
preciso definir e caracterizar os personagens dos dois lados e caracterizar
Helena, personagem que ocupa o papel de prêmio.
Estou usando aqui os conceitos de Propp [1] , apesar de ele nunca ter
examinado a epopeia, muito menos o romance moderno. O que sua
abordagem possibilita é uma aproximação de conceitos.
Qual a story line de Downton Abbey ?
Numa de minhas oficinas, uma roteirista disse que a história-base de
Downton Abbey seria “a morte vai causar uma reviravolta na família”.
Não pode ser a morte porque morte não é personagem em Downton
Abbey . Não teria nada demais se existisse a Morte como personagem. No
caso do filme Encontro Marcado , com Brad Pitt e Anthony Hopkins, a
morte é personagem. A história-base daquele filme é “Morte vem buscar
um cara e se apaixona pela filha dele”.
É muito comum, no início do processo de pensar uma série
dramática, o erro na definição da story line . A morte como protagonista no
exemplo acima leva a um filme. No caso da série, a morte do herdeiro é um
marco na narrativa.
A história-base de Downton Abbey poderia ser “família nobre, no
interior da Inglaterra, no início da primeira década do século XX, tenta
manter sua herança em torno da sua mansão”.
Uma palavra imprecisa na story line pode levar o roteiro para
direções completamente diferentes.
“Família rica” no interior da Inglaterra, no início da primeira década
do século XX, é completamente diferente de “família nobre”, considerando
o que era a Inglaterra no início da primeira década do século XX.
O dono do tabloide, personagem que aparece mais tarde, é rico, para
usar como exemplo. Ele pode comprar uma propriedade de uma família
nobre, reformar a mansão senhorial e vendê-la depois. Uma família nobre
não poderia fazer isso com a sua própria casa com a mesma facilidade.
Agora, a story line de Scandal :
Especialista em blindagem, negra, administra escândalos de gente
importante em Washington enquanto vive conflito de ser ex-caso e ainda
apaixonada pelo presidente dos EUA, branco e casado.
Uma palavra ― homem ou mulher, branco ou negra, irlandês ou
italiano, advogada ou detetive ―, qualquer escolha autoral que torne mais
precisa a story line , se torna decisiva. Dizem que não existe almoço grátis,
também não existe escolha sem consequências numa story line .
Vejamos a story line de Ray Donovan :
Especialista em blindagem, de origem irlandesa, esconde escândalos
de celebridades em Hollywood enquanto administra os problemas que seu
pai, ex-presidiário, pretende criar para a família e para homens famosos que
o colocaram na cadeia com a ajuda de Ray.
Lilyhammer , série da Netflix, tem na story line um mafioso
americano que topou entregar o chefe e se exila na Noruega. Vindo de um
ambiente com tintas muito marcadas ― “afinal, um homem não pode usar
armas para defender a própria casa?” ―, o protagonista vai parar num lugar
gelado cheio de regras de civilidade e convivência que fazem um mundo
quase intransitável para ele.
E a story line da primeira temporada de Game of Thrones ? Famílias
nobres que governam os Sete Reinos fazem de tudo para manter o poder e
preservar seus segredos, enquanto um herdeiro usurpado busca apoio para
recuperar o que é seu e, no extremo gelado do território, surgem seres
extraordinários, inclusive mortos-vivos.
Veja que existe o protagonista, mas existe também o protagonista
em grupo. Não só uma família, como em Downton Abbey , mas várias
famílias, como em Game of Thrones . O título já indica isso.
A profissão ou ocupação do protagonista ajuda muito a definir uma
boa story line . Inclusive porque vai influir no seu objetivo e na
competência em administrar o problema.
Objetivo do protagonista. Mesmo um cínico como o protagonista de
House of Cards quer muito alguma coisa, importante o suficiente para
render 13 episódios. No caso dele, o cargo de secretário de Estado. O que
ele vai fazer para conseguir isso é do que vai tratar a trama.
A história, sempre soberana, e as demais escolhas de enredo é que
vão criar o mundo inconfundível, mas a profissão do protagonista, objetivo
e obstáculo já indicam bastante o caminho.
The Good Wife e Ray Donovan são exemplos do que acabamos de
expor. Uma atua nos tribunais, o outro na blindagem de gente célebre, mas
o principal para eles é a relação com a família. O amor à família para esses
dois protagonistas é quase uma fraqueza.
Se você define a profissão já direciona a trama, mas não define
categoria. O que vai definir categoria da série é o problema que o
protagonista enfrenta. Alguns problemas rendem uma série, outros, um
filme.
A primeira coisa, portanto, numa narrativa de TV é definir uma
story line . No caso de séries dramáticas, a história-base da série toda,
depois a da temporada e, quando o projeto está aprovado, a história-base de
cada episódio.
Existem muitas fontes de histórias. A primeira é a nossa própria
vida. A segunda é a vida das pessoas próximas. A terceira é a vida da nossa
cultura. A quarta é a literatura, o cinema, a TV e tudo o que fizeram antes
de nós.
De certa forma, usamos as quatro fontes quando escrevemos. Fazem
parte do nosso repertório as duas primeiras, as duas últimas são as alusões
narrativas das quais falei anteriormente.
Conto hoje com um acervo de cerca de 360 histórias-base nos
storytelling games , em caixa ou digitais, que eu criei ou ajudei a criar.
Selecionei sete exemplos delas:
Homem torna-se amigo do sujeito que precisa matar.
Grandes amigos se reencontram após anos como adversários numa
guerra.
Aprendiz descobre que seu mestre foi corrompido por forças do mal
e terá que derrotá-lo.
Irmãos separados ao nascer precisam se reencontrar para impedir a
destruição do mundo.
Pessoa morre por engano e tem o direito de voltar à vida.
Ser fantástico se apaixona por mortal.
Criança predestinada a salvar o mundo precisa ser salva.
Essas histórias podem ser base para romances, contos, séries ou
filmes. Aliás, são histórias-base de várias obras, em categorias diversas.
O que vai determinar o rumo delas é se a localização do
protagonista na sua sociedade, seu objetivo e o obstáculo existente rendem
uma história de curta ou longa duração. Uma história com muitas ou poucas
possibilidades de ramificações.
Para uma história-base se tornar uma story line de série precisa ser
definida levando-se em consideração essas particularidades.
Às vezes, o roteirista tem histórias muito boas, mas são histórias
para filme. Um exemplo: a história de uma ambientalista que luta contra a
construção de um condomínio de luxo. Outro: uma garota de programa que
foi injustamente acusada de um assassinato. Ou a de um ex-marido que
tenta reaver a guarda dos filhos. Se a ambientalista conseguir impedir a
construção, a história acaba. Se a garota de programa conseguir provar sua
inocência, acabou a história. Se o cônjuge conseguir sucesso, a história
acaba.
O que essas story lines têm em comum? Não estão no formato de
antologias de histórias.
Imagine como cada uma dessas histórias, com os mesmos
protagonistas, pode virar uma série. Por exemplo, se uma advogada tiver
uma ONG destinada a reparar injustiças contra prostitutas, ao mesmo tempo
em que precisa manter em segredo seu passado misterioso, você pode ter
uma antologia de histórias. Coloquei no futuro da moça a story line .
Coloquei um obstáculo dificultando seu presente e seu objetivo.
Pensata. Às vezes, a história-base já vem com uma pensata, um
princípio moral embutido.
Pensata é um aspecto importante do DNA de uma série.
No caso de The Newsroom , a pensata é exibida na palestra em que
Will perde a cabeça e o controle: os EUA não são o melhor país do mundo,
mas poderiam ser. O que precisa para isso? Precisa uma imprensa livre e
crítica. Will, no entanto, deixou de ser um jornalista desse tipo. E ali está
Mackenzie para ser a Dulcinea dele, num diálogo explícito com o texto de
D. Quixote.
Em Under the Dome existe uma pensata comum ao mundo
inconfundível de Stephen King, o escritor do livro que deu origem à série.
A pensata é: quando se veem frente a circunstâncias terríveis, as pessoas
perdem a noção de humanidade. Testar o limite do humano frente ao horror
é uma estratégia recorrente de Stephen King e, pelo sucesso que ele faz no
mundo ocidental, a pensata dele repercute em todos nós: o que faríamos se
ficássemos presos dentro de um copo? Como uma mosca na brincadeira
infantil? Uma redoma enorme e nós pequenos, insignificantes dentro dela?
Qual seria a pensata de Downton Abbey ? Nesse caso, considero que
temos uma pensata histórica e uma pensata amorosa.
A amorosa: “não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo.”
A pensata histórica seria algo como: “é impossível um velho mundo
resistir a todas as mudanças que estão explodindo em suas fronteiras.”
Qual a pensata de Scandal ?
Poder é mais importante do que amor.
E a de Ray Donovan ?
Os limites de até onde um homem pode ir para proteger seus
clientes e sua família.
A de Breaking Bad talvez seja: é melhor ser criminoso e provedor
do que vítima e perdedor.
Duas observações importantes: story line é a história-base, a história
a qual os eventos principais se reportam, a origem da qual todas as
consequências irão advir. Não é resumo da trama na Wikipédia. Nada contra
o resumo, mas o conceito é outro.
Pensata de uma obra nem sempre é deliberada, nem mesmo
consciente. No entanto, o princípio moral de uma obra é algo que salta aos
olhos quando se examina de perto.
“Amar ao próximo como a si mesmo.” Essa frase bíblica resume a
pensata de Broadchurch numa perspectiva dialógica. O que é uma
perspectiva dialógica? Veremos já.
Story lines , em séries, também estão em tramas secundárias que
aparecem em episódios. São as chamadas histórias A, B e C das quais
tratarei adiante.
As sequências do personagem Chris Montesanti tentando ser
roteirista, em Família Soprano , compõem uma história C. A story line
dessa história é: roteirista e produtor bem-sucedidos usam em roteiro
acontecimentos, contados por Chris, do travesti deformado por outro
mafioso.
Da mesma forma como existem story lines para tramas secundárias,
às vezes também existem pensatas. No exemplo do jovem mafioso tentando
ser roteirista, a pensata seria: as diferenças de classe são marcantes em
assuntos como sexo, dinheiro e poder. A classe média bem-sucedida pode
querer transar escondido com o bandido, pode querer copiar história
contada pelo bandido, mas não querer fazer do bandido um artista.
É bom levar em consideração que Família Soprano é uma série (ou
foi, já que continua sendo assistida, mas terminou) na qual a falta de saída,
a tragédia ronda os personagens que são da “família”.
Escrevendo este livro, comentei com uma pessoa de minha equipe:
as séries são o lugar hoje em que as coisas soam verdadeiras e coerentes.
Por que eu digo isso? Porque as séries trazem pensatas que são coerentes.
Não só a pensata da série inteira.
Um exemplo? Torturar por razões nobres está a um milímetro de
torturar por razões próprias. Essa é a pensata da trajetória de vários
personagens em Scandal , em Família Soprano , em Lilyhammer .
Existe lógica nessa pensata e isso é mostrado coerentemente nas
séries. Quando uma pessoa passa anos torturando para obter informações
dos outros com o objetivo de servir ao seu país ou ao seu grupo criminoso,
essa pessoa deve ter ou adquirir alguma aptidão (para não dizer prazer)
nessa prática.
Podemos afirmar que a pensata de The Wire aparece no teaser , no
diálogo entre o detetive que pergunta “Por que vocês deixavam o cara que
roubava sempre continuar jogando?” e o amigo do morto que responde
“Porque aqui é a América, cara”.
“Porque aqui é a América” vai nortear a série. Esta é a América que
o seriado mostra. A da lei e do crime em Baltimore, EUA.
Pensatas contraditórias são um ingrediente interessante numa série
dramática. Em Twisted , a pensata pode ser a frase do diretor da high school
: os problemas que enfrentamos na adolescência formam os adultos que
seremos.
Ou então a pensata seria: um sociopata pode parecer uma pessoa
normal; é fácil para um sociopata fingir emoções.
Caso em Twisted a pensata não seja sobre a adolescência e sim sobre
a sociopatia existirá uma consequência na curva dramática da série: será o
protagonista sociopata ou vítima inocente da armação de outro sociopata?
A quantos episódios o espectador precisará assistir para responder a
essa dúvida? Muitos.
Quando assistir a uma série de TV, lembre-se de checar se a pensata
que você imagina que seja a da série combina com a story line ou com o
mundo em que está inserida.

MUNDO
INCONFUNDÍVEL

O termo mundo inconfundível que uso em minhas oficinas mantém


pontos em comum e diferenças em relação aos conceitos de Mundo Comum
e Mundo Especial, usados por Christopher Vogler.
Considero que a diferença talvez esteja em Vogler se inspirar em
Campebell, que por sua vez se inspira em Jung.
Minhas fontes são Vladimir Propp, principalmente, e Mircea Eliade.
Os dois autores trabalharam o mito e o conto maravilhoso a partir da
trajetória do herói com atributos mágicos.
Propp, como Aristóteles muito antes dele, estudou o mito. Segundo
Mircea Eliade, outro estudioso que inspirou gente como Joseph Campbell,
os povos antigos acreditavam que o mito é a realidade e a ficção não. Ou
seja, o mito seria a expressão verdadeira da consciência humana sobre a
realidade em que vivemos. Talvez seja esse o motivo pelo qual os estudos
de Aristóteles e Propp continuem funcionando.
O que funciona para explicar o mito funcionaria para explicar as
narrativas contemporâneas, as séries, por exemplo, porque a imaginação
dos criadores, roteiristas está impregnada do mito, suas características, suas
etapas.
Apesar de minhas leituras comuns a Vogler ― Propp, Mircea Eliade
e Campbell ―, penso que nas séries dramáticas, quer sejam realistas quer
sejam de fantasia, os criadores levantam um mundo próprio e esse mundo
inconfundível é coeso e único, independente de mágica. Ou talvez, a magia
apareça de forma metafórica.
O mundo inconfundível de qualquer obra é criado a partir dos
elementos da narrativa. O local onde a story line se concretiza, em que
época, quais são os personagens, quais os cenários a que estão ligados e
onde atuam, quais suas motivações, fraquezas e objetivos nessa narrativa.
Considera-se que a Ilíada seja a primeira narrativa publicada na
civilização ocidental. Em Atenas, no século VIII a.C., no governo de
Psístrato. Começa com uma briga entre os gregos Aquiles e Agamemnon,
por causa de uma mulher, Briseides e acaba com os funerais de Heitor,
herói troiano. Uma parte da história é apresentada em flashbacks . É um
longo poema épico, com dezenas de personagens e hiperlinks . A
apresentação dos personagens está no canto que faz o Inventário das Naus.
Eu mesma só consegui decifrar o livro inteiro guiada por Junito de Souza
Brandão, mitólogo importante, meu mestre, no doutorado em Literatura.
Inclusive, eu já havia sido iniciada às proezas dos heróis gregos e troianos
por Monteiro Lobato, escritor brasileiro que se dedicou a desvendar a
mitologia grega para crianças.
Ou seja, um mundo inconfundível que sobrevive a 23 séculos de
transformações e progresso é quase impossível de ser lido com facilidade
pelas novas gerações. No entanto, a Ilíada poderia ser a base de uma série
com 12 episódios e arco de temporada bem definido. Por quê? Porque o
mundo inconfundível levantado ali é pleno de competência narrativa. Nada
falta, nada sobra.
A forma como os elementos da narrativa são apresentados já
demonstra como a série de TV tem uma poética própria. O mundo
inconfundível precisa ser apresentado rápido e sem delongas.
Um bom exemplo de como essa poética opera é a abertura da série
Mad Men , com seu ambiente tomado por fumaça de cigarro, a propaganda
de cigarro, o self made man ambicioso, charmoso, sem escrúpulos.
Fumante, é claro.
The Wire , série policial, de David Simon, começa com a conversa
amigável entre um detetive branco e um negro das ruas. Em seguida,
imagens rápidas mostram quem é quem: quem é a bandidagem, quem são (e
em que condições atuam) os policiais de Baltimore.
Masters of Sex abre com uma cartela de cinco linhas introduzindo o
mundo do qual a série vai tratar: em 1956 um cientista e uma ex-cantora de
boate iniciaram uma pesquisa que iria revolucionar o que se sabia até então
sobre a sexualidade humana.
Por que afirmo que estas linhas já dizem qual é o mundo? Porque só
nos Estados Unidos esse tipo de aliança profissional seria possível, naquela
época. Mais: as cinco linhas já anunciam que é uma história real, o que
tende a garantir para o espectador a veracidade das imagens.
Isso é poética própria. São imagens levantando o mundo, são ações
e falas apresentando o caráter dos personagens.
A direção do primeiro episódio de Masters of Sex é de John
Madden; vemos de saída cadillacs e um jantar black tie na Washington
University, no Missouri. Ao apresentar o médico protagonista, com sua
timidez e seu currículo é reforçada a cartela da apresentação.
O roteiro, em seguida, mostra a pesquisa solitária e visionária de
Bill Masters e sua auxiliar paga, a prostituta Betty DiMello.
A ciência comportamental, o hospital escola, as verbas para
pesquisa universitária, a segregação racial nas enfermarias obstétricas, a
possibilidade de uma estrela na ciência chantagear o reitor, uma secretária
se tornar parceria de pesquisa... Qual o mundo inconfundível? As décadas
de 1950 e 1960 nos EUA.
Interessante acompanhar na série o surgimento da pílula
anticoncepcional, cuja invenção se deve a um químico mexicano,
Miramontes, em 1951, mas que só seria produzida nos EUA no início da
década de 1960.
Em determinado episódio de Masters of Sex aparece um menino que
lê ficção científica em quadrinhos e é seguidor de um herói que pratica
corrida no espaço e não é aceito no mundo comum, o que vivemos. A cena
em que a mãe do menino compreende as implicações para a vida do filho e
do protagonista da série é emocionante e baseada na magia possível à nossa
época. A magia de entender personagens da mitologia de meados do século
XX ― quadrinhos, TV, cinema ― e comparar com pessoas de carne e osso.
É interessante para um roteirista estar atento para equilibrar mundo
comum e mundo especial quando metáforas mágicas são necessárias numa
série realista.
Em qualquer boa narrativa, a história-base se concretiza num mundo
inconfundível. Se a story line dá a impressão de que poderia estar em
qualquer outro lugar, alguma coisa está faltando ou sobrando. Ou algum
conceito está mal aplicado.
A Odisseia , de Homero, só poderia se passar na Grécia heroica.
Para acontecer em Dublin, o mundo inconfundível (incluindo o protagonista
Ulisses, claro) tem que ser outro. Foi isso o que fez James Joyce.
Época, lugar, cenários e personagens com seus objetivos e
motivações são elementos da narrativa inseparáveis e são eles que
constituem o mundo de uma obra.
Em séries, a competência narrativa do roteirista está em organizar
esses elementos de forma a fazerem parte daquela narrativa e de nenhuma
outra.
Nas séries dramáticas, o mundo inconfundível é o lugar, os cenários,
a época, os personagens e seus objetivos que se realizam (ou não).
O mundo inconfundível é também o contexto onde o amor acontece
(ou é buscado).
São as escolhas autorais de enredo que levantam o mundo dos
personagens aonde a trama vai se desenvolver.
O lugar é a primeira concretização da história-base no enredo. Um
país, um planeta e outros lugares da ficção científica, um espaço de fantasia
medieval ou um lugar no qual seres humanos tentam sobreviver
independentemente de cataclismos ou zumbis. São os exemplos acima, é o
exemplo de Downton Abbey .
A época em que a narrativa se passa só predomina sobre o lugar nas
narrativas realistas. Como em todos os exemplos acima. Por causa do
contexto histórico. Numa narrativa em que o princípio é o de “suspensão da
descrença” ou “suspensão da realidade cotidiana”, época não é
predominante para se construir o enredo da história. Isso é verdade para
séries de fantasia medieval, quando se passam naquela época. Não vale para
Grimm , que é fantasia medieval acontecendo na nossa época. Nos dois
casos, a suspensão de realidade está funcionando.
Em algum momento de nossa vida, a ideia de suspensão da
descrença é incorporada. Talvez isso comece com a frase “No tempo em
que os bichos falavam...” ou então na leitura de tirinhas nas quais gatos
conversam com seus donos ou até têm opinião própria. O certo é que,
independente de conhecer ou não Seis passeios pelos bosque da ficção , de
Umberto Eco, a maioria das pessoas sabe que para existirem mortos-vivos,
zumbis, mortos de olhos azuis, esses personagens precisam estar na
televisão, nos livros ou em HQ.
Para uma escritora brasileira, como eu, que cresceu lendo a
literatura infantil de Monteiro Lobato ou que criou filhos assistindo ao Sítio
do Picapau Amarelo na TV, a apresentação de mundo inconfundível das
séries de drama é familiar. Em termos de escrita, pode-se resumir o que se
faz em séries numa expressão: “entrar de sola”. Significa mostrar as cartas
do mundo inconfundível imediatamente e conquistar quem está lendo ou
vendo.
Para quê? Para o espectador ter a ilusão de saber o que esperar e
ficar esperando até o final do primeiro ato, até o primeiro intervalo, para ver
se a apreensão do mundo que lhe encantou se confirma. Para saber o que
vai acontecer naquele mundo. Aí é que o roteirista precisa surpreendê-lo.
Isso também é poética de série.
Em séries não realistas, o lugar e os cenários são mais importantes
do que o ano exato em que o mundo existe. Essa premissa vale para o
mundo pós-apocalipse da série The Walking Dead ou do ponto exato da
Idade Média de Game of Thrones .
Na série Dead Zone , no entanto, a época faz diferença para os
diálogos, comportamentos, figurino, não para o tema. Uma pessoa comum
acordar de um coma com capacidade de descobrir coisas pelo toque não é
sobrenatural ou mágico. Existe uma suspensão da descrença relativa apenas,
porque até os cientistas assumem que não se conhece o suficiente o cérebro
humano. Universidades estudam sensitivos há muito tempo. A premissa de
Dead Zone é a de que aquilo é possível. Se até cientistas estudam a
paranormalidade...
Numa série policial complexa como The Wire existem dois mundos
basicamente. O da polícia e o do crime. Mostrar aspectos de um e de outro,
de forma complexa, é a tarefa mais difícil. Porque existe a pensata básica da
ficção: todos têm motivos, mas só o herói tem razão.
Apresentar os motivos dos criminosos, dos adversários do herói,
manter o espectador de certa forma dividido emocionalmente entre as
diversas facetas do mundo, essa é a proeza.
Outro motivo pelo qual levantar de forma precisa o mundo
inconfundível é fundamental é ter chances de vender a série, chances de
investimento na produção. O orçamento de uma produção começa quando
se conhece o mundo inconfundível proposto. Game of Thrones é um projeto
mais caro do que House of Cards por causa do mundo que propõe.
Outra coisa importante é que época, lugar, cenários e personagens
que fazem parte desse mundo determinam o que é possível, no sentido de
verossímil.
Em algumas séries o espaço é tão importante, que os personagens
passam a se distinguir pela ocupação, pela idade, até pelo local onde
moram. O lugar em que ocorre a trama é um elemento com o poder de
mudar muita coisa. Interior da Inglaterra é diferente de Londres, mesmo
mantendo a época.
São os casos de Downton Abbey , Broadchurch , East Los High . A
mansão inglesa, a cidadezinha costeira, a escola de ensino médio são
decisivos nessas séries, e a caracterização de personagens está submetida ao
seu lugar nesse espaço.
Um mundo inconfundível bem construído é garantia de
verossimilhança, é o que provoca empatia no espectador. Época, lugar,
cenários, personagens e sua posição nesse mundo, isso tem que estar
redondo.
Em Ray Donovan , o contexto é da família irlandesa, o que implica
cores específicas. Uma digressão: é interessante como os irlandeses atraem
a atenção de vários escritores e roteiristas ao redor do mundo. Benoîte
Groult, feminista francesa, aos 86 anos escreveu Um toque na estrela , em
que a Moira grega é narradora e apaixonada pelos irlandeses. Em Ray
Donovan , Abby, bêbada, rouba sapatos em Rodeo Drive porque roubava
sapatos, quando criança, em Boston, cidade americana de forte presença
irlandesa.
Ray Donovan não partilha segredos com a mulher não só por suas
características, mas também porque nos EUA existe uma legislação que
pune o cúmplice. Ela não considera esse dado ou é apenas irresponsável e
controladora no seu perfil de personagem?
As ações e falas precisam considerar todas as decisões autorais,
sendo talvez o mais importante o contexto (social, cultural, biográfico) dos
personagens.
Quando se discute as premissas de um drama é preciso explorar
todas as possibilidades dos personagens, do tema, do contexto cultural.
Em Downton Abbey , os criados aparecem primeiro. Por quê?
Porque uma mansão daquelas só funciona com uma “máquina”, um
esquema de serviços quase industrial. Outra coisa, não existem negros entre
os criados. Porque o lugar, Inglaterra, interior, 1912, mansão de um conde,
determina que não existam personagens negros. Se houvesse um negro
trabalhando ali, precisaria ser explicado, porque seria uma exceção com
importância na história.
Isso é construir um mundo inconfundível perfeito. A audiência
extraordinária que a série alcançou e alcança só existe porque o mundo
inconfundível está reconhecido como tal pelos espectadores.

VEROSSIMILHANÇ A

Verossimilhança é a pedra de toque. Aristóteles define, na Poética,


que o verossímil é o possível crível.
Em Chapeuzinho Vermelho , nenhuma criança pequena estranha que
o Lobo fale com a menina ou abocanhe a avó e a velhinha saia da barriga
dele viva e vestida, depois que o caçador mata o bicho, porque é um mundo
em que isso é possível. Porque é uma narrativa que funciona com suspensão
de elementos realistas.
Para garantir verossimilhança, construir um mundo de fantasia ou de
ficção científica não é diferente do trabalho de construção de uma narrativa
realista. Os elementos da narrativa precisam estar combinados corretamente
da mesma forma para manter a verossimilhança.
Como criar um mundo inconfundível crível que promova a
suspensão da realidade?

A palavra-chave é Repertório. Um roteirista precisa conhecer o


mundo no qual seus personagens viverão. Caso não conheça em detalhes,
precisa pesquisar bem o contexto econômico, social, cultural.
Uma jornalista inglesa me disse que muita coisa que acontece em
Downton Abbey seria impensável na época. Pode ser que ela esteja certa,
mas do jeito que as coisas acontecem, na série, tornam-se verossímeis. Isso
é o que importa. O mundo é crível.
Pode ser que a leitura de Charles Dickens e de Jane Austen não
sejam imprescindíveis para escrever Downton Abbey , mas ajudará muito
ter lido alguma coisa deles e de Oscar Wilde, D.H. Lawrence e de Elinor
Glyn. Porque são autores que descrevem, com mais ou menos minúcias, o
“clima” da época.
O autor/roteirista ao criar, um ou muitos séculos depois, um mundo
que não é o seu, não é onde vive, tomará necessariamente liberdades com os
fatos, os eventos possíveis. O espírito da época, no entanto, deverá ser
preservado e, para o passado, a literatura talvez seja a fonte mais confiável
em relação a esse item.

DANDO VIDA AO
MUNDO INCONFUNDÍVEL

Lugar, cenários, personagens, relação entre personagens, contexto


cultural e valores morais são elementos do mundo inconfundível que
garantem a interação com o espectador e a verossimilhança.
Lugar no mundo inconfundível são os locais ― países, cidades,
cenários ― que influenciam decisivamente os acontecimentos.
Quais cenários no Brasil poderiam dar série? Inúmeros.
Cenários podem ser quase personagens. Cenários, já foi dito antes,
neste livro, podem ser a própria série.
Um exemplo:
Vitória da Conquista, no ano de 1980, era uma cidade com 200 mil
habitantes, 67 igrejas evangélicas, diferenças sociais bem marcadas entre
fazendeiros de café e de gado e o restante, funcionários públicos, bancários,
uma incipiente classe média que sonhava em comprar seu sítio com mudas
de café, prosperar nessa direção. Nenhum cinema, nenhum teatro. A cultura
da cidade não favorecia o debate, nem a fofoca aberta. Só a intriga velada.
A política e a sociedade eram bastante polarizadas. A cidade fica a mil
metros de altitude, faz muito frio no inverno. Nesse ano, ocorreu um crime
talvez passional, talvez ligado ao tráfico de drogas. Foi arquivado sem
solução.
Quem era a pessoa que morreu? Quem matou? Por que matou? Por
que uma pacata cidade do interior do Brasil não apurou um crime que era
um ponto fora da curva?
Vejam como um cenário pode provocar perguntas suficientes na
cabeça de um roteirista para levantar uma story line , depois uma sinopse.
Mais sobre cenários. Em Scandal ou em Ray Donovan a época e os
cenários são caracterizados de imediato. Em Downton Abbey ou
Broadchurch esses elementos são caracterizados de forma mais lenta.
Scandal apresenta, nos primeiros seis minutos, um país que tem de
tudo, os EUA, uma cidade fervilhante (Washington), nos dias atuais, um
grupo de especialistas, entre 30 e 35 anos, bem-vestidos, descolados,
resolvendo um caso complicado e multicultural.
Ray Donovan , que tem um ritmo mais lento, apresenta no primeiro
bloco, um homem saindo de um presídio em Boston. Depois, a câmera nos
leva para um condomínio de classe média alta em Los Angeles. São os
cenários principais. Aparecem depois os outros cenários fixos. O escritório
do advogado, sócio de Ezra, que é o principal contratante de Ray, o próprio
escritório de Ray, a academia de boxe dos Donovan. Existem outros
cenários, incidentais, como o hotel onde Dontie se mete numa cilada, o
escritório de Stu, a casa da namorada dele, a do perseguidor, mas são
cenários desmontáveis, são aparições.
East Los High é uma série em que o mundo inconfundível por si só
é o drama.
A série se passa em Los Angeles, numa escola de ensino médio,
high school , numa região de forte presença latino-americana.
É uma série de Bíblia bem-definida e lida bem com o formato, mas
o ponto forte é o mundo inconfundível onde os personagens se mexem.
Assistindo aos 24 episódios da primeira temporada, o espectador se vê
envolvido em tramas que só podem acontecer com jovens de ascendência
latina, de estrato social pobre, numa grande cidade dos Estados Unidos.
Aqueles jovens estão num estado em que o aborto e o divórcio são
legalizados, mas vêm de uma cultura em que virgindade, família, fé e
casamento são valores importantes. Ao mesmo tempo, eles são jovens
dispostos a cometer imprudências nos territórios de sexo, drogas, amizades,
amores. As personagens femininas são as mais afetadas pelo contexto, não à
toa, já que num mundo de gente pobre e jovem inserida num país rico,
mulheres são o setor mais propenso a ter problemas sérios. São as mulheres
que engravidam e se o pai é algum adolescente sem condições de assumir o
filho, é sobre as mulheres muito jovens que recai o peso da liberdade
sexual. Todas as tramas da primeira temporada são decorrentes da
perspectiva da juventude latino-americana, numa high school norte-
americana.
É interessante observar que a realização da trajetória do herói para
uma mulher jovem passa, em determinadas ocasiões, pela capacidade (ou
condição) de dizer “não” ao desejo ou negociar o uso de camisinha com o
parceiro. De novo, a marca do mundo inconfundível. Pedir a um homem
com quem faz sexo pela primeira vez para usar camisinha ou trazer
camisinha na carteira não é a atitude mais romântica no ideário latino-
americano. Aliás, talvez, em nenhum ideário feminino relacionado com a
primeira vez. Não é a motivação de uma adolescente apaixonada, criada por
uma mãe solteira que domina mal o inglês, ir ao encontro do galã da high
school com uma camisinha na carteira.
É interessante comparar o mundo inconfundível de East Los High
com o de Downton Abbey pelo viés da sexualidade feminina. As
consequências para as jovens do século XXI não diferem dos riscos do
início do século XX, na mansão inglesa. Por quê? Porque são as mulheres
que engravidam. A diferença é que se as personagens estão na Califórnia no
século XXI podem lidar com as consequências de suas escolhas no terreno
da sexualidade de forma diferente.
A pílula e as pesquisas de Masters e Johnson vão mudar o sexo no
século XX, mas, as personagens vão continuar transando com roupas, no
máximo semidespidas, na maioria das séries americanas. Até os
personagens atuais.
O sexo continuará tendo consequências funestas, como é
demonstrado de Game of Thrones a East Los High . É possível que isso se
deva (as roupas na cama), em parte, aos tabus norte-americanos com
relação a sexo. As consequências funestas do sexo são comuns a todas as
épocas e culturas, um bom roteirista deve estar atento a essa questão
planetária e atemporal.
O mundo inconfundível vai determinar em que direção os grandes
temas como amor, sexo, dinheiro e poder vão conduzir seus personagens.
Os personagens e suas motivações são parte indissolúvel do mundo.
As consequências de suas ações também.
A lealdade à família é essencial no mundo de Tony Soprano, que
leva um parente mais velho ao hospital, mesmo que mate e combata os
aliados desse mesmo parente quando rivalizam com ele. O amor às
tradições musicais de Nova Orleans faz parte do mundo dos personagens de
Treme , é quase constitutivo de alguns deles.
Em Lilyhammer , série da Netflix, com o mesmo contexto mafioso
de Família Soprano , a abordagem consegue ser completamente diferente.
Por quê? Porque mudou-se o mundo. A Noruega não é Nova Jersey.
Em The Bridge , a ponte entre Estados Unidos e México é, em si, o
mundo inconfundível. Tudo deriva da ponte. A dificuldade de Sonya de
enxergar nuances e a dificuldade de Marco em seguir a letra da lei refletem
o grande problema apresentado na série: como pode funcionar uma ponte
entre os Estados Unidos e o México? De um lado uma região dominada por
cartéis, região da qual cidadãos pobres querem fugir; do outro, uma cidade
na qual parte dos cidadãos usufrui do trabalho dos fugitivos, outra parte o
explora e uma terceira os persegue. Outra coisa importante no DNA da série
é que todas as histórias da primeira temporada, a das mortes em Juárez e em
El Paso, a da viúva e a do jornalista cínico estão envolvidas com o mundo
inconfundível: a ponte.
Voltando a Propp. Ele estudou a morfologia do conto maravilhoso,
que é uma forma atenuada do mito. A partir da análise dos contos
identificou 31 ações dos personagens que vão realmente do mundo comum
até a volta do herói do mundo especial com o elixir, como é colocado por
Vogler.
A minha preferência pelo termo mundo inconfundível se deve a que
nas séries realistas só com muito esforço se consegue aderir os termos
comum e especial ao mundo em que os personagens transitam.
Pode ser mais fácil para quem lida com séries dramáticas produzidas
nos EUA que trazem a marca original da cultura deles que é uma cultura
épica. Por isso, Vogler e outros autores que escrevem sobre o cinema
americano especialmente parecem tão à vontade em discutir a trajetória do
herói a partir dos conceitos de Propp aplicados diretamente.
Na série Lilyhammer , em seis minutos de prólogo, já no trem que o
leva para a cidadezinha, Frank denuncia sua cartela de personagem e
começa a mostrar a briga interior entre dois mundos, o americano e o
europeu, norueguês. Quando ele não se contém frente ao jovem
delinquente, o espectador já se pergunta se a vida sossegada de um país
escandinavo é uma possibilidade para ele.
Personagens, portanto, são elementos da narrativa que merecem ser
examinados de forma específica.

PERSONAGE M :
f az porque pode, porque o espectador
acredita e porque a trama necessita

O que dá universalidade a um personagem? O que o torna


compreensível e desperta emoções como amor, compaixão, raiva nas
pessoas de carne e osso que entram em contato com esse ser inventado?
Segundo Aristóteles a construção de um personagem segue os
critérios de possibilidade, verossimilhança e necessidade. Essa definição
cristalina facilita em muito a escrita. O personagem faz (e fala) o que faz
porque pode, porque é crível e por necessidade da trama.
Personagens são o elemento mais importante do mundo
inconfundível de uma narrativa, depois da história-base. O perfil de cada
personagem está obrigatoriamente relacionado à história-base e às
definições de época, lugar, cenários.
Personagens estão presos ao seu mundo. Anna, chefe das criadas em
Downton Abbey dizer que gostaria de, pelo menos uma vez na vida, não ter
hora para acordar, caracteriza que os criados trabalham de segunda à
segunda, não têm parada. Este é o mundo inconfundível da criadagem.
Depois de Aristóteles, os estudiosos da narrativa propuseram vários
modelos para explicar o personagem entre os quais um dos que considero
mais interessantes é o de Foster, que trabalha com os conceitos de
personagens multidimensionais, redondos, ou unidimensionais, planos.
Quando um personagem é criado a partir de uma só característica
dominante cairíamos no estereótipo ou, até, na caricatura, segundo Foster.
Quando me pego duvidando dessa definição de Foster ― afinal,
como pode alguém colocar uma característica única num personagem e
estereotipá-lo? ―, basta eu assistir a CSI ou Law & Orde r para concordar
com ele. Os policiais e os bandidos, nessas séries mais antigas, são
estereotipados.
Eric Bentley escreveu que os personagens do gênero tragédia não
são típicos.
No drama ― descendente da tragédia ―, personagens bem-
construídos são uma oportunidade de ouro para o bom roteirista. Vou mais
além: o que os personagens fazem na narrativa de ficção, o que sofrem, o
quanto erram, o quanto machucam é semelhante ao que pessoas de carne e
osso fazem na vida. Lembre-se disso quando construir os personagens de
sua série.
Personagens têm relação direta com o gênero no qual a narrativa
está inserida.
Uma das maiores dificuldades de entendimento de conceito, nas
oficinas de roteiro que realizo, é o de tragédia.
O que é um herói trágico para Aristóteles e para todos os que se
debruçaram, depois dele, sobre o tema?
Trágico é um personagem que por suas características e impulsos
tem uma atitude de descomedimento ( hybris ) e, considerando-se acima de
sua condição humana, comete uma falha grave que o leva para uma situação
sem saída.
Observo que o conceito é incompreensível para muitas pessoas,
inclusive escritores e roteiristas. Por quê?
No mundo contemporâneo, pensar acima da medida humana e fazer
algo que tem grandes chances de dar errado é considerado loucura, neurose,
desvio, passível de terapia e medicação.
A menos que pensar e agir assim possa ser referendado como
inovação ou arte, e mesmo assim só depois que um conjunto de
especialistas referende e que a consequência final não seja a falta de saída, a
cara na parede, sem volta.
A nossa época não tem as divindades controlando e punindo as
pessoas o que as leva à crença de que só fazem o que escolhem e que basta
a escolha certa para controlar o destino.
No entanto, algumas das séries de maior sucesso de público e crítica
são aquelas em que protagonista e personagens importantes caminham para
a falta de saída, com os próprios pés, por fidelidade às suas características.
Quando Tony Soprano surra o amigo que pretende casar com a ex-
namorada dele, está agindo assim por hybris . Ele não faz a menor questão
da jovem. Ele só quer punir quem se atreveu a desafiá-lo. Com isso, na
quarta temporada da série, Tony desencadeia eventos que vão afetar a todos
a sua volta.
Aliás, Tony ― como Walter, de Breaking Bad e Ray Donovan da
série homônima ― vive beirando a tragédia. Porque é um personagem que
não aceita a sua própria condição, quer porque quer fazer o que bem
entende, independente das consequências.
O drama contemporâneo tem a liberdade de brincar com situações e
personagens variáveis. Por escolha autoral e de mercado, as séries
dramáticas podem apresentá-los de forma fixa, típica ou de forma a
questionar as expectativas da audiência.
Numa série policial como Blue Bloods , um drama, as situações são
variáveis e os personagens são construídos de forma típica, como Bentley
atribuiu à comédia.
O comissário é um pai dedicado, a filha promotora é a princesa do
pai e dos irmãos; temos o irmão estourado, o outro que é o intelectual
sensível, a adolescente fora da curva que deseja ser policial como o avô e o
bisavô que vem de outra polícia, outra época.
Uma coisa interessante numa série inglesa, como a original de
House of Cards , é que, na Inglaterra, o autor tem a vantagem de contar com
o repertório de situações e personagens de Shakespeare. Está tudo lá. Dizem
que Shakespeare nunca inventou uma história. Comprava no mercado, na
praça, poemas antigos ou do gênero “histórias trágico-marítimas”, tipo
cordéis. No caso de House of Cards , qualquer semelhança com Macbeth
não é mera coincidência. De novo, a semelhança com os gregos que tinham
a sua disposição o repertório do mito.

Foi Propp que colocou o personagem como parte da história e da


trama, subordinado-o, de certa forma, ao mundo inconfundível que surge do
amálgama de todos os elementos da narrativa.
Para Propp, o conceito de história seria: acontece um evento
importante que ameaça um indivíduo ou grupo ou é importante para esse
indivíduo ou grupo. Um personagem se propõe a resolver a ameaça ou
atingir o objetivo, outro se opõe a essa resolução ou a essa conquista.
Como é esse personagem?
Seguindo ou melhor dizendo aplicando a morfologia de Propp,
observamos que são atributos principais do personagem: como se chama,
sua idade, o que chama atenção na sua aparência física, sua maior fraqueza,
se possui alguma mania ou medo, qual a maior qualidade, o que ninguém
faz melhor do que o personagem.
A construção de um personagem começa, portanto, com os atributos
mais simples: nome, idade, aparência física, maior fraqueza.
No item maior fraqueza, a série The Bridge , na versão norte-
americana , aposta numa tendência: a de colocar como fraqueza
características e síndromes diferenciadas. É quando a fraqueza torna um dos
protagonistas atraente. Isso já foi feito antes com personagens como L
isbeth Salender ― Os homens que não amavam as mulheres ― e Sheldon
Cooper ― The Big Bang Theory .
Uma das protagonistas da série The Bridge parece com os dois.
Estou me referindo à detetive Sonya Cross. A síndrome de Asperge de
Sonya não é declarada, não está esclarecida nos primeiros episódios, a
personagem parece só estranha, uma pessoa ao pé da letra. Aos poucos isso
será esclarecido, mas desde o primeiro ato essa dificuldade de entender
nuances tem relação com um detalhe que precisa ser destacado na série: a
jornada do herói dela estará relacionada com essa forma branda de autismo.
Ela precisa superar, aprender a administrar, esconder, precisar dar um jeito
na sua desvantagem para interagir com o mundo. Ela e todos nós
precisamos superar desvantagens para chegarmos a algum lugar. Talvez aí
resida a atração que esse tipo de personagem exerce sobre pessoas que se
acham ou são consideradas normais.
Da mesma forma que a bipolaridade em Homeland , Sonya (assim
como Carrie) não tem todos os sintomas da doença. No caso de Sonya, os
sintomas podem parecer engraçados, como no momento em que ela recusa
uma bebida oferecida por um cara no bar.
Alguns críticos ― cuja função é interpretar e emitir opiniões sobre a
criação dos outros ― não enxergam com bons olhos o recorte de algumas
características de doenças, síndromes de personagens. Acham que a
realidade não é bem assim. Claro que não é. A função do roteirista é
selecionar características que tornem o personagem crível e que faça a
história ir para a frente. Quem quiser conhecer como é de verdade a
síndrome de Asperger ou o transtorno bipolar de humor pode procurar
artigos científicos.
No caso de Sonya, as perguntas sobre o passado dela sem respostas
imediatas é um atrativo, mas o resultado da parceria com Marco é mais
instigante. Ela é tão americana e tão ao pé da letra; será que conseguirão
trabalhar juntos?
Segredo é um atributo que não é obrigatório, nem é essencial, mas
colabora bastante com a trama. O segredo inconfessável pode ser usado
para estabelecer cenas de pressão e de revelação. Existe um segredo
inconfessável do personagem? Qual é?
Segredo inconfessável é um aspecto importante.
Numa das temporadas de Família Soprano , Carmela, a mulher de
Tony Soprano, tem uma paixão secreta e platônica pelo jovem padre. Esse é
um belo segredo inconfessável numa mulher casada com um mafioso. Pode
render sequências ótimas, em muitos episódios.
Aliás, ela tem uma paixão platônica por ele numa temporada, por
outro cara em outra. O que nos dá um quadro interessante de Carmela:
envolve-se romanticamente com homens diferentes do marido, é muito
católica e gosta de ser casada. São três características que geram conflito
por vários episódios.
O padre tem uma característica marcante que só será percebida por
Carmela no final da primeira temporada. Essa característica ― precisar de
um sopro de sexualidade ― só será revelada ― denunciada ― por ela
porque tem muito amor próprio ou muita lealdade a Tony Soprano.
Amor próprio e lealdade em nível elevado estão na cartela de
personagem de Carmela Soprano.
Mania, medo (fobia) pode ser considerado também como um
comportamento dominante desde que inevitável.
Vejamos House e Mickey Donovan. Um é inflexível, o outro age
pelo prazer imediato/egocêntrico.
Comportamento dominante e inevitável não se confunde com a
maior fraqueza.
Tony Soprano é um chefe mafioso, mas é também um pai de família
amoroso, um marido infiel, mas que deseja continuar com a esposa.
Para usar um parâmetro de Aristóteles, é um homem com o qual as
pessoas podem se identificar. Não é completamente mau, nem
completamente bom.
Tony Soprano tem ataques de ansiedade e pânico. Ele não controla
isso, é inevitável sem medicação e terapia.
A maior fraqueza dele, no entanto, é o amor pela família. Pela filha,
pelo filho, pela mulher, pelo tio. Ele ama essas pessoas, conhecendo os
defeitos, conhecendo os riscos.
É a caracterização benfeita que vai permitir que cada um desses
personagens se envolva em conflitos com outros na busca por seus
objetivos.
Personagens dependem, no sentido de ligação direta, da story line ,
do mundo inconfundível no qual estão inseridos, assim como dependem do
gênero.
Antígona, por exemplo, é personagem da tragédia de mesmo nome
de Sófocles e também está em As fenícias , de Eurípedes. Faz parte do mito
dos Labdacidas, é filha e irmã de Édipo, filha e sobrinha de Jocasta e neta
de Laio. Ela morre pelo direito de enterrar o irmão, isso é o que faz dela
uma heroína trágica, a impossibilidade de recuar de seu próprio conceito de
honra.
Quando comparamos com personagens de Jane Austen, Elizabeth
Bennett ou Elinor Dashwood, que são heroínas românticas, de uma época
em que se acreditava em escolhas individuais, observamos como o
personagem está irremediavelmente sujeito ao mundo inconfundível, às
suas próprias características e ao gênero da narrativa.
Personagens trágicos fazem parte do conjunto “quebram, mas não
vergam” e existem desde os gregos. No drama contemporâneo ― que é o
mais próximo que conseguimos chegar da tragédia, em nossa época ―,
alguns personagens beiram a tragédia por suas próprias contradições, pelo
tipo de mundo ou trajetória.
No caso de personagens femininas, é importante notar que mulheres
diferentes e inovadoras existiram em todas as épocas. Às vezes são
heroínas, vilãs, vítimas, prêmio. A confusão entre características de
personagens ― estar à frente de sua época em termos de vestuário e
linguajar, ser muito fiel à família, gostar muito de sexo ― não faz de um
personagem herói ou heroína.
Aqui farei uma pequena digressão sobre personagens e arquétipos.
Para Jung, os arquétipos são mecanismos inconscientes ligados a
imagens primordiais ou símbolos comuns a toda humanidade e fornecem a
base das religiões, dos mitos, dos contos maravilhosos e de muitas atitudes
frente à vida.
Segundo alguns autores, arquétipos predispõem personagens a
atuarem de uma forma ou de outra. A psiquiatra junguiana Jean Shinoda
tem um livro muito interessante sobre arquétipos femininos, As deusas e a
mulher .
Na obra de Jane Austen, eu arriscaria que Elinor está mais para o
arquétipo de Atena e Elizabeth para o da deusa Ártemis e a irmã do meio
ficaria entre Afrodite e Perséfone, porque, apesar do charme e da
espontaneidade, ela “cai” um pouco, deprime por amor. Usando o
paradigma de Shinoda, os arquétipos das deusas gregas se misturam e se
deturpam conforme a construção da personalidade. Vale a pena ler o livro.
Importante para escritores e roteiristas.
Voltando aos personagens de séries.
Objetivo está sempre ligado ao talento. Já o problema ou obstáculo
está relacionado ao desejo ou ao amor. Encontramos isso em Olivia Pope e
Tony Soprano.
Ela tem talento para administrar escândalos, mas deseja um homem
casado que é, apenas, o presidente dos EUA.
Ele sabe ser mafioso, sabe seduzir mulheres, mas quer porque quer
ser um bom pai de família, normal, com filhos normais.
Um personagem bem construído está preso a obstáculos
predefinidos. House é um gênio de diagnóstico, mas não gosta de gente a
ponto de ser intratável. Como ele vai conciliar essas duas características?
Curar gente e detestar gente?
A pergunta sobre qual a motivação do personagem no drama pode
ser demonstrada passo a passo ou pode ser um objetivo fortuito, quando o
personagem for incidental. Como a babá das crianças na quarta temporada
de Downton Abbey .
As características do personagem são o que dá fôlego às tramas
longas e o que finaliza as narrativas curtas, como o conto de qualquer tipo.
Em Treme , fazem parte dos atributos dos personagens seus vínculos
com Nova Orleans semidestruída pelo Katrina. LaDonna, ex-mulher de
Antoine, tem um bar como herança de família. Vive em Baton Rouge com
os filhos de Antoine e com seu atual marido. Ela procura pelo irmão mais
novo, o Daymo, que foi preso e desapareceu durante a tempestade.
Profissão é um atributo essencial aos personagens em nossa época,
assim como os vínculos amorosos e familiares em alguns contextos. É
diferente de Game of Thrones , em que é imprescindível dizer se um
personagem é bastardo ou não? Não é. Mudam as épocas, mas a
importância dos vínculos para as tramas continua.
Em Scandal , quando Quinn ― que começou a série como alguém
de inocência e boa vontade ― se revela como uma aprendiz de feiticeira
tecnológica e invade o e-mail pessoal de Olivia, ela descobre o segredo
inconfessável da chefe. Essa característica recém-descoberta pela própria
personagem, a de buscar pistas tecnológicas com uma competência
insuspeita, desencadeia várias peripécias nos episódios seguintes.
Um personagem bem-construído se revela e se reitera no decorrer da
trama. Esses dois movimentos aparentemente contraditórios ― revelação e
reiteração ― contribuem (e muito) para o fascínio do personagem.
A filha de Brody (Dana), em Homeland , ama mais o pai do que a
mãe. Essa vai se revelar como a maior fraqueza da personagem e se torna,
por força das circunstâncias, uma contradição em sua trajetória.
Contradição essa que acabou levando boa parte do público a detestá-la.
Saul, o mentor de Carrie, é um sujeito do diálogo (sua maior
qualidade), mas é também um homem da corporação. Isso é o que torna
crível o comportamento dele nos primeiros episódios da terceira temporada.
Num seriado pronto, os personagens se mostram por suas ações e
suas falas da mesma forma como há 25 séculos se mostravam nos
concursos dramatúrgicos em Atenas. A poética do gênero dramático (nunca
é demais lembrar) pressupõe que os personagens se revelem fazendo ou
falando o que são. Um narrador explicando quem é quem e o que faz é
característico da literatura, da prosa.
A diferença entre nós e o gregos antigos é que um roteirista tem 7,
8, 13 episódios, 24 episódios de 40 minutos a uma hora para que os
personagens se mostrem. Eles podem se mostrar de chofre ou aos poucos.
Outra diferença importante é que no século V a.C., em Atenas, o
formato estava fixado e toda a ação precisava acontecer em 24 horas. O
arco era limitado, obra fechada.
A ocupação e as principais características dos personagens estão
definidas de início e se revelam nas falas. Não pode existir narrador no
gênero dramático? Pode, mas não é um elemento constitutivo dessa poética.
É mais comum que exista a figura do coro, do aliado, da escada, ou seja,
que personagens desempenhem esses papéis.
No gênero dramático, o narrador por excelência é a câmera, apesar
de que, como será visto em estratégias narrativas, o comentário interior, tão
comum na prosa, é facilmente substituído pelo sonho, por exemplo.

DANDO VIDA AOS PERSONAGENS:


ações e falas
Personagens bem construídos dependem da capacidade de empatia do
roteirista. Aliás, autoria em qualquer nível depende de empatia com os
personagens e as situações nas quais eles estão envolvidos.
É diferente de simpatia. O roteirista não precisa ter simpatia pela
personagem lésbica que entrega a ex-namorada em troca de redução de
pena como acontece em Orange Is the New Black . Precisa apenas entender
os seus motivos (empatia) de forma que o espectador também entenda e
possa simpatizar (ou não) com a personagem.
Da competência em exercer a empatia por parte do roteirista vai
depender a compreensão ou simpatia do espectador. Simpatia e empatia:
gerando identificação
Só a empatia competente na construção do personagem explica a
audiência de Dexter ou de Breaking Bad .
O espectador assiste e, tomado de horror e compaixão, como
escreveu Aristóteles, vai pensar: “o que eu faria se fosse um serial killer , se
tivesse esse impulso destruidor e, ao mesmo tempo, fosse adotado por uma
família legal?”. O espectador pode chegar à conclusão de que matar outro
serial killer não seria tão mal assim.
Ou então, “o que eu faria se fosse um brilhante professor de
química, mal remunerado, sem um plano de saúde decente, com uma
mulher grávida, um filho com paralisia cerebral, um subemprego com um
chefe desprezível e descobrisse que brevemente morrerei de câncer? E se as
circunstâncias me possibilitassem ficar rico fabricando metanfetamina?”.
Só é possível construir personagens ricos em complexidade com
empatia.
Empatia é uma competência interior que o autor tem ou não tem. Na
construção de personagens é o que mantém a capacidade do roteirista de
dialogar com as situações e os personagens que não fazem parte do seu
universo ou da sua aprovação. Empatia significa entender a lógica de um
mafioso e de uma psiquiatra e escrever a partir da ótica de cada um para que
a audiência possa se entreter com as situações mostradas e refletir sobre
elas.
Empatia significa não misturar o que o roteirista faz na vida
cotidiana com o que seus personagens fazem.
“Eu não estou fazendo isso porque você disse aquilo”, declara Zoe
Barnes para o namorado, no último episódio da primeira temporada de
House of Cards .
O subtexto dela é: “estou fazendo desse jeito, porque é da minha
natureza fazer assim.”
O subtexto é importante na relação do binômio simpatia e empatia
para gerar identificação entre os personagens nas séries dramáticas e o
público.
No sucesso de Homeland , provavelmente, conta o fato de existirem
milhões de pessoas no mundo que vibram, se identificam, criticam, torcem
pela gangorra emocional que Carrie vive e enfrenta. Mesmo as pessoas que
não têm coragem de fazer o que ela faz, nem de correr os riscos que ela
corre.
Vamos olhar agora o perfil dos personagens concretizado em ações e
falas. Em Downton Abbey , no momento em que a nora diz que vai avisar
ao mordomo, a condessa viúva retruca, dizendo que já avisou, revelando
numa frase que está na cartela de personagem dela. O que ela faz melhor do
que ninguém? Colocar as pessoas no lugar que acredita ser o delas.
São frases curtas, frases do dia a dia que mostram os personagens e
seus contextos culturais de forma orgânica. Tudo está em cada sequência,
história-base, cenários, características dos personagens.
Às vezes, fico assistindo a uma série, como Game of Thrones , e me
pego pensando: eu conheço essa mulher de algum lugar... Só nos últimos
dias essa sensação de já vi isso me ocorreu quando: em uma sequência,
Catelyn Stark prende justificadamente um homem ligado a alguém muito
poderoso, sem parar para pensar que várias pessoas que ela ama estão nas
mãos de quem pode retaliar; noutra o próprio Ned Stark avisa a uma mulher
sem escrúpulos ― e com muito poder ― que vai entregar seus terríveis
segredos; a princesa Daenerys poupa a vida de uma bruxa que vai se
ressentir de sua generosidade porque não foi poupada o tanto que gostaria.
Essas três situações mostram um dos mais importantes segredos da
construção de personagens: grandes qualidades quando inspiram boas ações
podem provocar efeitos desastrosos, a qualquer momento.
Portanto, não se deixe levar pela grandeza das qualidades de
personagens honrados, justos ou generosos. Essas características
frequentemente causam morte e infelicidade.
O sentido de honra de Ned Stark o impede de expor publicamente o
segredo de uma mulher sem avisá-la antes. Os resultados são os piores
possíveis. Idem a ira justa da mulher dele e a generosidade da princesa
exilada.
O comportamento dominante e a maior fraqueza são itens de
caracterização do personagem e serão decisivos para que ocupem
adequadamente os papéis.
São os personagens, seus desejos, seus objetivos, suas fraquezas que
puxam o drama para a frente. Qual o desejo? A fraqueza? Atitude? Qual o
conflito? São as respostas a essas perguntas que vão tornar verossímeis os
papéis assumidos e as trajetórias seguidas pelos personagens.
As 31 ações de Propp que, no paradigma Autoria, foram reduzidas
para sete etapas da narrativa formam nas séries dramáticas o chamado arco
do personagem. São os movimentos mais significativos. O arco do
personagem está relacionado às características atribuídas a ele.
A construção dos personagens está concretizada no arco do
protagonista, os arcos dos personagens principais e de todos os secundários
com ações e falas.
A interação entre William Masters e a mãe é um exemplo bom de
ser dado aqui de arco do personagem, por temporada, porque não substitui a
necessidade de você assistir à série.
A mãe de William aparece na gravidez do primeiro neto (1), ajuda a
nora (2), é tratada com frieza pelo filho, que se espanta por ela ter se
tornado uma mulher decidida, ela responde que antes tarde do que nunca
(3), ela some quando a gravidez não vai adiante (4), aparece na segunda
gravidez para ajudar a nora e para lembrar ao filho que não deve ficar
parecido com o pai em relação a sexo (5).
Toda a movimentação dela, a interação do filho com ela se dá,
basicamente, nesses cinco movimentos dramáticos, durante a primeira
temporada inteira. Tem mais dois ou três movimentos, um comentário dela
num jantar que remete Bill para a lembrança de uma truculência do pai, um
insert dela num devaneio de Bill, mas basicamente o que ela faz de
importante é isso.
Qual a motivação dessa personagem? Tentar ajudar a nora a manter
o casamento com Bill? Tentar refazer caminhos com o filho? Arranjar um
lugar para passar a velhice se tornando insubstituível?
O arco estimula também a empatia do espectador. Um dia desses,
numa oficina com roteiristas, discutindo o arco de Carrie Mathison, em
Homeland me perguntei:
Quantas mulheres eu conheço que adorariam ter a coragem de
Carrie para sair de casa, sozinhas, sentar num bar, jogar charme em cima de
um bonitão, ir para cama com o cara, sem ficar grávida, nem doente e sem
ficar esperando que o cara ligue no dia seguinte?
No roteiro de séries, pequenas cenas, com poucas falas, dão vida aos
personagens. A mocinha limpa as lareiras em Downton Abbey e outra criada
diz “Some antes que alguém te veja”. Outra ainda pergunta “Por que você
não acendeu a luz?”. E ela responde que teve medo.
Essas falas demonstram que a empregadinha (a trama a indicará
como possivelmente uma órfã abandonada) faz parte do conjunto de
personagens que precisa ser invisível para os patrões. A colega é “escada”
para essa demonstração. O que essa “personagem escada” fala corresponde
ao narrador, em literatura, explicando em terceira pessoa como empregados
da limpeza pesada aparecem naquele ambiente, naquela época.
Algumas características podem ser coletivas e demonstradas no dia
a dia dos personagens.
Um exemplo: a equipe de Olivia Pope não tem família. Nunca
aparecem cenas do cotidiano deles lavando louça, pegando roupa na
lavanderia. Vivem para o trabalho.
Isso influi nos custos, mas influi, principalmente, nas ações. Menor
número de cenários, de atores para representar pais, esposas, filhos. Mais
união entre eles, que se declaram e agem como gladiadores de terno.
O que é um gladiador? Um escravo. Alguém que luta a soldo e que
treina e mata em conjunto.
Isso é uma característica permanente daqueles personagens? Não. É
uma brincadeira entre eles. Tanto é uma brincadeira que o tempo todo eles
contrariam a “escravidão voluntária” contestando a liderança de Olivia.
Brincadeiras como essa são observações para o desenvolvimento da
trama ou, no máximo, uma observação na cartela/ ficha/ descrição do
personagem.
Como distinguir se um papel atribuído socialmente é uma
necessidade da trama?
Em Downton Abbey , Mrs. Hughes, a governanta, diz para a criada
que limpa a lareira: “Rápido, criatura, você vai acender o fogo, não inventá-
lo”.
O’Brien responde à criada mais nova que pergunta por que o lacaio
passa os jornais: “Para que o conde não fique com as mãos sujas como as
suas, sua estúpida.”
A primeira fala corresponde a papéis sociais. Mrs. Hughes é a
governanta, está apressando uma funcionária subalterna.
A de O’Brien mostra que ela é uma personagem que humilha quem
está abaixo dela e bajula quem está acima. Sua fala diz de seu caráter, do
perfil da personagem. Esta é uma distinção importante.
Ambiguidade como atributo é uma estratégia interessante na
construção de personagens quando é usada com parcimônia. Em Twisted , o
diretor da escola é ambíguo, a mãe de Danny é ambígua, o pai de Jo é
ambíguo.
Como tornar um personagem ambíguo? Uma das maneiras é
fazendo suas boas ações parecerem que estão sendo praticadas por motivos
obscuros. Uma frase aqui, um olhar ali e o espectador fica em dúvida: o
personagem é generoso ou quer tirar vantagem?
Outra boa maneira de introduzir ambiguidade num roteiro é tornar
as ações do personagem contraditórias, quase inexplicáveis. Uma hora
Danny parece considerar Jo a pessoa mais importante do mundo para ele,
em outra essa pessoa é Lacey.
A terceira é o personagem manter segredos pequenos, médios,
grandes que, tudo indica, são desnecessários. Essa compulsão por esconder
coisas (se é que é uma compulsão, é preciso assistir a todos os episódios
para ter certeza) fará com que todos desconfiem do sujeito.
Existe uma terceira maneira (todas essas são usadas em Twisted ),
que é a de construir o personagem com frases e atitudes desagradáveis
contra personagens legais.
Nesse ponto, podemos examinar a caracterização da série Twisted
como teen. Adolescentes costumam ser pouco sensatos em relação a
segredos. Pessoas, em geral, em qualquer idade, lidam mal com segredos. É
humano deixar de contar coisas que, se contadas na hora, para a pessoa
certa, nos livrariam de aborrecimentos futuros. A vida, no entanto, não é
assim. Nesse ponto é que a narrativa de Twisted deita e rola. Mostrando,
pelas ações e falas dos personagens, a quantidade de erros que as pessoas
cometem na adolescência e os efeitos disso na vida adulta.
Observar com atenção a trajetória nos permite especular sobre as
motivações dos personagens e dos participantes da sala de roteiristas.
Atenção ao verbo: “especular”. Quando estamos numa sala de roteiristas
podemos especular sobre as motivações dos personagens até que a
discussão amadureça e alguém bata o martelo (a princípio, o líder do
projeto): a principal motivação da mãe é ajudar a nora a manter o
casamento com William.
Em Homeland , definidas as características de Peter Quinn e Carrie,
teremos ela como bipolar e desacreditável e ele como obediente, mas
avesso à manipulação.
As funções que eles ocupam na CIA também são diferentes, ela é
uma analista e ele um “consertador de coisas que dão errado”, eufemismo
para matador. Funções corporativas só têm sentido dramático (e geralmente
têm) quando afetam a trama.
É importante que o roteirista use o verbo certo, o verbo que expresse
exatamente o que ele define para o seu personagem.
Quando o personagem está bem discutido na equipe de roteiristas é
possível “brincar” com estereótipos, dá para incluir humor retomando
pontas ou traços secundários dos personagens.
Vamos fazer o exercício de examinar uma característica que pode
fazer render (e muito) uma trama:
O personagem não tem prazer em matar, mas matou vários inimigos
na guerra. Quando esse personagem, depois que dá baixa no Exército, não
encontra meios de se sustentar, pode virar bandido. Fácil. Se for na época
do Robin Hood , de Ridley Scott, se tornará um salteador. No negócio de
entorpecentes, no Rio de Janeiro, o ex-soldado pode se tornar armeiro do
tráfico. Em Under the Dome , um cobrador de dívidas, como Barbie,
matando se for preciso.
As características que você atribuir a um personagem devem fazer
diferença para a narrativa.
Em certas tramas, a fraqueza de um personagem é tão importante
(ou mais) quanto sua motivação. Num drama político como House of Cards
, o próprio protagonista, Francis Underwood, pergunta a si mesmo (e ao
espectador): “Qual é a fraqueza do milionário?”. Francis se pergunta para
transformar o personagem em seu aliado. O senador cínico sabe a diferença
entre personagem e papel.
Papel é um conceito relacionado, no entanto, diferente de personagem.
Papel é a posição que o personagem desempenha na trama. Não é
personagem, não é característica de personagem.
É comum a confusão entre personagem e papel. Protagonista é
papel. Herói é papel. Vilão é papel. Antagonista ou adversário é papel.
Prêmio é papel. Usando os conceitos de Propp, claro. Outros paradigmas,
outros nomes.
Papel é um atributo da trama, porque é mutável, enquanto
características de personagens são fixas ou, pelo menos, começam como
fixas. A não ser quando a característica principal do personagem é ser
mutável. Coisa rara em personagens e em seres humanos.
Vejamos os papéis mais comuns numa narrativa épica como
costumam ser as séries dramáticas.
Herói é quem sofre a ação do antagonista-agressor, o personagem
que sofre uma carência “no momento em que se tece a intriga” (usando aqui
a terminologia de V. Propp). Ou, então, é o personagem que aceita reparar a
desgraça ou atender às necessidades de outro personagem. Herói, por
exemplo, não é necessariamente o protagonista da série, herói é quem
enfrenta e tenta reparar a perda do equilíbrio inicial rompido de forma
definitiva.
Antagonista é o personagem que se contrapõe à reparação da perda,
portanto, se contrapõe ao herói, por esse motivo. Em Ray Donovan , temos
um protagonista, Ray, e um antagonista, Mickey, que são filho e pai. Eles
são opostos e, de certa forma, são iguais porque têm o mesmo potencial
destrutivo, o mesmo desrespeito à lei. Mickey Donovan tem mais nuances
do que Ray, mas isso também é influenciado pelo papel que o filho assumiu
na família depois do que o pai fez no passado. Ao mesmo tempo, eles têm
em comum, de um jeito torto, lealdade à família.
Filhos de pais delinquentes podem crescer com uma visão flexível
da lei que acomode as contradições nesse tipo de família.
Uma boa discussão provocada pelo seriado é se os irmãos Donovan
são assim por causa do tipo de pai que eles têm. Por causa da origem deles.
São os papéis que os personagens desempenham que provocam discussões
de sentido.
Eles são mal resolvidos? Se são, é por causa do pai? Da classe
social? A origem social determina o grau de comportamentos desviantes?
Sim, porque os irmãos têm o mesmo pai e a mesma origem. O papel de
líder exercido por Ray cria a contradição com o papel de destruidor de
regras desempenhado por Mickey. Como Terry e Bunchy não ocupam o
papel de líder e de “consertador” de escândalos desempenhado por Ray, as
contradições com o pai praticamente não existem.

Protagonista pode ser um indivíduo, como é mais comum, ou pode ser um


grupo, como em Downton Abbey . Não é necessariamente o herói, porém,
costuma ser a maior parte do tempo.
Ah, mas o protagonista de Breaking Bad é um anti-herói, dizem
alguns.
Penso que aí temos mais uma questão de nomenclatura do que uma
diferença conceitual. Quando Walter White subempregado se descobre com
câncer e sem plano de saúde, quem é que “vai para as cabeças” para
garantir sua morte com dignidade e a sobrevivência de sua família? Walter
White. Quem é o herói? Ele.
O protagonista tem, desde a story line , um objetivo (pode ser
profissional) e um obstáculo. Um bom obstáculo costuma ter relação com a
maior qualidade ou a maior fraqueza do protagonista.
Em Breaking Bad o professor de química sabe fazer a
metanfetamina. Profissão, talento, qualidade de se preocupar sinceramente
com o futuro de sua família encontram uma circunstância, um problema
especial: a certeza de que está condenado a morrer em breve. Ele enfrenta
essa circunstância de maneira inusitada, o que não invalida o heroísmo.
Em Scandal , a maior qualidade da Liv é a sua maior fraqueza, a
autoconfiança. É a autoconfiança que permite que ela resolva casos quase
impossíveis, mas é também o que faz com que ela caia ao tentar administrar
sua paixão por um homem proibido. Os altos e baixos do relacionamento e
da trama estão relacionados a esse problema.
Em Família Soprano , Tony se autodefine como o palhaço triste e
diz que entende o conceito de terapia, mas que terapia não cabe no seu
mundo. No entanto, ele começa a terapia e se mantém. Por quê? Porque ele
é um “resolvedor” de problemas, ele é um fazedor de coisas. Como sua
cabeça não está funcionando bem, precisa consertar.
Tony Soprano é mais um exemplo de protagonista/herói que se
caracteriza por resolver coisas, independente do preço que pague por isso.
Aliado é aliado do herói ou do vilão. É um papel mutável (como os outros),
porque de episódio para episódio, numa narrativa seriada, até aliados fiéis,
como Huck é de Olivia Pope, podem fazer escolhas que atrapalhem o herói.
O personagem que é herói de uma narrativa pode ser aliado de
outras.
Ray Donovan é o herói de sua família, mas é aliado do advogado
Lee que infringe a lei ou manda que o façam. Seu sócio Ezra foi o herói da
perda de Ray, que inclusive diz para a esposa que tudo o que eles têm
devem a Ezra. Idem, não importam as consequências. Ray tenta administrar
o destino, como Olivia Pope faz, os dois têm a hybris , característica que,
como definiam os antigos gregos, leva o personagem a se considerar acima
das regras comuns.
O problema, de novo segundo os gregos, é que não dá para comer
no inferno, beber no inferno, sentar no inferno e sair impune. Olivia Pope e
Ray Donovan são exemplos de protagonistas que convivem perto demais do
crime de ocultação de provas, obstrução da Justiça e, como são muito
atraentes, o espectador passa a torcer por esses personagens, muitas vezes
contra a lei.
Ao mesmo tempo, nas séries americanas, personagens e
espectadores estão inseridos numa sociedade racional legal e a expectativa
se torna quando e como “a casa vai cair”.
A relação tensa do herói com seus aliados e adversários é uma das
melhores dinâmicas provocadas pelas séries.

Adversário é o personagem que é contra o herói e os seus aliados. É


comum que as pessoas confundam adversário com antagonista. Não é que o
adversário seja contra a reparação da perda. Não. Ele apenas não gosta,
diverge do Outro.
Um bom exemplo de adversário é a policial norte-americana em The
Bridge . Ela se opõe ao policial mexicano de cara. Por quê? Porque ela tem
um autismo leve? Porque não gosta de homens com o perfil dele? Porque
não confia em policiais mexicanos? Para saber você vai precisar assistir à
série. Aliás, um dos objetivos deste livro é fazer da sua leitura um chamado
às séries citadas. É a primeira tarefa importante de um roteirista de séries.
Assistir às séries dos outros.

Prêmio é aquele personagem que o herói salva ou busca. No caso da série


The Blacklist , a agente do FBI é o prêmio do criminoso procuradíssimo.
Essa, por sinal, é uma das grandes questões da série. Por que ele exige
como condição de cooperação com o governo só conversar com ela?

Mentor é o personagem que orienta o herói. Continuo aqui a seguir a


morfologia de Propp, a aplicá-la à poética de séries. Mentor para Propp, no
caso do conto maravilhoso russo, eram velhas ou velhos, animais mágicos
que surgiam para indicar ao herói o melhor caminho e, em geral, cumpriam
a tarefa iniciática de identificar o verdadeiro herói. Isso ocorre no mito
grego também. Palas Atena se traveste de mentor para orientar Ulisses e
também ao seu filho Telêmaco. Os papéis recebem, hoje, as roupagens de
nossa época.
Voltando a The Blacklist , o criminoso é o mentor da agente do FBI.
Esse papel foi ocupado anteriormente pelo psiquiatra canibal em O Silêncio
dos Inocentes .
Pode o mentor orientar antagonistas, adversários ou aliados? Pode.
Basta o roteirista colocar um personagem para exercer esse papel com o
objetivo claro de guiar o outro. Em The Following , Joe Carroll, o professor
de literatura, é mentor de assassinos.

Coro ou escada é o personagem ou grupo de personagens que existem para


comentar o que os personagens principais fazem. Um exemplo é a
psicóloga feminista em Família Soprano e os criados em Downton Abbey .

JORNADA DO HERÓI:
de si mesmo e da narrativa
A jornada do herói é um conceito importante na diferenciação de
personagem e papel. Independente do papel que o personagem desempenha
na trama, ele pode tentar ou não tentar ser herói de si mesmo.
Herói de si mesmo é um conceito caro a Joseph Campbell e
influenciou tremendamente a indústria cultural norte-americana, não só
porque os EUA são uma cultura épica que acredita no self made man .
Influenciou também porque é a indústria que mais investe em cultura de
massas e as pessoas, através da história da humanidade, precisam de heróis.
Heróis fazem parte do inconsciente coletivo.
A jornada do herói de si mesmo está relacionada a um conceito de
Jung que é o de individuação, a aquisição do Si-mesmo, novo centro da
personalidade, resultado de um equilíbrio psíquico pela tomada de
consciência dos arquétipos inconscientes.
Persona é a máscara social do indivíduo, para Jung. Inflação seria a
possessão do indivíduo pelos arquétipos que podem destruí-lo e a sombra
seria o duplo negativo, feito de todas as pulsões associais, incompatíveis
com a sociedade ou com o ego idealizado.
Aplicando os conceitos de Jung à poética de séries, um personagem
bem-construído tem persona + sombra, pode cair na inflação e chegará ou
não a individuação, se fizer a trajetória de herói de si mesmo.
A trajetória do herói de si mesmo é uma constante nas narrativas e
nas séries aparece em Homeland , com a evolução de Quin começando
como um matador frio e se descobrindo no contato com Carrie. Ele faz a
trajetória de herói de si mesmo.
Saul é um coordenador racional e também frio que se reidrata
afetivamente por influência de Mira, para proteger Mira.
Dana, a filha de Brody, começa a terceira temporada trilhando a sua
jornada de herói e o espectador fica na expectativa de a que lugar seu
esforço vai levá-la.
Em Under the Dome , a redoma pode parecer a grande ruptura, mas
ela é um dado da story line , a redoma faz parte do título.
A ruptura ocorre em função dos efeitos da redoma. Durante a
temporada, Big Jim mostra quem é de verdade. Aí a divisão começa a se
constituir, aparecem heróis relutantes, aliados de primeira hora e aliados
relutantes. Vários personagens, inclusive Junior, o filho de Big Jim,
começam sua trajetória de herói, às vezes começam como adversários e até
antagonistas. Aliás, o quanto Junior será capaz de continuar a trajetória de
herói dele mesmo é a grande questão que fica da primeira para a segunda
temporada da série.
No primeiro episódio de Treme , vários personagens tentam salvar
pedaços do cotidiano de Nova Orleans e para isso são obrigados a
empreender pelo menos alguns passos da jornada de herói de si mesmos.
O diálogo entre o filho, músico bem-sucedido, e o pai que voltou
para os ensaios do Mardi Gras retrata bem isso. O filho resmunga que está
ali para tentar demover o pai. O homem mais velho responde que, se o filho
não vai ajudar a carregar um caminhão de entulho para limpar o lugar de
ensaios, é melhor que se mexa e pague a conta de luz. O filho pergunta se
cancelou trabalhos em Nova York e Boston para pagar contas de água em
Nova Orleans. O pai fica olhando para ele, sério, sem dizer nada. O filho
diz que está só checando. O pai é o chefe e naquela cultura deve ser
obedecido.
Nessa queda de braço entre dois homens, gerações diferentes, temos
os limites da jornada de herói. Por mais bem-sucedido que o jovem músico
seja, ele faz um trajeto para longe do seu conforto para atender aos
arquétipos de solidariedade e respeito à sua cultura. O pai, você verá
assistindo ao primeiro episódio da série, faz muito mais do que isso. A
trajetória de herói de si mesmo depende de quanto o personagem deve à sua
comunidade ou está ligado a ela. Depende também do quanto o personagem
está sob inflação.
Quando a inflação é muito forte, mesmo que outros personagens
atuem como mentor ou aliado, às vezes o duplo negativo já controlou tudo e
o personagem não consegue sair do seu papel. Uma pequena história num
dos episódios de Família Soprano , uma história C, contada em apenas seis
cenas, explicita o fracasso de realizar a trajetória de herói de si mesmo
quando o personagem está sob o domínio de sua sombra.
Uma stripper bem jovem agradece ao chefe do amante pelo bom
conselho que lhe deu em relação ao filho pequeno e tenta presenteá-lo com
um pão de nozes. O chefe aconselha que não o trate dessa forma porque ela
está com um amigo dele.
Em outra cena, ela é comida por trás pelo amante, enquanto se
prepara para chupar o pau de um amigo dele. Ela acabou de se endividar
com o patrão para colocar aparelho nos dentes. O amigo do cara pede com
carinho que ela vá devagar para não machucá-lo com o aparelho. Ela se
queixa, meiga, ao amante, dizendo que ele a está machucando. Ela o chama
pelo diminutivo, enquanto o cara manda ver com violência.
Mais adiante, ela aborda o chefe do cara no estacionamento dizendo
que está grávida e pedindo sua opinião. O chefe, ainda paciente, pergunta
como ela vai ter um filho de um homem casado se ela já tem um menino de
4 anos a quem queimou com cigarro, recentemente. Ela se defende
argumentando que, segundo sua terapeuta, queimou o filho porque a mãe a
queimou quando era pequena.
Mais uma cena. Ela está numa casa simples toda aconchegada ao
amante quando o patrão chega e a arrasta aos tabefes porque não está
dançando na boate e lhe deve o dinheiro do aparelho de dentes. O amante
assiste da janela, sem intervir na surra, se acabando de rir.
Ela e o amante conversam no estacionamento, depois de uma
discussão dentro do clube. Ele é carinhoso, a consola, diz que vai pedir a
um corretor conhecido que arranje uma casa para eles, que se o bebê for
menino terá o nome dele. Ela fica toda feliz, ele completa que se for menina
terá o nome dela e será boqueteira como a mãe. Ela reage ao perceber que
ele estava zombando, avança nele, ele começa a espancá-la com violência.
Outros homens saem do clube e o afastam, mas é tarde demais, ela está
morta.
No conceito de Foster, ela é uma personagem unidimensional, o
estereótipo da prostituta burra.
Aplicando os conceitos de Jung, a stripper é uma personagem em
processo de inflação. Ela está no modo submissão ao homem poderoso,
aceita ser oferecida a outro homem, espancada, humilhada, menosprezada
desde que esteja com esse homem que a acaba matando.
Caso ela fizesse a trajetória de herói, isso implicaria, pelo menos,
não procurá-lo. Talvez abortar o filho, se afastar do amante aos poucos,
depois pagar a dívida ao patrão, fugir de tudo, virar faxineira do outro lado
do país.
É diferente o que ocorre com a prostituta dos primeiros episódios de
Masters of Sex . Betty se empenha em superar a sua situação social, assim
que surge uma oportunidade. Ela precisa fazer sacrifícios? Precisa e faz.
Aliás, várias mulheres, nessa série, começando por Virginia
Johnson, batalham por autossuperação, por superar as amarras profissionais,
amorosas, sexuais do mundo em que vivem. Se tentassem fazer, na época de
Game of Thrones o que fazem em Masters of Sex seriam queimadas vivas
como hereges ou como bruxas e teriam uma trajetória de herói trágico. Por
isso, personagem é elemento de mundo inconfundível numa narrativa e
sua caracterização está subordinada à época e ao gênero.
O personagem que não faz a trajetória de herói de si mesmo acaba,
muitas vezes, arrastando outros personagens para a incerteza, quando não o
desastre. É o caso de Bunchy, o irmão caçula de Ray. Paralisado por um
sério trauma, ele se coloca na posição de ter que ser salvo o tempo todo.
Quem tenta salvá-lo se machuca aqui e ali.
Não conheço nenhum estudo, deve existir, claro, sobre os motivos
que levam as pessoas a gostarem de um personagem como Bunchy e
acompanhá-lo com mais simpatia do que os heróis propriamente ditos.
Deve ser interessante investigar os nossos próprios motivos. “Conhece-te a
ti mesmo” é importante para nos aperfeiçoarmos como roteiristas.
Na escolha de caminhos, às vezes, não é a inflação que está em
jogo. É a persona, a máscara social.
A persona de Tony Soprano tem mais nuances do que a de John
Reese de Person of Interest, ou a de Frank Reagan de Blue Bloods . Mais
nuances até do que Betty DiMello em Masters of Sex . Para ser fiel a essa
persona, Tony não consegue avançar na sua trajetória de herói de si mesmo.
Ele está ocupado demais sendo herói das sucessivas rupturas provocadas
pelas narrativas mafiosas, quando não está engolido por sua sombra.
Mais nuances da persona é igual a maior discussão de verdades
variadas, quando a série vai ao ar. Nem toda série pede isso. Às vezes, a
story line , o mundo, o gênero, inclusive em relação ao público a que se
destina, pedem uma persona mais simples.

A jornada do herói da narrativa está relacionada à atitude ou ao


conjunto de atitudes do personagem em relação à perda ou ruptura.
O herói de uma narrativa, de episódio ou de temporada, portanto,
não é necessariamente o protagonista.
O protagonista pode ser o vilão dependendo do seu objetivo e do
que existe entre ele e o que deseja.
O herói pode ser aliado do protagonista que muda temporariamente
(ou para sempre, veremos nas temporadas seguintes) de lado. Um bom
exemplo disso é a jornalista Zoe, de House of Cards , na primeira
temporada.
Aliás, é sempre um exercício interessante, na ficção ou na vida,
descobrirmos quem é quem num enredo.
O mais importante é não perder de vista quem é o herói da narrativa
geral. No caso das séries dramáticas, definir quem será o herói da
temporada é fundamental.
Entramos então num aspecto fascinante de uma série dramática que
é o desenvolvimento da trama.

DESENVOLVIMENTO
DA TRAMA
&
ESTRATÉGIAS
NARRATIVAS
ETAPAS E ATOS
As etapas da narrativa são aqui descritas a partir da morfologia de
Propp, ou seja, a partir das ações dos personagens. Veremos, adiante, como
essas etapas combinam com os atos do roteiro de série.
Para Propp, como a composição das histórias é sempre a mesma, o
variável estará:
Na construção dos personagens e seus atributos.
Na maneira como se apresentam as ações dos personagens.
Propp observou que o esquema narrativo segue, com variações
secundárias, 31 ações dos personagens, a partir da situação inicial em que
eles são apresentados.
É importante lembrar que qualquer uma das ações dos personagens
pode se subdividir ou desencadear outras.
As 31 ações podem ser reduzidas a sete etapas numa narrativa mais
dinâmica, como costuma ser a da maioria das séries. As sete etapas são
Início, Ruptura ou Perda, Obstáculo, Divisão, Auxílio, Decisão, Conclusão.
Vladimir Propp não estudou, mas existe um tipo de narrativa que se
aproxima muito das etapas da morfologia de ações dos personagens que é a
narrativa seriada do romance de folhetim.
Charles Dickens, escritor inglês sem o qual talvez não existisse boa
parte das narrativas cheias de conexões que temos hoje, publicou um livro
com o título Um conto de duas cidades , no qual as etapas da narrativa são
bem marcadas e o conceito de conclusão me parece translúcido.
Esta clareza decorre de Dickens praticar, em quase toda a sua obra, a
narrativa seriada também denominada de folhetim.
No folhetim existe um núcleo narrativo que mantém elementos de
todas as tramas funcionando em “gaveta”, numa composição por episódios.
As tramas paralelas vão se multiplicando e funcionam como
elementos de suspense, como ganchos que, ao mesmo tempo, desviam do
módulo principal, mas aguçam a curiosidade a respeito das possíveis
relações entre um enredo e o(s) outro(s).
Esse tipo de composição serve, é evidente, para protelar a
expectativa do leitor e o fechamento do enredo principal em função das
necessidades da indústria cultural que a produz. A dispersão narrativa é
aparente, porque os episódios paralelos têm o objetivo de explicar o
mistério que envolve o personagem principal, o que é alcançado apenas na
“costura” final, a mais extensa possível, pois o prolongamento da trama
sustenta as vendas do romance “em pedaços”. Foi daí que surgiu o nome
folhetim, folhetim do jornal, pedaço destacado do jornal.
A trama de Um conto de duas cidades é a seguinte:
Na França, antes da revolução, um médico é chamado a atender
camponeses no castelo de um marquês. Os camponeses estão feridos e
morrem, o médico descobre que morreram graças às maldades de dois
filhos gêmeos do marquês, que destroem quase toda a família. Escapa uma
criança, a irmã mais nova, uma menina que os vizinhos conseguem mandar
para longe. Este é o início.
A Ruptura na narrativa principal acontece quando o médico tenta
denunciar o caso e é encerrado na Bastilha por muitos anos. Na Bastilha, ele
está completamente alienado da realidade, com um ritual obsessivo de ficar
martelando, fazendo um sapato, sempre o mesmo sapato, sempre o mesmo
martelo e dizendo: “torre 138, torre 138, torre 138”. É o lugar onde está
encarcerado.
Amigos do médico conseguem levar sua filha e depois ele para a
Inglaterra. Temos aqui um Auxílio. O médico consegue voltar a viver
normalmente.
A filha se casa em Londres com um francês.
Vamos aqui para uma trama paralela, um exemplo de narrativa em
“gaveta”:
Existe, na trama londrina, um personagem aparentemente
secundária, um advogado, que é muito parecido com o genro do médico e
apaixonado pela sua filha. Um amor cortês, uma paixão romântica.
No dia do casamento, o médico e o noivo têm uma conversa
particular e ele fica muito mal, assiste ao casamento e, quando o casal parte
para a lua de mel, senta-se no quarto com o mesmo velho martelo e
recomeça: “torre 138, torre 138, torre 138”. Aqui temos um obstáculo e um
mistério. Sobre o que eles conversaram?
Superada essa recaída, com o auxílio de um amigo, a vida continua
até a Revolução Francesa.
Estoura a revolução na França, o marido (genro do doutor) recebe
uma carta de um velho criado pedindo socorro porque está preso, vai para a
França sem avisar a mulher e o sogro, quando chega, é preso, conduzido à
Bastilha, sem processo. Isso representa, na trama principal, outro
Obstáculo.
Em seu auxílio, o sogro volta para a França, identifica-se como uma
das grandes vítimas do Antigo Regime e consegue libertar o genro que está
sendo perseguido pelo governo francês por ser um emigrado, um ex-nobre
que abandonou as terras. Graças à intervenção do médico, o genro é solto.
Parece ser a decisão desse capítulo. Parece, mas não é.
A família se prepara para sair da França revolucionária e, se
conseguisse voltar para Londres, teríamos uma conclusão, com o doutor em
paz, feliz, com sua família, sua descendência.
Ocorre que estamos tratando de uma narrativa seriada.
A mulher de um ex-criado do doutor ― um criado que o ajudara a
sair da Bastilha, um criado completamente fiel ― vai ao tribunal
revolucionário e denuncia o genro do médico, abre um novo processo
contra ele, acusando-o de criminoso de guerra. Esse obstáculo parece quase
um novo início.
A mulher do criado faz a denúncia em seu nome, no nome do
marido e em nome do médico. O doutor só descobre na hora da audiência
que é um dos denunciantes e não entende nada.
O criado dele, que tinha sido um dos comandantes da tomada da
Bastilha no dia 14 de julho de 1789, é o primeiro a prestar depoimento e
quando lhe é perguntado: “Cidadão, quais são os fatos?” ― os fatos, o
perigo do real ― ele responde: “Quando tomei a Bastilha junto com meus
compatriotas, fui direto à torre 138 e, ao chegar à cela, revistei tudo e
encontrei uma carta. Era uma carta do doutor Manette, a que eu atendi, a
quem ajudei, muitos anos atrás”.
Com esses fatos ― a participação na tomada e o socorro ao doutor
Manette quando ele saiu da França ―, o criado prova que era uma
testemunha leal ao médico e ao governo revolucionário.
O tribunal fica sabendo então ― o tribunal e os leitores de Dickens
― que a mulher do criado é a sobrevivente da família camponesa
massacrada pelos gêmeos filhos do marquês. É pedido ao criado que leia a
carta. Ali está escrita toda a história e o clamor do médico para que, se
algum dia a carta for encontrada, seja feita justiça contra a família do
marquês, até seu último descendente, por seus crimes contra o povo da
França.
Outro obstáculo terrível, quase uma ruptura, se a ruptura não tivesse
sido, lá atrás, foi o médico ter comprado briga com uma família
poderosíssima, da qual, infelizmente, seu genro é descendente. E sua neta
também.
A carta fora escrita quando o médico, preso na Bastilha, sentira que
a sanidade começava a abandoná-lo. O médico escreveu a carta como um
auxílio para ele mesmo e para o povo francês.
Esta é uma das grandes ironias das etapas da narrativa. Auxílio para
um personagem, perdição para outro.
O detalhe genial de Dickens é que o genro do médico era filho de
um dos gêmeos. Era neto do marquês e fora embora para a Inglaterra
horrorizado com o que a família fazia. Nesse ponto, o leitor liga os
acontecimentos e descobre porque o médico surtou no dia do casamento da
filha. O genro havia contado qual era o verdadeiro nome da família dele.
Com base na carta (e maldição do médico), o genro é condenado à
guilhotina. Seria a Decisão, o desenlace, o xeque-mate.
E o que é então que o Charles Dickens faz, brilhantemente?
Traz à cena o advogado, o que era apaixonado pela filha do médico
e parecidíssimo com o marido dela.
O advogado não é protagonista, não quer ser herói de nada, é um
bêbado apaixonado, apenas, que usa um estratagema para entrar na prisão,
troca de lugar com o genro do doutor e acaba guilhotinado no seu lugar.
Talvez o advogado fosse neto bastardo do marquês, porque era francês
também.
A Decisão é aqui. É deslocada do genro para o seu possível primo, o
homem apaixonado por sua mulher, a filha do doutor.
A família do médico consegue fugir para a Inglaterra por causa
desse artifício, mas para o doutor Manette é tarde demais. Ele enlouquece
completamente no julgamento e volta a repetir o bordão: “torre 138, torre
138, torre 138”.
Aqui temos uma Conclusão, de verdade. Desce o pano, a vida de
todos segue, um novo equilíbrio surge, em troca do sacrifício do doutor e do
advogado.

O livro de Dickens segue a estrutura do folhetim, mas é um


romance. Tem fim. Numa série dramática, poderia continuar. A descendente
dos camponeses mortos poderia atravessar o Canal da Mancha e ir atrás do
genro e de sua filha.
Perguntas sem resposta, ainda, são uma das coisas mais importantes
da narrativa seriada, desde o folhetim francês de Alexandre Dumas, pai.
São essas perguntas que mantêm o espectador preso à série, semana após
semana. Além de todas as outras especificidades do formato, claro.
As perguntas sem respostas são resolvidas nas etapas da narrativa
que se sucedem não necessariamente numa ordem linear. As perguntas sem
repostas são os links para os atos e as viradas das sequências. São
importantes porque estão ligadas às etapas da narrativa.
Dito de outra forma, a história (de novo Propp) tem uma ordem
linear de eventos. Em Homeland , a sequência linear é: Brody embarca para
lutar no Iraque, é feito prisioneiro, é resgatado anos depois.
Na ordem do enredo, na ordem, portanto, da narrativa, Brody
aparece, no primeiro episódio da série, sendo resgatado. Como ele foi
preparado para voltar só vem ao conhecimento do público no final da
terceira temporada.
Isso não foi inventado pelas séries contemporâneas, nem mesmo
pelos folhetinistas franceses ou por Dickens.
Considero que o maior exemplo do uso das etapas, indo e vindo, se
repetindo para dar tensão à trama, na narrativa ocidental, é a Odisseia , de
Homero.
Ulisses várias vezes recebe auxílios dos deuses, de adivinhos, de
mulheres diversas, mas é derrubado por ações irresponsáveis ou invejosas
de seus acompanhantes. Uma hora alguém desobedece as instruções e é
transformado em porco pela feiticeira Circe, em outro momento fazem
churrasco com o rebanho do Ciclope ou abrem o saco dos ventos amarrados
por Eólio para garantir uma boa travessia a Ulisses. Qual a motivação
desses personagens secundários? As mais variadas. Os obstáculos aparecem
por luxúria, preguiça, inveja, já que os homens da tripulação de Ulisses
acreditam que o comandante queria ficar com o ouro porventura existente
no saco só para ele.
E os auxílios incontáveis que Ulisses recebe? Circe o ajuda
provavelmente por causa do seu charme, o deus Eólio por causa de sua
lábia, o adivinho Tirésias porque recebe a homenagem devida.
Aliás, a Odisseia é contada em cantos nos quais Telêmaco, ao
buscar o pai, vai refazendo seu percurso. Além das etapas bem marcadas,
ainda temos uma narrativa em espiral.
Édipo Rei , de Sófocles, começa pela decisão, quando o rei tebano
amaldiçoa o regicida que, por acaso, é ele mesmo, fato de que ele só terá
conhecimento quando se configurar a ruptura completa. É a revelação de
quem cometeu o crime.
Na série dramática nem sempre as etapas da história correspondem
ao que é apresentado na trama. As etapas da história são lineares, as etapas
que vão ao ar podem ser apresentadas de forma linear ou não. Esse é o
aspecto mais importante de qualquer narrativa que precisa ser destacado.
Numa série de ação, auxílios e obstáculos dão tensão à narrativa,
estendem a narrativa. São os vários “degraus” das 31 ações de Propp.

Início
É a etapa em que ocorre a apresentação dos personagens e da story
line (em algumas séries), a apresentação da situação dramática que o
protagonista vive. É a apresentação do mundo dos personagens e de suas
contradições. O início onde a trama se desenrola e quem é quem nesse
mundo.
Em East Los High , Jessica, Maya e Vanessa aparecem como três
personagens que representarão, com suas trajetórias distintas, o mundo de
jovens latino-americanas pobres, numa high school norte-americana, em
Los Angeles.
Em Broadchurch aparece a família e sua vida pacata, a cidadezinha
que é quase uma praça onde todos se conhecem. Na madrugada, uma
criança misteriosa está num penhasco. Ou num sonho?
Em Game of Thrones somos apresentados aos domínios dos Starks,
já com as imagens do reaparecimento dos “outros”, o amor na época, as
diferenças na família.
No primeiro episódio de Downton Abbey , os primeiros dez minutos
mostram um telégrafo batendo notícia, um trem em direção ao interior,
passando por região rural, uma funcionária dizendo para outro funcionário
que não adianta entregar à noite porque eles estarão dormindo.
Em seguida, a mansão e os dois mundos que coexistem dentro dela.
A criadinha acendendo as lareiras, a hierarquia com um criado
“pisando” com palavras em cima do outro. A cena da tábua montada para
passar o jornal tem duas frases, a do mordomo e a do criado. Depois, em
outra cena, a empregada malvada que só aparece falando coisas malévolas,
retoma o tema do jornal, explicando que é para o conde não sujar as mãos.
Isso não é inútil porque isso caracteriza o mundo inconfundível que é
essencial para essa série por causa da história-base.
Ao mesmo tempo, o criado passando os jornais adia a revelação, o
espectador só vai saber o que aconteceu depois que o conde souber. Oito
minutos e não aconteceu nada ainda, só a apresentação dos personagens, os
dois mundos coexistindo dentro da mansão.
No primeiro episódio de Breaking Bad temos o início cinzento,
Walter, que fracassou como empresário, é maltratado pelo imigrante dono
do lava-jato, obrigado a comer bacon de soja pela mulher, aporrinhado
pelos alunos adolescentes que não estão nem aí para a química que ele sabe
ensinar.
Ele tem um cunhado policial que procura por traficantes, a mulher
está grávida e manda nele, um bebê está a caminho, um filho mais velho
que não tem condições físicas para se virar sozinho e, volta e meia, é
humilhado pelos valentões locais (mundo inconfundível = bullying
marcante no high school norte-americano).
Difícil imaginar o que de pior ainda pode acontecer nessa vida chata
e cinzenta de Walter. Será?
Em Homeland , no primeiro episódio, o início é a espera pelo espião
infiltrado, expectativa essa que é plantada no teaser , na sequência em
Bagdá:
Letreiro indica Baghdad
Visão geral da cidade.
Detalhes do cotidiano.
Carrie dirigindo carro e falando ao telefone.
Presídio, área externa. Policiais amarrando corda.
Carrie dirige e fala ao telefone com David Estes, que precisa liberar
o prisioneiro porque ele é importante.
David, saindo de uma festa oficial, se recusa a fazer o que ela quer.
Carrie buzina para os carros parados a sua frente, larga o carro no
meio do engarrafamento e vai andando apressada, ainda ao telefone, em
direção ao presídio.
No presídio, ela consegue convencer o prisioneiro a lhe segredar
alguma coisa muito importante, antes de ser arrastada pelos guardas. O que
o prisioneiro lhe contou? Não sabemos e só teremos acesso a essa
informação se assistirmos, pelo menos, duas temporadas inteiras.
O restante do episódio segue com a apresentação da Carrie, de seu
mundo inconfundível, de “mulher solteira e bipolar procura sexo casual...”,
além de seu trabalho com a equipe da CIA que duvida um pouco dela. É um
bom início de série de ação.
É importante observar em algumas séries a etapa Início marcando
bem o protagonista e o antagonista. É o caso de Ray Donovan , em que
vemos Mickey Donovan atravessando as grades da cela, recebendo seus
pertences de volta do agente penitenciário, saindo do Presídio Estadual de
Walpole. Depois entrando em um carro com motorista, conferindo o interior
de um saco de papelão que está no seu colo para, ao final dessa sequência,
matar um padre.
Apesar do meu desejo de contar aqui o restante da trajetória de
Mickey Donovan na etapa Início, vou resistir para dar a você o prazer de
assistir sem antecipações. O que é importante notar é que essa etapa não
precisa ser linear. Pode aparecer um pedaço da apresentação do antagonista,
depois um pedaço da apresentação do protagonista, inclusive em atos
diferentes. Adiante, quando você chegar ao tópico “Especificidades do
formato”, espero que essas diferenças de apresentação de personagens e de
situações estejam mais claras. Estarão se você, além de ler este livro,
assistir às séries citadas.

Perda ou Ruptura
A Perda ou Ruptura, para Propp, provoca a quebra do equilíbrio
vigente e a divisão entre os personagens. Ruptura, em geral, é um evento
que mobiliza os aspectos mais fortes e os mais sombrios dos personagens.
Nas séries, acaba sendo o conflito central do episódio e, às vezes, da
temporada. Pode vir sob a forma de um mistério ou de um problema
aparentemente insolúvel. O mais importante é que a Ruptura seja algo que
leva a uma mudança tão grande que afetará todos os personagens.
Em Downton Abbey , a morte do herdeiro e noivo da filha do conde
é a ruptura do equilíbrio do primeiro episódio e determina o arco de toda a
primeira temporada.
Em geral, rupturas acontecem em todas as histórias de um mesmo
episódio. Ocorrerão também em todos os episódios de uma temporada. Da
mesma forma como ocorre com as etapas Obstáculos e Auxílio, sequências
importantes também apresentam ruptura. É o que você poderá observar
assistindo, na Netflix, a sequência em que Quinn, em Scandal , chega com
os donuts, no episódio final da primeira temporada.
No caso de Tony Soprano, a Perda praticamente abre a série. É a
crise de pânico do protagonista, a procura por ajuda psiquiátrica, algo em
total desacordo na estrutura mafiosa.
Ruptura não precisa vir em seguida ao início, como ocorre em
Homeland ou Game of Thrones . No arco da temporada, às vezes, a ruptura
acontece muito mais tarde.
Um caso extremo de ruptura tardia acontece em House of Cards por
que Francis Underwood é protagonista, herói de si mesmo e vilão da
maioria das tramas que ocorrem a partir da ação dele. Isso acontece porque
existe uma ruptura na trajetória de Francis quando ele não é nomeado
secretário de Estado. É a perda dele. Isso é fundamental em House of Cards
.
Você lembra que perguntei há pouco se a vida de Walter, em
Breaking Bad , poderia piorar? Pois piora.
Temos a perda ou ruptura quando ele se descobre com câncer,
poucos meses de vida e sem plano de saúde que preste.
Daí em diante, a observação atenta da trajetória de herói de si
mesmo e vilão de meia dúzia dos que se interpõem no seu caminho é
ruptura em cima de ruptura.
Para escrever roteiro de narrativas seriadas em drama é preciso
incorporar a ideia de que cada trajetória de cada personagem tem as
mesmas possibilidades de ruptura, obstáculos que a intensificam e auxílios
que permitiram a trajetória do herói. Imbuído desse entendimento, o
roteirista pode proporcionar a Sam, o gorducho medroso incorporado à
Muralha, em Game of Thrones , uma trama que emociona.
A preparação da perda, em relação à narrativa principal, a da story
line , pode ser feita logo depois de uma detalhada apresentação do mundo
inconfundível, como em Downton Abbey . Pode levar 11 angustiantes
minutos do início, como em Broadchurch . A perda do equilíbrio ali é
preparada com o aparecimento das imagens da cidade, do mar, da noite, a
câmera passeando por Broadchurch deserta, com a frente da delegacia de
polícia e a tabuleta love thy neighbour as thyself = ama ao próximo como a
ti mesmo.
Para quem conseguir reparar na tabuleta.
Depois, num ritmo fantasmagórico vemos a frente da casa e do lado
de dentro um casal dormindo na cama. O relógio marcando 3h20 da manhã,
ao lado do porta-retratos com foto de um bebê.
Porta do quarto do filho do casal com o nome “Danny’s Room”;
visão geral do quarto, cama vazia, ursinho em cima. Em seguida, aparece
um garoto de costas, a mão direita com sangue.
Garoto de costas, fica claro que ele está em um penhasco olhando
para o mar.
Relógio com ponteiros de segundos correndo.
Rosto do garoto fechando os olhos.
Garoto de costas em um penhasco olhando para o mar (visão de
cima).
Casa, quarto. Beth acorda assustada, sonolenta, olha para o criado-
mudo; relógio parado em 3h20; pega um relógio de pulso, vê a hora; se
assusta e vai para a cozinha.
Até aqui nenhuma palavra. Depois disso, Beth começa a tocar a vida
doméstica e somos apresentados à família dela. Todos saem e ela repara que
o filho esqueceu o lanche. Beth sai com o lanche de Danny.
Ela não sabe que o filho morreu, o espectador sabe ou suspeita que
foi o que aconteceu enquanto ela o procura na escola, não acha, liga para o
celular dele, que não atende. Seu marido, enquanto isso, cumprimenta
várias pessoas, tranquilamente, pessoas que mais tarde serão auxílio ou
obstáculo para ele.
Na delegacia de polícia, aparece a detetive Ellie. No penhasco,
somos apresentados ao detetive Alec, de costas, olhando para o mar, e
começamos a entender que já existe uma investigação policial em curso.
Enquanto isso, na cidade, a detetive Ellie reclama da decisão que a
coloca sob as ordens de Alec, e Beth continua procurando pelo filho, já um
pouco inquieta. Toda a ação de Ellie, de Beth, da professora de Danny, dos
colegas ainda está na normalidade, mas o espectador sabe que é só uma
questão de tempo para que a mãe e Broadchurch saibam que alguma coisa
muito ruim aconteceu.
Na estrada, Beth dirige. No rádio uma mulher fala sobre
engarrafamento na entrada principal para a costa de Broadchurch. Beth sai
do carro, se aproxima de outro, pergunta a uma moça no carona o que está
acontecendo, a moça responde que a polícia está na praia e que parece que
encontraram um corpo. Beth, assustada, começa a correr entre os carros.
Praia. Pessoas curiosas em volta, Ellie chega ao local. Policial
levanta a faixa para a detetive passar, ela se desespera ao ver quem é,
reconhece o corpo. Ellie fala com o detetive Alec, que conhece o menino.
Detetive Alec olha para uma gaivota sobre o penhasco e pergunta se é um
lugar de suicidas; Ellie diz que o Danny não faria isso.
Beth passa por debaixo da faixa policial; detetive Alec segura Beth,
mas ela consegue ver o corpo coberto com um pano verde; reconhece os
sapatos; grita desesperada dizendo que são os sapatos de Danny; tentando
fugir dos policiais, grita por Danny.
São 11 minutos e 36 segundos da etapa Início até a Ruptura, que é
quando a mãe descobre o corpo do filho que não levou o lanche para a
escola. Temos nesses 11 minutos a apresentação do mundo inconfundível da
cidade costeira, pequena, onde todos se conhecem e uma infinidade de
perguntas angustiantes.
Em Broadchurch , o encontro do corpo de Danny vai cindir a
comunidade para sempre. Todo mundo se conhece, não existe nenhum
forasteiro por ali. O que aconteceu com Danny?
Em Scandal , cada uma das histórias do primeiro episódio apresenta
uma ruptura distinta. Na negociação com os ucranianos, eles só têm a
metade do resgate. A sequência já começa incrementada: Olívia tenta
resgatar para seu cliente algo que custa seis milhões, apesar de só ter três.
A ruptura pode ser acrescida de um obstáculo ― em Downton
Abbey , o corpo do primo não é resgatado no naufrágio. Esse tipo de
obstáculo será útil para crescer a trama em outra temporada.
Mesmo para um espectador experiente, a ruptura pode se confundir
com prólogo. Um exemplo é a série Enlightened , que foi cancelada. Parece
que a ruptura é a crise nos primeiros minutos, quando a protagonista entra
em colapso contra tudo e contra todos. No entanto, a amante de um homem
casado, demitida por ele, ter um chilique não é o que desmonta tudo. Essa
reação é até previsível. A ruptura ocorre depois, quando ela sai da
reabilitação disposta a converter todos ao seu bom humor compulsivo.
Em Homeland , a ruptura é a chegada de Brody como herói; em
Game of Thrones , a morte do Mão do Rei. Esses dois exemplos são alguns
dos melhores, entre as séries assistidas, de como um evento pode
transformar a vida de todos os personagens a sua volta. Transformar de
maneira a nada ser como antes.

Obstácul o

É uma etapa da narrativa que intensifica a ruptura. Às vezes, é difícil


distinguir Obstáculo de Ruptura. A diferença está relacionada ao equilíbrio
da situação dramática anterior. Obstáculo é um beat , um movimento, uma
virada, não é um evento que muda tudo.
Em Homeland , um obstáculo permanente é o descrédito sofrido por
Carrie por causa da bipolaridade. Para cada auxílio que a protagonista
recebe, o descrédito (e suas próprias características de instabilidade
emocional) provoca um obstáculo.
Em Orphan Black , Sarah e Felix passam o tempo todo driblando os
obstáculos que se abatem sobre suas trajetórias de “truqueiros”. Nas
trajetórias de Sarah e Felix, os obstáculos possibilitam viradas interessantes
porque eles têm o truque, a malícia como característica marcante. São
sobreviventes de uma realidade dura, mas a transgressão com humor faz
parte do seu perfil. Quando o sotaque inglês atrapalha, Sarah treina, treina,
treina até conseguir se livrar dele. Quando a mentira é difícil de ser
sustentada por Felix, no necrotério, ele joga charme para se livrar da saia
justa em que se meteu. E por aí vai.
Às vezes, obstáculos vão se repetindo, para intensificar a ruptura,
até o final da temporada. É o caso da detetive particular que invade a
investigação em Twisted e obriga a revelação de um segredo inconfessável
que fecha a temporada.
Obstáculos, em geral, funcionam assim para um personagem, mas se
configuram em auxílio para outro.
Em Orphan Black , no final da primeira temporada, Cosima
descobrir o que está por trás do contrato é um auxílio para Sarah e um
obstáculo para Duncan, a proclone.
Um obstáculo, que ajuda a incrementar a trama, em Breaking Bad ,
é o sócio, ex-aluno de Walter, ser capaz apenas de vender. Walter precisará
mobilizar dentro de si competências insuspeitas de gestão de processo ou
amargar mais um fracasso.
Cumprir essas etapas deverá estar previsto antes de o roteiro ser
escrito, mas, para o espectador será uma expectativa angustiante do que vai
acontecer quando Walter descobrir esses obstáculos. Por isso, a virada de
Walter, à beira do precipício moral, no primeiro episódio, já coloca o
espectador na torcida.

Você está achando insuportável a quantidade de exemplos que eu


dou sem contar toda a história? Ou sua curiosidade vai levá-lo a assistir
todas as 64 séries usadas como exemplo neste livro? Espero que seja a
segunda opção porque, se for, sua competência narrativa em roteiro de série
dramática aumentará extraordinariamente.

Divisã o

É o momento em que os personagens se dividem em papéis, em função da


ruptura. Aparece o herói. A Divisão pode ser, portanto, protelada por um
auxílio para algum personagem. Ou pela relutância do personagem em
reparar a perda e se tornar herói. A relutância do herói é bastante trabalhada
por Campebell e por Vogler. Vale a pena prestar atenção à relutância. Ela
intensifica o atrativo dos personagens.
O herói da narrativa, em House of Cards , só começa a se revelar no
final da primeira temporada e mesmo assim fica a dúvida de quantos se
manterão no barco contra Francis e sua Lady Macbeth, quero dizer, sua
esposa Claire. Como a ruptura é tardia, a divisão em função da ruptura
também o é.
Em séries dramáticas, os eventos se sucedem num ritmo tão intenso
que é comum se confundir protagonista com herói do episódio ou com o
herói das histórias A, B ou C. Um bom exemplo do momento em que o
protagonista é também herói pode ser visto em Breaking Bad . Nessa série,
já considerada um clássico, no primeiro episódio da primeira temporada e
no último episódio da última, Walter é herói de si mesmo.
A divisão ocorre, no primeiro episódio, entre Walter e os
representantes desse novo mundo, o mundo do tráfico de metanfetamina.
Walter, que tem pouco a perder e muito a ganhar, faz o que tem que fazer
contra os que se colocam entre ele e a reparação da perda.
Surge então mais um obstáculo para o protagonista: a sirene
persistente de um carro que ele acha que é da polícia. O obstáculo acaba
não sendo o que parecia.
A divisão acontece sempre em função da ruptura. Veja que na
sequência de dois minutos de negociação com os ucranianos, em Scandal ,
a divisão é interna. Stephen, o personagem que faz par com Olivia não
acredita que eles vão conseguir.
Surge então um obstáculo: os bandidos não aceitam os 50%.
Quando não aceitam, reforçam a posição de Stephen.
É mais uma oportunidade de mostrar quem são os personagens e
como funciona a equipe de gladiadores. Nessa sequência, Olivia Pope é
protagonista e é herói porque é ela quem repara a perda, usando o
argumento decisivo contra os bandidos.
A sequência toda tem quatro minutos. Com início, perda, divisão,
decisão ― que ocorre quando Olivia apresenta aos mafiosos a única opção
que eles têm ― e a conclusão: ela leva o pacote e o entrega.
O que foi ao ar, nessa sequência é melhor do que o que foi escrito
em 2010, no projeto ainda sem título de Shonda Rhimes. Discutiremos isso
na seção que trata do formato de séries.

Auxíli o

É uma etapa em que ocorre ajuda para um ou mais personagens alcançar


seus objetivos. Pode ajudar um e prejudicar o outro. É melhor que seja
assim. É uma etapa que, num roteiro de série, possibilita várias “viradas”.
Como foi dito em relação a Obstáculo, a Auxílio se volta para um
personagem (ou conjunto de personagens) e, em geral, atrapalha a vida de
outros.
O auxílio, em Breaking Bad , ocorre quando Walter, ao acompanhar
o flagrante de uma apreensão da droga, percebe que seu ex-aluno é o
traficante em fuga. Como até ali nada indica que Walter se sinta confortável
no papel de dedo-duro, o espectador não espera que ele comece a gritar:
“ali, ali!” e entregue o sujeito para a polícia.
No entanto, é surpreendente que ele procure o ex-aluno para entrar
no negócio no intuito de obter dinheiro para o tratamento. Surpreendente,
dada à situação desesperadora em que ele se encontra, mas compreensível.
Esse é um ponto de virada importante na trama. É quando Walter, além de
protagonista, começa a ser herói de si mesmo.
Na série brasileira, 9mm , o auxílio do pastor parece beneficiar o
verdadeiro criminoso, mas acaba auxiliando a vítima.
Em Game of Thrones , auxílio para um Lannister é, em geral,
obstáculo para um Stark e vice-versa.

Decisã o

É o clímax de uma narrativa, é o momento do desenlace, da resolução na


trama do conflito/ ruptura. Ou, nunca é demais repetir, da instauração
definitiva da ruptura. Do que não tem jeito.
É o momento em que a perda é reparada ou se instala para sempre. É
quando um caso é resolvido em House , Elementary , The Mentalist . Ou
quando uma história A, B ou C se fecha em Scandal , Família Soprano ,
Homeland ou qualquer outra série na qual a narrativa se estende além do
episódio.
Decisão, num roteiro, ocorre também em narrativas separadas, o que
chamamos de histórias A, B, C. Em Homeland , no primeiro episódio,
existe uma história A, que é a de Carrie, a protagonista.
Quando ela descobre um elo entre suas suspeitas e o que é
aparentemente um tique de Brody, mostra a evidência para Saul. O que ela
consegue de Brody é uma decisão dessa narrativa que vai permitir que o
drama siga adiante.
Em Breaking Bad a decisão, no primeiro episódio, acontece quando
Walter, ao constatar que superou dois obstáculos sérios, pode continuar na
sua trajetória de herói de si mesmo, rumo ao descalabro, claro; mas para
quem já está condenado à morte, o que importa?
Note, quando você for assistir ou rever o primeiro episódio de
Breaking Bad , que a decisão da narrativa aparece na abertura, mas
corresponde ao quinto ato. Bacana isso, não é? Essa flexibilidade de
apresentação da narrativa também é conhecida como criatividade do
roteirista. É ou não é muito inspirador?
Mais uma questão em relação às etapas: no sexto episódio de
Masters of Sex , a primeira cena é um fragmento de documentário no qual
Freud defende a tese de que mulheres que não têm orgasmo vaginal são
imaturas e precisam de tratamento psiquiátrico. A cena abre em Virginia e
sabemos que se trata de uma palestra de Anna Freud lembrando a afirmação
de Freud: “Quem quisesse entender as mulheres perguntasse aos poetas”.
Sai para sala das datilógrafas, onde Dr. Austin procura por Jane. Volta para
o auditório e Virginia pergunta se existe alguma evidência sobre a
afirmação de Freud sobre o orgasmo vaginal e Anna Freud diz que seria
uma indecência pesquisar.
Temos aí um início ― com a apresentação do problema ―, uma
ruptura com o atrevimento de Virginia de se identificar com nome,
sobrenome e originária da universidade, o que causa divisão com a dra. De
Paul, que é uma cientista muito cônscia da hierarquia acadêmica, e uma
decisão com a própria Anna Freud decretando que seria indecente procurar
evidências da afirmação de Freud.
O que esse exemplo nos mostra? Que as etapas da narrativa valem
também para as sequências.
A esta altura, você deve estar em sintonia com o propósito deste
livro, que é fazer com que você, leitor/roteirista ou leitor/fã, vá e assista às
séries. Não sei se todos os roteiristas têm consciência de que as etapas da
narrativa estão por trás de “viradas”, “ganchos”, “atos”, “ beats ”. Esses
termos técnicos de roteiro (veremos adiante mais detalhadamente)
correspondem a partes da estrutura narrativa. São elementos da narrativa, na
epopeia, no drama no sentido de personagens em ação no palco, no conto,
no romance, no roteiro de cinema. No formato séries dramáticas seguem
regras específicas que ficam particularmente claras em software de escrita
de roteiro.
Quando assistimos a séries dramáticas e lemos os roteiros depois, as
etapas estão ali, história por história.
Conclusã o

É o fim de um ciclo ou novo início, começo. Quando se descobre como os


personagens ficaram.
Um perfeito exemplo de conclusão é o episódio “ Spies like us ”, o
sexto da segunda temporada de Scandal . Além de todas as etapas, com
direito a uma decisão surpreendente, a conclusão chega a ser terna de tão
parecida com o título de Shakespeare: bem está o que bem acaba. Mais
otimista impossível.
As etapas da narrativa existem numa história, numa sequência e
num episódio inteiro. Não precisam aparecer todas, mas, em geral, num
episódio pode ser contado um ciclo completo das cinco etapas essenciais.
Situação inicial de equilíbrio, degradação da situação, procura em corrigir o
desequilíbrio, volta ao equilíbrio ou instauração do desequilíbrio para
sempre, nova situação.
A conclusão de uma narrativa é, conceitualmente, um novo
equilíbrio.
Da mesma maneira como a perda não é perda de vidas, de dinheiro,
de amor e sim perda do equilíbrio apresentado no início.
Decisão como superação ou consolidação da perda não significa
coisas boas ou ruins. Significa apenas o final de uma jornada na qual as
peças se encaixaram num desenlace.
As etapas funcionam para Homeland , um épico de espionagem, e
funcionam para Treme , com suas narrativas fragmentadas? Acredito que
sim.
Quem se dedicar a fazer a engenharia reversa de Treme
provavelmente encontrará ali a máquina narrativa que Propp identificou no
conto maravilhoso russo. Ocorre que Treme usa estratégias narrativas muito
importantes de serem aprendidas, então prefiro, nesse caso, anotar essas
estratégias.
Em séries, a conclusão da narrativa, no final do episódio, pode vir
com um gancho para o próximo, como no penúltimo episódio da terceira
temporada de Homeland .
A conclusão, numa série, pode não ter gancho, como ocorre no final
do primeiro episódio de The Newsroom .
Pode terminar com o protagonista transando com a mulher, no final
do primeiro episódio, em Breaking Bad . A transa ali é quase uma metáfora
de como, quando o negócio se revela vitorioso, ele recupera a autoestima, a
potência sexual, a alegria de viver. Como ele ficará dali em diante? Só
assistindo aos episódios seguintes para saber.
A conclusão de cada episódio, numa série, é uma oportunidade
maravilhosa para um roteirista. Porque significa começar tudo de novo, no
episódio seguinte, dentro de um formato que lhe dá segurança para inventar.
O mais importante no final de uma narrativa seriada é que fiquem
perguntas no ar. Quantas perguntas serão respondidas no próximo episódio?
Ou na próxima temporada, no caso das séries da Netflix?
Existem especificidades no formato das séries que prefiro destacar
aqui em “Etapas da narrativa”.
Nas séries examinadas neste livro, atos na estrutura geral
correspondem a uma etapa da narrativa.
Nesse sentido, a preparação da ruptura é muito importante, é preciso
que exista uma curva dramática que marque a ruptura. Apesar de essa curva
não ser necessariamente extensa, em algumas séries é mais fácil identificá-
la.
Para Beth se desesperar no encontro do corpo em Broadchurch ela
precisa, primeiro, reparar que o lanche de Danny continua na cozinha. Ela
precisa não encontrá-lo na escola quando vai levar o lanche, precisa não
conseguir falar no celular, precisa ficar presa num engarrafamento e ouvir
dizer que os carros pararam porque aconteceu alguma coisa na praia, para
depois receber a informação de que encontraram um corpo.
Isso, somado ao seu sono inquieto na abertura do episódio e à
imagem do menino à beira do penhasco, dá à série um ar fantasmagórico.
Aquilo era um sonho que ela teve ou uma sequência real que nós vimos e
ela não?
Voltando, então, para a especificidade do formato:
As séries que não se propõem a esgotar tramas num episódio
geralmente têm histórias A, B, C. Essas histórias, as três ou uma delas,
podem se estender por vários episódios.
As histórias B e C costumam ter uma ou duas cenas por ato. O que
significa cinco a dez cenas das histórias B e C por episódio. Quando o líder
da equipe de roteiristas define esse formato.
Algumas séries têm seis atos, outras cinco e um teaser .
O que o protagonista quer é a história A, manter ou conquistar o
amor, muitas vezes, é a história B. Adversários ou aliados relacionados com
o protagonista costumam compor a história C. Isso vale para todas as séries
dramáticas? Não. É um indicativo que pode ajudar na hora de escrever.
No primeiro episódio de Game of Thrones , o que o protagonista
Robert quer (que Ned aceite o convite para ser Mão do Rei) é a história A, a
história B são as intrigas dos Lannister e a história C apresenta os Targaryen
tentando alianças para retomar o poder. O aparecimento dos Outros está no
teaser , não conta como história. Ainda.
Em cada uma das histórias (A, B, C) é preciso definir quem é o
protagonista, quem é o antagonista, quem é o herói, quem faz trajetória de
herói de si mesmo.
Histórias A, B e C podem aparecer em cada um dos atos. Com um
número menor de cenas, claro, mas é bom que apareçam. Caso contrário, o
espectador perde o fio da meada.
Em Orphan Black , o objetivo de Sarah, recuperar a filha, é a
história A da primeira temporada, mas a morte da mulher na plataforma de
trem muda sua trajetória, então, dali em diante, a cada episódio, aparecem
histórias A, B e C diferentes. Difícil? Muito. Roteiro de série demanda
bastante domínio da estrutura.
Como saber qual a história A, B e C? A história A da temporada, em
geral, estará relacionada à story line da série. A história B, em geral, é uma
intriga amorosa. A C é uma trama mais secundária, mas que se entrelaça às
outras.
Algumas séries têm os chamados teasers , um trecho de provocação
que caracteriza a situação dramática ou remete aos episódios anteriores ou
serve de estopim para desenvolvimento posterior.
O teaser , em geral, mostra a história A. Existem teasers , no
entanto, que apresentam trechos de mais de uma, ou até das três histórias.
Um teaser é uma provocação, como o nome já diz. Compromete a
audiência. Obriga a assistir ao restante. Apresenta o principal conflito ou
mistério. Às vezes, resume o que aconteceu no episódio anterior.
O que foi que o prisioneiro disse no ouvido de Carrie no teaser de
Homeland ?
O espectador só vai descobrir no terceiro ou quarto ato e mesmo
assim ficará em dúvida se é delírio do bipolarismo dela ou manipulação do
prisioneiro à beira da morte. Isso é um bom teaser .
Em Under the Dome , o teaser do primeiro episódio mostra um
corvo num ambiente sombrio, escuro, que observamos quando a imagem
abre numa floresta onde um homem, Barbie, está cavando uma cova para
um cadáver cujo rosto é nitidamente mostrado. Barbie é o protagonista da
primeira história, saberemos depois.
Em sequência, ainda no teaser somos apresentados a dois policiais,
um homem e uma mulher, a um vereador, que também é comerciante, e a
um jovem casal transando, mas vivendo uma séria contradição de objetivos,
como imediatamente descobrimos. Essa é a segunda história.
A terceira é a da velhinha que convoca a jornalista local a sua casa
para lhe falar dos vizinhos que estocam propano. Serão terroristas? Ela não
sabe, mas acha que ali existe um mistério. A jornalista e o propano parecem
ser a terceira história.
O teaser , nesse caso, funciona como apresentação dos personagens
principais, apresentação do mundo inconfundível. No final do teaser do
primeiro episódio acontece o domínio da cidade pela redoma.
O teaser , nos episódios seguintes, apresentará um brevíssimo
resumo do mais importante no episódio anterior, com algumas cenas que
fazem sentido. Não é um teaser instigante, ou mesmo obscuro como em
Masters of Sex . Não. É um teaser do tipo “anteriormente em Under the
Dome ”, só que nesse caso são cenas que emendam com o problema que vai
ser enfrentado a seguir. A cada episódio, o teaser de cinco a seis minutos (o
primeiro teve cerca de dez) apresenta uma encruzilhada para os
personagens.
A partir do teaser do primeiro episódio de Under the Dome , a
cidade vai sofrendo um processo de corrosão.
Quem morreu, quem matou, em Elementary é o que provoca o
teaser .
Teaser não é a apresentação fixa. Termina no comercial ou nos
créditos.
Teaser , repito, não é etapa da narrativa.
Primeiro ato representa a etapa início. Apresenta os personagens, o
que fazem, quem são, pode mostrar o início da história B ou C, mostra o
caso que vai ser tratado, mostra o crime que foi cometido.
Em Mad Men , o primeiro ato traz Don Draper em crise criativa,
tentando achar uma solução para a campanha de cigarro. O ato mostra
também todo o contexto cultural da época e algumas características
marcantes dele.
Segundo ato é o momento da ruptura, da decepção, do conflito na
história A normlmente. Corresponde à etapa geral da narrativa que
chamamos de ruptura. Aqui as coisas começam a se complicar.
Na série Les Revenants , é a chegada de Camille em casa. O
espectador não sabe há quanto tempo ela está fora. O restante da história,
que só vai se esclarecer por um breve flashback , aos 50 minutos, é que vai
informar esse detalhe. O espectador não sabe e Camille não sabe.
Terceiro ato é quando as coisas pioram. De novo, a história B pode
até ter sido resolvida, mas não trouxe refresco para os personagens das
histórias A e C. Os personagens se dividem em relação ao conflito central
de cada uma das histórias.
Em The Blacklist , no primeiro episódio, Elizabeth Quinn está
tentando encontrar o inimigo de seu país, com o auxílio indesejado de um
pária, as coisas não estão dando certo e ela não sabe como está a ação de
adoção que é sua trama amorosa. De repente, ela encontra o inimigo e o
marido em casa. Juntos.
No quarto ato os personagens são testados nos seus limites. O
gancho desse ato coloca a decisão, o tudo ou nada.
Em The Newsroom , é o momento em que Mackenzie e Will
McAvoy estão numa queda de braço em que ele aposta tudo no fracasso
dela (história B), Don tenta impedir Jim de trabalhar (história C) e um
desastre ecológico, das dimensões do Katrina, ameaça a costa da Louisiana.
O desastre faz parte da história A, que começou com a contratação de
Mackenzie pelas costas de Will para o renascimento da redação do
programa.
Quinto ato é quando as coisas parecem se resolver até a próxima
semana, que é a próxima batalha dos personagens.
A conclusão do primeiro episódio de The Newsroom é perfeita. Will
se humanizou um pouco, Mackenzie é a musa perfeita, e apesar de ele
reafirmar a ameaça de demiti-la, as duas frases do teaser se justificam. Não
é o melhor do mundo, mas poderia ser.
O final de um ato para alguns é uma cena que provoca uma
angústia. Para outros, o final do ato deixa uma pergunta. O final de um ato,
muitas vezes, indica que as coisas podem piorar mais. Isso faz sentido, o
medo do que vai acontecer com os personagens faz com que os
espectadores não apertem o botão do controle remoto.
A combinação das especificidades do formato série com as etapas
da narrativa baseadas na morfologia de Propp, no primeiro episódio de The
Newsroom que foi ao ar, ficou assim:
Teaser – Oito minutos com o tal comentário antiamericano
acontecendo.
Primeiro ato – Will chega à emissora de TV e fica sabendo que
Mackenzie foi contratada para ser sua produtora executiva. Ruptura ao
final.
Segundo ato – Mackenzie chega e tem notícia de que Will não sabia.
Mackenzie e Will se enfrentam. Ele expõe um contrato aviltante, ela aceita,
mas o provoca a assumir uma posição de D. Quixote. Esse ato intensifica a
ruptura e intensifica a tensão sexual e amorosa da história B, que é do
relacionamento anterior de Will e Mackenzie.
Terceiro ato – começa a produção de notícias, à revelia de Don, com
a resistência de Don. Dura mais ou menos 35 minutos. Will dá carta branca
para Mackenzie.
Quarto ato – programa no ar. Cada vez mais tenso. Vitória, aplausos.
Decisão.
Quinto ato – momento de paz e ainda conflito entre Will e
Mackenzie com humor e alguma ternura, pequena surpresa para o
espectador, surpresa que Mac não mostra para ele. Fica a cumplicidade um
pouco triste entre o espectador e Mackenzie. Essa é a história B é a história
do amor que não deu certo entre Will e Makenzie e isso vai prender os mais
românticos à série. Beija, beija, beija! É a torcida dos que simpatizam com
a moça.
Agora vejamos como funciona em House of Cards , no primeiro
episódio da primeira temporada.
Temos a etapa início, com apresentação dos personagens. Francis
Underwood aparece com o cachorro atropelado, indicando que divide dores
em úteis e inúteis. Depois, numa festa, entrada de 2013, com o presidente
eleito, Francis está autoconfiante de que seu objetivo foi atingido com a
eleição: não será mais um congressista encarregado de fazer escoar o lodo.
Em seguida, vem a apresentação dos outros plots . A ordem do
aparecimento indica os campos de atuação.
A redação do Washington Herald . Zoe Barnes, a jornalista
ambiciosa, Lucas, o editor que tem “mentalidade século XX”, ou seja,
pensa em jornal papel, a rival profissional de Zoe, a jornalista mais
experiente que a menospreza.
O congressista Russo e suas artimanhas quase infantis.
A ruptura, do ponto de vista do protagonista, acontece em 8m38s,
quando Francis é traído pelo presidente eleito e seu grupo.
O auxílio acontece em 13m45s. O casamento de Francis e Claire é
apresentado, cumplicidade total, Claire fria, dominadora, com objetivos
altos, traz o marido para o eixo dele mesmo, potencializa sua inclinação
para as articulações.
Obstáculos e auxílios vão se alternando para os personagens até que
no minuto 45 ocorre a decisão: Francis “comprou” duas almas, a de Russo e
a de Zoe, dando-lhes o que eles queriam. É Shakespeare e é Fausto, de
Marlowe, contemporâneo do Bardo.
A conclusão está nos últimos três minutos nos quais Francis devora
uma costela enquanto seus inimigos são surpreendidos pela fogueira que ele
levantou. Dessa vez com a ajuda de Zoe. Ao mesmo tempo, o atropelador
do cachorro é encontrado pela polícia. Com a provável ajuda de Francis, o
homem que não é nem tão mau que impeça que o espectador o admire, nem
tão bom que impossibilite peripécias que contem uma história.
A partir de agora, quando assistir a uma série observe como
sequências e atos também seguem uma história e apresentam as etapas. Em
geral, nas séries dramáticas, a estrutura é bem marcada.
Em Twisted , o teaser apresenta o background dos protagonistas. No
primeiro ato, o roteiro apresenta a oposição a Dani por suas ex-amigas e o
espectador é introduzido também ao embate entre os favoritos da high
school norte-americana versus os que são desprezados pelos favoritos no
ambiente high school norte-americano.
Mas o piloto traz uma reviravolta tremenda, no final do quinto ato:
um assassinato é cometido. O piloto poderia, sem esse crime, se tornar uma
trama teen na qual uma comunidade pratica o bullying contra um oponente
forte. Por isso só, essa seria uma novidade significativa da série: bullying
geralmente se pratica contra os mais fracos. Danny não é fraco. Todas as
vezes em que é confrontado, ele suporta o tranco. Danny, além de um
oponente forte, será um assassino manipulador?
Temos um exemplo de uma sequência, marcada com as etapas, no
primeiro episódio de Downton Abbey :
Bates está parado do lado de dentro da entrada de criados.
Apresentação do personagem que apareceu na janela do trem no teaser .
Esse é o início da sequência.
O’Brien e Anna chegam. O’Brien questiona sobre a presença dele
do lado de dentro da casa. Uma o olha de cima a baixo, fixando-se
particularmente em sua deficiência física, a outra estende a mão para
cumprimentá-lo. Divisão.
Bates responde que entrou na casa porque antes bateu e ninguém
atendeu. Ele se identifica e, dessa vez, sua deficiência física será pretexto
para indicar a oposição que ele enfrentará. Não existem deficientes físicos
em Downton Abbey. Ruptura com quebra do equilíbrio no mundo dos
criados. Como Bates vai se virar em função dessa ruptura? Quem serão seus
adversários, seus aliados? Quais obstáculos surgirão em seu caminho?
Essa sequência planta uma história C, que seguirá por três
temporadas da série. Ou seja, ruptura boa é a que rende muitas cenas e não
precisa ser apocalíptica.
Em Masters of Sex , o teaser é composto de pequenas cenas dos
episódios anteriores sem ordem cronológica, ou seja, são cenas instigantes
que não explicam o que aconteceu, só provocam mesmo. Isso em 1m30s.
Depois aparecem imagens sem relação direta, fotos de bichos, flores,
cupcakes , todas com insinuação sensual, mais do que sexual.
Exemplo de sequência de tratamento de temas polêmicos está no
primeiro ato do sexto episódio. O tema é orgasmo clitorial versus orgasmo
vaginal.
Em outro momento, mulheres casadas conversam sobre a pesquisa
do Dr. Masters e sobre sexo com anônimos em nome da pesquisa científica
e surge uma história C, que é a de uma casada que não pode participar da
pesquisa.
Existe uma história B, que é a de William Masters acompanhando a
esposa Libby num período de férias em Miami para agradá-la.
A história B entrelaça com a história A quando o Dr. Masters liga
para o consultório e Virginia Johnson lhe conta de uma nova hipótese de
pesquisa.
As duas sequências da história A (as interpretações de Freud e a
rejeição pela pesquisa de uma das mulheres casadas) continuam até o quinto
ato, e ainda se entrelaçam com a história C, quando a mulher casada atinge
o orgasmo com o homem que fracassou anteriormente na pesquisa.
É interessante notar que a história C também tem um início com a
apresentação do problema da mulher casada; uma ruptura, quando ela
descobre a pesquisa; uma divisão (ou obstáculo), quando ela é rejeitada; e
uma decisão, quando consegue o orgasmo.
Mais interessante ainda é que essa história C continua no episódio
seguinte, atingindo sua conclusão, e vai dar início a uma história B, que
será entre essa mulher e seu marido.
Um roteiro bem costurado como o de Masters of Sex mantém a story
line e seus temas presos à estrutura narrativa. Um exemplo disso é o
segundo tema delicado desse episódio: os possíveis dogmas de Freud.
Apesar de os personagens Virginia Johnson e William Masters
questionarem Freud e seus “dogmas”, numa das sequências da história A,
ela é discriminada por uma mulher que tem inveja do pênis, um conceito do
psicanalista. Ele, numa sequência da história C, encontra a prova de que
alguns homens procuram o amor incondicional, o amor idealizado, “amor
de mãe”.
Algumas séries terminam no clímax, mas, como a série televisiva
tem como objetivo alcançar milhões de espectadores, normalmente a
conclusão já traz a complicação da próxima temporada. Em geral, traz até
um gancho explícito. O que acontecerá com os dragões que surgiram no
final da primeira temporada em Game of Thrones ?
Qualquer etapa de uma trama, inclusive a conclusão, pode vir
embutida em outra sob a forma de flashback . Veremos isso mais
detalhadamente em estratégias narrativas.
Penso que o entendimento proposto aqui facilita a escrita. Porque,
dependendo de como as histórias são contadas, o obstáculo pode vir antes
da ruptura para criar expectativa. A decisão pode vir como prólogo,
especialmente se acontecer no teaser e se for objeto da narrativa que vier
depois, como em Breaking Bad , no primeiro episódio.

O FORMATO AINDA MAIS ESPECÍFICO


NAS SÉRIES DRAMÁTICAS

Para escrever roteiro de série é preciso conhecer o que é específico


no formato. O formato é o que resgata o roteirista quando ele se perde.
S éries dramáticas são:
Antologias de histórias.
Apresentam arco sem fim dos personagens.
São necessariamente narrativas longas, narrativas que continuam
numa próxima temporada.
Precisam de processo colaborativo de escrita e os roteiros não estão
sujeitos às oscilações da audiência no decorrer da temporada. São entregues
por temporada para produção.
Podem ser séries com a narrativa se esgotando num episódio ―
House , The Mentalist ― ou séries com narrativas que se estendem ―
Scandal , Homeland , Downton Abbey , Breaking Bad .
Costumam se dividir em séries de especialistas (na falta de melhor
tradução para precedural ) ou séries de personagens.
Cenas são as situações em que os personagens se movem ou falam,
num mesmo cenário.
Beats são cenas em que as ações e falas dos personagens puxam a
narrativa para frente, mudam o rumo dos acontecimentos. Dependem do
desejo, da fraqueza, da atitude do personagem. Pode representar mudança
de atitude, mas sempre representará emoção.
Temos um beat , no primeiro episódio de Scandal , quando Abby
entra eufórica comunicando que descobriu que a morta era uma vadia que
traía o noivo.
O efeito é produzido em contraste com o beat anterior, no qual Abby
convence a amiga da morta a trair sua memória para elucidar o crime.
O espectador sabe que Abby não tem como objetivo a justiça e sim
administrar o escândalo do cliente, tirar o cliente do escândalo. Suas ações e
falas (logo ela que era contra pegarem o caso) são decisivas para criar
suspense e reversão de expectativa.
Temos um beat quando Virginia canta dentro da cabine You don’t
know me no final da temporada de Masters of Sex .
Beat é diferente de cena de reiteração, que é um elemento essencial
em telenovelas e comédias para marcar comportamentos dos personagens.
Em drama, a cena de reiteração costuma marcar características das
quais os personagens não conseguem se livrar e podem imprimir horror e
compaixão ao contexto. Em outros momentos, a cena de reiteração imprime
humor ao drama.
Em Família Soprano , quando Meadow, Carmela e Tony discutem o
roubo da bicicleta, temos uma cena de reiteração. Tony defende “Fique
entre os seus”, e Meadow repete seu bordão “Que comentário racista!”. A
cena reitera o que já sabemos e, ao mesmo tempo, permite uma “respirada”
entre um suspense e outro.
O beat está na estranheza dos agentes do FBI ouvindo essas coisas
todas: “O som está muito alto”, eles dizem.
Nesse momento, Tony pergunta o que o abajur está fazendo ali, e
Meadow diz que vai levá-lo porque o que ela tem na faculdade está lhe
dando dor de cabeça. Isso é um beat e a conclusão irônica de uma
sequência. Porque é a atitude folgada de Meadow ― reclama do racismo do
pai e carrega as coisas da casa dele ― que atrapalha o trabalho dos agentes.
Ela carregou a escuta que deu tanto trabalho para os caras montarem.
A princesa Daenerys olha com intenção para os ovos de dragão que
recebe de presente de casamento em Game of Thrones . Isso é um beat .
O filhote de lobo gigante uiva insistente quando o menino Bran
escala o muro. Isso é um beat . São cenas, ações que indicam que algo ali
mobiliza a emoção da princesa no casamento (ou a do pequeno lobo na
escalada de Bran) e, por consequência, mobiliza também o espectador. Vai
acontecer alguma coisa, nos diz o beat , e nossa memória guarda a imagem
e a sensação esperando a resposta posterior.
Em Broadchurch , a cena em que a Beth salta do carro no
engarrafamento e começa a correr em direção à praia é um beat .
A maioria das séries tem “gancho” em final de episódio ou em final
de ato. Usando o conceito de etapas da narrativa proposto na primeira parte
deste livro, temos cada etapa correspondendo a um ato. Va i de
apresentação a conclusão de uma trama. Ato, numa série, é o conjunto de
sequências que produz mudança.
Frequentemente, uma sequência também tem início, ruptura,
decisão. Um beat pode funcionar como gancho.
Todas as cenas têm emoção em final de episódio ou em final de ato
porque isso é a essência do drama. Ação ou fala que demonstra emoção é
diferente de gancho porque a emoção não traz, necessariamente, suspense.
Um ato dramático não se faz só com beats . Precisamos de cenas de
reiteração e de cenas de respiração.
Cenas de respiração são cenas que afrouxam a tensão, mostram
como a vida é bela ou boba ou prosaica, antes de um beat que leve tudo
para o confronto, as lágrimas, o tiro.
Séries que apresentam histórias A, B e C costumam ter uma
quantidade determinada de cenas para cada uma, por episódio. Em Scandal
, no episódio seis da segunda temporada, “ Spies like us ”, temos 22 cenas
da história A, que é o escândalo que Liv foi contratada para administrar,
oito cenas da história B, que é uma história de amor entre uma pessoa da
equipe de Liv e um adversário/aliado permanente e quatro cenas da história
C, o escândalo envolvendo a Casa Branca.
Na verdade, o número de cenas na história A pode ser um pouco
menor, porque algumas cenas são intercaladas com cenas da história B ou
C. Aqui não estamos falando de entrelaçamento. É alternância mesmo. Vem
a cena da história A, corta para uma cena da história C ou B, volta para o
ponto onde parou a cena da história A.
Algumas séries apresentam histórias C (ou B) sem conclusão
explícita, mas não é o padrão.
Em alguns momentos, a última cena de uma sequência completa de
uma das histórias (A, B ou C) é a última cena do episódio com as cinco
etapas da narrativa. Temos que considerar que algumas séries terminam
episódios e temporadas com um gancho para a próxima. Outras, não.
Um exemplo é a conclusão do envolvimento do padre e Carmela no
13º episódio da primeira temporada de Família Soprano . É uma cena
conclusiva de uma trama C.

Um número expressivo de séries, Família Soprano é apenas um


exemplo, não segue esse padrão. Sim, existem séries que quebram ou
parecem quebrar o paradigma.
Será que o paradigma é quebrado mesmo? Para sabermos a resposta
precisamos conhecer as especificidades do formato.
Difícil? Se você fizer o exercício de engenharia reversa com a série
dos outros, como sugiro adiante, fizer arco de personagem alheio, será
muito mais fácil.
Um bom roteirista consegue colocar a estrutura narrativa a favor da
sua imaginação, mas isso demanda absoluta obediência, submissão ao
formato.
Um bom roteirista, com muita estrada, consegue inovar dentro do
formato. Os exemplos são inúmeros. Sem dominar o formato, sem estrada e
sem respeito dentro do mercado, fator este que depende dos dois primeiros,
não é possível inovação em séries dramáticas.
Roteiro de série dramática exige muitos detalhes antes de ser escrito.
Imaginação somada a experiência + experiência + experiência + domínio
técnico podem resultar em inovação.

TIPOS DE APRESENTAÇÃO
DE PROJETOS DE SÉRIES

Story line , sinopse da temporada com arco dos personagens


principais, sinopse dos episódios, roteiro do primeiro episódio. Este é um
caminho.
Arco é a story line desenvolvida através dos episódios. Estamos
aqui falando da história A numa trama seriada.
Tramas que se esgotam num só episódio são, por definição, séries
sem arco. Um semiarco poderá contar a história do protagonista ou um
episódio na vida do protagonista. É o que acontece em Elementary , House ,
Castle . De qualquer forma, dá para assistir a episódios soltos de uma série
cuja proposta é uma trama por episódio. Isso não ocorrerá em Downton
Abbey , Scandal , The Newsroom ou, o maior exemplo, Lost .
Story line , conceito da série, detalhamento do mundo, perfil dos
personagens, em cada setor do mundo da série, escaleta dos episódios é
outro caminho criativo.
O caminho para chegar até as sinopses de todos os episódios da
temporada é chamado nos EUA de bible , talvez para que todo mundo tenha
certeza de que deva ser seguido.
Bíblia é a descrição do projeto com a story line , mundo
inconfundível, estratégias narrativas pensadas, perfil dos personagens
principais, sinopses dos episódios da primeira temporada.
Na bíblia da série poderão estar definidas as estratégias narrativas
ou pelo menos indicadas. Isso significa dizer como a trama será contada: de
forma linear, como em The Blacklist ; com histórias A, B, C, intercaladas,
como em Scandal ; com sequências que se encaixam, como em Les
Revenants .
Isso vale também para os mundos onde as histórias se passam. Não
sei se alternância de mundos consta da bíblia de Game of Thrones , Lost ou
Heroes , mas se não consta, é provável que faça parte dos cuidados de quem
coordena o trabalho. Porque os mundos dessas séries se alternam na tela.
Quantas páginas são gastas numa bíblia? A da série policial The
Wire , encontrada na internet, tem 79 páginas. É claramente um rascunho,
porque várias coisas mudaram nos episódios que foram ao ar.
O conceito da série está descrito em duas páginas. O mundo
inconfundível da cidade de Baltimore com polícia e crime está em uma e
meia. Os perfis de personagens em três páginas. Há 17 personagens nos três
cenários que importam: a delegacia, a Corte, as ruas. As escaletas de
episódios ocupam 68 páginas. Cada episódio tem, em média, 28 cenas.
Os livros norte-americanos sobre séries preconizam, sensatamente,
que roteiristas tentando entrar no mercado, candidatando-se a um lugar à
mesa de roteiristas, tenham na mão dois tipos de textos escritos por eles:
specs de uma série já existente e o episódio piloto de uma série que
pretendem desenvolver.
Costumo fazer oficinas com a proposta de todos os participantes
escreverem um episódio de série já existente. Os resultados são muito
interessantes.
O piloto é apresentado para a aprovação do projeto ou como
demonstração da imaginação e habilidade do roteirista no formato. O piloto
de uma série própria demanda um projeto inteiro pensado e mostra que o
roteirista está ali para dar certo. Isso é fundamental.
Quando uma série começa, alguém já apostou no produto como uma
série capaz de durar muitas temporadas. Esse alguém ― produtor, emissora,
canal ― pode se enganar, mas faz parte do formato a possibilidade de
continuação. Quantas temporadas? A audiência dirá.
Les Revenants , série francesa, no primeiro episódio apresenta as
histórias de Camille, Simon, a morta que voltou para a casa do sr. Costa e o
menino Victor. São esses os mortos, apesar das várias sequências que
podem nos levar para qualquer canto, se não estivermos atentos. A story
line dessa série é “mortos que não sabem que morreram voltam para a
cidade natal e agem como se ainda estivessem vivos”.
Cenas que funcionam, num roteiro, demandam concisão na maneira
como são descritas. Não dá para escrever como se fossem descrições
literárias. Um escritor de literatura joga em todas as posições, escreve como
são os cenários, a luz, o figurino. Desde Homero.
Um roteirista não substitui diretor, cenógrafo, figurinista. Em
especial, um roteirista existe para contar uma história, não para indicar a luz
ou as marcas do ator no cenário. Não é a sua tarefa. A menos que o
roteirista também dirija. Aí será um plano de direção, outra coisa.
Fazer com que as cenas sigam precisas e não longas demais
contribui para que o roteiro mantenha o ritmo. A maioria dos roteiristas
gasta até duas páginas por cena, num drama. Mad Men mantém a média de
duas, o roteiro de Downton Abbey tem cenas de uma página, meia página.
Escrita de um roteiro brilhante é resultado de imaginação,
criatividade e formato muito bem-determinado. Não existe especulação nem
improviso. Existe trabalho duro em cima do que foi definido no início da
criação.
É diferente de inventar hipóteses ao léu, conforme a inspiração da
fabulação solitária de um escritor de prosa. Inclusive, porque o público da
série não perdoa incompetência.
O que isso significa? Significa que o criador do projeto de uma série
determina, junto com a equipe, o que deverá estar no roteiro. Foi
determinado e não está? Então deverá ser colocado. E se faltar algum
desdobramento não previsto? Essa circunstância, bastante comum,
aparecerá no roteiro (ou antes, até, na escaleta) e será discutida e aprovada
na sala de roteiristas. Nunca improvisada.
Créditos. Examinando os créditos de Masters of Sex , veremos que
a criadora do projeto, Michelle Ashford, assina os 12 roteiros da primeira
temporada e que cada um dos oito roteiristas da equipe assina um ou dois,
com exceção de Sam Shaw que assina três. Thomas Maier, produtor, está
nos créditos de escrita dos 12 episódios. O produtor tem peso na série de
TV. O produtor escreve? Não necessariamente, mas precisa saber como se
escreve, o que falta, o que deve sair.
Masters of Sex contou com a direção de John Madden (que dirigiu
também Shakespeare Apaixonado e vários programas de TV) no primeiro
episódio. Só no primeiro. Foram nove diretores na primeira temporada. Ao
contrário do cinema, séries dramáticas não são obras de diretor.
Scandal tem 11 roteiristas escrevendo, fora Shonda Rhimes, e 17
diretores haviam trabalhado nos 51 episódios, até fins de 2013.
Cenários não precisam ser os mais glamorosos. Família Soprano
está em Nova Jersey e Breaking Bad , em Albuquerque, Novo México.
Um roteirista ou um produtor executivo pode orientar uma equipe
fazendo observações precisas sobre como uma sequência, um ato, um
episódio ficaria melhor seguindo outro caminho, mas é difícil orientar uma
equipe quando a única base é o gosto pessoal. Para defender mudanças,
numa sala de roteirista, é preciso descrever exatamente quais são as
mudanças e as consequências se o roteiro for em outra direção.
Um episódio não é um varal de situações. Cada sequência também
segue a estrutura de início, ruptura (ou conflito), divisão (ou divergência
entre os personagens), decisão (ou clímax), conclusão (ou novo equilíbrio).
Algumas séries funcionam no esquema de apresentar as histórias A,
B, C a cada episódio. Cada uma dessas apresentará uma história-base e,
pelo menos, as cinco etapas da narrativa.
Comportamentos que definem características essenciais dos
personagens deverão constar do perfil. Podem ser apenas anotações.
Do lado do nome de TERRY DONOVAN:
N ão paga drinque a bêbado.
Esse tipo de anotação leva à cena que desencadeia a briga no bar
quando ele encontra o irmão Bunchy, alcoólatra em eterna recuperação,
bebendo com um conhecido qualquer.
Ganchos fazem parte do DNA da série se assim for definido
antecipadamente. No desenvolvimento é preciso definir se existirão
ganchos no final de cada ato, na passagem para outro. Ganchos, como já foi
dito na primeira parte deste livro, são estratégias narrativas, não são
obrigação. Podem caber ou não no projeto.
Isso não vale, claro, para séries de ação frenética. O que vai
acontecer, em Homeland , depois que Saul encontra o prisioneiro do
venezuelano? Este é um gancho para o episódio seguinte, mas, lá atrás,
alguém ofereceu heroína para o prisioneiro e nós deixamos de saber,
durante vários episódios, o que aconteceu depois. O prisioneiro se viciou?
Resistiu? Vai passar por uma desintoxicação? O sumiço da conclusão dessa
trama significa que em certos momentos de Homeland são usados ganchos,
em outros não.
Estrutura de episódio varia de série para série, mas existem alguns
elementos que são fixos. Atos são fixos, teasers podem acontecer ou não.
O teaser no primeiro episódio de Breaking Bad é uma repetição do
final do quarto ato, o que é uma grande ideia. A estratégia narrativa foi a de
pegar um ponto de vai ou racha total para depois fazer um flashback que
demonstra o quanto o protagonista não tinha outra saída.
Em The Newsroom , o teaser mostra Will McAvoy com toda a
pujança de seu espírito independente tendo uma crise de vertigem verbal
que pode lhe custar a carreira. Mostra também o que talvez seja uma
alucinação com a personagem que será sua oponente.
Ah, mas Família Soprano é diferente! É.
Mad Men também.
Cada uma das boas séries subverte um pouco as regras de ritmo, de
histórias, de final de ato, mas, se observarmos bem, subverte pouco. O mais
importante para um autor muito criativo é inovar no projeto inteiro, não na
estrutura dos atos ou no número de cenas. Porque formato já está muito
testado. Já deu certo.
Um publicitário que apronta todas e tem frases ótimas é um achado
quando chega à televisão acompanhado de angústias, incoerências, desejos
que o espectador possa chamar de seus.
Idem um professor de química que produz metanfetamina no
interior dos Estados Unidos ou um chefe mafioso de Nova Jersey.
Em que é melhor inovar? Nos personagens e em suas tramas ou no
formato?
Alguns episódios da terceira temporada de Família Soprano
terminam, para muitos espectadores, com uma pergunta:
Afinal, quando é que alguém vai fazer o favor de matar Ralphie?
Vejam que a maioria dos espectadores tem medo (ou nojo) de matar
uma barata, mas já que o mundo inconfundível da máfia libera o
assassinato... Quando é que alguém vai matar Ralphie?
Um dos episódios termina com uma cena terna de Tony fumando
charuto do lado de uma égua doente e de uma cabra. Mesmo essa cena
aparentemente inócua pode suscitar a pergunta: e Ralphie? Vão matá-lo
quando?
Categoria é um elemento distintivo de séries. Existem séries que
são de especialistas. São as séries de policiais, advogados, médicos. The
Wire , Luther , Broadchurch , Grey’s Anatomy , E.R .
A categoria pode ser Sobreviventes, como The Walking Dead e Lost
, ou Drama familiar, como Downton Abbey , que é também um drama
histórico. Pode ser drama político, como Scandal ou House of Cards .
Como dissemos nas primeiras páginas deste livro, consideramos
aqui, principalmente, o primeiro episódio de cada série. Porque demonstrar
o formato detalhadamente em episódios das temporadas seguintes
implicaria estragar a surpresa e o prazer de assisti-las.
Tratamento de temas delicados é outro ponto importante no formato
de séries. Sexo, drogas, crenças religiosas, hábitos culturais, diversidade,
como esses temas serão tratados?
Será através de sugestões vagas de erotismo, raras cenas de
violência ou serão tratados explicitamente como em Game of Thrones ou
House of Cards ?
Ray Donovan é um drama misto, parte familiar, parte de
especialista, no qual o sexo aparece com corpos semicobertos, bastante
sugestão de erotismo e violência explícita.
Em Breaking Bad , o protagonista aparece fazendo metanfetamina,
como aparecem os seios da mulher com quem o ex-aluno está transando e
aparecem os traficantes sendo mortos.
O tratamento dado a temas delicados tem uma influência marcante
que é a época. Adultério, incesto, prostituição, sexo, assassinato, estupro,
zumbis. Todos esses assuntos aparecem no primeiro episódio. Como? Da
maneira mais crua possível. Só não aparecem as genitálias masculinas e
femininas. O restante aparece tudo, cabeças rolando, anão na cama com
várias mulheres, crianças perversas, irmãos desalmados.
Seria possível fazer uma trama “água com açúcar” nessa época.
Vários filmes foram feitos e algumas séries. Once Upon a Time e Grimm
são séries para crianças, comparadas com essa. Em Game of Thrones existe
uma decisão autoral que é de fazer uma série de fantasia medieval realista.
Porque o tema é poder. Numa época de disputas sangrentas e reis
absolutistas com domínio precário sobre reis menores.
Entrelaçamento , chamado de weave em inglês, é o ponto em que
as histórias se juntam. É parte do formato e é essencial nas séries de
especialistas, principalmente em dramas policiais.
Em Treme , existem momentos em que a trajetória de Delmond,
filho de Albert, conflita com a do pai. Ou a de Janette, dona de um
restaurante, se mistura com a de David, locutor musical. A de Antoinette,
advogada, branca, se cruza com a de LaDonna, principalmente porque
investiga o desaparecimento do irmão.
Particularidades de séries estão em como apresentam a estrutura
narrativa, como distribuem as cenas.
Processo colaborativo em séries é uma premissa que precisa ser
clara para todos os envolvidos. Um roteirista de série precisa gostar de
colaborar, ao vivo e a cores. Em algumas séries, são duas semanas para
escrever o roteiro de um episódio depois de 20 dias discutindo escaletas na
sala de roteiristas.
Uma questão importante na colaboração é que só estará na tela o
“se” e o “então” que o roteirista líder eleger. Talvez poucas pessoas estejam
atentas para esse poder do ficcionista, poder que também é sua maldição.
Numa série, o roteirista líder (todos, mas ele principalmente) precisa
manter condições de produção em mente. Quantas câmeras serão
necessárias, orçamento do episódio, elenco, internas ou externas, definições
dos executivos do canal, enfim, uma infinidade de questões materiais, além
da narrativa, da imaginação, da criatividade.
A criatividade está a serviço dos limites da produção. Uma
sequência externa, muitas vezes, custa uma fortuna.
O roteirista líder tem na cabeça que todo episódio é parte da história
geral da temporada e a temporada é parte da história da série.
Ocorre que nem todo roteirista tem aptidão para ser liderado.
Roteiro de televisão, em geral, e de série, em particular, exige desapego.
Exige generosidade e paciência em lidar com os outros. Não é que o
roteirista precise ser bonzinho ou habilidoso. Não. Precisa entender que as
pessoas são como os personagens: são o que são e não faz parte do papel do
roteirista corrigi-las ou combatê-las. Basta apenas aceitar e interagir com
elas. Como se faz com personagens.
Pessoas ressentidas, por melhores que sejam seus motivos de
ressentimento, não combinam com uma sala de roteiristas. Podem dar
excelentes roteiristas em casa, trabalhando individualmente. Por que digo
isso? Porque do ressentimento para a inveja é um passo e, numa equipe de
8, 10, 12 pessoas, a inveja pode derrubar um projeto. Caso o roteirista líder
e o produtor executivo estejam atentos, o roteirista ressentido ou invejoso
será substituído logo. É uma pena conseguir chegar até uma sala de
roteiristas e sair por não conseguir trabalhar em equipe. Mas acontece.
Da mesma forma, nem todo roteirista líder tem a noção de que série
é obra coletiva com limites individuais por episódio.
O líder fez o projeto, apresentou, convenceu produtores a investir,
um canal a investir e, além disso, precisa selecionar roteiristas, entregar
episódios para outros roteiristas e estar preparado para substituir roteiristas.
São três talentos – selecionar, delegar, demitir – que às vezes o roteirista
líder não tem. Por isso, em algumas séries, o papel do showrunner é
dividido entre o roteirista criador e o produtor executivo. Cordialidade, para
quem está no papel de líder de uma sala, tem limites.
Hábitos de trabalho na sala de roteiristas de série são diferentes de
sala de roteiristas de telenovela.
A telenovela, na qual a produção brasileira se destaca, é obra de um
ou dois autores principais com colaboradores. É frequente o autor principal
escrever a escaleta e, apesar de escutar os colaboradores, bater o martelo e
fazer a redação final. É frequente, também, que os colaboradores
desenvolvam a escaleta, enviem por e-mail o roteiro, e o autor principal
faça a redação final de todos os capítulos.
Na sala de roteiristas de série, o mais comum é que o líder distribua
episódios com suas sinopses curtas para os roteiristas, todos discutam e
cada um vá escrevendo escaletas e apresentando e reescrevendo o seu
roteiro.
Em Grey’s Anatomy , segundo o roteirista William Harper informou
num workshop no Rio de Janeiro, existem definições que valem para todos
os roteiros:
No final de uma temporada é preciso que o gancho já abra a
próxima temporada com novo conflito.
Cada episódio deve ter como eixo a grande questão humana da série
que é como lidar com a adversidade.
Um dos episódios que William Harper roteirizou foi justamente
sobre a possibilidade de o hospital falir. Essa era a história principal do
episódio, o que criava conflito dentro de uma equipe unida diante do
adversário comum, a morte.
Em Grey’s Anatomy , o escritor do episódio apresenta a escaleta, os
outros dão palpites, o líder interfere, o roteirista escreve, volta para a
equipe, todos palpitam.
No DNA da série, todos os episódios começam com voice over e
apresentam três histórias médicas, cada uma com mais ou menos 12 beats .
Um episódio de Grey’s Anatomy tem entre 44/55 páginas e precisa
apresentar casos que atraem médicos, que são aqueles relacionados à
historia médica, as boas histórias de paciente e as histórias de pesquisa
médica.
O mais importante numa série é a fidelidade ao perfil dos
personagens, à estrutura narrativa e a tentativa de manter a trama simples,
na medida do possível.
Coerência narrativa é o fator importante de uma série dramática.
Qualquer boa série tem uma boa story line com protagonista que tem um
objetivo e um problema entre ele e o que deseja. Pode ser um grupo de
protagonistas, como em Game of Thrones , Treme ou The Walking Dead .
Indivíduo ou grupo, o conceito de story line não muda.
Algumas séries têm ainda temas importantes, usam a estratégia do
dialogismo, conduzem a reflexões éticas.
Todas precisam ter uma temática que as ligam a uma categoria e
precisam ter um arco de temporada que explicite qual é o início, o conflito e
a resolução já embutida nessa resolução.
Quando uma story line está bem-estabelecida, uma etapa seguirá a
outra porque o protagonista vai tentar conseguir seu objetivo ou será
derrotado pelo problema que enfrenta.
As boas séries dramáticas que estão no ar em 2014 representam o
único lugar em que a coerência narrativa é soberana. O único lugar onde um
roteirista criador de uma série pode ser genuinamente fiel ao que foi criado
para ter o prazer de compartilhar essa criação com milhões de pessoas.
É claro que isso só vai acontecer se for um projeto benfeito, se tudo
der certo, incluindo nesse tudo encontrar algum executivo que perceba o
mundo maravilhoso que o roteirista está oferecendo.
Depois que conquistar seu lugar num canal, sujeito a todas as
especificidades do formato, a maior preocupação do roteirista é a fidelidade
ao mundo, à narrativa.
Numa série de espionagem, se o espião encarregado de matar o
número 1 do inimigo não consegue da primeira vez e para se manter vivo
precisa fingir que se bandeou para o lado de lá, quais são as opções do
roteirista no próximo ato?
Colocar os personagens que o mandaram matar o inimigo
abandonando-o para morrer é a primeira opção.
O que fará, então, o principal aliado do perseguido? Tentará ajudá-lo
a fugir. Especialmente, se houver vínculos de afeto ou de honra entre o
aliado e o espião que vai ser abandonado à própria sorte.
Se o perseguido for um herói relutante, alguém que resistiu muito
em aceitar esse papel e tiver muito a perder com a fuga (mais sofrimento,
mais descrédito, para dar dois exemplos comuns a qualquer ser humano)
existe chance de ele relutar em aceitar o auxílio.
É mais difícil escolher a melhor saída para personagens relutantes.
Para os impulsivos ou decididos é sempre mais fácil. Relutantes têm
dúvidas demais. O roteirista precisa ser fiel ao personagem e às suas
características. Cada ação e cada fala precisam ser coerentes com o perfil do
personagem e com as necessidades da trama.
O aliado do espião em desgraça pode aceitar a derrota, pode fazer
algum movimento de resgate a qualquer custo ou pode esperar...
Na terceira temporada de Homeland , Carrie, com diagnóstico de
bipolaridade, não permite que seu desequilíbrio, porventura maior do que o
dos outros, destrua a missão. Essa coerência que não se encontra na vida, se
encontra na ficção, e esse é o charme irresistível da narrativa.
Essas observações não são válidas apenas para séries. A literatura é
uma enciclopédia desses exemplos.
A Ilíada é uma epopeia com 12 cantos ou capítulos, se usarmos uma
categoria equivalente no romance. No final dela, morre Heitor, o domador
de cavalos. Por quê? Porque é inevitável sua morte. A epopeia precisa dessa
morte para seguir adiante. É essa conclusão que possibilita que outra
epopeia suceda à Ilíada . Porque Troia perdeu seu herói, mas conserva seu
muro. O que fazer para entrar em Troia? Quem fará? É assim que surge a
Odisseia , a saga de Ulisses, o inventor do presente dos gregos.
Um problema do formato de série, no Brasil, é a nossa dificuldade
cultural de abandonar o pensamento único em casos que envolvem, por
exemplo, questões trabalhistas, políticas ou policiais. Somos passionais e
tendemos a assumir só um lado de pensamento. Talvez seja uma tendência
humana, mas séries precisam do que chamo de “especulação narrativa”.
Ficar preso à ideia de que bons professores de química não matariam
imigrantes mexicanos que apenas tentam sobreviver com o tráfico de
metanfetamina, e que os imigrantes são cruéis com professores porque a
vida lhes tratou com injustiça não dá série. Pode dar uma tese sociológica
sobre o impacto da sociedade de consumo sobre o coração e a mente de
imigrantes latino-americanos nos EUA, mas nunca séries como Breaking
Bad .
O importante é saber marcar de forma linear todas as etapas do que
acontece cronologicamente e, no processo de decisões autorais
(“Levantando sua própria série”), resolver como essas etapas serão
apresentadas ao espectador.
Como a história será contada dependerá de escolhas de estratégias
narrativas. Nosso próximo assunto. Não perca.

ESTRATÉGIAS NARRATIVAS
EM SÉRIES DRAMÁTICAS

O que é escrever uma narrativa de ficção televisiva?


É selecionar e combinar elementos da realidade para que o
espectador possa se identificar, de alguma forma, com a trama. Essa
identificação do que é conhecido abre caminho para uma surpresa com o
que é desconhecido: a maneira como o autor conta a história. É o encontro
entre conhecido e inesperado que produz o efeito desejado, no caso de
séries dramáticas, pelo roteirista.
Na seleção, o roteirista elenca eventos não fortuitos, eventos
significativos que fazem a narrativa ir para a frente, que provoquem
mudanças.
A seleção dos eventos a serem incluídos na narrativa é
completamente diferente da seleção que um escritor faz para um texto
literário.
Principalmente porque os eventos estão sendo mostrados, mas
também porque o espectador tem o controle remoto na mão e as distrações
do cotidiano a sua volta. A seleção tem que ser competente e mostrada de
forma atraente.
Estratégias narrativas são as maneiras encontradas por um roteirista
para permitir que os recursos à disposição no formato contem a sua história.
A primeira estratégia está relacionada a como vai ser contada a
trama, em que ordem serão apresentados os eventos e personagens. Há uma
grande diferença entre a ordem dos acontecimentos na história ― Olivia
conheceu Fitz, Fitz conheceu Amanda ― e a ordem em que os
acontecimentos são mostrados. Essa é uma diferença conceitual entre
história (sempre linear) e enredo (que depende do tipo de narrativa).
Na ordem em que os acontecimentos são mostrados, em Homeland ,
quando Carrie recebe o aviso que um espião será infiltrado, o candidato a
espião já está sendo preparado.
A escolha do tipo de narrativa que funcione melhor é decisivo para
que uma série encontre seu público. De que maneira a narrativa vai ser
apresentada ao espectador?
Em primeiro lugar, vamos examinar o ponto de vista em que a
narrativa é contada. Existe o mais evidente que é o que corresponde ao que
o narrador/câmera mostra. “Ah ― dirá quem lê este livro ― isso é óbvio.”
Pode ser, mas o óbvio nem sempre faz parte das características inatas do
roteirista e é preciso aprender a distingui-lo.
O narrador/câmera mostra vários eventos que demonstram o que
Olivia Pope sabe sobre o passado dos pais. Do ponto de vista de um
narrador que conta/mostra — em geral, do ponto de vista de Olivia e sua
trupe —, o espectador acha que está lidando com uma narrador quase
onisciente que mostra o que ocorre nos principais núcleos da trama. O
espectador está se enganando e, se for um roteirista, está deixando de
aprender uma coisa superimportante. O ponto de vista pelo qual uma
história é narrada é tão passível de pistas plantadas como a memória de
qualquer pessoa.
Isso é válido para o passado de Olivia, em Scandal , para o passado
de Sarah, em Orphan Black e para o transtorno bipolar de humor de Carrie,
em Homeland . E quem faz isso nas séries? O showrunner e a sala de
roteiristas.
Pontos de vista também se alternam para apresentar verdades
conflitantes. É o caso de Ray versus Mickey na série Ray Donovan . Podem
também intensificar o conflito entre mundos que acabam levando conflito a
protagonistas que são adversários, como na série The Bridge . Aparece o
mundo e a lógica em El Paso e o mundo e a lógica em Ciudad Juárez.
Ponto de vista pode ser claro e linear para o narrador e o espectador,
mas misterioso e conflitante para os personagens. É o caso da queda de
Bran em Game of Thrones . O narrador/câmera já mostrou como aconteceu,
o espectador sabe, mas os personagens não. Isso vai trazer consequências
que vão se estender por três temporadas.
A narrativa, independentemente do ponto de vista pelo qual está
sendo contada , pode ser:
Linear, como tende a ser em Law & Order , The Mentalist ,
Homeland e The Blacklist . A linearidade em séries policiais, de
espionagem, é compreensível. Já existe um suspense permanente, um
quebra-cabeça de fatos, uma lista de caminhos possíveis para desvendar o
mistério principal e os secundários. Além disso, o roteirista ainda vai querer
adicionar dificuldades à compreensão da trama? Não devemos, no entanto,
confundir linearidade com passo a passo. Qualquer narrativa de ficção
pressupõe cortar movimentos desnecessários que se tornam tediosos
porque, entre outras coisas, podem ser pressupostos pelo espectador. A
narrativa linear apenas coloca os acontecimentos mais importantes na
ordem que interessa à elucidação do caso, como em House , ou do crime,
em The Mentalist .
Narrativa de encaixe ocorre, por exemplo, em Treme . Esta é uma
série de exceção. Traça um painel de Nova Orleans, especialmente do bairro
Treme, depois do Katrina. A cidade está devastada, o mundo está
devastado. Funciona um pouco como uma narrativa de Dickens. E como
funciona... Imperdível para se aprender a escrever assim um dia.
A narrativa de alternância , em geral, mantém a linearidade, as
histórias, os eventos estão acontecendo em paralelo, mas são mostrados de
forma alternada. É o que ocorre na maioria das séries. O promotor colhe as
digitais da pessoa suspeita, corta para o que a aliada da pessoa suspeita está
fazendo naquele momento, cuidando de outro caso, volta para o promotor
apresentando a comprovação das digitais para todos. Muitos episódios de
Scandal usam a alternância.
Quanto mais linear a narrativa, menor a tendência do espectador
para apertar o botão de zapear no controle remoto. Ser muito criativo
mantendo a linearidade é uma proeza em roteiro de séries.
Les Revenants , a série francesa, é um grande exemplo de como
embaralhar o linear. Os que voltam, voltam linearmente, mas suas histórias
aconteceram em épocas diferentes. Quando o espectador descobre isso, é
tarde demais. Já está fisgado .
Narrativa em árvore é aquela em que os ramos saem da trama
principal, como em Game of Thrones : a típica narrativa em árvore que
funciona com apresentação alternada. Um por um, os dramas de poder são
apresentados.
Como isso pode dificultar o acompanhamento da série, os roteiristas
usam, fartamente, outras estratégias que facilitem o entendimento.
Narrativa em labirinto é a que embaralha os tempos e as histórias
obrigando o espectador a usar um fio de Ariadne para acompanhá-la. O
teaser está num tempo, o primeiro ato em outro, o terceiro é um flashback .
Suspense e ação o tempo todo. É preciso ser muito bom roteirista para
escrever série em labirinto, com a narrativa sendo apresentada assim. É
fácil, mesmo sendo bom roteirista, fracassar na tentativa.
Narrativa em espiral . É muito importante que se observe, na
poética das séries dramáticas, que é possível combinar vários tipos de
narrativa. Em Game of Thrones , a narrativa é, predominantemente, em
árvore ou de gaveta, também chamada de encaixe. Aparece um reino,
aparece o outro e assim por diante. No episódio de Bram, porém, a narrativa
é em espiral. A trama se aproxima da queda; dezenas de eventos,
relacionados ou não, acontecem e, depois, tudo volta a se aproximar da
queda, do punhal, do sonho com o corvo...
The Wire ― também de David Simon, de Treme ― tem como traço
distintivo a narrativa em espiral. A trama se aproxima do mundo da droga,
se afasta, vai para o mundo da lei, volta para um episódio aparentemente
insignificante, o do dinheiro falso, vai de novo para a vida sem glamour dos
policiais, volta para o mundo da droga.
Narrativa em contraponto é uma categoria da literatura mais fácil
de identificar em séries quando verdades dos personagens vão sendo
confrontadas no decorrer da temporada, ou no decorrer de uma história B
ou C.

Esses são os tipos de narrativas mais frequentes em séries. A


primeira decisão estratégica num roteiro é definir como o enredo vai ser
mostrado, em que tipo de narrativa.
Pode ser que um showrunner experiente, como um romancista
experiente, não pense, não racionalize que está tomando essa decisão
quando começa a levantar a série. Em algum momento, porém, qualquer um
dos dois vai responder a essa pergunta para si mesmo. O repertório de
outras narrativas, suas ou de autores que conhece, estará lá, à disposição,
para ele fazer sua escolha.
As outras estratégias narrativas dizem respeito a como serão
apresentados eventos e personagens; como são criados os suspenses; como
dar estilo e ritmo à história que está sendo contada. Listei alguns que podem
ajudar você a escrever seu próprio projeto. Aqui não estarão todos; fique à
vontade para ampliar a minha lista. Assim se forma um roteirista.
Interromper cena ou sequência . Isso parece um recurso de edição,
mas é uma estratégia narrativa: interrompe-se uma história num
determinado ponto, conta-se um pedaço de outra e, depois, volta-se ao
ponto em que se parou. É como a brincadeira de “congelar” em que se puxa
alguém e esse alguém precisa ficar parado. Trata-se de uma herança da
narrativa em gaveta do romance de folhetim e não de uma invenção dos
roteiristas de série.
Em Homeland , dois espiões estão numa casa segura; corta para uma
conversa na sede da CIA e volta para os espiões no mesmo lugar, às vezes
continuando a conversa. Mas é a primeira cena, inacabada.
Entrevistas “reais”. Esta é uma estratégia arriscadíssima. Trata-se
de entrevistar um (ou mais) personagens que contam uma parte da história,
em geral em tempos diferentes. Essa estratégia dá um “tom” de
documentário ou “docudrama” à ficção dramática. Já foi usada amplamente
em literatura, eu mesma já usei num romance. Apesar do risco, funciona
como principal fio narrativo, e é usada com extraordinária competência na
série True Detective .
Marcar de forma ostensiva conjuntos de personagens é uma
estratégia narrativa em Downton Abbey .
São os criados que dão rapidez à série que, fosse outra a estratégia
narrativa, seria lenta demais para a TV e muito sem interação com o mundo
atual.
Os criados da mansão inglesa ― além de suas trajetórias e de suas
histórias ― têm um papel importante na trama principal, a surgida da story
line . Comentam o que acontece, repercutem os acontecimentos, funcionam
como um autêntico “coro”. Ao comentarem os acontecimentos da trama
principal, os criados garantem a interação entre a nossa época ― na qual é
difícil arranjar até uma diarista para limpar a casa, quanto mais um batalhão
de criados ― e o início do século XX.
Marcar conjuntos de personagens também é uma estratégia narrativa
importante em séries para a juventude, séries teen , como East Los High e
Twisted . O cenário e a temática definem a categoria, mas os grupos são
muito marcados. Os grupos comuns à high school estão lá. Os nerds , as
líderes de torcida, o capitão de time e seu séquito.
Narrador. Usar ou não usar a função do narrador é uma estratégia
narrativa. O narrador não é um recurso do gênero audiovisual, mas, em
filmes, às vezes funciona bem; outras, não. Em séries, aparece menos.
Twisted tem um capítulo inteiro com narrador revisando pistas.
Personagem comentador são aqueles que têm função similar ao
coro grego ou ao personagem “escada” no teatro elisabetano. Algumas
séries usam a figura do psicólogo para fazer igualzinho ao coro grego. Um
exemplo é a psicóloga que atendeu Janice, filha de Lívia Soprano. Era uma
personagem quase incidental, que chamava Deus de “ she ” (ela), o que
talvez fizesse dela uma feminista mais firme, não sei. Ela estava ali para
comentar a vida que Janice estava levando e sua pequena participação teve
efeitos radicais. Séries usam o comentário com muita parcimônia, a não ser
que se trate de um psicanalista com arco próprio como é o caso de Sessão
de Terapia .
Paralelas não concluídas . Deixar no ar a conclusão de uma
história, sequência ou episódio é uma estratégia deliberada. Não devemos
confundir essa estratégia com alternância de apresentação de história A, B,
C. Estou me referindo à estratégia de não concluir algo e só retomar isso
cinco episódios depois. É o que acontece com o conjunto de personagens
“os Outros” em Game of Thrones .
Ganchos de uma etapa narrativa para outra — o que significa o
mesmo que de um ato para outro — não são obrigatórios, apesar de ser uma
estratégia muito usada. Representam, na verdade, uma escolha estética de
quem escreve.
O mesmo se dá com ganchos no final de um episódio. Podem ser
usados ou não.
Emoção silenciosa no final de um episódio, algo que chega a ser
tênue, mas é um beat . Isso pode ser eventual, como no episódio de Scandal
em que Liv experimenta o chapéu branco, numa comemoração silenciosa,
ou pode ser a marca de um estilo.
Quebra da quarta parede. Esse termo vem do teatro, no qual os
atores agem e falam como personagens no palco, como se não houvesse
outras pessoas na plateia. É a quarta parede imaginária que separa os dois
espaços.
O personagem, geralmente o protagonista, falar diretamente para a
câmera é uma estratégia narrativa rara na TV. No cinema, Woody Allen já
fez isso várias vezes.
Na literatura seriada, então, o narrador dirigir-se diretamente ao
leitor é estratégia usada, com frequência, incluindo-se aí a literatura de
folhetinistas brasileiros como Machado de Assis e José de Alencar.
Imagens mais ou menos claras, mais ou menos “sujas” é uma
estratégia narrativa que busca provocar determinada emoção. A imagem
pode ser determinada por luz e câmera, mas também pode ser indicada por
maquiagem, figurino, composição física dos personagens. O roteiro indicará
o tipo de entrada ou a mudança.
Na série Enlightened , o rosto transtornado, a maquiagem borrada da
protagonista é uma estratégia de já entrar em cena com o desastre
acontecendo.
Em Twisted , isso está marcado nas transformações das crianças. Do
cabelo eriçado de Lacey, aos 11 anos, para o cabelo alisado aos 16. Nessa
série, a imagem é o que dá, imediatamente, a noção da mudança física e da
psicologia da personagem.
Cores. Usar imagens muito escuras, dando a ilusão de preto e
branco para umas sequencias, e luz e colorido forte para outras, como em
Les Revenants , também é uma estratégia narrativa. Na série francesa são
usadas para marcar passagem de tempo; para estabelecer diferenças entre o
que foi e o que está sendo.
Linguagem mais crua é estratégia para aproximar ou para chocar o
espectador. Pelo fascínio, claro, pois ninguém deseja que o espectador
troque de canal.
Falas curtas, de no máximo três linhas, é uma estratégia importante
para diálogos nas séries.
Nelson Rodrigues disse que os críticos achavam seus diálogos
pobres, sem imaginar o trabalho que lhe dava torná-los pobres. É uma
observação importante de um escritor que escreveu diálogos para vários
meios, incluindo TV. As falas curtas, o diálogo “pobre”, são sinônimo de
diálogo sem tese, sem pensata , sem pretensão de querer substituir ações,
emoções por palavreado. Nesse sentido, Sessão de Terapia é uma das coisas
mais difíceis de fazer. Porque o diálogo tem que evocar uma história que
não vai ser mostrada se desenrolando, os acontecimentos são evocados.
Fazer diálogos de divã não é fácil.
Reunião de personagens no trabalho como forma de apresentar o
mundo inconfundível ou partes de um caso ou história. Scandal , Ray
Donovan , The Blacklist usam essa estratégia, em geral na etapa inicial.
Anamnese ou discussão de caso como estratégia narrativa é algo
comum em séries de especialistas como House , Law & Order , Body of
Proof , Scandal , The Blacklist .
Cabeças falantes é uma variante da estratégia de discussão de caso.
É quando um personagem começa a contar a história para outro personagem
que acrescenta detalhes para que o espectador entenda tudo, sem que nem
um nem outro precise agir.
Uso essa expressão porque li em Syd Field ― antes da chamada
época de ouro da televisão em que vivemos neste início do século XXI ―
que o cinema era mais arte porque os programas de TV eram de “cabeças
falantes”. Assistindo a CSI ou Law & Order , hoje, tenho por vezes essa
impressão. É uma estratégia que só deve ser usada se for indispensável, e
com parcimônia, em qualquer veículo ou formato audiovisual. Personagens
precisam agir.
Flashback . O flashback , assim como o uso de narrador, não é
exatamente a estratégia de eleição em uma obra audiovisual ou no gênero
dramático em geral. As escolhas autorais deixam de ser, no entanto,
subordinadas à poética do formato quando se trata de um imperativo da
narrativa.
Em Masters of Sex , o flashback é usado com muito cuidado, para
esclarecer comportamentos de personagens ― como o afastamento que o
William Masters adulto mantém da mãe que aumentava o volume do rádio
para não ter que ouvir os pedidos de socorro do filho. Nessa série, o
flashback é praticamente um insert dentro de outra cena; a condição de se
estar sonhando acordado, como costumam ser nossas recordações,
agradáveis ou desagradáveis, no decorrer do dia.
No caso de Masters of Sex, as informações distribuídas em pitadas
no presente da trama ajudam a compreender os personagens. Aí o flashback
se justifica no audiovisual porque o movimento da mãe, quando jovem,
diminuindo o volume do rádio, fica muito mais poderoso na imagem do que
seria no papel.
Lembro-me de uma roteirista que fez uma de minhas oficinas e
abriu um primeiro episódio com um flashback para esclarecer uma história
do passado do personagem. É proibido fazer isso? Não. Mas a tendência é
que muitos espectadores apertem o botão do controle remoto e mudem de
canal.
No caso da roteirista em questão, muito boa escritora, por sinal, a
proposta de série era sobre uma policial em Nova York. No primeiro
episódio, aparece um longo flashback sobre uma adolescente e seu padrasto
pedófilo vivendo em Bombaim. O espectador não entende aonde aquilo vai
dar, aperta o botão e se despede. Talvez para sempre.
“Ah”, disse a roteirista, “mas Família Soprano começa com um
flashback ”.
Um só? Não, vários. No primeiro episódio dessa série, Tony conta
para sua nova terapeuta o estressante dia em que desmaiou e aparecem, em
flashback , as situações reais que não correspondem exatamente ao que ele
conta. O recurso de voice over está ilustrando a dicotomia entre o que
realmente aconteceu e o que ele está disposto a revelar para a desconhecida.
Este é um grande exemplo do bom uso das duas estratégias narrativas
tomadas de empréstimo à literatura: o narrador e o flashback .
Flash forward é uma expressão pela qual tenho alguma antipatia;
irracional, admito. É a estratégia de apresentar primeiro o futuro e voltar
para quando as coisas começaram. Um pouco o que Sófocles fez em Édipo
Rei , no século V a.C. A peça se abre com Édipo sendo comunicado da ira
dos deuses contra Tebas porque a cidade abriga um regicida e, na Decisão,
ele descobre que é o próprio. “Ah”, dirá o leitor que chegou até aqui, “mas
isso é contado”. É verdade. No entanto, precisamos considerar que todas as
histórias são contadas. No gênero dramático, as histórias são contadas por
ações e falas dos personagens. Édipo Rei é drama trágico, encenado.
Diferente das séries que são drama encenado, gravado, editado.
Édipo Rei começa no futuro e vai reconstruindo o passado porque
não existia tecnologia que permitisse a Sófocles filmar primeiro a acareação
entre o camponês que entregou o bebê, filho de Laio, e o criado dos reis de
Corinto que o adotaram, para depois gravar Édipo amaldiçoando a si
mesmo. Caso existisse câmera, na época, e equipamento de edição, a peça
poderia se abrir com Jocasta pedindo a Édipo que deixasse de lado a
investigação. Ou com Tirésias, o adivinho cego, dizendo a frase: “Como é
triste o dom da sabedoria quando não serve a quem o tem.”
Hoje, existe tecnologia suficiente para contar primeiro o que
aconteceu na frente e, depois, voltar ao início. Isso foi feito em Breaking
Bad e, mais tarde, na minissérie brasileira A Teia .
A minha antipatia irracional não deve portanto ser levada em conta
por você que está lendo. Ela se deve, provavelmente, ao fato de
apresentarem como nova uma estratégia que tem, pelo menos, 25 séculos.
Apresentação fixa de parte do mundo do protagonista. Scandal
tem isso, House of Cards também e Família Soprano idem. Talvez a mais
impactante, ou a “estratégia narrativa” mais autêntica, seja a desta última.
Ali existe uma apresentação do personagem e de seu mundo inconfundível
que vai percorrer toda a série. Como escreveu Brett Martin, “Boa notícia:
existe luz no final do túnel. Má notícia: isso é Nova Jersey!”. A
apresentação fixa é importante porque reitera que o homem difícil fuma
charuto dirigindo, entra e sai do túnel, ao som do bordão Got yourself a gun
e vai até um condomínio de luxo depois de atravessar seus domínios em
Nova Jersey. Essa é sua rotina. A apresentação fixa está ali para mostrar
isso.
No primeiro episódio, a apresentação de Tony vai contrastar com
seu constrangimento e sua vulnerabilidade na sala de espera da psiquiatra.
As três estratégias narrativas — flashback , voz do narrador por fora
das cenas passadas — compõem um efeito irônico em Família Soprano .
Para isso servem a seleção e a combinação de eventos e estratégias:
provocar o efeito desejado por quem escreve.
Reverter expectativas é uma estratégia narrativa muito utilizada
em Homeland , como aliás em outros dramas na categoria policial.
Dois episódios, na terceira temporada, mostram Carrie, a
protagonista, e Saul, seu mentor e chefe, como adversários, quase inimigos.
Depois se descobre que a história não é bem assim.
Confirmar expectativas , por outro lado, é algo usado o tempo todo
em Downton Abbey, do ponto de vista das trilhas dos personagens. A
quebra de expectativa é provocada pelo mundo exterior.
É também, de certa forma, o que ocorre em Grey’s Anatomy . Os
personagens são consistentes, coerentes, heroicos porque o oponente é a
Morte, imprevisível e traiçoeira. É a morte que está ali desafiando os
melhores esforços deles, o tempo todo. Deslizes morais, quando ocorrem,
ocorrem nas relações pessoais, amorosas, preferencialmente.
Intensificação de emoções. Este é um dos segredos de uma boa
série dramática. Nesse sentido, o item Emoções de software de roteiros é
muito importante, porque você pode colocar do lado do nome do
personagem Fitz “apaixonado por Olive”, e o programa marcará para você
as cenas em que isso deve aparecer.
Teasers . O teaser não é etapa da narrativa, mas é frequentemente
usado como estratégia narrativa. É o caso de alguns episódios da primeira
temporada de House of Cards , quando, já nos minutos iniciais, aparece
uma situação carregada de significado. Isso ocorre no primeiro episódio,
com a sequência do cachorro, e se reproduz em vários outros. Nessa série, o
teaser parece ser usado exclusivamente para mostrar as imagens marcantes
da capital dos Estados Unidos, do centro do poder. Só que isso não acontece
em todos os episódios. O uso do teaser se revela então uma estratégia
narrativa eventual.
No sexto episódio da segunda temporada de Scandal , a trama
principal também é anunciada no teaser . Já falei aqui do exemplo de
Breaking Bad , em que o teaser traz um momento decisivo do quarto ato.
Algumas séries usam essa estratégia com tanta frequência que ela vira
quase uma apresentação fixa. O teaser pode ser também uma marca de
estilo, mas quando existe, é estratégico.
Matar personagens é uma estratégia que precisa estar muito bem-
combinada na equipe de roteiristas e depende de a bíblia da série comportar
a morte em questão. Existem motivos mais prosaicos para se matar um
personagem, claro. O desejo do ator/atriz em sair da série ou o desejo de
“saí-lo” da série.
Em Les Revenants , uma personagem que, viva, promete uma boa
história é esfaqueada quase no final do primeiro episódio. Ela vai se tornar
mais um dos mortos que voltam? Qual o sistema de escolha dos mortos que
voltam? Quem decide quem volta e quem não volta? Isso nos remete à
próxima estratégia narrativa, essencial em obras seriadas, mas comum a
toda obra audiovisual.
Deixar no ar perguntas é uma das coisas que mantém o espectador
preso a uma série dramática. São as perguntas que ainda não foram
respondidas que alimentam a necessidade de respostas.
Numa série de suspense, a estratégia mais importante é deixar no ar
perguntas de uma etapa da narrativa para outra.
Em The Bridge , a construção dos personagens protagonistas ― um
homem supernormal e uma mulher que age como um autômato ― vai
fortalecer a principal estratégia dessa série, que é a de deixar perguntas sem
respostas imediatas.
A terceira é sugerir problemas, encrencas, pequenas explosões na
vida de personagens secundários.
A quarta, decorrente das duas primeiras, é montar um quebra-cabeça
tão intricado que a única maneira de o espectador sobreviver à curiosidade é
assistir até o 13 º episódio, a sessão final.
No teaser , as luzes da ponte entre Ciudad Juárez, no México, e El
Paso, nos EUA se apagam. Quem as apagou?
Quais os interesses do capitão a quem Marco Ruiz precisa pedir
permissão para investigar o primeiro assassinato duplo?
A mulher que aparece como história B matou o marido? Ou é uma
viúva inocente?
O que são as Casas de Mortes?
Mesmo em séries em que a marca de estilo não é o gancho pelo
gancho, não é o suspense direto, são as perguntas não respondidas que
mantêm a tensão.
Em Treme , já no primeiro episódio, ficam no ar as perguntas: o
irmão de LaDonna vai aparecer ou não? O chefe vai conseguir participar do
Mardi Gras ? As denúncias de Creighton de que a inundação foi por falha
humana são verdadeiras? Caso sejam verdadeiras, como reagirão os
denunciados? Delmond vai apoiar o pai? Em que medida e até quando?
Jannete vai conseguir manter o restaurante naquelas condições
precárias? Como Antoinette vai interagir com os policiais locais depois de
suas descobertas sobre Daymo?
Em Masters of Sex , como Bill vai guardar seus segredos e como sua
mulher vai reagir à revelação deles? Aliás, dependendo da primeira
resposta, talvez ela nem venha saber, pensa o espectador no final do
segundo episódio. A resposta vai levar a série para um caminho diferente e
influenciar a vida dos personagens principais no restante da primeira
temporada e, provavelmente, também na segunda.
Em The Blacklist , qual é a história do marido de Elizabeth? Essa
pergunta é plantada no primeiro episódio e, no 14 o , ainda não sabemos a
resposta com todas as suas implicações.
Acontece nas séries o que acontece na vida, só que na vida, não
percebemos claramente e, em geral, não percebemos na hora: é o fenômeno
do “se” e do “então”. Se a mulher de Scully souber, então ela reagirá dessa
forma... A resposta está no perfil da personagem. Para reagir de uma forma
ou de outra, o perfil indicará o que é mais provável, mais autêntico.
Quando a mulher de Francis Underwood volta para casa, em House
of Cards , para estar ao seu lado na declaração à imprensa, isso pode ter
sido definindo na bíblia da série ou ter saído de uma discussão na sala de
roteiristas: que ação é mais adequada para ser realizada pelo personagem; o
que é o mais adequado ao seu perfil? Ou o que interessa mais à equipe para
seguir adiante?
Em qualquer hipótese ― definido na bíblia ou percebido como uma
necessidade de trama ―, perguntas no ar são uma estratégia narrativa
fundamental. É o que torna indispensável assistir à próxima sequência, ao
próximo ato, ao próximo episódio. As perguntas e a velocidade em que são
respondidas são o que mantém o ritmo da série.
Responder a todas as perguntas levantadas no ato, no episódio,
na temporada. Essa estratégia torna a série mais compreensível para o
espectador. Menos angústia. Menos suspense. Menos vício. É uma decisão
autoral, claro, nem boa, nem má, mas relacionada ao chamado DNA do
projeto.
De novo, o paralelo com a vida. Existem pessoas que buscam não
deixar margens a dúvidas e existem pessoas que fazem mistério sobre o que
comeram no café da manhã. Existem situações mais claras, mais simples, e
situações mais obscuras e mais difíceis. Para qualquer grupo de pessoas ou
situações existem os que apreciam tal coisa, os que se identificam com
aquilo ou se projetam naquilo.
Em geral, séries de especialistas, que tratam um caso a cada
episódio, precisam responder às perguntas levantadas. Nesse caso estão
Body of Proof e Person of Interest , entre outras.
Ritmo de uma série é como o ritmo do coração, em situação estável
de saúde e de movimento, nunca de repouso ou doença. Ou seja, o ritmo é
estrutural e equilibrado, não uma coisa desconexa, arbitrária ou
incontrolável.
Ritmo é dado pela maneira como a trama é apresentada e como as
perguntas plantadas na narrativa são respondidas ou não.
Tendo a achar que o ritmo ou pulso de uma narrativa é algo que o
criador e roteirista líder de uma série (na falta de melhor tradução para
showrunner ) precisa definir antes de o primeiro episódio ir ao ar para que
seu projeto dê certo.
O ideal seria que acontecesse assim. Mas não é necessariamente o
que ocorre. Veremos de novo a questão do ritmo em “engenharia reversa”,
“formato de série” e “levantando sua própria série”. O ritmo é uma questão
fundamental em termos de estratégias narrativas.
Controle da ansiedade autoral , paciência, desapego, falta de
pressa qualquer que seja o nome que se queira dar: existe uma estratégia
narrativa essencial que é a do roteirista ter controle da ansiedade autoral. Às
vezes, isso significa não ter pressa. Não ter pressa para entregar segredos
que só devem aparecer no quinto ato de cada episódio numa série de trama
fechada. Não ter pressa de resolver conflitos que podem durar até a quarta
temporada da série como é o caso da trajetória de Dinares, em Game of
Thrones . Às vezes, porém, essa estratégia significa ter agilidade e deixar de
lado eventos, falas que atrasam a narrativa. No roteiro, como no amor, é
preciso ter desapego às convicções, ao predefinido, para colocar,
pacientemente, todos os elementos criativos a favor da emoção e do ritmo.
Fantasias, sonhos no lugar de ações reais. Soa incoerente dizer
ações reais numa narrativa de ficção, mas poucas coisas são tão realistas
numa narrativa quanto fantasias, devaneios, sonhar acordado.
Quando vive um diálogo com Virginia Johnson, enquanto o mundo
real continua correndo fora da ilha momentânea que ele criou, William
Masters está simplesmente fazendo o que nós fazemos no dia a dia. Isso
funciona bem, nas séries e na vida, se for usado com cuidado.
Dialogismo é também uma estratégia narrativa. Esse termo está aqui
tomado de empréstimo a Bakhtin. Tem a ver com pensata, mas é também
uma estratégia de provocar a Verdade, com V maiúsculo. A reversão de
expectativas tem, frequentemente, o efeito de promover o diálogo entre
várias verdades.
Séries de espionagem ou policiais podem ser mais ou menos
dialógicas. Eu diria que Blue Bloods e Law & Order estabelecem um
diálogo menor com as fraquezas da corporação policial do que The Wire .
Homeland é mais dialógica do que Scandal e em Família Soprano o
dialogismo é grande porque os mafiosos vivem em crise de identidade.
Downton Abbey exerce um diálogo intenso com a história
exatamente por ser uma série de época. Os donos da mansão são pessoas
legais, mas, pelo contexto histórico, a mansão depende de dezenas de
criados.
A construção dos personagens também pode ser mais ou menos
dialógica. Ainda em Downton Abbey , a condessa viúva é
megaconservadora, porém surpreende por sua sensatez quase transgressora
na cena em que discute a perda da virgindade da neta ou a torta feita pela
ex-prostituta.
Não se pode confundir personagens com os papéis que
desempenham ou com a mudança em sua trajetória. Mickey Donovan é
racista de jogar pedras em negros. Um dia ele se apaixona por Claudete,
uma mulher da noite, uma dançarina negra. Fica louco por ela. Deixou de
ser racista? Provavelmente não.
Ele conversa com Ezra, um adversário, antagonista, o advogado que
convenceu ou estimulou o filho, Ray, a colocá-lo na cadeia e pergunta:
“Você já transou com uma negra?”. Ezra, que é judeu, responde: “Uma vez,
na convenção democrata, em 1968”.
Isso é diálogo com a cultura norte-americana. Segregacionismo
significa isso. Brancos não transavam com negras e quando transavam
guardavam a data.
Ray Donovan é um drama bastante dialógico porque a “verdade” de
cada personagem é o tempo todo contestada por seus próprios desejos ou
pelos desejos dos outros.
Nessa série, o diálogo entre verdades se dá, em alguns momentos,
pela narrativa em contraponto. Aparece Ray resolvendo os problemas de
todos, inclusive dos familiares que escondem dele dados importantes, e
Mickey Donovan dançando e fumando maconha com uma prostituta.
A série parte da premissa aceita culturalmente de que os irlandeses
são muito calorosos com a família. Isso traz uma consequência importante
para o roteiro.
Em determinado momento, Ray pede à esposa que não deixe o lobo
entrar. Em contraponto, Mickey aparece, é bem recebido e trata a todos com
ternura.

Roteiristas inexperientes em lidar com o diálogo, ou roteiristas com


simpatia por um ou por outro personagem, parariam por aí e o espectador
escolheria seu time. No entanto, estamos diante de um trabalho da
showrunner Ann Biderman que lida muito bem com temas espinhosos e
personagens idem. Por isso, a série mantém a tensão o tempo todo entre pai
e filho e suas contradições. A principal delas: Ray mandou o pai para a
cadeia, mas não é capaz de matá-lo, por mais que Mickey apronte.
Em outro momento, a enfermeira de Terry leva uma surra do
marido. Eles são classe média branca americana, não são como os
Donovan. Mas, como os irlandeses não batem em mulher, isso os
escandaliza, daí a reação dos irmãos.
O Ray chama o travesti pelo nome feminino, apesar de agir para
atrapalhar o negócio dela. Ray tem uma preocupação com ser justo. Faz
isso de forma meio torta, o que por si só já é diálogo.
Uma obra dialógica é aquela que contrapõe várias verdades de
maneira empática e não necessariamente simpática.
Na ficção, até a escolha do elenco possibilita o dialogismo.
Scandal mostra, segundo um roteirista disse em minha oficina, uma
negra “chapa branca”. Então essa é uma boa definição de obra em
monólogo: uma negra chapa branca, que estudou nas melhores escolas e
conhece as pessoas certas não é discriminada. Mas a terceira temporada vai
quebrar essa imagem, estabelecendo o diálogo com a impossibilidade de ela
se envolver com um branco poderoso.
Onde existe mais diálogo sobre pontos de vista, em Ray D onovan
ou Scandal ? Ou o dialogismo é na mesma proporção? Essa é uma
comparação importante, em relação aos roteiros alheios, que pode
contribuir muito para aprimorar o roteiro de quem está começando a
escrever séries dramáticas.
Fidelidade talvez seja muito mais que uma estratégia narrativa.
Talvez seja uma medida de competência no contar histórias. Quando Nelson
Rodrigues escreveu “A vida como ela é”, a coluna tinha uma retranca:
drama, tragédia, farsa, comédia. Ou seja, as histórias ali contadas poderiam
estar dentro de qualquer um dos quatro grandes gêneros ou o autor poderia
até misturá-los, mas as fronteiras estavam definidas. Quando se realiza um
projeto como o House of Cards americano, baseado numa minissérie
inglesa que por sua vez é inspirada em Macbeth de Shakespeare, é preciso
que se faça uma escolha de gênero. Macbeth é uma tragédia; House of
Cards é um drama trágico. Drama porque nossa época não suportaria uma
tragédia de verdade ou, mais provavelmente, porque a tragédia precisa
cumprir um tempo fechado como defendiam os gregos? Penso que é mais
pelo segundo motivo. Não dá para fazer dez temporadas de tragédia.
Família Soprano foi uma série com um fundo trágico que durou seis
temporadas. The Wire durou cinco e seu protagonista não era trágico, só o
mundo inconfundível no qual se movia.
A fidelidade às próprias escolhas e a combinação dos elementos e
estratégias da narrativa são essenciais para a coerência de qualquer obra,
mas, numa série dramática, a fidelidade precisa ser a maior que se consiga.

Alguns contestaram que Scandal , para citar um exemplo, começa


como um drama de especialista e, na quarta temporada, está se tornando
quase uma soap opera , narrativa da qual não tratarei aqui. Eu diria que
Scandal é fiel a sua story line acima de tudo: especialista negra, bem-
sucedida, que vive de administrar escândalos em Washington, precisa
administrar seu amor correspondido por presidente dos EUA, branco,
republicano, casado.
É difícil manter o foco nos escândalos alheios tendo um escândalo
desse tamanho no próprio quintal: a tendência é a história A, a de Liv,
tomar a maior parte das atenções.

Fidelidade extraordinária tem sido mantida na segunda temporada


de House of Cards . Francis Underwood e sua Lady Macbeth, Claire, estão
cada vez mais trágicos.

Personagens complementares Em Scandal , existem dois


personagens complementares que são Liv e Fitz. Em Downton Abbey ,
Mary e Mathew. Criar duplas complementares no trabalho e no amor é uma
estratégia infalível. No amor, então, nem se fala. É uma das versões do
conceito de alma gêmea, o pedaço que falta em nossa alma e que todo
mundo gostaria de encontrar. Ver na tela, não falha.
As estratégias para contar histórias numa série dramática são
diferentes das utilizadas para escrever literatura, teatro, cinema ou
narrativas jornalísticas. Por isso, é importante distinguir, no nosso próprio
acervo de estratégias narrativas, quais podem ser usadas em séries
dramáticas.
Adaptação é uma estratégia narrativa bastante estimulante para um
roteirista. Alguns diriam que é mais uma decisão narrativa ou um conjunto
de estratégias. Penso que adaptação é, no fundo, no fundo, uma estratégia
que showrunners e roteiristas de maneira geral usam para contar histórias
que consideram importantes.
Game of Thrones é adaptação de um livro; The Walking Dead é
adaptação de HQ; Under the Dome , Dead Zone e os filmes sobre Carrie
são adaptação e atualização do universo de horror de Stephen King.
Bates Motel é uma atualização de Psicose e The Sarah Connor
Chronicles é uma atualização de O Exterminador do Futuro .
A lista seria longa e o meu objetivo aqui não é esgotá-la porque isso
a busca do Google faz muito melhor. É só colocar “ TV shows inspired by
movies ”, “ shows inspired by books ”, que aparecem páginas e mais
páginas com levantamentos, críticas, comentários.
Meu objetivo é outro: discutir as diferenças com desdobramentos
aplicáveis, entre adaptação entre formatos, adaptação como atualização e
como transposição.
No século XIX, Charles e Mary Lamb adaptaram para prosa as
peças de Shakespeare para crianças, jovens, pessoas que não teriam, de
outra forma, a oportunidade de ler o Bardo com seu inglês arcaico e com
suas falas e rubricas. Eles fizeram, então, duas viagens: transpuseram o
texto teatral para a prosa e transpuseram do repertório adulto e elisabetano
para o repertório juvenil da época vitoriana.
Eu mesma tenho livros publicados pela editora Scipione que são
uma adaptação de A tempestade , de Shakespeare, e uma adaptação de
Medeia, de Eurípedes. Pela editora Saraiva tenho uma adaptação de
Antígona de Sófocles e de O Rei Lear , de Shakespeare, na coleção 3X3.
Adaptei de teatro para prosa literária, como os Lamb fizeram. Li todas as
adaptações deles, antes de fazer as minhas. Como eles, mantive
personagens, tramas, o máximo de diálogos que pude. Evitei suprimir, por
moralismo, falas nas quais os personagens de Eurípedes e Shakespeare
pegavam pesado contra outros personagens, mas devo ter aliviado em
algumas frases de cunho mais sexual. Minhas adaptações também eram
para jovens.
Atualização é diferente. Escrevi oito livros que podemos chamar de
novelas — mais extensas do que um conto, mais curtas do que um romance
— para uma coleção chamada Reconstruir. Nessa coleção, dedicada ao
público jovem, de um lado existe o reconto de um mito ou uma história
importante para determinada cultura e do outro uma atualização desse mito.
Na atualização, o compromisso de fidelidade com a obra que a
precede é muito menor do que na adaptação entre formatos. Na
transposição, a história é mantida, a temática permanece, mas a liberdade é
quase ilimitada. Só depende do que é contratado entre o autor, dono dos
originais, e o adaptador. Atualizações e transposições são formas de
adaptação muito comuns no universo de séries dramáticas.
Em Bates Motel foi criada uma trajetória para a mãe, uma biografia,
uma série de situações que poderiam ter acontecido. A mesma coisa ocorre
em Carrie’s Diaries e The Sarah Connor Chronicles . Nessas atualizações,
o espectador já sabe o final, ou o início da história.
No primeiro Exterminador , o mundo vai acabar e o líder da
resistência vai enviar um homem para salvar a mãe dele e fazê-lo existir. No
segundo, vai enviar outra máquina para salvar a mãe e a si mesmo. Existem,
porém, dezenas de perguntas que poderiam ser feitas entre um ponto e
outro.
Em Carrie’s Diaries usa-se a criativa oportunidade de mostrar como
foi a adolescência de uma nova-iorquina de sucesso ( Carrie Bradshaw)
antes de ela se tornar a estrela de Sex and the City .
O caminho de explorar o passado de protagonistas de sucesso é
muito inventivo. Pode-se fazer qualquer coisa a partir daí.
No cinema, outra Carrie, a estranha, já foi objeto de três adaptações
do livro original e as pessoas ainda assistem aos filmes. O espectador sabe,
ou ouviu dizer, que aquela menina infernizada por todos vai explodir a
escola, seus desafetos e alguns outros que entraram de gaiato no navio.
Além da esperança de que alguma coisa possa mudar o rumo da história,
existe também a curiosidade de saber por que as pessoas fazem o que
fazem.
A atualização lida com esses dois sentimentos humanos: a
curiosidade e o desejo de mudar a realidade. As pessoas querem saber como
foi que as coisas aconteceram, o que fez as coisas chegarem a esse ponto, e
gostariam de ter suas fichas apostadas no que “poderia ser diferente”.
A transposição de um contexto para outro, na escala em que vem
sendo feito pelas séries dramáticas, me parece que expande qualquer
adaptação já realizada anteriormente.
A não ser que consideremos a Eneida , de Virgílio, que transpõe a
Odisseia e a Ilíada , de Homero, como forma e cria uma trajetória futura
para Eneias, herói morto na Guerra de Troia. Podemos considerar também
A divina comédia, de Dante Alighieri, que retoma o Hades , de Virgílio, e
cria as bases do Inferno como os kardecistas (e boa parte da população
ocidental) o encaram hoje.
Tive a oportunidade de tomar “emprestados” vários personagens da
Eneida num romance policial chamado A rainha que atravessou o tempo .
Posso atestar que é fascinante transpor personagens e mundos de um autor
não só para outro formato, mas também para outros enredos.
Aliás, Ovídio, poeta romano, escreveu cartas de amor fictícias de
heroínas mitológicas, para seus amantes. Uma dessas mulheres foi Helena,
de Esparta e de Troia, escrevendo para Páris. Transpor personagens para
obras diversas é uma estratégia narrativa muito antiga. Tem, pelo menos, 26
séculos.
No contexto de séries dramáticas, porém, as obras estão sendo
adaptadas de forma muito peculiar. As séries exportadas ― o exemplo que
me parece mais forte é o das que são licenciadas por criadores israelenses
― seguem caminhos criativos bem interessantes.
Penso que o caso mais exemplar é a adaptação de Homeland .
Comparando as duas tramas, a da série original Hatufim e a americana,
identificamos que da original ficou a possibilidade de um prisioneiro de
guerra aderir ao seu captor. Isso e o conflito com fundamentalistas
islâmicos são os pontos de contato. O restante é transposição para o
universo de espionagem norte-americano.
Acredito que a terceira temporada brasileira de Sessão de Terapia
(também original israelense) pode nos trazer novidades interessantes.
Numa adaptação, o mais importante é definir o que está se
mantendo e o que se está abandonando. Caso a opção seja por manter o
mundo inconfundível (com todos os elementos importantes do enredo do
livro) e a story line , será inevitável ajustar a linguagem para tornar tudo
isso compreensível para outra época e, provavelmente, será necessário
tornar a trama mais dinâmica. Isso sem contar, no caso de adaptação para
audiovisual, que a trama precisar fluir através das ações e falas dos
personagens, sem o apoio poderoso do narrador com o qual conta a prosa
literária.

Destaco algumas das estratégias narrativas citadas da forma como


aparecem.
Em Masters of Sex , a apresentação das diferentes “verdades” das
questões científicas e comportamentais da época é o que fortalece o
“diálogo” entre elas na trama. Nada é demonizado, nem a “cura gay”, o que
torna mais odiosa ainda a discriminação contra os gays.
A apresentação das várias trajetórias de heróis, com altos e baixos, o
que humaniza todos.
Uso do flashback como cenas de sonhar acordado, o que não
interrompe a narrativa.
House of Cards é uma série que usa e abusa das estratégias
consolidadas na história da narrativa seriada. Quando essa história for
escrita, House of Cards , a versão norte-americana, aparecerá como um
marco. Aposto.
Essa série demonstra a importância de o roteirista líder dispor de um
repertório: porque é uma série shakespeariana; porque usa a estratégia
narrativa de quebrar a quarta parede. Já foi dito aqui como alguns diretores
de cinema — Spike Lee e Woody Allen, por exemplo — usaram essa
estratégia. Ela é arriscada, mas nesse caso, talvez por ser usada por Kevin
Spacey, funciona.
As pessoas, escritores profissionais ou bissextos, roteiristas ou não,
usam frequentemente a palavra metáfora como exemplo de criatividade.
Em minha experiência de escritora, posso dizer que as metáforas
mais significativas são escritas “sem querer”, brotam do inconsciente bem
abastecido por um repertório consistente. Francis Underwood devorando
costeletas enquanto a matéria no Washington Herald “devora” seus
oponentes é uma boa metáfora. Para se identificar depois que foi escrita.
O que provavelmente acontece numa série como House of Cards é
que um autor propõe uma escaleta; vários autores discutem essa escaleta, e
depois, o roteiro. É muito mais fácil “plantar” metáforas assim porque são
vários inconscientes bem treinados e bem abastecidos dando o ritmo que
torna essa série um marco.
Outra estratégia interessante da série são as frases de efeito de
Francis Underwood: “Tudo de que um mártir precisa é achar uma espada
para cair em cima”. O cinismo dele é muito interessante porque faz as
pessoas pararem para pensar e enxergar, nas atitudes das outras que as
cercam (dificilmente nas suas próprias, o que é uma pena), a propriedade
dos comentários de Francis.
Quando um protagonista é tão inteligente e lúcido quanto Francis,
por mais odiosas que sejam suas atitudes, acaba conquistando a empatia do
espectador quando não a simpatia relutante. O espectador que não seria
capaz de maltratar alguém entende que Francis está garantindo a ascensão
de Zoe e a impunidade de Russo. Eles não são inocentes. Além disso, no
final do primeiro episódio, aparece uma cena de segundos na qual a polícia
encontra o dono do carro que matou o cachorro. Francis é capaz de arranjar
tempo para fazer justiça a um cachorro!
A maior estratégia para a construção de personagem foi descrita por
Aristóteles e está presente em House of Cards : trata-se de um personagem
que não é totalmente bom, nem totalmente mau. Se fosse bom, não teria
contradições para se criar uma história. Com maldade absoluta, perderia a
chance de o espectador se identificar com ele.
Francis é um protagonista compreensível. Prometeram a ele um
cargo para o qual se preparou toda a vida. Traíram o prometido. Quem não
se vingaria se pudesse? O espectador não pode, mas Francis sim.
A versão americana de House of Cards é um exemplo magnífico do
quanto uma adaptação pode ultrapassar os limites criativos do original. A
esposa do congressista inglês é mais Lady Macbeth do que Claire, mas a
personagem americana tem nuances capazes de render um número maior de
tramas.
Essa série traz uma inovação importante para a época: o fato de um
canal online colocar toda a temporada no ar de uma vez só. Aqui não se
trata de estratégia narrativa e sim de modelo de negócio. Historicamente, a
narrativa seriada se tornava livro depois de ter sido publicada nos jornais e,
mais tarde, em revistas. Ou seja, primeiro o leitor lia O conde de Monte
Cristo no jornal, o que o obrigava a comprar o periódico todos os dias.
Depois comprava o livro para reler.
O folhetim Angélica, a Marquesa dos Anjos , foi publicado, no
Brasil, na revista Querida , em meados do século XX e só depois publicado
em livro.
Disponível em sequência direta, House of Cards abre mão do
gancho para o episódio seguinte. Foi uma manobra muito arriscada da
Netflix, mas deu certo. Inclusive porque os canais online deixam a série lá
para ser assistida por seus assinantes. Todas as séries. Não são reprises de
acordo com a grade da emissora. Não. A temporada está lá. Como uma das
características mais fortes das séries é favorecer o vício de quem assiste,
deixar a série toda à disposição de quem quiser vê-la é uma medida
simpática ao viciado, digo, ao espectador.
Essa inovação da Netflix demonstra que o principal numa série é a
criatividade com relação à estrutura narrativa, às estratégias narrativas, ao
formato narrativo. Dê ao público uma boa trama, bem amarrada, com
grandes personagens; conte bem a história e a série terá seu público.
Assistindo uma vez por semana, todos os dias, ou de uma vez só. Não é o
modelo de negócio ― divulgue em pedaços que o público comprará do
jeito que você quer ― que faz a narrativa seriada ter sucesso. O que faz a
narrativa seriada ter sucesso, desde o folhetim, é a divisão em pedaços, são
as perguntas lançadas para serem respondidas que obrigam o espectador a
assistir o episódio seguinte.
House of Cards provou isso.
A série canadense Orphan Black é um drama na categoria ficção
científica, não futurista, não catastrófica, não apocalíptica.
Nos três minutos do teaser ficamos sabendo quem é a protagonista,
que ela está sem grana e que é uma pessoa que pede desculpas para uma
desconhecida a quem incomoda com um “merda!” na frente da filha.
Sabemos, em seguida, que ela quer ver uma criança e alguém não quer
deixar. Sabemos tudo isso porque o roteiro usa um telefone público para nos
apresentar Sarah e para indicar elementos do seu objetivo principal: ver
Kira. Sabemos também que alguém não quer deixar e que ela não tem
dinheiro para outra ligação. Nesse momento, em sua frente, esperando o
trem para Nova York, uma mulher se mata, não sem antes encará-la e Sarah
descobrir que são idênticas.
O teaser é uma provocação mesmo, porque Sarah tem um sotaque
britânico. O espectador não sabe por que uma mulher com sotaque britânico
(ou canadense?) é igual a uma mulher bem vestida a caminho de Nova
York. As duas mulheres são iguais. O espectador não sabe por quê.
No primeiro ato somos apresentados a Felix e somos informados de
que ele e Sarah são muito ligados, têm um passado em comum, talvez sejam
órfãos. São irmãos? Só saberemos 15 minutos depois. Isso é estratégia
narrativa: não responder a todas as perguntas de uma vez.
Nos primeiros minutos ficamos sabendo que Sarah tem uma filha
que não vê há quase um ano e que tem cocaína que roubou com a intenção
de fugir, junto com a filha. Ou seja, roubo, tráfico, rapto não são problemas
para ela. A música que a acompanha, aliás, também nos informa isso.
A story line de Orphan Black estará clara no final do primeiro
episódio.
Mulher jovem, delinquente e órfã, busca recuperar a filha que deu
para adoção quando descobre que existem outras mulheres iguais a ela. A
story line só se concretiza aos 42 minutos de um episódio de 45. Aos 44
minutos desse episódio, temos a primeira pista do motivo pelo qual Beth
Childs, a mulher que se matou, tem dois telefones.
Outro bom exemplo de estratégias usadas para manter o suspense
numa narrativa linear, com apresentação de tramas intercaladas ― histórias
A, B, C ― é a série de espionagem The Americans .
Manter o equilíbrio entre responder às perguntas e não responder às
perguntas do espectador pode ser a principal estratégia narrativa de uma
série de especialista, particularmente em uma série de espionagem, de ação.
Ela dá o ritmo da narrativa e mantém o espectador dependente da resposta.
Trata-se de uma estratégia recorrente de grandes escritores de
espionagem, como Ian Fleming e John Le Carré. Acompanhe até a última
página ou você não saberá o que acontece com o personagem tal e, o que
talvez seja pior, jamais saberá o que o personagem esconde.
No teaser da série The Americans — sobre um casal de russos que
se fazem passar por americanos na época da Guerra Fria, durante o governo
Reagan —, algumas perguntas são respondidas no primeiro ato, outras no
segundo, no terceiro, no quarto; pelo menos três são respondidas por
flashback e outras são descartadas. Um exemplo de pergunta descartada: o
que acontece com o negro pobre a quem a espiã deu dinheiro para usar a
janela? Nós nunca saberemos. Por quê? Porque essa resposta não puxa a
narrativa para a frente, portanto não tem importância nesse contexto. Se, em
algum outro ponto dos episódios posteriores, ela vier a ser importante, o
espectador saberá.
No piloto de The Americans , os flashbacks duram segundos. O que
mostra o casal chegando aos EUA leva 30 segundos e já apresenta uma
diferença significativa entre os protagonistas. Uma frase na boca de cada
personagem e teremos um potencial de conflito, traições, crise de
consciência por toda a eternidade. Isso é escrever diálogos direito.
Em The Americans, além da estratégia de que uma boa série não
pode ter pressa em responder a todas as perguntas, existe uma pensata
difícil de atingir: a de que pátria e dever têm significados diferentes para
povos diferentes, para épocas diferentes.
Outra roteirista, boa roteirista, experiente na narrativa de comédia,
não de drama, estranhou que, nessa série, a espiã possa continuar espiã
depois que é revelado ao espectador o que aconteceu em seu treinamento.
Voltamos aqui à construção do mundo inconfundível. A espiã era uma
cadete, filha de um militar, um herói de Stalingrado, nascida e criada num
país sob o fogo cerrado do capitalismo e numa cultura na qual o
individualismo e a liberdade de opinião não eram valores importantes.
Voltamos à questão da empatia e ao repertório do roteirista. Hoje,
vivemos uma época em que o senso comum nos diz que fatos ligados ao
passado dos indivíduos vão justificar seus atos no presente. Um escritor
competente, um roteirista competente, alguém que deseja do fundo do
coração contar boas histórias não pode se guiar pelo senso comum. Quando
alguém age errado com a filha de um herói de guerra, quem erra é que é
canalha, não a pátria.
O oponente americano, o vizinho e agente do FBI, por seu lado,
também praticou ações “complexas” durante os três anos em que trabalhou
infiltrado. Quais foram essas ações? O piloto não revela nada a esse
respeito. Por quê? Não saberemos nesse momento. Por quê? Porque é uma
série, não um filme.
A diferença entre estratégias de revelação usadas num filme e numa
série pode ser bem compreendida comparando-se a infiltração, em The
Americans , com o que ocorre em alguns filmes nos quais pessoas
atraiçoam pessoas em nome do dever. Três desses filmes são Betrayed (
Atraiçoados ), de Costa-Gavras, em 1988, ou Os infiltrados , de Scorcese,
em 2006, que, por sua vez, é refilmagem de Mou Gaan dou , filme de Hong
Kong, de 2002.
Nesses filmes, o conflito da infiltração tem entre 100 e 150 minutos
para se resolver. O arco narrativo é muito menor. Qualquer ação
“complexa” cometida por policiais ou espiões infiltrados deve ser mostrada
num roteiro só. Numa série, o passado dos policiais ou agentes infiltrados
pode ser distribuído por vários episódios ou temporadas.
William Harper, roteirista de Grey’s Anatomy , disse: mantenha a
simplicidade. É isso. A trama dramática de ficção científica já tem suas
complicações. As estratégias narrativas precisam ser um esforço para ser
simples, já que o drama não o é. Entregar informações no momento certo,
sem pressa, mantém o suspense numa série como essa.

ENGENHARIA REVERSA:
CONHECENDO
O DNA DAS SÉRIES

POR QUE
ENGENHARIA REVERSA?

Vários livros sobre roteiro de séries dizem: você precisa saber qual é
o DNA da série que está no ar e para a qual pretende fazer um roteiro
especulativo ( spec ). Eles estão certos. O processo de escrever um roteiro
de série dramática tem como pré-requisito conhecer o DNA de criações
alheias.
A questão é: como identificar o DNA? O pré-requisito é essencial,
mas, se você não sabe como identificar o DNA da série para a qual está se
candidatando a um lugar na sala de roteiristas, como é que fica?
Identificar o DNA da série que propõe faz com que você seja capaz
de explicá-lo quando for vender seu projeto para uma produtora ou um
canal.
Escrever roteiro de série dramática é uma atividade criativa que
demanda o domínio de muitos detalhes de estrutura, desenvolvimento de
trama e construção de personagem. Domínio dos conceitos e domínio da
aplicação dos conceitos.
Para entender como outros roteiristas aplicam os conceitos
fundamentais em suas séries, proponho o exercício de engenharia reversa.
Fazer engenharia reversa facilita a tarefa de aprender quem é o
outro. Aprender é muitas vezes difícil porque implica mudança, implica
fazer as coisas de outro jeito. Aprender a escrever num formato novo
significa sair da zona de conforto.
A proposta é assistir a uma série dramática com um olhar inocente,
se aproximar de roteiros concretizados como nos aproximamos de um
objeto que desconhecemos, mas desejamos conhecer. É uma oportunidade
de dominar o processo e de tornar mais criativo nosso olhar sobre o trabalho
dos outros.
Fazer engenharia reversa de uma série é descrever o que se vê, sem
interpretar, sem usar “pré-conceitos”. Admito que é bastante difícil. O
habitual é assistirmos passivamente às séries de que gostamos, gravando um
ou outro detalhe, sem preocupação em assimilar o formato.
Quem pretende escrever roteiro de série dramática precisa assistir a
episódios como um exercício de musculação para um lado do cérebro que
está desativado. Porque tendemos a substituir descrição por interpretação do
que os personagens fazem.
Não tem nada demais ter opinião sobre o que os personagens vivem,
nem mesmo usando o bordão “Eu não faria isso, no lugar dele”. O problema
é que, se não identificamos e descrevemos o que acontece na narrativa dos
outros, teremos dificuldade para descrever o que atores devem fazer e como
devem agir a partir do que descrevemos.
Assistir a séries sem dissertar a respeito. Interpretar só em função da
estrutura narrativa, do desenvolvimento da trama, de acréscimos ou cortes
nos diálogos. Como escreveu Umberto Eco, no livro Interpretação e
superinterpretação , toda obra têm três intenções: a do autor, a do leitor e a
do texto. A do autor nós nunca saberemos ao certo. Inclusive porque o autor
pode ter esquecido o que pretendia quando escreveu tal ou qual fala. Ou
pode se enganar a respeito.
A do leitor depende de muitas variáveis incluindo horizonte de
leitura, expectativas, conceitos e preconceitos.
Só nos interessa a intenção do texto para entender como funciona
uma série dramática, para dominar o exercício de engenharia reversa.
Porque ela é passível de comprovação. O roteiro que foi gravado e levado
ao ar é a única base importante para nós na engenharia reversa.
É interessante fazer a engenharia reversa, listando ação por ação,
fala por fala para saber, ao fim, se o deputado Russo, em House of Cards , é
um salafrário ou um multitoxicômano. Ou as duas coisas, talvez.
Fazendo o exercício de engenharia reversa em Downton Abbey ,
posso afirmar que Mary Crawel aparece como uma jovem preocupada com
detalhes menores, como o de guardar ou não guardar luto total pela morte
de um ente próximo. Seguindo no exercício, no entanto, o roteiro mostra
Mary como alguém cujo senso de justiça a leva a pedir desculpas quando
comete um erro, independentemente da posição social do interlocutor.
O exercício foi feito primeiro assistindo e tomando notas para só
depois ler o roteiro. No caso de Downton Abbey o roteiro está disponível na
internet.
O exercício ajuda a descobrir/identificar qual a escaleta do roteiro
que foi gravada. Para isso, é preciso indicar quem faz o quê, onde,
interagindo com quem e, se possível, como.
A maioria dos roteiristas que frequentam minhas oficinas acha
difícil descrever um ato, cena por cena. A tendência é resumir. É diferente
de buscar descrever de forma sucinta o que cada personagem faz ou fala.
Quem resume escreve o que considera essencial, não descreve o que
aparece na tela.
No caminho para aprender a escrever em qualquer suporte, o
principal é se impregnar da maneira como outros escreveram.
Como os conceitos da narrativa se concretizam em cada série?
Quais ações e falas caracterizam cada personagem?
“Carrie fala ao telefone com David Estes. Carrie larga o carro no
engarrafamento e segue falando no celular com David.”
Isso ocorre no teaser do primeiro episódio de Homeland . Descrevê-
lo é um começo para aprender a fazer um teaser de uma série de ação.
A descrição acima está completa? Não.
Carrie e David falam sobre o quê? Qual o conflito entre eles nesse
telefonema?
Só saberemos, se quem está descrevendo contar. Quem está
descrevendo só aprenderá a construir um diálogo entre uma agente e o
diretor da CIA — ela, em Bagdá; ele, numa recepção na Casa Branca —, se
identificar o assunto.
Poder-se-ia dizer que basta ler o roteiro para entender como se faz.
No entanto, os roteiros são trabalhados por muitos profissionais depois que
são escritos. Partir do episódio para depois ler o roteiro é mais
enriquecedor. Além disso, não é fácil achar os roteiros originais que foram
ao ar.
O exercício então é assistir ao primeiro episódio de sua série
favorita, ou de qualquer série dramática que preferir, e descrever em no
máximo três linhas o que é mostrado. Seguindo o modelo do discurso
direto: sujeito + predicado + complemento.
Este é um exercício quase zen-budista, muito difícil, na nossa
cultura. A gente adora avaliar, interpretar coisas e não existe nada errado
com isso. A interpretação dos espectadores ajuda, inclusive, a melhorar
nosso trabalho de roteiristas. O problema da interpretação é que ela não
ensina a escrever em um novo formato.
Engenharia reversa ensina. É o mesmo processo pelo qual um pintor
iniciante começa pintando naturezas-mortas, desenhando modelos nus, indo
a museus olhar os mestres, copiando as suas obras.
Numa das minhas oficinas, um roteirista disse que engenharia
reversa é, na espionagem industrial, pegar o produto do outro para aprender
a fazer um modelo mais avançado ou para usar em outro meio.
No nosso caso, fazer a engenharia reversa de episódios ou
temporadas tem o objetivo de identificar, com precisão, o desenvolvimento
da trama. É a base para fazer a própria escaleta.
Para ser criativo, é fundamental fazer a engenharia reversa do maior
número possível de primeiros episódios de séries. É ela ― escrita com
sujeito, predicado, complemento ― que nos permite distinguir entre a
atuação dos personagens e os seus papéis.
No entanto, em Downton Abbey , na sequência do banho da
condessa, se O’Brien não fizesse o que fez, a Perda/Ruptura da primeira
temporada teria sido reparada. A ação insignificante, quase fortuita, de
O’Brien teve efeito decisivo sobre a trajetória de Mary, de Mathew e sobre
toda a trama subsequente. A maldade sempre tem repercussões no drama.
Num primeiro momento, o exercício de engenharia reversa consiste
em anotar personagem e ação. Para isso, é interessante fazer um quadro de
todos os episódios de uma temporada para saber quais personagens
aparecem em cada um deles. Ao final, teremos uma tabela que poderá
esclarecer a importância desses personagens na reiteração do mundo
inconfundível ou na trama.
Minha sugestão é que você tente fazer, em Downton Abbey , o arco
de O’Brien, ou da sra. Pattimore. Em Broadchurch , o arco de Becca Fisher
, a gerente do hotel.
Esse conjunto de atividades amplia nosso repertório de informações
sobre o DNA de cada série.
Um exemplo de engenharia reversa interessante é o do primeiro ato
de Broadchurch . Mesmo uma pessoa bastante atenta pode deixar passar a
frase na tabuleta: love thy neighbor as thyself (ama a teu próximo como a ti
mesmo).
Da primeira vez que assisti à série, não percebi a frase. Da primeira
vez que sentei para assistir com o olhar de engenharia reversa, vi.
O detalhamento do primeiro ato de Broadchurch , dado como
exemplo na primeira parte deste livro, nos permite observar quantas cenas
são necessárias para a apresentação dos personagens e do contexto até a
Ruptura, que é o momento em que a mãe sabe que ali está o corpo do filho.
É um primeiro ato cheio de tensão.
Além do detalhamento de um ato, cena por cena, é bastante útil,
assistindo como roteirista, identificar quais histórias estão sendo contadas
em cada ato.
No primeiro ato de Scandal , episódio 1 da primeira temporada,
estão rolando duas histórias. A de Quinn e a do bebê. No segundo, Sully e
Casa Branca. No terceiro, Amanda e Casa Branca.
Depois de vários exercícios parciais de engenharia reversa, seu olhar
estará treinado para:
Localizar como outros roteiristas apresentaram os personagens.
Identificar qual é a story line , o gênero, a categoria da série.
O tipo de narrativa dominante.
O arco do protagonista.
Quais ações e falas puxaram as tramas para diante.
Como foram conduzidas as duas ou três histórias que aparecem em
cada bloco ou em cada episódio.
Com a prática, você vai conseguir assistir como espectador,
tomando um vinho, uma cerveja, relaxando no sofá e, ao mesmo tempo,
percebendo as nuanças criativas por trás da tela. Pode acreditar, é muito
prazeroso conseguir fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
O exercício de engenharia reversa de séries bastante conhecidas é a
união da teoria com a prática.
Considero o exercício da engenharia reversa aplicado ao maior
número possível de exemplos já realizados o caminho mais rápido e eficaz
para expandir o repertório de quem pretende escrever séries dramáticas.

Durante todo o processo de descobrir como os outros fizeram suas


séries, é importante manter duas perguntas em nossa tela mental:
Qual a pensata do seriado?
A pensata é concretizada de forma monológica ou dialógica?
Ou seja, existe apenas uma verdade ou o tempo todo o seriado
mostra que as coisas não são tão simples como os personagens e
espectadores esperariam?
No processo de aprender a escrever roteiro para drama, essas são as
duas únicas perguntas que dependem de interpretação.
Em Ray Donovan:
Mickey Donovan é o canalha da história e deve ser destruído por
Ray Donovan? Ray Donovan é controlador e injusto e Mickey Donovan
quer apenas recuperar a própria família, a sua moda?
Em Scandal :
Republicanos também são gente?
O diabo, como Abby chama o empresário manipulador, realmente
ama seus filhos?
Todo ser humano tem o direito a preservar sua imagem, desde que
tenha dinheiro suficiente para isso?
Mesmo essas perguntas precisam ser comprovadas. Como?
No episódio X, de Scandal , a sequência Y mostra o empresário
texano fazendo tal ação.
No episódio X, de House of Cards , Claire reage à ação de uma
personagem grávida, procurando uma médica que pode mudar sua própria
trajetória na segunda temporada. Ou seja: ação e falas dos personagens
precisam comprovar o dialogismo, o suspense, a pensata.
O hábito de citar sequências, cenas, atos mantém a mente do
roteirista pronta para escrever, mas pronta também para defender, divulgar,
“vender” sua série ou sua competência para participar de uma sala de
roteiristas.
Não existe DR, ou seja, discussão de relação em roteiro, ou também,
como se diz na linguagem popular, não existe “disse me disse”. Não existe
“achismo” porque roteiro pertence ao gênero dramático. Não está na ação e
nas falas dos personagens, não está no mundo do roteiro.
O processo que proponho — o de usar a engenharia reversa para
assistir séries que estão no ar como roteirista — tem o objetivo de
identificar marcas de autoria. Não é uma tentativa de crítica. A crítica, a
interpretação, a análise são atividades intelectuais importantes, mas não são
o objetivo deste livro, muito menos do exercício de engenharia reversa.
Só quando assistimos como roteiristas, observamos como a narrativa
é contada. Se é linear, se vai e volta, se a edição foi feita para dar a
impressão de simultaneidade, qual o ritmo que a direção e a edição dão à
trama... Todas essas são marcas importantes do “como fazer” que o
roteirista não pode deixar passar.
Depois de assistir é importante ler os roteiros. É possível achar
roteiros na internet, mas alguns são versões de originais que foram muito
modificadas. A leitura desses “ensaios”, como exercício de engenharia
reversa, é muito importante para o roteirista. Inclusive para reforçar a
compreensão de que escrita é reescrita.
Um roteirista me perguntou, em uma das minhas oficinas, o que
significa ter “massa crítica” em relação a séries. Significa, respondi, assistir
a muitos pilotos, fazendo engenharia reversa, lendo os roteiros depois,
identificando o DNA de uma por uma das séries assistidas, sem cair na
tentação de ler primeiro as críticas para depois assistir aos episódios.
Procurarei, nas próximas páginas, listar algumas observações de
engenharia reversa em séries que acompanho. Na indústria cultural ― e
televisão é indústria ― , é fundamental aprender com bons exemplos
alheios.
RAY DONOVAN

É o arco que vai nos dizer quem o personagem é de verdade. Este é


um dos efeitos mais importantes de se fazer o arco de temporada de um
personagem específico e fazer isso em várias séries.
Com Mickey Donovan, serei obrigada a entregar um pouco mais da
trajetória do personagem. Um pouco mais porque o personagem é tão rico
que você vai querer assistir à série toda.
Mickey sai da cadeia, mata o padre, fuma maconha e dança com a
prostituta, atravessa o país lendo Como sumir na América .
Mickey encontra os filhos Ray, Terry, Bunch e Darryl. Acusa Ray de
ter armado contra ele em Hollywood há 20 anos e diz que se vingou do
padre. No final, pergunta pelos netos e quase é agredido por Ray.
Mickey cheira cocaína com Bunch no escritório da academia de
boxe.
Mickey chega à casa de Ray e diz que quando escreveu as cartas foi
do fundo do coração, que quer reparar as coisas e não entende por que Ray
o odeia. Ele dorme lá e convive com os netos no dia seguinte.
Mickey toma café da manhã à mesa com Abby e Connor e, quando
Bridget chega, levanta para abraçá-la. Os dois conversam.
Mickey está na sala de Ray e responde a Abby que não quer
incomodá-la com a carona.
Mickey anda pela academia e dá de cara com Ray. Responde que se
divertiu com a família dele à tarde e só quer ter a família de volta.
Mickey bebe cerveja e fuma maconha com Bunch no escritório da
academia de boxe.
Primeiro, ele mata. Depois, transa. Depois, vai até os filhos. Em
seguida, não segue o desejo do filho que o entregou à polícia de ficar longe
dos netos. Depois usa drogas com o filho dependente químico.
Isso diz muito sobre o personagem, não diz? A quantidade de cenas
com Mickey e a relevância de suas ações nos dizem também do seu peso na
trama. Ele é o antagonista de Ray porque suas ações vão sempre de
encontro aos desejos e objetivos do protagonista. É também o personagem
que aparece mais vezes.
Depois da grade geral dos personagens e do arco dos personagens
que aparecem em maior número de episódios, é importante mesclar essas
informações que nos darão o entrelaçamento. A prostituta negra só
aparecerá uma vez em Ray Donovan, contracenando com Mickey. O amigo
de Mickey aparecerá três ou quatro vezes em dois episódios. O marido da
enfermeira... E por aí vai.
Pela minha experiência de escritora, descrever o arco também
informa bastante sobre quem é o roteirista e sobre quem é o espectador. Vou
explicar essa observação que pode parecer obscura.
Conheço gente muito criativa que adora o personagem de Mickey
Donovan. Acha que ele é engraçado, cheio de vida, bem-humorado.
Conheço gente criativa que abomina Mickey Donovan. Certa vez, num
grupo de discussão de um projeto, perguntei para quem acha o velho, tão
bem defendido por Jon Voight, um personagem cheio de charme:
“Você tem ou já teve alguém próximo que usasse drogas pesadas e
causasse prejuízo a si mesmo, à família ou aos amigos?” As pessoas
responderam que não.
Fiz a mesma pergunta (separadamente, claro) às pessoas a quem o
personagem incomoda por sua manipulação, irresponsabilidade, cinismo.
Todas já perderam amigos para drogas, parentes foram passados para trás
por drogados, viram relacionamentos destruídos por gente manipuladora.
A descrição de Mickey Donovan pode contribuir para que o
roteirista se conheça melhor. Isso não tem preço. Arrisco dizer que detalhar
o arco de personagens muito amados ou muito odiados pode ser tão
elucidativo de nós mesmos quanto algumas sessões de terapia ou um mapa
astral benfeito.

THE NEWSROOM

O roteiro do primeiro episódio da série The Newsroom , que está


disponível na internet, tem uma mudança considerável com relação ao que
foi ao ar. São 86 páginas das quais cerca de 20% apresentam informações
que foram usadas em outros episódios da primeira temporada. Ou seja,
foram cortadas no piloto que foi ao ar, mas foram aproveitadas depois.
Lembre-se disso quando for escrever a sua série dramática.
Os diálogos foram revisados, foram ao ar mais enxutos. O mais
importante é que o evento na universidade nesse roteiro é citado num
diálogo entre dois personagens.
No primeiro episódio o comentário antiamericano de Will, que
horrorizou a “opinião pública” ficcional do seriado, é apresentado, é
mostrado. No roteiro rascunho, a situação é contada, comentada, e não
mostrada.
O que esse exercício de engenharia reversa nos ensina? Até
roteiristas experientes criam cenas e diálogos de comentários, de narração
no lugar de personagens fazendo coisas importantes. A diferença é que
numa sala de roteiristas experientes essa cena foi cortada.
Ler o roteiro encontrado na internet sem fazer engenharia reversa do
episódio significa desperdiçar oportunidades de aprender a escrever com
quem sabe.
No roteiro/rascunho, vamos chamar assim, Steve é o namorado de
Maggie e Don é o produtor executivo que está saindo. Aparentemente, os
dois personagens se juntaram em um só: na série, Don é o produtor
executivo e o namorado de Maggie.
O roteiro entremeia falas com rubricas descritivas de emoções e
características dos personagens, marcando, inclusive, a percepção de Neal
de que um triângulo amoroso está se formando. Isso está indicado porque
Jim olha e sorri para Maggie, Stevie (o personagem que vai se fundir com
Don) observa a troca de olhares e não pode fazer nada. Neal perceber isso é
marcação de diretor e é uma estratégia quase literária. Considere-se, porém,
que é uma estratégia de escrita, não uma estratégia narrativa. Esse tipo de
rubrica não vai ser mostrado, não vai aparecer na tela, é indicação para o
diretor e/ou para os atores.
Só na página 45 do roteiro/rascunho começa a aparecer a história A
que é a da redação de TV com a notícia da explosão no mar da Louisiana.
Volta para a história B que é o conflito passado, mal resolvido, entre
Mackensie e Will, e começa a C que seria a das ameaças. No roteiro que foi
levado o ar, o triângulo Jim, Don e Maggie ficou como história C. As
ameaças vão para um episódio adiante.
No roteiro rascunho há oito páginas de diálogo esclarecendo a
explosão na plataforma de petróleo na Louisiana. Só na página 68, começa
a preparação do noticiário. Do roteiro inicial, 16 páginas foram cortadas.
Das 70 páginas restantes, foram enxugadas muitas falas para dar lugar às
oito páginas do evento “antiamericano” do teaser .
Existe algo no DNA de The Newsroom que é importante para nós,
roteiristas brasileiros. É a capacidade que tem a série de colocar nuanças
dentro de um mesmo partido político, nesse caso, o republicano.
Nos Estados Unidos, existe uma divisão bem marcada entre
democratas e republicanos e, dizem, os primeiros costumam ter a simpatia
da maioria dos artistas. No entanto, mercado é mercado e não dá para
ignorar uma parcela considerável dos consumidores norte-americanos. O
capitalismo que mantém estúdios, canais, emissoras não é suicida.
Como ser favorável ao partido democrata (ou sem partido algum) e
construir personagens charmosos, carismáticos, heroicos e do partido
republicanos? Os roteiristas de The Newsroom conseguem fazer isso
seguindo o formato e criando um adversário republicano que atrai para si as
antipatias do protagonista e do público para quem o Will dá as notícias: o
Tea Party .
Em The Newsroom é diferente porque o mundo inconfundível é o de
uma redação de telejornal onde se espera que as pessoas ganhem muito,
deem muito lucro à empresa, mas se mantenham fiéis à liberdade de
expressão. Além de manter um compromisso com a verdade, claro.

GAME OF THRONES

Assistir a essa série fazendo engenharia reversa do primeiro


episódio é uma experiência fascinante. Mais fascinante ainda quando se lê o
roteiro que está disponível na internet. Por quê? Porque, mais uma vez (já
comentei isso em relação aos roteiros de Scandal e The Newsroom ), o que
foi ao ar não corresponde exatamente ao roteiro que está disponível. Quase
tudo está no PDF, mas falas foram encurtadas, cenas foram simplificadas,
outras foram acrescentadas, atos foram trocados de lugar.
O que acontece com um roteiro pronto, redigido pelo showrunner ,
com ou sem o auxílio de colaboradores? Ele é submetido aos executivos do
canal. Aprovado com ou sem modificações. Depois, é lido pela equipe com
o diretor, talvez os atores. Nessa primeira leitura, cenas podem não
funcionar, falas podem soar falsas.
Quase sempre o que vai ao ar é melhor do que foi escrito. Claro.
Outras autorias são acrescentadas. A do diretor, de seus assistentes, dos
atores.

O primeiro episódio que foi ao ar mostra:


Teaser de sete minutos e meio antes da apresentação fixa, em forma
de engrenagens e reinos, que informa os créditos. No teaser , veremos o
grande problema que se manterá em suspenso por várias temporadas: os
caminhantes brancos, os Outros, os seres extraordinários.
Depois, no primeiro ato, apresentação de Winterfell, o reino de
Stark.
No roteiro em PDF, depois dos créditos entra a execução do
desertor.
No episódio piloto gravado, em 18 minutos ocorre a apresentação da
capital dos sete reinos com a Ruptura: a morte de Jon Avery, a “Mão do
Rei”. Essa morte terá repercussão fatal sobre todos os reinos, repercutirá
imediatamente sobre os domínios dos Starks. É uma das melhores
demonstrações a que já assisti em TV da etapa Ruptura, usando os
parâmetros da proposta de Propp.
O primeiro episódio tem 60 minutos. Apresenta quatro famílias que
disputam, ou disputarão, os sete reinos.
Os herdeiros exilados aparecem em 33 minutos, ao contrário do
roteiro em PDF em que eles apareceriam logo depois da execução do
desertor. Antes da ruptura, antes da morte da Mão do Rei.
A aliança entre Ned Stark e Robert Baratheon é testada por um
obstáculo tremendo: uma mensagem enviada pela viúva de Jon Aryn, irmã
da mulher de Ned. Antes de aparecer a decisão de Lord Stark, a narrativa
principal é interrompida pelo casamento da princesa exilada e o bárbaro
Drogo.
Também nesse bloco, o que foi ao ar é melhor do que o que foi
escrito inicialmente, por causa de pequenos ajustes. Ajustes que tornam a
primeira transa de Daenerys e Drogo verossímil. Mais aquele mundo
inconfundível e menos o nosso mundo.
Essas sutilezas de ações e falas de personagens — corta uma linha
aqui, muda uma atitude ali — fazem a competência de um roteirista, de um
showrunner , de um avaliador de roteiro, de um diretor, de um ator.
Num roteiro de época, especialmente de uma época tão diferente da
nossa, é preciso ser implacável nos cortes. Não interessa se fica mais
romântico ou mais de acordo com a maneira como nossa época acha que as
mulheres devem ser tratadas. Os roteiristas não estão escrevendo sobre
como se comportam e amam as mulheres de nossa época e sim as de uma
época imaginária, séculos e séculos atrás.
Em seguida, no último bloco, uma pequena cena de respiração,
preparativos de uma caçada e a aliança entre o rei e seu amigo é reiterada,
mas o roteiro nos guarda uma surpresa final.
A cena que fecha o episódio piloto da primeira temporada reafirma
o mundo inconfundível que nos espera nos próximos episódios. O que um
homem não faz por amor numa terra onde quem tem poder faz o que bem
entende?

9MM: SÃO PAULO

Leitura de roteiros de séries é importante para quem quer entender,


dominar, praticar o formato. Infelizmente, ainda é difícil ter acesso a
roteiros de séries dramáticas brasileiras. O produtor Roberto D’Avila, da
Moonshoot , cedeu o primeiro episódio da série de ação 9mm, de 2009.
Como já destaquei em outros momentos deste livro, coerência
narrativa é fundamental numa série dramática. Um dos pilares dessa
coerência é a dicção dos personagens. Numa série policial, de ação, como
9mm , o roteirista tem que caracterizar as diferenças de dicção
imediatamente. Nesse caso, o teaser e o primeiro ato estão assim:
TEASER
INT/MADRUGADA (AMANHECENDO) - CARRO 1
Dois homens, JOTA e URBANO, conversam enquanto dirigem numa
estrada às margens de uma represa.

URBANO
No duro, cara! Ela quis me chupar ali mesmo, debaixo da mesa!

Risadas.

JOTA
E você?

URBANO
A gente tem que ser gentil com as mulheres, né?
(mais risadas).
Mas eu fiz ela engolir tudo, pra aprender (risos leves ...)
Essa mulherada tá abusada demais.
JOTA
É o trabalho delas, né, Urbano...

URBANO
Vocação. Tudo vagabunda, Jota!

Percebe-se que no banco de trás há uma menina, desacordada,


de uns 10, 11 anos. É AMANDA!

JOTA
E essa menina. Não vamos mesmo dar um fim nela?

URBANO
Deixa disso. Ela só está doentinha. Não gostou dos
carinhos da turma, acabou se machucando. Mas ela ainda tem
muito uso. O chefe mandou deixar num hospital e boa.

JOTA
Ou a gente podia nós mesmos brincar de médico com ela antes,
né?

Urbano ri.

URBANO
Com ela eu já brinquei e muito!
2 - CAIU!

PRIMEIRO INTERVALO
3 INT/DIA (MANHÃ) - CARRO DE HORÁCIO NA MARGINAL 3
Ele sozinho no carro. O skyline da Berrini passando na
janela. Ele põe um CD com sua música tema (a escolher)
Ele chega numa entrada de favela, devagar. A mesma represa
de antes ao fundo.

4 EXT/DIA(MANHÃ)- BEIRA DA REPRESA (MESMA DA CENA 2) 4


Eduardo comanda a cena do crime. Começa com insert /fotos do
cadáver e da situação geral, de policiais em torno do
corpo, cercados por moradores.

5 INT/DIA (MANHÃ)- CARRO DE HORÁCIO (MESMA ESTRADA


DAS CENAS 5
1 E 2)
Horácio chega na represa. Vê ao longe um aglomerado de
pessoas e alguns carros de polícia quase na margem.
Contorna e para o carro num campinho.
Acende um cigarro.
Ele passa perto de carro e vê Eduardo comandando a cena do
crime.
Quando Eduardo olha para ele, ele vai embora.

8 EXT/DIA (MANHÃ) - BEIRA DA REPRESA (MESMA DA CENA 2) 8


Eduardo e Luisa se aproximam do corpo caído.
Luisa se agacha e fotografa detalhes.
3P e Tavares estão próximos e comentam.
3P
Meu, eu acho que já vi essa mina.

TAVARES
Chamar esse avião de “mina” é até
pecado...

3P
Pecado é matar uma mulher dessa.

EDUARDO
(ignorando as bobagens dos
colegas e dizendo a Luisa)
Já dá para dizer alguma coisa?

Entram inserts de imagem com detalhes do corpo.

2.
LUÍSA
Leves manchas no pescoço, sinais de ter sido amarrada pelos pulsos e
pernas... É estranho... Mas nos pulsos
parece haver cicatrizes mais antigas, sob os machucados
atuais...

TAVARES
Amarradinha você não gosta, não?

LUÍSA
(irritada e falando para Eduardo)
A perícia do IML vai dar um quadro mais completo.
Tavares ri.

3P
Meu, acho que é a Fabia Cabral,do Casa dos Famosos.

TAVARES
Ih. A Fabia foi pro paredão...
Um carro de reportagem chega cantando pneu..

EDUARDO
Já chegaram os urubus.

LUISA (CONT’D)
Demorou...
Um repórter, MESQUITA, sai do carro, seguido por um câmera
já com a câmera ligada.

REPÓRTER MESQUITA
Delegado, a morta é mesmo Fabia Cabral, do Casa dos Famosos?

EDUARDO
Pô, qual é Mesquita? Tá fazendo bico para a Revista Caras?

Eduardo sai andando e Mesquita vai atrás.


Horacio olha ao longe toda a situação.
9 EXT/DIA (MANHÃ)- DHPP - FACHADA 9
DHPP. Plano externo. Eduardo, Luisa, Tavares e 3P entram
nas escadas.

10 INT/DIA - DHPP - SALA INVESTIGADORES - NUM CANTO. 10


Luísa com AMANDA, uma menina de 11 anos.

LUÍSA
Pode falar comigo... passou, viu? Não vai acontecer mais nada de mau.
Luísa passa a mão no cabelo dela, maternalmente.
A menina olha pra frente, esquivando-se.

LUÍSA (CONT’D)
Nós vamos pegar o teu pai, Amanda, e ele nunca mais vai te
fazer mal. Agora você está protegida.
Eduardo chega na sala, e faz um gesto chamando Luísa.
Ela tenta passar a mão no cabelo da menina de novo, mas ela
não deixa, agressiva.
Luísa chega para falar com Eduardo. Tavares e 3P se
Aproximam.

LUÍSA (CONT’D)
É o caso de ontem à noite.

EDUARDO
A mulher morta dentro de casa pelo ex-marido bêbado.
Insert de fotos da mãe, morta, e do PAI, ADAMASTOR.
Fotos tipo RG.

LUÍSA (CONT’D)
E não é só isso. A filha foi deixada no hospital ontem à
noite. O pai deve tê-la deixado lá. Eu já suspeitava e o médico confirmou.
Ela tem apenas 11 anos, e sofreu abuso sexual.

Todos olham consternados para a menina, sozinha num canto.

TAVARES
Filho da puta!

EDUARDO
É mais comum do que a gente imagina...

3P
Não entendo com um pai pode fazer isso com a filha.

LUISA
O filho da puta matou a mãe e estuprou a filha... Os vizinhos viram ele
fugir, nervoso, antes de a mulher ser encontrada morta. A filha está em
estado de choque.
A menina sozinha num canto.

11 INT/DIA - CASEBRE 11
ADAMASTOR (o pai, identificado pela foto mostrada acima),
chora, abraçado numa garrafa de cachaça.

12 INT/DIA - DHPP - SALA DOS INVESTIGADORES 12


Estão todos na sala. Inclusive ZELITA (50 anos) a escrivã.
Num canto, além da menina num banquinho, podemos ter um
suspeito preso na corrente (sem dar muito destaque a isso).
Eduardo ainda conversa sobre o caso da menina.

EDUARDO
A menina vai ficar sob guarda provisória do Juizado de Menores?

LUÍSA
Vai. E vou ficar por perto.

EDUARDO
Temos que achar o canalha que fez isso. Notícias do Horácio?

LUÍSA
Pra variar, não.

EDUARDO
Bom, tudo bem, dá uma força pra menina. Mas e o caso da modelo?

TAVARES
Já temos um primeiro resultado, chefe. Aliás, resultado de
primeira.
Tavares olha na direção da entrada do Salão, onde 3Ps
aguarda com uma mulher, linda, gostosíssima.

TAVARES (CONT’D)
É a melhor amiga da Fabia. Era, né? A gente trouxe ela pro senhor consolá-
la... (risinho)
Eduardo não dá bola.

EDUARDO
Luísa, vem comigo interrogar a moça.
Eles saem. Luisa dá uma última olhada para a menina, sozinha.

13 EXT/DIA - PORTA DE IGREJINHA CRENTE 13


Horacio (até aqui ninguém disse o nome dele, não sabemos
quem é o personagem, pode ser um matador. Pelo início
parece ter algo a ver com a morte de Fabia) se aproxima de
igrejinha crente. Lá dentro, cantoria, poucas pessoas. Ele
para na porta.

14 INT/DIA - IGREJINHA CRENTE 14


Horácio caminha lentamente entre as cadeiras. Algumas
pessoas à sua volta se incomodam com sua presença, saem de
perto. Ele fica vendo o culto, que termina. Ele vê uma
mulher e vai até ela. O nome dela é JOANA, e mais à frente,
na série, saberemos que se trata da ex-mulher de Horácio.
Nessa cena ficará ambígua qual a relação entre eles.

JOANA
(agressiva)
Este lugar não é pra ti

HORÁCIO
Pensei que fosse pra todo mundo

JOANA
Não comigo aqui.
(saindo)
Mas quem sabe entre você e Ele ainda tem jeito..

HORÁCIO
Amém.
Horacio a vê saindo. O pastor vem até ele e lhe põe a mão
no ombro, sorrindo.

PASTOR
Bem-vindo, irmão.

15 INT/DIA - AGÊNCIA AFRODITE - SALÃO 15


Ambiente meio brega, meio trash . Modelos bonitas, mas
vulgares. Lê-se, atrás da recepcionista, o logo “Afrodite”.
Tavares e 3P conversam.

TAVARES
Isso é que é Missão mais que Possível! A dica da amiga gostosa da morta
gostosa foi quente. Te mete aí com a mulherada.

3P
Rapaz. Eu adoro o meu trabalho!
3P sai.

16 INT/DIA - AGÊNCIA AFRODITE - RECEPÇÃO DA SALA DE


DÁCIO 16
Tavares entra na recepção. Lá está Jota que o encara duro.

TAVARES
Polícia.

JOTA
Tô cagando.

TAVARES
Então te limpa lá fora. Mas, primeiro, chama o teu chefe.

Os dois continuam se encarando, em silêncio. Jota faz menção


de revistar Tavares, mas ele reage, dando uma chave de
braço rápida no capanga.

TAVARES (CONT’D)
Quer ver meu distintivo, eu acho.
Tá aqui, ó!
(Tavares saca o revólver
e enfia o cano na boca
de Jota.)
Suave, neném, suave... (ele simula sexo oral com a arma). )
Ahhh, isso...

Urbano entra na sala. Tavares toma um susto, aponta a arma


para Urbano, mas ele apenas se senta ao fundo.

URBANO
Não fica tão nervoso não, meu senhor.

TAVARES
Você é o Dácio?

URBANO
Não. Não sou. Mas eu posso chamá-lo. Mas antes largue a
arma. O Dácio odeia violência.

Tavares empurra Jota. Após um instante guarda a arma.

TAVARES (CONT’D)
E então, agora dá chamar o teu padrinho?
URBANO
Melhorou. Sobre o que queres falar?

TAVARES
Escuta, mano. Se essa palhaçada não acabar já, eu vou começar a tratar o sr.
Dácio Freitas como suspeito principal do assassinato de Fabia Cabral.

URBANO
Jota, pergunte ao Dácio se ele quer vir.

Jota sai. Urbano e Tavares ficam se encarando.

URBANO
Eu se fosse você, tomava mais cuidado. Ninguém consegue ser
polícia o tempo todo.

TAVARES
Qual é, está me ameaçando, mano?

Depois de um breve instante, surge, por um painel lateral,


Dácio, com shorts, tênis e camiseta.

DÁCIO
Podem parar com o conflito! Oficial, perdão pelos meus
assessores. Eles estão aqui para garantir minha segurança Você entende,
não? Entre, por favor!

16 B - INT. DIA - ESCRITÓRIO DE DÁCIO


Eles entram no escritório de Dácio. Grande, iluminado, e
bem decorado.

DÁCIO
Sente-se por favor. Em que posso ajudá-lo?

TAVARES
O senhor é responsável pela morte de Fabia Cabral?
DÁCIO
O senhor deve estar brincando? Fabia era a minha modelo mais lucrativa!
Já tinha sido mais, é verdade. Quando me procurou, a fama de ex-Casa dos
Famosos ainda tinha algum gás. Mas, mesmo assim, ela me dava bastante
lucro.

TAVARES
O senhor sabe que facilitação de prostituição é crime?

DÁCIO
Eu tenho noções de direito. Fiz alguns anos de faculdade. Também são
crimes o assassinato, o abuso
de poder.... (Dácio frisa o termo abuso de poder).

TAVARES
Não entendi

DÁCIO
Nem eu. Investigador...

TAVARES
Tavares!

DÁCIO
Investigador Tavares, eu sou um homem de negócios bastante
ocupado. Promovo eventos, forneço modelos para fotos e festas, tenho uma
agenda cheia.

TAVARES
O senhor esqueceu de mencionar seus sites de pornografia.

DÁCIO
É verdade. Ingressei no setor de entretenimento adulto há algum tempo.
Como disse, sou um homem ocupado.

Dácio se levanta e estende a mão para Tavares. Ele não responde.


TAVARES
Quer dizer que a Fabia não fazia programa?

DÁCIO
(recolhendo a mão estendida)
Sou empresário, não babá. Não sou responsável pela vida das minhas
modelos. Agora me diga. O senhor tem algo concreto ou veio aqui só para
se meter na minha vida?

Tavares em silêncio.

DÁCIO
Bem, respeito sua curiosidade. Muitos homens de sua idade
gostariam de conhecer minha agência. Pois pode passear à
vontade, viu? E toma meu cartão... Se gostar de alguma
menina me ligue...
Dácio dá o cartão e chega bem próximo a Tavares:

DÁCIO
Mas nunca mais interrompa o meu treino!

Dácio se vira, Tavares fica quieto, entre humilhado e irritado.

17 INT/DIA - AGÊNCIA AFRODITE - SALÃO 17


Tavares anda por corredores da agência e cruza com várias modelos.
Entra no salão principal e vê 3P que está de altas
conversas com uma modelinho linda (que mais à frente
descobriremos - junto com 3P - que tem 16 anos). 3P está
bem íntimo.
Tavares faz gesto chamando 3P para ir embora

3P
(para modelinho, brincalhão)
Então, eu tenho que ir, mas vou te dar um mole, hein?
(os dois riem).
Tavares chega e praticamente o puxa de lá. 3P ainda tenta
dar o telefone.

3P
Ó meu celular... Se você me ligar,
capaz até de eu falar contigo, hein?

A menina sorri para 3P, que é levado por Tavares.

18 INT/DIA - AGÊNCIA AFRODITE - SALA DE GINÁSTICA DE


DÁCIO 18
Dácio, Urbano e Jota estão na sala de ginástica ao lado do
escritório de Dácio.

DÁCIO
Vocês não me disseram que esse crime não ia chegar a mim?

URBANO
E não chegou, patrão! Isso aí é só investigação de rotina.

DÁCIO
Ainda não entendo como vocês deixaram a Fabia morrer.

JOTA
O cliente que era doidão. Enforcou demais a mina.

URBANO
Nos só limpamos a barra do cara.

DÁCIO
Bom que o cara era juiz. Ao menos agora ele me deve essa.

JOTA
E não tem como chegar ao senhor, não, patrão.

Pausa. Urbano ajuda o patrão a preparar um aparelho.


URBANO
Me preocupa mais o caso da menina. Ela estava na mesma
festa, se machucou um pouco, mas foi coisa de rotina. Eu nem pensei que ia
dar problema. Mas ontem o bostinha do pai dela matou a mãe. E agora a
menina está na polícia.

JOTA
E o pai ainda está ameaçando nos denunciar por pedofilia.

DÁCIO
Quem é mesmo essa menina?

URBANO
Chama Amanda. Ela nunca viu o senhor, não, patrão.

DÁCIO
Então, no máximo, vai chegar a você.

URBANO
No máximo.

DÁCIO
Ah bom...

Instante de silêncio. Urbano hesita, mas pede.

URBANO
Eu só queria autorização para resolver isso.

DÁCIO
É realmente necessário?

JOTA
Chegar no Urbano não vai ser difícil, chefe. Tem sêmem dele na mina.

DÁCIO
Eu já lhe disse para não ficar curtindo no trabalho!
URBANO
Foi só uma vez chefe. Não se repetirá.

DÁCIO
Bem, vou lhe dar uma chance. Pode resolver. Mas faça em total discrição.
Não quero mais ser obrigado a receber policial em meu escritório.

URBANO
Pode deixar patrão. Vamos pegar o pai e a menina, mas sem vestígio algum.
Eu já tenho gente minha atrás dele.

DÁCIO
Ótimo. Pois policial aqui eu só aguento se o cara for meu sócio.

19 INT/DIA - DHPP - SALA PRINCIPAL 19


Luisa com Amanda, o agente do Juizado de Menores ao lado
delas.

AMANDA
Eu não quero ir para o juizado.

LUISA
Não se preocupe. Lá eles vão te dar carinho.

AMANDA
Lá eles vão conseguir me achar logo, logo.

LUISA
Não se preocupe. Já temos boas pistas para prender o seu pai.

AMANDA
(falando cabisbaixa e mais baixo)
Eu não estou falando dele...

O agente do Juizado interrompe a conversa pegando na mão de


Amanda.
Luisa fica meio desnorteada, mas ainda sem entender o que
Amanda quis dizer.
Amanda é levada. Luisa olha.
Eduardo chega.

EDUARDO
Luisa, Você já fez o que podia para proteger essa menina.

FIM DO PRIMEIRO ATO

Os dois grupos de personagens estão bem marcados: policiais, de


um lado, bandidos, de outro. História A, o assassinato da modelo, B, a
trama de pedofilia. No próximo ato vai aparecer a história C que é a da
detetive Luisa e seus problemas domésticos/policiais. O que desejo destacar
aqui não são essas marcas.
Transcrevo essas páginas do roteiro original porque os diálogos têm
um ritmo de acordo com o gênero, cada fala “puxa” a narrativa para a
frente, informa coisas importantes, mostra contexto, planta perguntas que
precisam ser respondidas. Luisa não fala como Tavares, Jota não fala como
Urbano, Joana não fala como Horácio, Amanda não fala como a modelo de
16 anos.
Num roteiro como esse, o que Luisa fala e como Luisa fala não
podem ter o mesmo tom do que Joana fala e de como Joana fala.
Isso parece óbvio, mas é um dos óbvios mais difíceis de praticar da
vida de um escritor. Dicção de personagem depende muito de conhecimento
técnico, de fazer todo o dever de casa antes de começar a escrever ― story
line , sinopse geral, sinopse de episódios, arco da temporada, arco dos
personagens... ― mas depende muito de empatia também.
O teaser mostra dois bandidos sem escrúpulos, não é mesmo?
Ocultação de cadáver para livrar cliente assassino e pedofilia não são
atestado de bom caráter.
Um dos bandidos, no entanto, diz que a mulherada está abusada por
uma delas ter praticado sexo oral nele, debaixo da mesa. O outro suaviza
dizendo que é o trabalho dela, mas Urbano repisa: “tudo vagabunda!”. Essa
diferença de tom, um mais agressivo com mulheres, outro entendendo as
circunstâncias, não é uma diferença profissional ou moral. Os dois são
bandidos. É uma diferença de personalidade, diferença de construção de
personagem.
Às vezes fico no Facebook lendo os comentários das pessoas sobre
questões sociais, morais, sexuais e acho extraordinário constatar as
pequenas diferenças de tom que estão marcadas no que escrevem. Isso
considerando o tipo de ambiente que é o FB. Mesmo quando o ser humano
finge ser feliz o tempo todo ou finge acreditar que está coberto de razão, as
marcas da personalidade estão ali. Essa é a dicção de cada um.
Só muita empatia permite observar a dicção na vida e só a
experiência contínua de escrever dentro do formato permite transferir isso
para o roteiro.
A leitura de um roteiro policial como 9mm , infelizmente fora do ar,
permite distinguir essas diferenças rápido. Porque a série de especialista
apresenta temas muito fortes que obrigam o roteirista a avançar, avançar,
avançar, distinguir, distinguir, distinguir. O suspense vem da ação, não da
falta de marcas entre os personagens.

TWISTED

Twisted é uma série interessante de observar na engenharia reversa,


porque pode-se explorar as possibilidades do formato independentemente
do cenário. A primeira observação: Twisted é uma série teen ? O piloto pode
ser encarado assim.
O que identifica uma série como teen é o fato de o mundo
inconfundível ser de adolescentes (escola, família da qual dependem,
primeira transa, festas, esportes) e tudo o mais que jovens americanos de
classe média alta vivem.
Adolescentes dependem dos pais. Nessa série, a mãe de Denian é
muito bonita. O diretor da escola, que admite o adolescente de volta, apesar
dos protestos da comunidade escolar, é sensível à beleza dela. A mãe ser
bonita faz sentido para essa narrativa. Em outra, que demandasse outro tipo
de mãe, não faria diferença.
Twisted usa uma estratégia narrativa inusitada que é a de apresentar
um episódio especial no qual um narrador em off faz um apanhado de tudo
o que aconteceu de significativo até ali. Essa estratégia já foi usada em O
assassinato de Roger Ackroyd , de Agatha Christie. Será o narrador desse
episódio o verdadeiro assassino ou é apenas um adolescente metido a
detetive?
Essa estratégia está combinada com outra que é a de passar o bastão
da suspeita para mais de um dos personagens. Típico das narrativas de
mistério.
Voltando à teoria geral da narrativa: ficção é a atividade de
selecionar e combinar aspectos da vida real para produzir um efeito. Na
poética de séries, é preciso selecionar e combinar para provocar efeitos
fortes o bastante a fim de manter a atenção do espectador durante cinco atos
por noite, uma vez por semana, durante 13 ou 24 semanas no ano.
A primeira temporada de Twisted acaba com uma informação
bombástica que nos remete a uma afirmação feita por Danny Desai desde o
início: ele precisava proteger Jo. De quê? Só saberemos na segunda
temporada e isso nos manterá ligados à série.
UNDER THE DOM E

Under the Dome é baseada num livro de Stephen King, autor com
muitos títulos em torno do mais forte tipo de terror. O horror que nos habita.
Esse terror é tema da série. Se trancados numa redoma, como
lidaremos com nossos segredos? Com as oportunidades de fazer o mal e de
defender o que desejamos? Aliás, a temporada começa e acaba com esta
pensata: “Até que ponto um ser humano com poder é capaz de ir para
proteger seus segredos?”.
Só teremos a resposta quando assistirmos ao último episódio da
temporada que, evidentemente, deixará mais expectativa para a próxima.
Nessa série, o forte é o mistério, portanto, o roteiro precisa caprichar
para não entregar as respostas de uma vez só.
Na obra de Stephen King, existe uma metáfora recorrente (para usar
uma expressão querida dos estudiosos da narrativa). Essa metáfora poderia
ser resumida como: o que o personagem está disposto a sacrificar para
resistir ao Mal e fazer o que é certo?
Stephen King é um escritor épico e de terror. Faz parte do drama
épico, o drama que conta a história de um herói. Under the Dome pode se
inserir na categoria ficção científica, mas a narrativa está presa ao gênero
terror épico que lhe deu origem.

Em cada ato de cada episódio da série, os personagens são


submetidos ao embate entre as duas premissas: “em caso de necessidade, do
que somos capazes para defender nossos segredos e nossos desejos” versus
“o que cada um está disposto a sacrificar para resistir ao mal e fazer o que é
certo”.
As mortes, as traições, a violência ocorrem em função desse embate.
A narrativa é puxada para a frente em função desse embate. As cenas
engraçadas, os diálogos fofos entre personagens que podem ter um
envolvimento amoroso, tudo vai passar por esse escrutínio.
Uma coisa me chamou a atenção na engenharia reversa de Under
the Dome . Uma frase que me pareceu forçada: “ser um político é pior do
que ser um criminoso”.
A frase me parecer forçada é interpretação da minha parte, claro.
Ocorre que leio Stephen King há muitos anos. Sei que o autor tende a tecer
com cores fortes as trilhas de chefetes locais e do perigo que eles
representam. Stephen King não gosta do que o poder faz com as pessoas,
em especial as pessoas comuns que acham que estão protegidas do terror
causado por elas mesmas.
O parágrafo interpretativo acima se propõe a nos manter alertas com
relação à tendência, humana, compreensível, de colocar personagens para
defenderem nossas teses. No caso de Under the Dome , a frase não
compromete nem de longe a série, o mistério, a tensão da narrativa. No
entanto, é bom evitar propaganda de pontos de vista. Num roteiro, o mais
importante é sempre a história que se conta.

SCANDAL

Para escrever um episódio de uma série que já está no ar, é preciso,


além de dominar o formato, reconhecer a necessidade de escrever várias
vezes até acertar a mão. Na internet, existe um primeiro episódio de
Scandal , ainda sem esse título, com 95% do roteiro que foi ao ar em abril
de 2012.
No primeiro trecho que foi modificado ― e se Shonda Rhimes
muda o texto dela, todo mundo deve aprender a mudar também ―, Olivia
Pope mantém um diálogo com os sequestradores como se fosse uma pessoa
próxima a eles. É interessante porque a dicção é correta, mas as falas não
são apropriadas.
Num roteiro, é importante que a dicção do personagem esteja de
acordo com o contexto e isso vai depender das falas. No roteiro de 2010,
Olívia está negociando a paz entre dois bandidos russos como se estivesse
enquadrando duas pessoas de sua equipe. A personagem é mandona, é
controladora, impõe sua vontade com suavidade e firmeza. Essa é a dicção.
Mas faz parte de suas atribuições se meter na vida de dois bandidos que não
são seus clientes? Lógico que não.
Por que isso caiu? Não temos como saber, a menos que
perguntemos, num próximo livro, diretamente a Shonda Rhimes. O que
podemos inferir é que caiu porque estava sobrando. Porque não tinha
sentido Olívia (que não se chamava Pope; nem o seriado tinha título ainda)
negociar acordos pessoais entre adversários.
Outra passagem que caiu no mesmo roteiro foi o momento em que
Olivia desmascara o currículo de Quinn, diz que ela não estudou em Yale,
diz que a origem de Quinn é “ trash ” etc. etc... “ Trash ” nós traduziríamos
como lixo, mas no contexto não é exatamente lixo, é mais “sem pedigree”
ou, como diria uma pedagoga superpreconceituosa que eu conheço, “sem
berço”. Nesse trecho, quase um monólogo, uma fala de 136 palavras, Liv
explicita para Quinn por que a contratou. Diz que poderia ter contratado
alguém bem-criado, com um bom currículo de Yale ou qualquer outra
faculdade da Ive League , mas, em vez disso, contratou Quinn.
No roteiro que foi ao ar, Hulk explica a Quinn porque Olivia a
escolheu:
HULK: Você era como um cachorro de rua e Olivia a acolheu.
Todos nessa equipe precisam de conserto e é isso o que Liv faz, conserta
coisas.
Provoca mais simpatia quando o protagonista é elogiado por outro
personagem do que quando o próprio esfrega suas qualidades na face do
mundo.
Lendo muitos roteiros, como leio, e identificando as mudanças, por
que assisto primeiro e leio depois, faço a recomendação para mim mesma:
evitar a armadilha de achar que pode fazer melhor do que gente mais
experiente. Depois evitar a armadilha de achar que não será preciso refazer
roteiros. Especialmente diálogos.
Outra coisa que destaco na primeira temporada de Scandal é o arco
de temporada de Olivia e o de Fitz.
A story line traz um problema tremendo, quase intransponível, nos
Estados Unidos. Uma mulher solteira, negra, tendo como profissão livrar
clientes de escândalos e envolvida num adultério com o presidente da
República, branco e casado.
No seriado, também o presidente da República e seu staff são
republicanos e aí os roteiristas pegam um pouco mais pesado, como quando
Cyrus diz que furou a fila de adoção porque é um republicano ou quando
Olivia o acusa de ser um monstro e ele responde: sou um monstro, mas sou
o seu monstro.
O arco de Olivia vai do primeiro ao último episódio mostrando o
quanto o trabalho é importante para ela, o quanto ela luta para garantir sua
competência profissional, mas, no quesito amor, ela vai e volta, com viradas
emocionantes.
Na engenharia reversa da temporada inteira, observo que existe uma
história A, que é a da profissão de Olivia ― com casos A, B, C, em alguns
episódios, já que esta é uma série de especialista, também. Existe uma
história B, que é a do amor de Olivia, história essa que envolve a Casa
Branca. E a história C varia.
Essa é uma estrutura complexa que, para se manter rodando,
demanda muita competência autoral e coerência narrativa.

LEVANTANDO
SUA
PRÓPRIA SÉRIE
A esta altura, você já deve estar pensando em como criar a story line
da sua própria série.
Por onde começar?
Quase todos os livros de roteiro para TV que já li começam dizendo
que a primeira coisa que você deve fazer é estabelecer sua story line e
depois ampliá-la para uma sinopse. Uma story line de algumas linhas, três
ou quatro, uma sinopse de algumas páginas.
Como se levanta uma story line ?
Existem muitas maneiras de colocar nossa imaginação para
funcionar até sair a story line que desejamos contar.
A story line pode estar ali, pronta. S e você tem uma story line ,
ótimo. Confira se estão claros protagonista, profissão do protagonista,
objetivo, problema, lugar, época.
Caso não tenha, tente o cenário, o tema, a pensata até chegar na
story line .
Tema ou pensata podem inspirar inúmeras story lines . De qualquer
forma, definir a pensata, o princípio moral da trama é fundamental.
“Quero escrever sobre como é impossível amar e ser feliz ao mesmo
tempo, frase de Nelson Rodrigues.”
“Quero escrever sobre a dificuldade de ser uma boa pessoa, no
mundo em que vivemos.”
Essa é a pensata de A alma boa de Setsuan , de Bertold Brecht, e é
também a pensata da série The Good Wife .
Qual a grande questão moral de sua história? É sobre as implicações
de um dom, um talento inexplicável, sobre a vida do protagonista, como em
The Dead Zone ? É sobre a responsabilidade com a família, mesmo que a
família seja mafiosa, como em Família Soprano ? Considere que na
continuidade, no roteiro propriamente dito, a pensata pode mudar. Nesse
caso, vale a pena considerar que algumas coisas talvez não combinassem
com a pensata que você definiu. A história ou o mundo inconfundível.
Antes de tudo, examine dois pré-requisitos.

SEU REPERTÓRIO E SUA SÉRIE:


primeiro pré-requisito

Começar pelo que se conhece de perto é o caminho mais seguro.


Pesquisas existem para suprir lacunas de conhecimento. Só que é mais fácil
pesquisar uma cidade pequena quando se viveu numa cidade pequena.
Pesquise o que não conhece de tópicos que você ache atraentes, mas
evite propor uma série que se passa na China se nunca esteve por lá.
Nunca é demais repetir: evite o aleatório. No rascunho de uma
narrativa não use elementos aleatórios para levantar o enredo ou construir
personagens.
Qualquer elemento aleatório pode direcionar a narrativa (e o nosso
inconsciente, nosso impulso criativo) para uma categoria que não era a
desejada a princípio. Isso pode inviabilizar sua série, se você não retomar as
rédeas da situação. Como retomar as rédeas? Cortando o elemento inútil.
Numa das oficinas de roteiro que fiz em 2013, foi apresentada uma
sinopse que se passava na época da ditadura militar. A pessoa que
apresentou, uma escritora com muita imaginação e facilidade em exercê-la,
criou tramas paralelas que ligavam personagens a antepassados que haviam
participado do levante comunista em 1935. Eram dados interessantes, mas
não faziam diferença para a trama em 1973. Os personagens teriam que
enfrentar seus próprios obstáculos políticos e morais, independente do que
seus pais fizeram.
Sugeri que ela cortasse tudo o que não dissesse respeito à trama e
colasse num arquivo com o título Notas. Alguns softwares de roteiro já têm
esse item. As notas, com dados aleatórios ou não, podem ser úteis para se
criar uma cena de respiração, uma fala de duas linhas, até uma trama no 12º
episódio. Quem sabe?
Fontes de inspiração para definir a story line e tudo o mais numa
série começam no seu repertório de leitor e espectador.
Repertório é a base da escrita feita de forma competente,
imaginativa, autoral. Qualquer que seja a narrativa, qualquer que seja o
suporte.
O repertório de um escritor consiste no que alguns estudiosos
chamaram de realidade “extratextual”. São as normas sociais, contextos
históricos, sociais, familiares e as alusões narrativas. Alusões literárias,
cinematográficas, televisivas. Isso não consiste em teoria inútil, nem se
confunde com senso comum sujeito a interpretações e relativismo.
O conjunto de obras literárias, teatrais, cinematográficas, televisivas
e a maneira como se interage com elas é a primeira fonte de inspiração no
processo de levantar sua própria série.
É mais fácil ter a máquina narrativa na cabeça se o contato com
obras alheias for constante.
O roteirista precisa ter um arsenal de informações aprendidas com
outros autores para enriquecer seu texto e seus personagens.
Precisa ter informações sobre outras séries porque sempre
incorporamos também elementos de outras obras, no caso de séries, de
séries mais antigas ou da mesma categoria.
A outra fonte de inspiração é íntima e pessoal.
“Conhece-te a ti mesmo”, estava escrito no templo de Febo/Apolo
em Delfos. É o caminho mais difícil de um escritor iniciante (inclusive de
alguns experientes) percorrer. Quais são as histórias pessoais que estamos
dispostos a contar? Quais são as experiências que precisamos contar?
Freud escreveu no ensaio “Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen”
que o escritor está em vantagem em relação ao especialista da mente porque
o primeiro se debruça sobre o próprio inconsciente e o especialista sobre o
inconsciente dos outros.
Por que é difícil definir quais das nossas histórias colocar no que
vamos escrever? Deve ser porque, quando olhamos para dentro do abismo,
o abismo também olha para dentro de nós, como disse Nietzsche.
Existem várias maneiras de evitar que o abismo contamine o nosso
texto. A mais básica é escrever um diário, que é a oportunidade de poupar
nosso texto de ficção de nossos preconceitos ou de nossas angústias mais à
flor da pele.
Facebook ou Twiter, infelizmente, não são tão úteis para a função
porque têm plateia. Quando escrevemos para a plateia, selecionamos fatos e
ideias para produzir um efeito desejado. Prefira o diário.
O diário é útil, portanto, para identificar os nossos preconceitos, as
nossas visões às vezes deturpadas do que aconteceu em nossa vida. Às
vezes, o roteirista tem histórias terríveis de drogas envolvendo pessoas mais
ou menos próximas e, para exorcizar o horror e a compaixão, coloca seus
personagens para discursarem a respeito.
Não funciona, é o rescaldo de problemas pessoais que não foram
descritos em diários. Ou não foram trabalhados na terapia, diriam alguns.
Penso que diário é diferente de terapia, uma coisa não substitui nem
conflita com a outra. A ideia do diário é a de o escritor ler o que escreveu e
perceber a diferença entre descrição dos eventos (o que interessa à arte de
roteirizar) e interpretação de eventos.
A mesma coisa vale para o contexto histórico e social. Um roteiro é
uma história sobre personagens, não uma oportunidade de dissertar contra
governos, patrões ou qualquer outro alvo da insatisfação do roteirista.
Inclusive porque o mercado não vai pagar para o roteirista fazer isso.
Se você ainda não escolheu sobre o que vai ser sua série, pode
tentar:
Escolher um tema que o mobilize muito.
Vamos supor que o tema seja vingança.
Escolha uma série que tenha uma ligação com esse tema.
Revenge , claro, é uma escolha mais à mão.
Você pode listar séries que também abordem o seu tema, mesmo que
seja tangencialmente.
Faça uma lista das histórias que você já leu ou filmes a que assistiu
sobre vingança.
No caso de vingança, poderia ser o conto de Nelson Rodrigues sobre
a mulher feia que joga água fervendo no rosto do marido que foi dormir
bêbado, mas antes a chamou de “bucho”.
Ou O conde de Monte Cristo , escrito por Alexandre Dumas, sobre
um oficial de Marinha que passa anos e mais anos preso injustamente e
consegue escapar imbuído do desejo de revanche.
Ou a novela Avenida Brasil , de João Emanuel Carneiro, em que
uma criança é abandonada no lixão de uma grande cidade e, adotada, cresce
com o intuito de se vingar dos que destruíram o mundo que ela tinha.
Agora faça uma lista das histórias de gente próxima ou de notícias
na imprensa relacionadas com o tema vingança. Mude os nomes se for o
caso.
O importante, nesse exercício, é listar brevemente histórias que você
conheça.
Mais tarde, você poderá usar a pesquisa para preencher “brancos” da
sua imaginação. Conhecer o próprio repertório é fundamental para expandi-
lo.
Procure examinar seu repertório, de vez em quando, e ampliar seu
autoconhecimento exercitando outros temas, construindo personagens mais
ou menos parecidos com as pessoas reais, mudando época e lugar.
O diálogo com o texto alheio, a intertextualidade para usar um
termo técnico, é uma fonte e tanto de inspiração.
Você já viu uma citação do escritor argentino Jorge Luiz Borges
dizendo que existem seis ou sete histórias e elas estão todas na Bíblia? Na
Bíblia ou em qualquer outro conjunto de mitos canônicos, mitos que foram
contados pela primeira vez e que fundam uma cultura.
É muito difícil, ou talvez faça mais sentido dizer que é improvável,
conseguir imaginar uma trama, uma narrativa completamente original.
Consciente ou inconscientemente, escritores e roteiristas criam histórias a
partir de um repertório pessoal ou do repertório da cultura em que estão
inseridos.
Aliás, a tragédia ática, no século V a.C., em Atenas, era
assumidamente um concurso de talentos em diálogo com o mito comum às
cidades-estado que compunham a Grécia antiga.
A originalidade está em usar elementos de narrativas anteriores de
forma altamente criativa.
Intertextualidade em televisão é fazer uma série policial evitando
copiar qualquer outra, mas podendo usar o modelo, o tema, como
inspiração. O mesmo vale para dramas médicos ou legais.
O importante é que não dá para ignorar o que foi feito antes. Nem
que seja para desconstruir.
Blue Bloods talvez seja inspirado em Nova York Contra o Crime . É
muito diferente de uma série policial como The Wire , que se passa numa
delegacia em Baltimore, onde os policiais no início não usavam
computadores, escrevendo relatórios à máquina.
Diálogo com o texto alheio é diferente de remake ou de
transposição. Muitas e muitas narrativas, no teatro, na literatura, no cinema,
na televisão dialogaram com outras obras que eram suas contemporâneas ou
não.
O que Família Soprano tem em comum com o filme Máfia no Divã
ou com a trilogia O Poderoso Chefão ?
O que a série israelense O Prisioneiro da Guerra ou Homeland têm
em comum com A Garota do Tambor ou O Espião que Saiu do Frio , de
John Le Carré?
O conto “ The Lottery ”, de Shirley Jackson, publicado com
escândalo nos Estados Unidos, em 1948, tem a ver com o filme Jogos
Vorazes ?
Quanto maior for o seu repertório de narrativas em qualquer
formato, mais imaginativo será seu texto. Principalmente, se você se tornar
capaz de identificar o repertório de outros autores nos livros, filmes e
roteiros deles.
Uma questão importante é que o repertório do roteirista precisa
interagir com o horizonte de leitura e expectativa do espectador. Nada
adianta o roteirista ter lido Proust ou Joyce e querer transpor os repertórios
desses autores para qualquer roteiro.
Elementary é uma adaptação da obra de Conan Doyle, que dialoga
com séries nos quais o protagonista investiga a favor da lei, embora esteja
com um pé do outro lado, nesse caso devido ao seu passado de drogadicto.
Os clássicos de televisão, cinema, teatro, literatura podem ser uma
grande fonte de inspiração. Quantas séries inglesas são em parte ou no todo
claramente inspiradas em Shakespeare, Elinor Glyn, Agatha Christie?
Várias.
Estar atento ao diálogo com o texto dos outros é mais do que uma
tarefa. Pode se tornar um bom vício, consciente ou inconsciente.

CONSTRUÇÃO DE PERSONAGEM
PARA A PRÓPRIA SÉRIE :
segundo pré-requisito
Da minha experiência de escritora eu diria que escutar nossa voz
interior, examinar nossas próprias histórias de vida com olhar de roteirista é
um hábito útil para construir personagens.
Existem muitas formas de refinar, precisar os perfis de personagens.
Alguns métodos preconizam caracterizá-los por núcleos de relacionamento,
outros por papéis, outros por predomínio da ação na trama, positivos,
negativos ou personagens em transição.
O que proponho aqui é que você pense a construção dos
personagens:
Depois de estabelecer a story line a partir do protagonista.
Depois de estabelecer a pensata ou o ideário da série.
Depois de fazer o rascunho de sinopse da trama.
Antes das escaletas dos episódios.
Nesse ponto, é essencial que se faça uma cartela ou perfil do
protagonista primeiro e dos outros personagens depois.
Quando um escritor coloca no perfil de um personagem que ele é
preconceituoso, isso pode ficar abrangente demais. No entanto, se colocar:
tem preconceitos contra negros e imigrantes não europeus, esse lembrete
pode render falas sobre a relação entre caribenhos e o consumo de maconha
em Tony Soprano ou o preconceito de irlandeses pobres, oriundos de
Boston, contra negros em Ray Donovan .
Sempre escrevemos a partir de nossas referências, a dificuldade
consiste em distinguir e assumir quais são as nossas referências.
No primeiro curso de roteiro que fiz, ganhei de presente de um
famoso roteirista brasileiro um conselho primoroso: quem tem medo de ser
fofoqueiro não deve ser escritor.
Ele disse isso porque apresentei o roteiro de um curta-metragem
baseado numa história terrível sobre um pedido de esmola que uma colega
de ginástica havia contado para mim e para toda a turma. Ela contou sem o
menor senso crítico e eu, pimba, contei do ponto de vista do adolescente de
rua que a havia incomodado com sua fome e sua miséria. A minha
preocupação era a de que minha preconceituosa colega soubesse de minha
inconfidência e ficasse chateada. Eu estava mais preocupada com a opinião
pública do que com a narrativa. Não estava pronta, ainda, para publicar.
A maioria das pessoas não se acha fofoqueira, mesmo quando
exerce o comentário sobre a vida alheia.
Já um escritor, um roteirista é assumidamente alguém que pratica a
fofoca, a inconfidência. Por quê? Porque usa todas as suas referências.
Virginia Woolf disse, uma vez, que a literatura é feita de violência e
escândalo. Se não escrevermos sobre as histórias que nos contam, sobre as
pessoas que conhecemos, escreveremos sobre o quê?
A diferença é que um bom roteirista pega as histórias de vida e as
pessoas de carne e osso e as coloca no mundo inconfundível da sua
imaginação de forma tão essencial que as pessoas não se reconhecem. Isso é
criatividade, e eu estou falando sério. Já escrevi vários livros, vários
roteiros em que os personagens são inspirados em pessoas reais, histórias
reais e os homenageados não se reconhecem. Um espanto. Não se
reconhecem porque se é um homem pouco generoso no amor, um homem
que se preocupa apenas com seus próprios objetivos, eu faço uma irmã de
caridade que vai para outro continente, na véspera do aniversário do pai, e
fica sem aparecer e sem dar notícias durante 20 anos.
A pessoa de carne e osso em questão lê o meu romance e diz “Puxa,
que freira egoísta, do que adianta ajudar tanta gente e não se preocupar em
estar do lado do próprio pai?” É uma coisa boa que a pessoa possa refletir
sobre o egoísmo sem que alguém precise dizer para ela o quanto é egoísta.
Essa é uma função da narrativa magnificamente cumprida em algumas
séries dramáticas. Justamente pela construção benfeita de personagens.
Começar a listar as ações, o que faz ou como reage ao que os outros
fazem com ele é o que dará ao personagem uma feição própria.
Ações e falas, isso é drama, é televisão, não é literatura, não dá para
escrever parágrafos e mais parágrafos sobre como o personagem se sente
em relação a alguém ou a suas emoções.
Quando escrevi telenovela uma coisa que me ajudava era preparar
uma biografia para cada personagem. Eram muitos núcleos, sem a biografia
ficava mais difícil colocar em ação a máquina narrativa.
Quando escrevi teatro, colocava os personagens em ação e um
puxava o outro para a frente. Roteiro de cinema, eu faço primeiro o
argumento e os perfis.
Para construir personagens de séries dramáticas prefiro fazer perfis
com o essencial, o marcante, e deixar biografias e estudos psicológicos para
as notas. Cada roteirista terá o caminho que achar mais confortável e
inspirador.
Imaginar como reage a uma situação da sua história alguém que
você conhece de vista, profundamente ou de ouvir falar é um caminho
interessante.
Se aquele seu tio compassivo fosse o padre de uma comunidade
prestes a linchar moralmente um milagreiro como ele agiria?
Posso fazer uma lista de situações-limite a serem enfrentadas por
personagens inspirados em pessoas que eu conheço. Posso listar essas
pessoas, colocar suas características nos meus personagens e começar a
criar ações e falas para esses personagens.
A dificuldade para criar personagens complexos geralmente está
relacionada aos nossos próprios preconceitos. No roteiro e na vida, nós
tomamos partido, temos nossas simpatias, nossos rancores contra
comportamentos, contra defeitos. Aí é que mora o perigo. Quando criamos
um político manipulador e corrupto, precisamos entregar a ele alguma
qualidade que permita ao espectador enxergá-lo como “gente como a
gente”. Isso não é hipocrisia, é verdade. No mesmo lugar, nas mesmas
circunstâncias, com as mesmas características, nós agiríamos diferente?
Quando se escreve um conto, um roteiro de filme definir papéis é
mais fácil do que numa obra seriada. Porque quanto mais se escreve, mais
os papéis mudam. Um personagem pode ser mentor no episódio 1 e prêmio
22 episódios depois. Ou mentor no primeiro, adversário do protagonista no
14º e aliado do antagonista na quarta temporada.
E o papel de herói, então, que muitos confundem com o de
protagonista? Em Scandal , quando a equipe de Olivia recebe o encargo de
resolver o sequestro da mulher de um general/ditador latino-americano,
nada é o que parece ser, e Abby assume o papel de herói da narrativa
daquela que é a verdadeira protagonista dessa história C: a mulher do
general.
Um personagem pode também exercer mais de um papel,
dependendo do ponto de vista dos personagens com quem interage. Por
exemplo, Amanda Tanner é aliada do Bill, prêmio de Olivia (cliente a ser
salva) e adversária de Fitz, em Scandal .
Tony Soprano, além de ser um homem difícil, é também um
Odisseu, alguém que, para manter sua terra prometida, é obrigado a fazer
muitas tarefas, se submeter a inúmeras provas. É possível que muito do
sucesso da série se deva a nossa necessidade de assistir a esse tipo de
heroísmo.
Dexter mata sociopatas, criminosos cruéis e seriais. Mesmo que
desaprovemos o prazer que ele tira disso, no fundo, no fundo, infligir
sofrimento ou, pelo menos, eliminar sádicos assassinos é uma coisa que
muita gente pode aceitar.
Defina quais são seus personagens, criando perfis rápidos, só o
essencial, quatro a seis linhas para cada um. Em Scandal , é possível
colocar ao lado do nome Olivia Pope: autoconfiante e controladora.
Por quê? Porque ela diz que “sempre confia no próprio instinto, na
própria intuição” e isso é uma demonstração da hybris da protagonista,
hybris que dará ao autor a oportunidade de criar situações nas quais a
intuição dela está errada. Olivia Pope controla até a aliança com a qual o
assistente vai pedir a namorada em casamento ou as frases que vai usar.

Depois de definir o perfil, você precisa imaginar um arco de


temporada para os personagens principais, de saída para o protagonista.
Os personagens principais terão quais papéis (Herói? Vilão?
Prêmio?), quais mudanças você espera que ocorra com cada um deles?
Lembre-se de que papéis são mutáveis e devem constar no perfil de cada
um, correspondendo ao arco de cada personagem, algo como: “Leda
começa como adversária de Silvio, mas torna-se aliada quando descobre
que ele é seu meio-irmão”.
Pergunta muito importante para o arco do personagem principal:
qual mudança você imagina para o protagonista? Tem a ver com força e
fraqueza, precisa se relacionar com outros personagens, tem a ver com
problema e com pensata? As perguntas devem ser feitas antes de começar a
escaleta.

ESCREVENDO UM SPEC
DE SÉRIE JÁ EXISTENTE
Você já leu sobre teoria da narrativa, sobre formato de séries, fez a
engenharia reversa de várias séries como exercício... Vamos agora tratar de
uma es colha autoral importante: escrever o roteiro especulativo de uma
série dramática já existente. O spec é uma prática difundida no mercado
internacional para se recrutar roteiristas. Ou para roteiristas que não estão
num projeto mostrarem seu trabalho.
Em minhas oficinas, sempre recomendo que os roteiristas assistam a
uma série, façam uma bíblia fictícia daquela série e o roteiro de um
episódio da temporada seguinte. É um ótimo exercício.
No Brasil, no início de 2014, existem poucas séries dramáticas no
ar. No entanto, todo roteirista tem o direito de ter objetivos elevados. Você
pode escolher fazer um episódio de uma série estrangeira de sucesso:
Homeland , Scandal , Downton Abbey , Lilyhammer , House of Cards ,
Sherlock .
Alguns detalhes que você precisa considerar para escrever um
episódio de série já existente:
Antes e acima de tudo não escreva um episódio mostrando o quanto
você tem ideias mais inteligentes e criativas do que o showrunner que já
está garantindo cinco milhões de espectadores por semana.
Escreva um episódio novo, com os mesmos personagens principais.
Podem aparecer outros que você invente e combinem com a story line da
série. Isso se você fizer muita questão. O mais importante é mostrar que
você sabe fazer, por exemplo, o roteiro do último episódio da terceira
temporada de Scandal , coerente com os perfis já existentes e em
continuidade, de preferência surpreendente, com o que já foi mostrado.
Fazer o roteiro implicará ter feito, por conta própria, a sinopse do episódio e
depois a escaleta. A engenharia reversa da série (que você já fez, eu espero)
vai se mostrar essencial nesse ponto.
Use tópicos que combinem com o meio. Tópicos que permitam criar
cenas com diálogos.
Tópicos que combinem com a série. Você precisa ser íntimo dos
personagens. Caso esteja fazendo um episódio de Scandal procure lembrar
detalhes tais como: Abby “atira no que vê e acerta o que não vê”.
Assuntos que funcionem na tela. Isso parece simples, mas não é,
porque, às vezes, se imaginam coisas sofisticadas ou atmosferas que não
funcionam na tela da TV.
Outra coisa importantíssima: você precisa levantar todas as
perguntas que não foram respondidas no último episódio da última
temporada que está no ar para definir quais dessas perguntas serão
respondidas no seu spec .
No mais, a maioria das observações a seguir vale para escrever o
spec .

ESCREVENDO
A PRÓPRIA SÉRI E

Depois de pensar muito e ouvir outras pessoas, resolvi numerar o


roteiro a seguir. Parece que fica mais fácil, espero que sim.

1. Quatro linhas para a story line .


Rascunhe a story line já com a profissão do protagonista, o lugar em
que vive, a época, seu objetivo ou grande desejo e o problema que existe
entre o que o protagonista quer ou faz e a realidade que o cerca.
Elegeu uma história-base já com protagonista e sua atuação
principal, seu objetivo, seu obstáculo interno ou externo? Esse passo é
decisivo. Considere que pode ser necessário ir e voltar algumas vezes até
isso estar claro.

2. Categoria da série. Defina mesmo que seja como rascunho.


A profissão do protagonista por si só não define categoria, é
verdade. Uma policial que apanha do marido, tem conflitos com os filhos,
vem de uma família de comportamentos abusivos não será necessariamente
uma boa protagonista de um drama policial. Essa personagem pode estar
mais para drama familiar. A médica que trabalha em hospital, mas está
envolvida com tráfico de entorpecentes pode estar mais para o drama
policial do que para o drama médico.
E então? Será uma série médica como House ou Grey’s Anatomy ,
policial como 9mm ou Law & Order , política como Scandal ou familiar e,
ao mesmo tempo, de especialistas, como Ray Donovan e The Good Wife ?
A profissão do protagonista e seus objetivos, as duas coisas juntas,
definidas na story line , serão um indicativo da categoria na qual a série
dramática se insere. Apesar disso, avance mais um pouco antes de bater o
martelo. A não ser que seja ficção científica ou fantasia.
Gêneros que já foram muito explorados podem ser fonte de boas
histórias para projetos próprios. Você quer fazer um western, mas acha que
é uma coisa tão velha...
Será?
E se for um Bonanza no Nordeste brasileiro, nos dias de hoje? E se
o fazendeiro e seus filhos plantassem maconha e, ao mesmo tempo, fossem
religiosos? Atualizaria o gênero, não é mesmo?
A categoria está clara? Em que categoria se enquadra sua série? É
uma série de especialistas ou de personagem líder? Lembre-se: Elementary
não é sobre um detetive que tenta se manter longe das drogas, é sobre um
homem com grande capacidade de investigação que busca desvendar crimes
com o auxílio de uma médica encarregada de mantê-lo longe das drogas.

3. Tema, pensata, princípio moral.


Sempre começo a escrever pela story line , mas, às vezes, definir o
tema antes ajuda bastante. Um caminho criativo pelo tema pode iniciar
assim:
“Quero escrever sobre uma questão que me atormenta desde
pequena: por que as pessoas são malvadas, abusadas, folgadas com pessoas
legais?”
Vejam que essa é a temática de The Good Wife . Funciona para
Alicia Florrick. Pode funcionar para você como inspiração para definir a
story line .

4. Mundo inconfundível. Story line definida, escreva como cada


elemento da narrativa a esclarece, expande.
Época e local. Story lines às vezes já nascem, já saem de nossa
imaginação com época e local claros e definidos. Às vezes, não. Você
determinou qual época e local e se esses elementos estão colocados de
forma imprescindível?
Cenários são importantes no mundo inconfundível. Mantenha em
mente todos os seus exercícios de engenharia reversa. Faça escolhas
significativas. Cenários essenciais para os personagens que realmente têm
importância na narrativa. Cenários que ajudem a trama a ir adiante.
Uma série excepcional na caracterização de mundo inconfundível a
que você não pode deixar de assistir antes de escrever o seu roteiro é True
Detective . Porque os cenários, a época, os protagonistas são tão Louisiana,
são tão detetives do interior, combinam de tal forma com a época e o lugar
em que vivem que a história não poderia se passar em outro lugar.
Às vezes, determinar o local e época na story line faz toda a
diferença. Às vezes, não. A história de um chefe mafioso em Nova Jersey,
em 1990, sofrendo ataques de pânico não é a mesma coisa que um chefe
mafioso em Nova York, em 1948. É só observar a trajetória dos filhos de
Tony Soprano e a dos filhos de Vito Corleone para identificar o que muda.

5. Quem são os personagens que atuarão junto ou contra seu


protagonista?
Escreva quatro linhas sobre cada um dos personagens principais,
descreva os cenários em que considera importante que os seus personagens
transitem. Nisso, você terá, talvez, três páginas para o mundo da sua série.
Duas coisas importantes sobre personagens em séries dramáticas:
Escritor que não acredita em heroísmo deve pensar bem antes de
escrever drama. Porque sem perda e sem tentativa de reparar a perda, não
tem herói. E sem perda, não tem drama.
Em decorrência dessa especificidade do drama ― a necessidade um
herói ― é preciso ter em mente que, quanto mais imperfeito for um
personagem no início da temporada, mais fácil é para o roteirista criar uma
trajetória de herói de si mesmo.

6. Será uma série de trama seriada ou de trama a cada episódio?


Quantos episódios terá a primeira temporada?
Caso você esteja escrevendo uma série de uma trama por episódio,
você terá que prever a trajetória dos personagens principais.
Quando a série proposta for de trama seriada, a sinopse deve indicar
quais histórias vão se prolongar por um, dois, três episódios, qual vai do
início ao fim da temporada. Cada episódio pode ser descrito em até dez
linhas, não precisa mais do que isso, e esse espaço deverá prever histórias
A, B, C. Faça um ou dois parágrafos sobre isso.

7. Sinopse geral da temporada. Rascunhe quais são os eventos


mais importantes do início ao fim.
A sinopse, lembre-se, é uma apresentação, sob forma de resumo, de
todo o enredo. Quais são os eventos que marcam as etapas da narrativa em
sua série? Como serão apresentados os personagens? Qual evento vai
marcar a ruptura? E a divisão? No final da temporada, o que terá acontecido
com os personagens? Você pode gastar quatro, oito, dez páginas nisso.
Mantenha como rascunho.
Mais um lembrete: o enredo é o desenvolvimento da trama e é o que
determina o arco da temporada. Defina o princípio que “costura” o enredo,
o que modela e dá sentido à estrutura narrativa.
Cheque se o que você imagina que seja o arco do protagonista se
sustenta.

8. Ainda na sinopse geral, qual tipo de narrativa você usará na


sua série?
A definição mais importante, nesse ponto, é o tipo de narrativa que
você usará. É muito importante que até aqui você tenha comprovado, na
prática de assistir séries, quais são os tipos de narrativa que predominam.
É fácil errar a mão na escolha do tipo de narrativa que se vai usar
para contar uma história.
Algumas vezes, confundimos inovação com dificultar a vida do
espectador, esquecendo que o espectador de televisão é o sujeito mais livre
que existe. Ele quer beber água? Está a dez passos. Quer falar ao telefone
ou celular, enquanto assiste televisão? Fala. Quer conversar com quem está
do lado dele, na sala dele? Conversa. Quer apertar o controle remoto e tirar
a atenção da série na qual você trabalhou 12 meses, oito a dez horas por
dia? Aperta. Talvez não volte nunca mais.
Faço aqui uma sugestão, defina o tipo de narrativa como um
rascunho.
Um exemplo: decido usar narrativa em labirinto. Faço de conta que
sou Homero.
Começo no ápice, no momento em que os pretendentes querem
obrigar Penélope a casar porque Ulisses com certeza não voltará mais. O
filho, Telêmaco, é convencido por Mentor, Palas Atená disfarçada, a buscar
notícias do pai e com isso consegue enrolar os pretendentes na esperança de
que Ulisses ainda volte. Ano 20.
Um parêntese. Em estratégias, no rascunho da sinopse, é
interessante você anotar qual vai ser o ponto de vista. Nesse caso, o ponto
de vista é geral. O dos pretendentes, de Telêmaco e de Ulisses.
Continuando com a Odisseia , de Homero.
Conto as viagens de Telêmaco atrás de notícias do pai. Conto as
peripécias de Odisseu para voltar, com inserts da ajuda de Palas Atená
como mentora e negociadora junto aos deuses. Conto um pouco dos
bastidores do palácio, em Ítaca.
Aqui o leitor sabe de tudo, mas tem que suar a camisa para
acompanhar.
Porque, em Esparta, Menelau vai contar a Telêmaco o que aconteceu
em Troia no ano 9. Atená vai negociar baseada no que aconteceu no ano 11,
sem contar os eventos paralelos com Ulisses no ano 20.
Difícil? Muito.
Considere o seguinte: A Guerra de Troia deve ter ocorrido por volta
do século XIII a.C. A Ilíada foi publicada cinco séculos depois, em Atenas.
Ou seja, a epopeia de Ulisses levou cinco séculos sendo contada para depois
se concretizar em palavras escritas.
Mais: essas histórias foram contadas numa época em que não existia
luz elétrica, telefone, computador, smartphone , não existiam, nem ao
menos, livros. O que um indivíduo poderia fazer, nas horas vagas, em vez
de escutar as histórias que o bardo contava, nos campos de batalha, no
palácio, na acrópole, em Epidauros? Sexo, talvez. Drogas, sendo a bebida a
mais comum, mas não a única. Só que mesmo sexo e drogas, apenas,
cansam.
Escutar histórias, comentar histórias eram a diversão. Por isso, a
narrativa em labirinto funcionava. Havia um bardo eficiente, conduzindo a
epopeia, sendo o próprio, de corpo presente, fio de Ariadne, que fazia o
espectador exclamar espantado: entendi!
Nos dias de hoje, na televisão, é arriscado escolher um modo
narrativo que dificulta a apreensão da trama e dificulta a empatia com os
personagens. Especialmente se for a primeira vez que estiver escrevendo
uma série dramática para TV.
Decida, então: a narrativa será linear, com alternância de histórias,
cenários, mundos? Ou linear apenas? Será de encaixe? Narrativa em
árvore? Em espiral? Toda em espiral ou só em alguns momentos?
Definido o tipo de narrativa...

9. Escreva quais estratégias você usará na sua série. Estratégias


narrativas são essenciais para se contar bem uma história.
Existirá apresentação fixa, qual? Escreva alguns parágrafos a
respeito. Alguns mesmo, três, no máximo quatro.
Nesses três ou quatro parágrafos deixe claro se a série terá
apresentação fixa + teaser + quatro atos ou se o teaser será resumo do que
aconteceu nos episódios anteriores + cinco atos.
Caso exista uma apresentação fixa, qual será?
Como o passado, o background dos personagens, os segredos
inconfessáveis serão revelados? Flashback ? Sonhos? Alucinações?
Lembranças acordado?
Terá narrador? Em parte? Quando entrará o narrador ou voice over
de algum personagem?
Gancho. Vai aparecer ao final de cada episódio como gancho para o
próximo, assim como em Homeland ou Scandal ? Ou cada episódio vai
morrer numa cena de emoção contida como em Família Soprano e Masters
of Sex ?
Como sua série abordará temas delicados? Um parágrafo será
suficiente, de preferência esclarecendo como as imagens das ações dos
personagens serão apresentadas. Sexo, infidelidade, deslealdade entre
amigos, violência, incesto, serão sugeridos ou explícitos?
Um exemplo seria como o ato sexual é tratado em Masters of Sex :
aparecem os seios, a barriga da mulher, o amigo descendo o rosto na
direção da pelve dela depois que ela diz “Eu fiz em você, agora você faz em
mim”.
Se você chegou até aqui e está tudo certo, então já tem o rascunho
da sinopse geral de sua série, com perfis dos personagens, resumo da trama
com as situações de apresentação, ruptura, divisão, decisão e conclusão
gerais. Terá também uma apresentação geral das estratégias narrativas e isso
é mais do que a maioria das bíblias que eu já li tem.
O mais importante de tudo, você terá intimidade com o que
imaginou. Isso não tem preço para um escritor.
É verdade que boa parte do que você escreveu pode ser modificado
nos próximos passos, mas está imaginado, registrado e escrito. Você
venceu. Até aqui. Pode comemorar.

10. Sinopses dos episódios.


Minha sugestão é de que esse exercício se dê com uma temporada
de, no máximo, 13 episódios.
Sinopses dos episódios é um item subordinado a todos os anteriores,
especialmente ao resumo de todo o enredo da temporada.
As sinopses dos episódios devem apresentar os personagens
conforme as necessidades da trama, as complicações que enfrentam, como
resolvem as complicações, qual o conflito principal de cada episódio.
Escreva de seis a oito linhas por episódio. Caso sua série seja de
especialista ou uma série com tramas por episódio, como Medium , The
Mentalist , Sherlock , Elementary ou tantas outras, certifique-se de que a
trama está acabando ali. Com os principais eventos dos casos ou histórias
que se esgotarão no episódio.
Caso seja de trama seriada, dedique duas linhas para cada história A,
B, C.

Tom. Em geral, especialmente para escritores iniciantes, facilita que


o tom seja o que apresenta maior afinidade com o roteirista.
A mistura do drama com humor, a dramédia, será mais fácil para
quem já tem o pé no texto de humor.

11. Tom tem a ver com autenticidade. Aliás, tudo o que você
definiu até aqui ficará muito melhor se for autêntico.
Autenticidade em relação ao gênero, ao tema, ao tom é
imprescindível para escrever bem um projeto de série dramática.
Se você pretende que as pessoas gostem do que você escreve, seja
sincero. Todo livro para roteiristas diz isso, é uma sugestão importante,
mas, de novo, a questão é: como ser sincero?
Em primeiro lugar, escreva sobre o que toca seus sentimentos, o que
emociona você. São histórias sobre como os poderosos são prepotentes,
corruptos e não ligam para pessoas comuns?
O exercício pode ser escrever sobre um homem comum que
consegue se impor num ambiente dominado por esse tipo de gente.
São histórias de amor desesperado lutando contra todo tipo de
obstáculos?
É a história do seu bisavô, que passou por dificuldades para criar a
família sozinho, sem a ajuda de uma mulher, coisa incomum na época dele?
Mesmo que você não vá estrear em séries dramáticas com suas
histórias pessoais, treine a mão com essas histórias, tentando responder às
perguntas de enredo ― onde se passa, em que época, quais são os
personagens, o que eles fazem... ― de forma diferente do que aconteceu na
vida real. Pelo menos um pouco diferente.
Você vai treinar como expor sua sinceridade.
Use sua experiência, seus conhecimentos, suas ideias para os seus
personagens.
Não escreva histórias que poderiam funcionar com quaisquer
personagens.
Escreva sobre assuntos, eventos que expressem sua experiência, sua
visão e seus conhecimentos.
Stephen King escreveu dezenas de histórias que se passam em
cidades pequenas. Woody Allen levou décadas para sair de Nova York e,
mesmo depois que suas histórias começaram a se situar em outras cidades,
o roteirista e diretor leva os nova-iorquinos para lá. Por que escritores
experientes e bem-sucedidos fazem isso? Porque é mais fácil lidar com o
que conhecemos, é mais fácil ser autêntico assim.
Isso contraindicaria escrever a sinopse de uma série que se passa no
interior do Brasil se o criador é do Rio de Janeiro ou de São Paulo? Não. O
que acontece é que pessoas nascidas e criadas em cidades grandes podem
ter dificuldades de exercer empatia com o quanto é apavorante viver
situações fora do comum, numa cidade pequena, onde todo mundo conhece
todo mundo. Situações como a de Broadchurch , em que um pré-
adolescente cai de um penhasco no meio da noite e morre. O evento faz
com que cada um passe a desconfiar do vizinho que conhece a vida inteira.
Qualquer um, na rua, passa a ser suspeito de ter cometido um assassinato...
Caso você já tenha escrito a sinopse geral e as sinopses dos
episódios, veremos agora a questão das escaletas.

12. Escaletas de episódios é uma etapa de trabalho fundamental


para ver se o que você imaginou está dando certo.
Faça pelo menos as escaletas do primeiro, segundo, terceiro
episódios. Por quê?
Para que você veja se as histórias A, B, C funcionam; mais, se a
sinopse funciona.
Para saber, antes de escrever o roteiro do primeiro episódio, qual o
eixo da sua série na prática, o que vai acontecer durante algumas semanas.
Você se lembra do que foi dito anteriormente. Qual é o drama?
Salvar donzelas em perigo? Voltar para casa? Derrotar alienígenas? Qual o
eixo, semana após semana?
Essas escaletas protegem o roteirista que (ainda) está trabalhando
sozinho da tentação de jogar no primeiro episódio todos os acontecimentos
que considera importantes.
Muitas equipes usam cartões coloridos antes de escrever a escaleta
do episódio. Uma cor para a história A, que deveria ter entre 12 a 16 cenas,
já que é a principal. Outra para a história B, com 8 a 12 e outra cor para a
história C com quatro a oito cenas. Um episódio teria então entre 24 e 36
cenas. É pouco para uma série dramática, mas é um número razoável para
uma série dramática teen , por exemplo.
As séries dramáticas citadas neste livro têm, em média, uma hora. A
proporção seria a mesma. De 16 a 22 cenas para a história A, de 12 a 18
para a história B, de seis a dez para a história C.
Outros grupos preferem trabalhar com beats . Cada ato deveria ter
12 beats , o que dá um total, numa série de cinco atos, de 60 beats por
episódio. Um por cena.
Outra forma é rascunhar tudo o que o personagem principal vai
fazer naquele episódio. O arco do protagonista. Eu gosto desse caminho,
rascunho do arco como pré-escaleta, porque só dá para colocar o
protagonista interagindo com situações e com outros personagens. Primeiro
proponho o arco do protagonista, faço o entrelaçamento da história A,
depois faço o da B, depois o da C, depois corto, corto, corto.
O rascunho de arco de protagonista, ou trilha da história A, o meu
preferido, só funciona como rascunho mesmo. Na hora de ir para a sala de
roteiristas, penso que os cartões são imbatíveis. Para um indivíduo
trabalhando sozinho, como exercício, dá para combinar os dois processos.

Na combinação entre o processo colaborativo de cartões coloridos e


com rascunho individual de arco do protagonista, as falhas da nossa
imaginação ficarão imediatamente claras. Se uma cor aparecer muito mais
do que outra é porque a história não dá para ser contada no espaço de um
episódio. Se o protagonista só contracenar com um personagem, a sinopse
estará sendo traída.
A escaleta deve indicar se é exterior ou interior, se é dia ou noite,
cenário e descrever o que acontece na cena em, no máximo, quatro linhas,
indicando se ocorreu diálogo e, tendo ocorrido, sobre o que foi.
Como você vai observar, a escaleta pode ter mais cenas do que a
lista de eventos emocionantes. Porque histórias não são contadas só na
emoção, existem as cenas de respiração, não são inúteis, não são cenas de
“encher linguiça” e, principalmente, não são cenas de comentários.

Uma pequena lista com dois “nãos”. Não é para os personagens


contarem pedaços das histórias um para os outros. Não esqueça que você
está escrevendo dentro do gênero dramático, definido, há 26 séculos, como
o gênero no qual a narrativa se move pela ação e pelas falas dos
personagens. Fazendo coisas.
Você vai observar aqui, depois de ter feito tudo isso, inclusive as
escaletas de quatro episódios, que alguma coisa do que estabeleceu como
estratégia narrativa caiu por terra. Não se preocupe. É comum. Você
imagina que vai fazer movimentos mirabolantes, mas aí a trama e os
personagens o pegam pela orelha e o vão arrastando. Todos os seus
movimentos de inovação e vanguarda se revelam inúteis na escaleta, você
esqueceu que eles existem e, quando vai reler, ficou ótimo. Você venceu de
novo. Dessa vez, venceu a própria pretensão de colocar excessos na obra, a
ruína de muitos autores. Pode comemorar.
Agora vamos para a escaleta, refeita, relida, do primeiro episódio. A
escaleta está dividida por atos.
Uma estrutura confortável de escaleta gastará o primeiro ato
apresentando os personagens e as situações que eles enfrentam, o ato II
apresentará a ruptura; o III, o aprofundamento da ruptura com seus
obstáculos e auxílios; o IV, a divisão; o V, a decisão ou o gancho para o
episódio seguinte.

Todos os cinco ou seis atos ( teaser + cinco) do primeiro episódio


estão escaletados? Leia em voz alta ou mostre para alguém que entende de
séries e as aprecia. Reescreva cortando ou acrescentando eventos,
esclarecendo pontos.

Claro que sua série não está no ar, mas se você seguir o rascunho
sugerido de 1 a 12, terá quase uma bíblia de série e um roteiro de piloto
como demonstração de sua competência como roteirista.
Isso é indispensável para escrever um piloto?
Bíblia não, mas é essencial um projeto de 10, 20 páginas, com story
line , sinopse da temporada, arco e perfis dos personagens principais. Assim
você terá um projeto com uma boa apresentação.

ROTEIRO
DO PRIMEIRO EPISÓDIO

Agora, você já deve estar com tudo pronto para escrever o roteiro do
primeiro episódio.
Veja que não estou dizendo que você precisa escrever os roteiros de
todos os episódios. Série dramática é uma escrita colaborativa.
Roteiro do primeiro episódio é essencial para vender uma série para
um canal ou, no caso do Brasil, para mostrar a uma produtora que você sabe
escrever roteiro.
“Ah, mas eu sou um escritor experiente, dez livros publicados, boa
crítica, conheço as pessoas certas.”
Sinto dizer que nossa informalidade cultural brasileira não funciona
para produzir séries dramáticas competentes. Pode ser até que consiga
emplacar uma série sem uma minibíblia como foi descrito anteriormente.
No entanto, as chances de a série não se sustentar são grandes.
O ideal é que você trabalhe já num programa de roteiro. Story Touch
é brasileiro e muitos roteiristas gostam dele. Existe também o Final Draft e
vários outros. Em geral, os programas têm uma versão free , de teste. Use e
veja qual é mais confortável para você.
De qualquer forma, você precisa ter anotado, no programa e em
outro lugar, os dados abaixo e nunca perdê-los de vista. História-base, tema
(pensata), enredo, personagens + cenários (mundo inconfundível), trama
(etapas). Esses elementos devem ser considerados a cada fala e ação dos
personagens, devem ser considerados a cada interação, a cada diálogo entre
os personagens.
Cada paralela, cada sequência de grupo de personagens precisa
apresentar esses elementos de forma orgânica. Eles são importantes para
cada rubrica de cena.
No primeiro episódio de um drama de ação, ocorre a apresentação
de possíveis conflitos, armadilhas, tentações que o protagonista vai
enfrentar. Ele será herói de si mesmo? Como vai ser sua trajetória de herói?
Essas perguntas não deverão ser respondidas de uma vez só. O que o
espectador precisa saber é quem é o possível antagonista, quem são os
prováveis adversários externos e, se possível, internos.
Vamos recuperar a comparação de Downton Abbey com Scandal .
Em Scandal , primeiro episódio, dois minutos e o que é que o
espectador já sabe?
Sabe que Olivia Pope é “a” cara e que ela é uma mulher, uma
mulher negra, que sabe melhor do que ninguém resolver problemas graves.
Em Downton Abbey , o que é mostrado primeiro é o mundo
representado pela mansão. Mary não é a protagonista, na verdade, a Mansão
é protagonista. Todos avançarão ou sucumbirão juntos. Os avanços, as
derrotas ou os desaparecimentos acontecem em ritmos diferentes, mas todos
estão unidos em torno da mansão.
As ações e falas no primeiro ato do primeiro episódio já apresentam
características importantes dos personagens e do contexto.
Ray Donovan não julga comportamentos dos clientes.
Abby, de Scandal , julga a tudo e a todos.
Abby (mulher de Ray Donovan) invade o iPad do marido e assume.
Bunchy foi molestado em criança, tem anorexia sexual.
Terry tem Parkinson e lutou boxe em excesso, tem medo de se
envolver com mulher.
Carrie leva sua profissão de analista da CIA e suas convicções até as
últimas consequências.
Um parêntese:
A vantagem de apresentar o roteiro de um primeiro episódio é que a
bíblia fica mais clara. A desvantagem é que é fácil errar a mão num
primeiro episódio.
Você pode, então, fazer os roteiros do primeiro episódio e do quarto,
por exemplo, já que você fez as escaletas do primeiro, segundo, terceiro e
quarto. No quarto episódio, a trama estará mais consistente.

RELEITURA
DO PRIMEIRO ROTEIRO

Um item importante depois do primeiro rascunho pronto é a


releitura do roteiro.
Leia como leitor, não como escritor. Anote tudo o que lhe parecer
falso, reescreva falas isoladas. “Ninguém fala assim”, você pensa lendo.
Redija de outra forma as frases de como esse ou aquele personagem deveria
se manifestar na situação específica.
Às vezes, uma cena que está no quarto ato ficaria melhor no
segundo ou no terceiro. Anote. Tudo vai ajudar na reescrita.
Repertório. Não se acanhe quando na releitura descobrir que alguma
cena ou personagem estão parecidos com o que você já leu ou assistiu.
Roteiristas experientes, escritores experientes também fazem isso.
Consciente ou inconscientemente.
Isso acontece em Homeland , terceira temporada, quando Saul
reencontra a esposa depois de conseguir a vitória na operação. Igualzinho a
Smiley e a esposa, personagens de John Le Carré. É um exemplo na linha
Os Brutos Também Amam que sempre funciona. Você não vai inventar a
pólvora ou a eletricidade (como bem disse a personagem de Downton
Abbey ). Vai apenas contar bem uma história e isso é muita coisa.
Aliás, a dobradinha judeu e iraniano está semelhante a Smiley e
Karla, espião soviético, nos livros de John Le Carré. Suponho que seja
difícil escrever uma série de espionagem sem ter lido esse autor.
Inconsciente ou conscientemente está no repertório do roteirista, mais cedo
ou mais tarde vai para o roteiro.
Bonanza , o mais longo seriado de todos os tempos (até que um dos
atuais o supere), traz um fazendeiro viúvo, seus três filhos e um cozinheiro
chinês. O seriado é de 1959, se passa em Nevada e é um western dramático.
East of Eden , livro do escritor John Steinbeck, traz um ex-
fazendeiro viúvo, seus dois filhos e um cozinheiro chinês. O livro, de 1952,
é uma trama de expansão de fronteira na Califórnia, e traz personagens
trágicos, como os que protagonizariam Vidas Amargas , de Elia Kazan,
mais tarde.
Quem escreveu Bonanza se inspirou em East of Eden ? Pode ser,
mas isso não é plágio. É intertextualidade. Gosto de reconhecer o diálogo
com outros textos no que escrevo, mas nem todo mundo gosta. Não é
obrigatória a autoconsciência.
Releia suas anotações. Lembre-se de que o roteiro deve estar justo.
Nada sobrando. Nada faltando.
Diálogos são uma questão a se considerar. Nelson Rodrigues disse:
“Reclamam de que meus diálogos são pobres. Só eu sei o trabalho que me
dá empobrecê-los.”
É difícil mesmo, para um escritor ou roteirista, escrever como as
pessoas falam. Basta, no entanto, assistir a alguns exemplos em séries para
entender como é importante escrever diálogos “empobrecidos” como os da
vida.

Penso especificamente em um bate-boca entre Meadow e Tony


Soprano. Walter, em Breaking Bad , discutindo uma surpreendente
sociedade com seu ex-aluno. O casal de mulheres se desentendendo, depois
de uma infidelidade, em Grey’s Anatomy .
Siga o exemplo dos bons roteiristas. Faça diálogos curtos.
Na releitura, você encontrou falas de mais de duas ou três linhas?
Não estarão retóricas demais? As pessoas falam assim?
Alguns poderão argumentar que as compulsivas, as ansiosas falam.
Quando você construir um personagem desse tipo, mostre ações de outros
em contraponto, faça que isso tenha um efeito imediato sobre os outros
personagens ou sobre a realidade. E não abuse da paciência do espectador
colocando falas enormes o tempo todo.
Dicção dos personagens. Isso é essencial e foi ao que me referi no
roteiro do primeiro episódio de 9mm . As pessoas falam coisas parecidas de
forma diferente. As pessoas falam coisas diferentes sobre um mesmo
assunto. Se dois personagens parecem clones programados no mesmo tom,
a dicção de um deles está errada. Ou talvez você não precise dos dois
personagens e possa cortar um.
Conflito. Suas cenas de conflito demonstram conflito mesmo? As
ações e falas dos personagens vão nessa direção?
Quando, em Broadchurch , o pai de Danny se recusa a revelar onde
estava na madrugada do desaparecimento, isso desencadeia emoções
conflitantes em vários personagens. Quem põe a solução do conflito em
andamento? A filha dele. Isso é surpreendente. Cada cena dessa sequência é
plena de conflito e de suspense.
Seu roteiro tem cenas assim? Não se esqueça de que está escrevendo
drama.

Cenas se aproximando do final do ato. Gancho, suspense, beat ?


Seja coerente com o que você mesmo definiu. Não dá para um ato terminar
de um jeito, o segundo de outro, o terceiro idem. Para ter estilo (se é isso
que você está procurando no piloto de uma série) é preciso ser coerente.
Para ser coerente é preciso fazer o que foi definido lá atrás, na sinopse, nos
12 passos que não são para você se livrar de um vício e sim para adquirir
um vício. O de escrever bem o que você quer escrever bem.
LENDO SEU ROTEIRO
DE NOVO

É importante reler com senso crítico. Não faça como aquele


personagem comunista, num romance de Jorge Semprún: “Camarada, eu
vou fazer sua autocrítica.” Adoro essa frase pelo absurdo dela. Autocrítica
não é para ser feita de fora, óbvio. Mas algumas pessoas têm essa pretensão
em relação ao outro, e alguns escritores, por não conseguirem ler como
leitores, dependem da crítica alheia. Não dependa de que alguém faça a sua
autocrítica.
Acostume-se a ler seus próprios roteiros de maneira crítica. Não é
para escrever como crítico (erro comum a muitos escritores iniciantes que
ficam paralisados por seu crítico interior). Escreva como escritor, escreva
como fã do supercriativo mundo criado por você e leia e releia como
crítico.
Mostre seu roteiro para pessoas em quem você confia ou, melhor
ainda, leia-o em voz alta para pessoas em cuja competência narrativa e em
cuja honestidade intelectual você confia. Você tem essas pessoas a sua
volta? Espero que sim.
Não bastam, porém, competência narrativa e honestidade
intelectual. Tenha certeza de que essas pessoas partilham do mesmo gosto
que você. Não adianta mostrar um roteiro de ficção científica para uma
pessoa que sabe escrever, é honesta, mas detesta o gênero. Nem mostrar
para quem não conhece séries e nunca leu roteiro. Não dá para confiar
100% na opinião. Resumindo: sua mãe que acha o máximo tudo o que você
faz, mas não assiste série não será uma boa leitora. Aquela sua amiga ou
amigo invejosos estão fora.
Escolheu seus leitores ideais? Defensividade não ajuda. Seus
primeiros leitores foram chamados para criticar, não apenas para aplaudir.
Anote as críticas, as sugestões de corte.
Imagine que você está assistindo ao episódio original que escreveu.
Cena por cena. Cada cena está perfeita, redonda? Não? O que falta?
Se você escreveu um spec de Homeland ou de Broadchurch , reveja
a série escolhida. Seu roteiro está parecido? Melhor? Pior em quê?
Reescreva.
Se você escreveu um spec do primeiro episódio de uma série
policial, reveja séries da mesma categoria. O seu está tão coerente e atraente
quanto? Não? Reescreva.
Às vezes, algumas cenas que foram escritas para serem comoventes
não comovem. Porque não foram preparadas. Se esse for o seu caso,
escreva a cena que falta. Releia o roteiro de Broadchurch . Reveja a série.
Reveja Tony Soprano contando para a psicanalista, no primeiro episódio, da
primeira temporada, como foi o seu dia.
Esquecimento de personagens importantes. Protagonista e
personagens principais não podem sumir dos atos. Se algum desapareceu, é
preciso reescrever.
Corte. Um princípio importante de qualquer reescrita é o desapego.
Se uma cena não puxa a narrativa para a frente, por mais bem escrita que
esteja, corte.
Corte e ritmo. É preciso rigor no início e no final de cada cena.
Cenas com mais linhas do que é necessário para começar a fazer sentido ou
para terminar precisam de tesoura.
Você se lembra dos exercícios de engenharia reversa? Chegou a hora
de aplicá-los ao seu roteiro. Releia anotando todas as vezes que um
personagem fez ou falou alguma coisa. Este é o arco dele. Tem buracos, se
repete, não ajuda a iluminar um personagem principal? Reescreva a
trajetória ou tire o personagem de cena.

ÚLTIMAS SUGESTÕES

Aplicar ao seu roteiro o que absorveu deste livro.


Pesquisar séries de cada showrunner que o impressionou.
Não se desesperar se parecer que seu roteiro jamais será levado às
telas. Ann Banning escolhe roteirista lendo roteiros originais.
Não pare de escrever e propor projetos, o mundo do audiovisual
esquece rápido das pessoas e custa a descobrir novatos.
É bom não se sentir sozinho. Leia o que autores de séries pensam do
assunto. The Audacity of Despair , de David Simon, é um bom espaço para
você ler o que pensa um autor de televisão.
Caso você consiga na primeira tacada vender sua série e colocá-la
no ar, evite a acomodação. Não entre numa de viver só de êxitos passados,
pessoas criativas precisam se renovar constantemente.
Viaje. Para os países que exportam séries, para os países que
importam séries e, principalmente, conheça o Brasil.
Tenha empatia. Costa-Gavras escreveu boa parte de seus filmes e a
maioria dos seus personagens é multifacetado, independente das simpatias
pessoais ou políticas do roteirista.

SÉRIES DRAMÁTICAS
NO BRASIL:
ENTREVISTAS
COM QUEM FAZ

ROBERTO D’AVIL A

Atua há 29 anos em televisão, vídeo e cinema. Diretor da Moonshot


Pictures, trabalha com concepção e desenvolvimento de propriedades e
produtos audiovisuais para cinema e televisão.

Quantas séries dramáticas você produziu?

Produzi 9mm São Paulo e agora Sessão de Terapia , que está indo para a
terceira temporada com texto 100% nosso, já que não existe uma terceira
temporada na série original, israelense.

Como foi o processo de criação na série 9mm e em Sessão de Terapia ?

Na série 9mm eu tinha como sócio na criação o Nilton Canito, que era o
roteirista chefe principal. No início, eram mais dois roteiristas, que
acabaram não funcionando, e a equipe acabou ficando com mais seis
roteiristas e o Nilton como coordenador.
Para a série Sessão de Terapia busquei gente que também tivesse
experiência com teatro, já que é um tipo de dramaturgia muito baseada em
teatro.
Hoje, temos, no momento, no projeto, a coordenadora que assina todos os
roteiros, que é a minha autora principal, minha chefe de desenvolvimento,
Jaqueline Vargas, e temos mais cinco roteiristas.
Essa é a mesma configuração das duas temporadas anteriores.
Recompusemos a equipe de cinco na segunda equipe, porque um não
funcionou e aí voltamos aos mesmos roteiristas que tinham funcionado.
Esses já conheciam a nossa linguagem e jeito de trabalhar.

Algum projeto novo de série dramática?

Tenho duas que estão já em fase de negociação e de financiamento e que


devem acontecer no ano que vem.

A sua política de produção de série é criar uma equipe interna?

É. Eu poderia primeiro emplacar uma série, depois contratar, mas a


tendência aí é que a equipe seja menos consistente ao longo do tempo.
Outra questão é que o roteirista com experiência acumulada talvez não
esteja disponível no momento que eu preciso.
O know-how estabelecido dentro da produtora sobre o formato e sobre a
linguagem específica do produto atende ao roteirista mesmo que ele não
tenha tanta experiência. O roteirista vai ter alguém com mais domínio do
processo para orientar o trabalho dele, se ele tiver ferramenta intelectual e
desprendimento suficiente para ser orientado.

Como você seleciona roteiristas?


No início, contratávamos perguntando: o que você já fez?
O candidato respondia: eu fiz isso, fiz aquilo, fiz tal curso de roteiro.
No meio do processo percebíamos que muita gente não tinha repertório.
Mudamos o processo de seleção porque percebemos que fazíamos a
pergunta errada.
Começamos, então, a fazer perguntas diferentes: o que você já leu?
Conhece os clássicos, já leu a Ilíada e A Odisseia ? Você sabe qual é a
estrutura da narrativa da comédia grega? E da tragédia grega?
Essas coisas estão por trás da formação dramatúrgica das pessoas. Nossa
seleção passou a achar pessoas que tinham um pouco mais de referência.
Muita gente tem curso de técnica de roteiro e não tem repertório. Num certo
sentido é muito importante você saber dramaticamente qual é a conjuntura
da história que você está montando, como você vai estabelecer os
personagens, de onde eles vêm, em que ambiente historicamente dentro da
história da dramaturgia eles estão postos.
O repertório dá muito mais ferramentas para a criação de alguma coisa
nova, original. Eu costumo dar um curso de roteiro a convite do pessoal da
pós-graduação da FAAP e sempre digo aos alunos: desconfie das suas
opiniões. Você tem uma ideia e começa a escrever, se você não pesquisou,
se tem um repertorio limitado, acaba achando que tem um jeito certo de
escrever essa história. O problema é que esse jeito certo não é
necessariamente o melhor jeito de contar a história.
Nós temos um time fixo na casa. Temos também, naturalmente, recursos
limitados, então estabelecemos uma ordem de prioridade do que eu acho
que está faltando. Por exemplo, pode faltar em nossa carteira mais uma
comédia para determinado perfil.

E aí você levanta a comédia para vender?


Quando levanto para vender já estou em um estágio bastante avançado de
desenvolvimento, tem que ter roteiro de piloto pelo menos.

Você só faz roteiro de piloto depois que consegue um canal?

Não. Quando a gente acredita na série, avança até o piloto porque é onde
você testa as suas premissas. Mesmo que a gente ainda não tenha
compromisso de produção, faz pelo menos a leitura, revisa os personagens,
controla a voz deles, vê se aquelas situações funcionam. Quando você vai
conversar com o canal, isso já deve estar feito.
Um episódio inteiro de temporada mais algumas sinopses de episódios
posteriores dão uma percepção melhor para o outro sobre se aquilo de fato
virá como série ou não.
Aqui na produtora prezamos muito pela consistência da entrega. Tudo o que
a Moonshot tem posto no ar tem funcionado, tem audiência, tem
repercussão, as pessoas se vinculam àqueles personagens e as pessoas dão
um retorno positivo em relação a isso.
Queremos de fato manter consistência, por isso temos grande autocrítica no
nosso trabalho.

Como está o conhecimento de séries no Brasil hoje, início de 2014?

A gente tem pouca sofisticação aqui no Brasil nessa discussão sobre séries,
até porque, se você pegar o universo de TV paga de séries estrangeiras, tem
muita coisa diferente misturada.
Na TV paga brasileira, existem séries de TV aberta americana, séries de TV
paga americana, séries de canal premium supersofisticadas, tudo isso se
mistura naquela programação.

Como você lida com propostas externas?

Eu recebo muitas propostas externas. O cara senta na minha frente e faz


uma apresentação e eu digo: isso parece um filme, é uma história que de A
vai para B, com começo, meio e fim. Não tem cara de série. O cara
responde: “realmente era um filme que eu tinha pensado, mas dá para virar
em série...”.
Analiso muito roteiro com características de filme hoje em dia. O pessoal
pensa em fazer um filme, pensa em fazer série... São animais tão diferentes.

Como funciona a participação em editais? Alguém na produtora tem


uma ideia e vocês colocam no edital?

Não, começamos a desenvolver independentemente. É claro que com o


tempo de trabalho com a televisão e a própria observação em relação às
coisas que fazemos, já formatamos com características definidas.
Assim, sabemos em qual canal nosso projeto se encaixa. Procuramos,
dentro da nossa carteira de projetos, diversificar as oportunidades
intelectuais de modo que você tenha séries que são do perfil do canal A ou
B. Uma pouco mais masculina, outra que tenha característica policial, de
comédia, comédia dramática, comédia curta de meia hora... Hoje, tenho um
acervo de séries desenvolvidas e em desenvolvimento com cerca de 20
propriedades intelectuais ainda não vinculadas aos canais.
O processo é reverso, quando aparece uma oportunidade em edital,
selecionamos aquelas com mais chances para aplicar. Ou vamos direto ao
canal, o que é mais produtivo. Chegamos no canal, vemos qual a linha que
estão procurando e apresentamos nossas opções. A coversa prospera por aí.

Qual é a formação do roteirista de série no Brasil hoje?

Não existe ainda uma formação especifica bem estruturada. Começam a


acontecer vários workshops internacionais, visitas especializadas.
Na produtora, começamos a fazer um processo de formação também, a
promover junto com a Academia Internacional de Cinema um curso de
narrativa de cinema e televisão.
Muitos alunos querem escrever uma história de uma única forma. O que eu
sugiro no meu curso é que eles tentem escrever a mesma história em outro
gênero. Este tipo de exercício faz falta na formação do roteirista.
Eu tenho aqui roteiristas excepcionais que fazem coisas brilhantes em séries
e têm feito as adaptações na Sessão de Terapia , na temporada original que
a gente está escrevendo. Nossa política é a de dar um mínimo de
estabilidade para essas pessoas, dar condições para essas pessoas
trabalharem.
Porque o roteirista está freelancer no mercado, tentando vender projeto,
sem contrato fixo. Quando vem um edital, o roteirista empresta seu único
projeto para, se ganhar o edital, receber dinheiro. É natural que esse
indivíduo não estude. Ele tem que se virar, não pode se dar ao luxo de
comprar um monte de livro, correr atrás assistindo séries e analisando-as.
Além disso, num formato de trabalho estável, quanto mais trabalho você
põe naquilo que achou que poderia ser bacana, quanto mais você testa as
suas teses na produção, mais você aprende. Eu acredito que o processo de
acumulação é importante na nossa vida. Você tem que praticar, tem que ter
um tanto de horas sentado à máquina escrevendo. É importante ver seus
textos produzidos. A soma de tudo isso é que faz o processo de fato
industrial. É o que faz o processo de formação desse profissional.
Nos Estados Unidos, grandes criadores também dão aula. David Milch é o
showrunner , o criador de Deadwood , que pra mim é a melhor série que já
foi feita, e dá aula, ou dá uma palestra dentro de um curso. Assim, o
roteirista tem um pouco mais de formação. Aqui isso começa a acontecer.
Nos Estados Unidos o mercado é altamente competitivo para roteiristas.
Conheci um roteirista que ficou 15 anos escrevendo Law & Order , tinha
sido do primeiro grupo, depois passou dois anos na Europa implantando a
série em um país, foi como supervisor. Ele já tem 15 anos de experiência e
ainda não é um showrunner . Pode ser que nunca consiga peso para assinar.
A carreira de roteirsta não depende só de talento ou competência, depende
também de sorte.

Você acha que a lei TV paga irá impactar na formação do roteirista


brasileiro?

Acho que o impacto principal será o de ter mais produção, mais emprego,
quer seja temporário, quer seja permanente. Todo mundo vai fazer mais
séries. Isso vai estabelecer uma curva geral de aprendizado no nosso
mercado. Vai aparecer o roteirista que já escreveu três séries que foram
filmadas e realizadas e o produtor terá base para discutir com essa pessoa
que terá, inclusive, autocrítica. A tendência é de que a série dramática passe
a ser um gênero importante.
Série dramática é uma coisa de que eu gosto muito e sou fã já há muito
tempo, acho, inclusive, que é o formato de dramaturgia que permite mais do
que um longa-metragem. Eu já estive envolvido na produção de 20 filmes,
como produtor principal em dez e acho que a série dramática é o formato
que permite mais aprofundamento em dramaturgia. Mais aprofundamento
especialmente em desenvolvimento de personagens. Você expõe o
personagem em muitos mais ângulos, então é obrigado a ser mais
consistente naquele desenvolvimento. É obrigado a saber muito melhor
onde está pisando porque naturalmente as histórias têm um curso mais
longo. No meu caso, de gostar para fazer foi natural.
Em séries, é preciso estudar bastante, pesquisar bastante e partir das
premissas.
No Brasil, o conceito está muito pendurado em situações determinadas.
Tem a oportunidade de um edital, se escrevem duas folhinhas de papel e
põe lá. Fica no máximo é uma ideia, não é nem uma premissa.

PAULO MORELL I

Roteirista, diretor de cinema e televisão e sócio da produtora O2. Entre suas


obras estão a série Cidade dos Homens e o filme Entre Nós . Paulo também
criou o programa de roteiro Story Touch.

Como você faz série dramática? Qual a coisa mais importante no


roteiro?

É importante ter claro toda a progressão, toda a preparação do que vai


acontecer. Os fatos, as consequências dos fatos.
Às vezes a gente passa batido por isso, faz um grande evento e depois quer
contar outras coisas. Não, você tem que mostrar como aquele evento
repercutiu, é isso o que de fato cativa o público e humaniza os personagens.
Numa série são várias etapas e um emaranhado das tramas. Na série que
estou escrevendo agora, a história é bem complexa, tem sete personagens
principais muito relevantes. É difícil armar isso tudo.

O que você destacaria na dramaturgia de séries?

Para mim, antes de tudo você tem que plantar uma pergunta para o seu
público. Basicamente esta que é a pergunta: e agora o que vai acontecer? A
partir dessa situação, o que acontece?
Plantar um problema inconciliável é outra característica importante na
dramaturgia de série. Alan Kingsberg, o professor americano que a O2
trouxe para fazer um workshop para o nosso pessoal, colocou que uma série
vai para a frente, tem várias temporadas quando o personagem principal
tem objetivos inconciliáveis.
Outra coisa é arrumar trilhas e trajetórias de cada personagem. A série que
estou escrevendo é de ação, um dos personagens deve dinheiro para um
agiota e isso gera uma trilha de consequências e ações, mas, esse mesmo
personagem tem também uma trilha amorosa. A soma das trilhas gera a
trajetória dos personagens. O roteirista precisa estar atento a isso.
Outro conceito que acho importante é transformar em imagens, em
metáforas, se possível, o conteúdo emocional e não o personagem falar,
falar.

As séries que estão no ar seguem essas premissas?

Às vezes eu sinto que algumas séries não plantam isso. As séries traduzidas
do exterior são mais espertas em relação a isso do que as séries brasileiras.
Os brasileiros ficam divagando; eu acho que tem que materializar.
Pode ser influência do nosso cinema. Sinto que o cinema brasileiro é muito
intelectualizado. Um cinema cerebral onde o diretor quer discutir coisas
importantes. Coisas importantes têm que estar embutidas na trama. A
importância das questões tem que ser resultado da metáfora e das cenas
construídas. A dramaturgia não está a serviço de um discurso, a reflexão
deve ser produto da dramaturgia e não o contrário. É importante não levar
essa característica do nosso cinema para as séries.
Quando o roteiro não traz perguntas, não tem problemas, o público não vem
junto. Se o roteiro tem uma pergunta, o espectador não desliga, quer a
resposta. Você não muda de canal se está com uma pergunta.

Como surgiu a ideia de fazer o programa Story Touch?

Em 2008, eu estava desenvolvendo vários roteiros de cinema


simultaneamente, minha dinâmica diária era muito variada, cada dia tinha
uma reunião sobre um projeto diferente. Eu tentava sintetizar a história em
uma folha de papel e fazer um gráfico: a história começa aqui, a curva é
essa, este é o marco dramático de cada história...
Foi aí que me deu a vontade de que existisse um software que me ajudasse a
fazer isso, que me permitisse ver a história inteira em uma única folha de
papel. No Story Touch tem isso: você bate o olho e entende as curvas
dramáticas de sua história em uma única tela.
São cinco anos desenvolvendo e inventei uma nova funcionalidade muito
legal recentemente. O nome vai ser PAC (Preparação, Ação e
Consequência). Vai permitir ver com clareza o que está acontecendo, vai
permitir ao roteirista se questionar: “será que mostrei direito as
consequências dessa ação aqui?”.

Como é a sala de roteiristas da O2?


Posso dar o exemplo de uma série que estamos fazendo agora. Estou
trabalhando com mais dois roteiristas. É uma equipe de quatro pessoas: eu,
os roteiristas e um assistente geral da O2, que faz relatórios das reuniões e
sintetiza em pequenos documentos tudo que é discutido. Assim é ótimo
porque nada se perde, as ideias ficam registradas. Para essa série desenhei
todo o arco dos personagens principais nos cinco episódios do início e
desenhei as grandes tramas.
Coloquei isso para o grupo que começou a discutir e colocamos em
escaletas. Eu levo, consolido a escaleta e isso volta para a discussão. Os
outros roteiristas “metem o pau”, questionam: “cadê as consequências
disso? Cadê as consequências daquilo? Cadê a preparação?”.
Tem uma hora que a gente fala: certo, essa é a escaleta. Depois, eu passo
para eles escreverem os roteiros. Já escreveram 12 episódios, semana que
vem eles começam a escrever mais dois episódios e eu vou escrever o
último episódio. Tudo passa por mim e eu acabo fazendo uma redação final
dos episódios.
O Alan Kingsberg contou que nas salas norte-americanas é meio assim. Lá
tem uma sala com gente só tendo ideias. As ideias vão para o criador da
série, que seleciona as melhores ideias, define qual o episódio que vai para
a pessoa escrever. O roteirista escreve, é um bate e volta várias vezes com o
criador da série, que tem a redação final. É o que eles chamam de
showrunner .

De onde vem o roteirista da O2?

De vários lugares, da literatura, do teatro, tem outro que vem da


publicidade, o pessoal formado no Brasil é muito autodidata.
A gente faz mais comédia no Brasil. Por quê?

Não sei se é uma tradição que vem desde Oscarito, mas existe uma tradição
de comédia muito forte no Brasil. Acho ótimo esse sucesso todo no cinema.
Eu não vi muito por que acho que existe um problema de linguagem que é
meio tosca, mas fico feliz que haja sucesso associado à comédia. Outro
gênero que tem feito sucesso aqui no Brasil no cinema é de ação. Tropa de
Elite e Cidade de Deus são ação. Tenho pensado que podemos reduzir a
dramaturgia em três gêneros básicos: ação, que no fundo é o mito do herói;
comédia e drama. Todos os outros são fruto desses três. Os filmes que acho
mais interessantes são os que conseguem ficar no meio disso. Acho muito
bacana quando você consegue ficar no centro desse triângulo dos gêneros.

Qual a diferença entre fazer um roteiro de cinema e fazer um roteiro de


série?

Agora estamos fazendo uma série de cinco episódios de uma hora cada. Isso
dá mais ou menos uns dois longas grandes; 120, 125 minutos é bastante
coisa. Ao mesmo tempo, Breaking Bad daria um total de 24 longas-
metragens. Você tem que ter muito mais fôlego, mais possibilidade de
histórias. No longa você tende a ficar mais focado.
Acho também que a gente é tão invadido por mil estímulos que a pessoa
não aguenta ficar duas horas vendo uma única coisa. O tempo
contemporâneo está mais para 90, 100, 110 minutos. Estou muito
interessado na comunicação com o público e acho que para a gente
conseguir construir uma indústria no Brasil tem que criar essa relação com
o público.
Outra diferença do cinema para a série é que o primeiro episódio, por ser
um piloto, tem que ser impactante e tem que ser um pouco mais explícito do
que em um longa. Você tem que ganhar o público nos primeiros minutos, o
grau de tolerância do público na TV é muito baixo. O público de cinema
pagou o ingresso, foi lá, não vai sair depois de dez minutos.

JOSÉ HENRIQUE FONSEC A

Sócio da produtora Zola, que tem várias séries no ar, em diferentes


formatos. Dirigiu vários filmes e séries, entre eles a série Mandrake e o
filme Heleno .

O que os roteiristas brasileiros podem aprender com as séries


estrangeiras?

A gente tem que aprender não só com as séries e, sim, com o mercado
americano de entretenimento, de audiovisual. Lá, o mercado de cinema
sempre foi aquecido e, quando o cinema americano começou a apresentar
alguns sinais de desgaste, ficando mais engessado, se tornando cada vez
mais um investimento altíssimo, o seu espaço de risco diminuiu. A
televisão, por ser mais maleável, com mais possibilidades de fazer
arriscando menos, cresceu. Nos Estados Unidos o pessoal já está fazendo
séries há muitos anos, então a televisão, neste momento, está cumprindo um
papel mais de vanguarda. A TV tem mais espaço para arriscar tanto
tematicamente quanto com relação ao estilo de narrativa. As séries têm
todas as viradas, a estruturação do roteiro; acho que a gente tem que
aprender por aí. Isso não nos impede de continuar executando um cinema
autoral, um cinema nosso. Aqui no Brasil a gente está ainda ligado a um
cinema mais autoral, a um cinema mais engajado.

No Brasil, início de 2014, tem mais séries de comédia do que drama no


ar. Por quê?

Pode ser que seja uma questão de momento do mercado, mas também a
comédia no Brasil não é um gênero de passagem, não é um gênero tampão.
Para nós, da Zola, essa proporção de ter mais comédia não existe. A gente
acredita que na televisão, por isso mesmo, a série dramática tem o seu
espaço forte. Briga de igual para igual com a comédia.
Neste momento, o cinema está um pouco preso nisso, o pessoal está
querendo fazer comédia porque tem um retorno financeiro melhor. A TV a
cabo acho que é um pouquinho diferente do cinema.
De qualquer forma, fazer comédia é difícil para caramba também.

Como é o mercado de séries no Brasil hoje?

Fora a Globo, que tem um jeito próprio e muito bem-sucedido de fazer as


suas séries e tudo mais, o mercado mesmo de série de televisão
independente está sendo formado agora. De cinco anos para cá, no máximo,
as produtoras estão estabelecendo hábitos de núcleo de criação. Isso é
normal, o mercado vai criando as suas necessidades, necessidade de
roteirista, de produtoras especializadas nesse formato. Não existia um
histórico desse tipo de produção. Somos todos pioneiros nisso, daqui a 30,
40 anos vão falar desse momento do boom da produção independente para a
televisão brasileira.
A que você atribui essa mudança?

São vários fatores: o crescimento do mercado de TV americano, a criação


das leis de incentivo, o número maior de pessoas interessadas em produção
para TV, os assinantes de TV a cabo se multiplicando a cada ano, os canais
crescendo... Tudo isso vai gerando uma melhoria mesmo.

Você acha que essa lei da TV a cabo tem um impacto positivo do ponto
de vista da criação artística?

Como toda lei agrada a um e desagrada a outro, mas o fato é que está
fomentando, está fazendo a roda girar. Não vejo outra maneira.
Os canais na verdade se apoiam muito nisso, hoje em dia a programação
deles é muito baseada em um fomento interno, mas também contam com
essa ajuda das leis de incentivo. A lei está na ordem do dia dos canais, das
produtoras, a lei é boa, tem problema disso e daquilo outro, é uma lei que
está ajeitada totalmente, funcionando perfeitamente.
Existem alguns problemas de aplicação mesmo dentro dessa lei, tanto na
parte inicial, até aprovar o projeto, quanto na hora de fato de o dinheiro sair.
A lei tem vários problemas de aplicação, mas é um aliado, é uma força
aliada do produtor independente.

O que você acha mais importante no roteiro de uma série dramática?

É a estrutura. É você prender o espectador, é quase como um chef de


cozinha. O roteirista tem que ficar ali conquistando o cliente a cada cena, a
cada fala, a cada passagem, a cada virada da trama você tem que pensar que
do lado de lá está o telespectador. Você tem que manter o cliente
degustando bem aquilo ali.
O telespectador de séries é muito exigente. Não é que você não possa fazer
uma série um pouco mais pausada. Existem ali vários estilos de séries, mas
o espectador está cada vez se informando mais sobre essa estrutura
narrativa. O roteiro tem que ter acontecimentos, viradas, surpresas, não
basta ter um ator legal, uma música legal, um diretor legal.
O roteirista que está escrevendo uma série tem que estar pensando no
telespectador o tempo todo: como é que aquele cara que está do outro lado
ali vai ficar prestando atenção em cada cena? A gente está segurando o
espectador na cena? É essa pergunta que tem que ser feita a cada cena. Você
está escrevendo e o tempo todo se preocupando se o espectador está
entendendo. Precisa existir esse comprometimento com o espectador.
A grande coisa da série dramática é o roteiro. Um bom roteiro pode ser até
estragado por um diretor ruim, mas jamais um diretor bom fará uma coisa
boa com um roteiro ruim.

O que na estrutura prende mais o espectador?

O telespectador não gosta de ser feito de burro, mas também não quer que
você exija algo muito mirabolante dele. É uma mistura de ser conduzido
pelo roteiro, mas querer também descobrir as suas coisas ali.
Em Homeland , por exemplo, você fica na dúvida, mas depois sabe que o
cara realmente é um terrorista e aquilo é tão bem escrito que vai lhe
oferecendo caminhos e tem sub-blocos, subpassagens, caminhos
alternativos. O telespectador pode querer fazer uma conclusão dele ali e, às
vezes, acerta. Outras, o cara acha determinada coisa por causa de uma cena
e logo depois sua conclusão vai por água abaixo por causa da cena seguinte.
A forma como o roteirista apresenta a sua estória oferece ao telespectador
ser conduzido pelo o lado A ou o lado B, isso que é legal, fica uma coisa
mais polissêmica.

No caso de Mandrake , como é que começou o processo?

Mandrake partiu já de uma dramaturgia pronta, o personagem veio da


literatura todo pronto, com uma estrutura, uma psique desenvolvida, um
personagem já completo. Isso é meio caminho andado. A gente precisou
decidir como levar esse personagem para a televisão. Como é que seria a
apresentação desse grande personagem, como seria desenvolvida a trama,
como seria inserir dentro de um formato televisivo.

Como é que você escolhe roteiristas? Qual é a formação do roteirista


hoje no Brasil?

É difícil. O Brasil não tem um cara que é especializado em TV ou cinema,


você não tem um cara que é especializado em comédia ou drama. A gente
não diz “esse cara já fez todos os filmes de comédia”.
Eu escolho roteirista em função do projeto. Estou escrevendo um projeto de
longa com um, de comédia com outro, estou escrevendo um terceiro roteiro
de um filme de terror com o Gustavo Bragança. Sou fissurado em filme de
terror, não exatamente um profundo conhecedor, mas gosto muito. Aí eu
pergunto: quem é o cara especializado em roteiro de terror no Brasil? Não
tem. Aí vou e faço.
Daqui a 40 anos, o período em que estamos vivendo, na TV brasileira, será
reconhecido como um marco.
Qual o seu papel hoje em uma série dramática na produtora; qual é a
sua intervenção?

Depende do projeto. Eu vejo tudo de uma forma geral, como avaliador


geral. A princípio estou produzindo as séries todas de forma a olhar todo o
processo de cima. Isso faz com que eu consiga ter esse papel em mais de
uma série ao mesmo tempo. Caso eu estivesse dirigindo a série, não teria
tempo para mais nada. Minha tarefa aqui é formar o grupo que “vai à
guerra”.

Você tem um diretor para cada série e um roteirista?

Eu monto a equipe de roteiristas junto com o diretor da série.


Meu compromisso com a turma aqui da produtora é, durante três anos, não
entrar em nenhuma série especificamente como diretor. Minha tarefa é
produzir mesmo, fazer as coisas acontecerem.

AGRADECIMENTOS

Este livro não seria possível sem a valiosa colaboração dos roteiristas que
participaram das oficinas de roteiro de séries dramáticas que ministro. Cito
aqui, em nome de todos, Ana Beatriz Petrini, Angelica Coutinho, Andrei
Maurey, Jesse Castilho e Sarah Duarte.
Um agradecimento superespecial a Bárbara Rodrigues Mota pela
leitura crítica e pelas valiosas sugestões, e a Janaina Senna pela preparação
de originais.
No Brasil, a generosidade de José Henrique Fonseca, Paulo Morelli
e Roberto D’Avila em conceder as entrevistas também merece destaque.
Ajudaram muito a entender o momento que o mercado brasileiro está
vivendo.
Luke Ryan, Katie Elmore Mota e Samie Falvey foram interlocuções
essenciais para que eu conhecesse um pouco do que se faz lá fora.
Maurício Mota, mais uma vez, foi um bom companheiro de viagens
intelectuais. Seu apoio e sugestões foram fundamentais para minhas
pesquisas.
Agradeço também a Adriano Fromer Piazzi, pelo cuidado e esforço
para que este livro desse certo.

REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS

NOTA SOBRE A BIBLIOGRAFIA BÁSICA:

Os livros recomendados aqui são os que me parecem importantes


para embasar uma visão geral da tarefa de escrever para televisão. Não são
os únicos, mas quem deseja escrever roteiro de séries dramáticas deve já ter
seu próprio repertório. Alguns livros desta lista são de teoria geral, outros
são principalmente sobre cinema, outros ainda fazem parte de programas de
escrita criativa e de criação de roteiros de universidades norte-americanas.
Aqui está também uma coleção de ensaios publicada pela Universidade de
Nova York e a pesquisa de Brett Martin sobre os protagonistas que
cruzaram a fronteira em séries dramáticas americanas: Homens difíceis.

Todos os livros elencados contribuíram para minha escrita e


compreensão dos personagens e seus mundos. Espero que contribuam para
os leitores do meu livro também.

ARISTÓTELES. Poética . Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.

AUDEN, Wystan H. A mão do artista . São Paulo: Siciliano, 1993.

BENTLEY, E. A experiência viva do teatro . Trad. Álvaro Cabral. Rio de


Janeiro: Zahar, 1967.

BROOKS, Peter. Reading for the plot . Harvard University Press, 1992.

CAMPOS, Flávio. Roteiro de cinema e televisão . Rio de Janeiro: Zahar,


2007.

DICKENS, Charles. Um conto de duas cidades . São Paulo: Nova


Cultural, 1996.

DOUGLAS, Pamela. Writing TV Dramas series . 3 rd


edition. Michael
Wiese Productions, 2012
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução . Trad.
Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação . São Paulo: Martins


Fontes, 2005.

ELIADE, Mircea. Mito e realidade . São Paulo: Perspectiva, 1979.

FOSTER, Edward M. Aspectos do romance . Trad. Maria Helena Martins.


Porto Alegre: Globo, 1969.

FREUD, Sigmund. Delírios e sonho na Gradiva de Jensen . Rio de


Janeiro: Imago, 1968 (Coleção Standard, v. IV).

HOMERO. Ilíada. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro,


s/d.

________. Odisseia . Trad. Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Difu-


são Europeia do Livro, 1960.
MARTIN, Brett. Homens difíceis . São Paulo: Aleph, 2014.
MCKEE,Robert. Story. Curitiba: Arte & Letra, 2007.
MEIRELLES, Fernando; MONTOVANI, Bráulio; MÜLLER, Anna
Luiza. Cidade de Deus – O roteiro do filme . Rio de Janeiro: Objetiva,
2003.
MELETÍNSKI, Eliazar M. “O estudo tipológico-estrutural do conto
maravilhoso”. In: SCHNAIDERMAN, Boris (Org.). Morfologia do conto
maravilhoso . Trad. Jasna Paravich Sarhan. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1984.
MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história . São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.
RODRIGUES, Sonia (Org.). Nelson Rodrigues por ele mesmo . Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
POE, Edgar A. Poesia e prosa . Trad. Oscar Mendes e Milton Amado.
Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
PROPP, Vladimir I. Morfologia do conto maravilhoso . Trad. Jasna
Paravich Sarhan. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984.
________. As estruturas narrativas . São Paulo: Perspectiva, 1979.
THOMPSON, Ethan; MITTELL, Jason (Org.). How to watch television .
Nova York: NYU Press, 2013.
TRUBY, John. The Anatomy of Story . Londres: Faber & Faber, 2007.
VOGLER, Christopher. A jornada do escritor . Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2006.

[1]
P ROPP , Vladimir I. Morfologia do conto maravilhoso . Rio de Janeiro: Forense, 1984.

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