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Como Escrever Series - Sonia Rodrigues
Como Escrever Series - Sonia Rodrigues
COMO
ESCREVER
SÉRIES
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
AUTORIA PARA SÉRIES
ELEMENTOS DA NARRATIVA
HISTÓRIA-BASE, STORY LINE , PENSATA
MUNDO INCONFUNDÍVEL
VEROSSIMILHANÇA
DANDO VIDA AO MUNDO INCONFUNDÍVEL
PERSONAGEM:
faz porque pode, porque o espectador
acredita e porque a trama necessita
DANDO VIDA AOS PERSONAGENS: ações e falas
JORNADA DO HERÓI: de si mesmo e da narrativa
AGRADECIMENTOS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
APRESENTAÇÃO
AUTORIA
PARA SÉRIES
ELEMENTOS
DA NARRATIVA
HISTÓRIA-BASE,
STORY LINE, PENSAT A
MUNDO
INCONFUNDÍVEL
VEROSSIMILHANÇ A
DANDO VIDA AO
MUNDO INCONFUNDÍVEL
PERSONAGE M :
f az porque pode, porque o espectador
acredita e porque a trama necessita
JORNADA DO HERÓI:
de si mesmo e da narrativa
A jornada do herói é um conceito importante na diferenciação de
personagem e papel. Independente do papel que o personagem desempenha
na trama, ele pode tentar ou não tentar ser herói de si mesmo.
Herói de si mesmo é um conceito caro a Joseph Campbell e
influenciou tremendamente a indústria cultural norte-americana, não só
porque os EUA são uma cultura épica que acredita no self made man .
Influenciou também porque é a indústria que mais investe em cultura de
massas e as pessoas, através da história da humanidade, precisam de heróis.
Heróis fazem parte do inconsciente coletivo.
A jornada do herói de si mesmo está relacionada a um conceito de
Jung que é o de individuação, a aquisição do Si-mesmo, novo centro da
personalidade, resultado de um equilíbrio psíquico pela tomada de
consciência dos arquétipos inconscientes.
Persona é a máscara social do indivíduo, para Jung. Inflação seria a
possessão do indivíduo pelos arquétipos que podem destruí-lo e a sombra
seria o duplo negativo, feito de todas as pulsões associais, incompatíveis
com a sociedade ou com o ego idealizado.
Aplicando os conceitos de Jung à poética de séries, um personagem
bem-construído tem persona + sombra, pode cair na inflação e chegará ou
não a individuação, se fizer a trajetória de herói de si mesmo.
A trajetória do herói de si mesmo é uma constante nas narrativas e
nas séries aparece em Homeland , com a evolução de Quin começando
como um matador frio e se descobrindo no contato com Carrie. Ele faz a
trajetória de herói de si mesmo.
Saul é um coordenador racional e também frio que se reidrata
afetivamente por influência de Mira, para proteger Mira.
Dana, a filha de Brody, começa a terceira temporada trilhando a sua
jornada de herói e o espectador fica na expectativa de a que lugar seu
esforço vai levá-la.
Em Under the Dome , a redoma pode parecer a grande ruptura, mas
ela é um dado da story line , a redoma faz parte do título.
A ruptura ocorre em função dos efeitos da redoma. Durante a
temporada, Big Jim mostra quem é de verdade. Aí a divisão começa a se
constituir, aparecem heróis relutantes, aliados de primeira hora e aliados
relutantes. Vários personagens, inclusive Junior, o filho de Big Jim,
começam sua trajetória de herói, às vezes começam como adversários e até
antagonistas. Aliás, o quanto Junior será capaz de continuar a trajetória de
herói dele mesmo é a grande questão que fica da primeira para a segunda
temporada da série.
No primeiro episódio de Treme , vários personagens tentam salvar
pedaços do cotidiano de Nova Orleans e para isso são obrigados a
empreender pelo menos alguns passos da jornada de herói de si mesmos.
O diálogo entre o filho, músico bem-sucedido, e o pai que voltou
para os ensaios do Mardi Gras retrata bem isso. O filho resmunga que está
ali para tentar demover o pai. O homem mais velho responde que, se o filho
não vai ajudar a carregar um caminhão de entulho para limpar o lugar de
ensaios, é melhor que se mexa e pague a conta de luz. O filho pergunta se
cancelou trabalhos em Nova York e Boston para pagar contas de água em
Nova Orleans. O pai fica olhando para ele, sério, sem dizer nada. O filho
diz que está só checando. O pai é o chefe e naquela cultura deve ser
obedecido.
Nessa queda de braço entre dois homens, gerações diferentes, temos
os limites da jornada de herói. Por mais bem-sucedido que o jovem músico
seja, ele faz um trajeto para longe do seu conforto para atender aos
arquétipos de solidariedade e respeito à sua cultura. O pai, você verá
assistindo ao primeiro episódio da série, faz muito mais do que isso. A
trajetória de herói de si mesmo depende de quanto o personagem deve à sua
comunidade ou está ligado a ela. Depende também do quanto o personagem
está sob inflação.
Quando a inflação é muito forte, mesmo que outros personagens
atuem como mentor ou aliado, às vezes o duplo negativo já controlou tudo e
o personagem não consegue sair do seu papel. Uma pequena história num
dos episódios de Família Soprano , uma história C, contada em apenas seis
cenas, explicita o fracasso de realizar a trajetória de herói de si mesmo
quando o personagem está sob o domínio de sua sombra.
Uma stripper bem jovem agradece ao chefe do amante pelo bom
conselho que lhe deu em relação ao filho pequeno e tenta presenteá-lo com
um pão de nozes. O chefe aconselha que não o trate dessa forma porque ela
está com um amigo dele.
Em outra cena, ela é comida por trás pelo amante, enquanto se
prepara para chupar o pau de um amigo dele. Ela acabou de se endividar
com o patrão para colocar aparelho nos dentes. O amigo do cara pede com
carinho que ela vá devagar para não machucá-lo com o aparelho. Ela se
queixa, meiga, ao amante, dizendo que ele a está machucando. Ela o chama
pelo diminutivo, enquanto o cara manda ver com violência.
Mais adiante, ela aborda o chefe do cara no estacionamento dizendo
que está grávida e pedindo sua opinião. O chefe, ainda paciente, pergunta
como ela vai ter um filho de um homem casado se ela já tem um menino de
4 anos a quem queimou com cigarro, recentemente. Ela se defende
argumentando que, segundo sua terapeuta, queimou o filho porque a mãe a
queimou quando era pequena.
Mais uma cena. Ela está numa casa simples toda aconchegada ao
amante quando o patrão chega e a arrasta aos tabefes porque não está
dançando na boate e lhe deve o dinheiro do aparelho de dentes. O amante
assiste da janela, sem intervir na surra, se acabando de rir.
Ela e o amante conversam no estacionamento, depois de uma
discussão dentro do clube. Ele é carinhoso, a consola, diz que vai pedir a
um corretor conhecido que arranje uma casa para eles, que se o bebê for
menino terá o nome dele. Ela fica toda feliz, ele completa que se for menina
terá o nome dela e será boqueteira como a mãe. Ela reage ao perceber que
ele estava zombando, avança nele, ele começa a espancá-la com violência.
Outros homens saem do clube e o afastam, mas é tarde demais, ela está
morta.
No conceito de Foster, ela é uma personagem unidimensional, o
estereótipo da prostituta burra.
Aplicando os conceitos de Jung, a stripper é uma personagem em
processo de inflação. Ela está no modo submissão ao homem poderoso,
aceita ser oferecida a outro homem, espancada, humilhada, menosprezada
desde que esteja com esse homem que a acaba matando.
Caso ela fizesse a trajetória de herói, isso implicaria, pelo menos,
não procurá-lo. Talvez abortar o filho, se afastar do amante aos poucos,
depois pagar a dívida ao patrão, fugir de tudo, virar faxineira do outro lado
do país.
É diferente o que ocorre com a prostituta dos primeiros episódios de
Masters of Sex . Betty se empenha em superar a sua situação social, assim
que surge uma oportunidade. Ela precisa fazer sacrifícios? Precisa e faz.
Aliás, várias mulheres, nessa série, começando por Virginia
Johnson, batalham por autossuperação, por superar as amarras profissionais,
amorosas, sexuais do mundo em que vivem. Se tentassem fazer, na época de
Game of Thrones o que fazem em Masters of Sex seriam queimadas vivas
como hereges ou como bruxas e teriam uma trajetória de herói trágico. Por
isso, personagem é elemento de mundo inconfundível numa narrativa e
sua caracterização está subordinada à época e ao gênero.
O personagem que não faz a trajetória de herói de si mesmo acaba,
muitas vezes, arrastando outros personagens para a incerteza, quando não o
desastre. É o caso de Bunchy, o irmão caçula de Ray. Paralisado por um
sério trauma, ele se coloca na posição de ter que ser salvo o tempo todo.
Quem tenta salvá-lo se machuca aqui e ali.
Não conheço nenhum estudo, deve existir, claro, sobre os motivos
que levam as pessoas a gostarem de um personagem como Bunchy e
acompanhá-lo com mais simpatia do que os heróis propriamente ditos.
Deve ser interessante investigar os nossos próprios motivos. “Conhece-te a
ti mesmo” é importante para nos aperfeiçoarmos como roteiristas.
Na escolha de caminhos, às vezes, não é a inflação que está em
jogo. É a persona, a máscara social.
A persona de Tony Soprano tem mais nuances do que a de John
Reese de Person of Interest, ou a de Frank Reagan de Blue Bloods . Mais
nuances até do que Betty DiMello em Masters of Sex . Para ser fiel a essa
persona, Tony não consegue avançar na sua trajetória de herói de si mesmo.
Ele está ocupado demais sendo herói das sucessivas rupturas provocadas
pelas narrativas mafiosas, quando não está engolido por sua sombra.
Mais nuances da persona é igual a maior discussão de verdades
variadas, quando a série vai ao ar. Nem toda série pede isso. Às vezes, a
story line , o mundo, o gênero, inclusive em relação ao público a que se
destina, pedem uma persona mais simples.
DESENVOLVIMENTO
DA TRAMA
&
ESTRATÉGIAS
NARRATIVAS
ETAPAS E ATOS
As etapas da narrativa são aqui descritas a partir da morfologia de
Propp, ou seja, a partir das ações dos personagens. Veremos, adiante, como
essas etapas combinam com os atos do roteiro de série.
Para Propp, como a composição das histórias é sempre a mesma, o
variável estará:
Na construção dos personagens e seus atributos.
Na maneira como se apresentam as ações dos personagens.
Propp observou que o esquema narrativo segue, com variações
secundárias, 31 ações dos personagens, a partir da situação inicial em que
eles são apresentados.
É importante lembrar que qualquer uma das ações dos personagens
pode se subdividir ou desencadear outras.
As 31 ações podem ser reduzidas a sete etapas numa narrativa mais
dinâmica, como costuma ser a da maioria das séries. As sete etapas são
Início, Ruptura ou Perda, Obstáculo, Divisão, Auxílio, Decisão, Conclusão.
Vladimir Propp não estudou, mas existe um tipo de narrativa que se
aproxima muito das etapas da morfologia de ações dos personagens que é a
narrativa seriada do romance de folhetim.
Charles Dickens, escritor inglês sem o qual talvez não existisse boa
parte das narrativas cheias de conexões que temos hoje, publicou um livro
com o título Um conto de duas cidades , no qual as etapas da narrativa são
bem marcadas e o conceito de conclusão me parece translúcido.
Esta clareza decorre de Dickens praticar, em quase toda a sua obra, a
narrativa seriada também denominada de folhetim.
No folhetim existe um núcleo narrativo que mantém elementos de
todas as tramas funcionando em “gaveta”, numa composição por episódios.
As tramas paralelas vão se multiplicando e funcionam como
elementos de suspense, como ganchos que, ao mesmo tempo, desviam do
módulo principal, mas aguçam a curiosidade a respeito das possíveis
relações entre um enredo e o(s) outro(s).
Esse tipo de composição serve, é evidente, para protelar a
expectativa do leitor e o fechamento do enredo principal em função das
necessidades da indústria cultural que a produz. A dispersão narrativa é
aparente, porque os episódios paralelos têm o objetivo de explicar o
mistério que envolve o personagem principal, o que é alcançado apenas na
“costura” final, a mais extensa possível, pois o prolongamento da trama
sustenta as vendas do romance “em pedaços”. Foi daí que surgiu o nome
folhetim, folhetim do jornal, pedaço destacado do jornal.
A trama de Um conto de duas cidades é a seguinte:
Na França, antes da revolução, um médico é chamado a atender
camponeses no castelo de um marquês. Os camponeses estão feridos e
morrem, o médico descobre que morreram graças às maldades de dois
filhos gêmeos do marquês, que destroem quase toda a família. Escapa uma
criança, a irmã mais nova, uma menina que os vizinhos conseguem mandar
para longe. Este é o início.
A Ruptura na narrativa principal acontece quando o médico tenta
denunciar o caso e é encerrado na Bastilha por muitos anos. Na Bastilha, ele
está completamente alienado da realidade, com um ritual obsessivo de ficar
martelando, fazendo um sapato, sempre o mesmo sapato, sempre o mesmo
martelo e dizendo: “torre 138, torre 138, torre 138”. É o lugar onde está
encarcerado.
Amigos do médico conseguem levar sua filha e depois ele para a
Inglaterra. Temos aqui um Auxílio. O médico consegue voltar a viver
normalmente.
A filha se casa em Londres com um francês.
Vamos aqui para uma trama paralela, um exemplo de narrativa em
“gaveta”:
Existe, na trama londrina, um personagem aparentemente
secundária, um advogado, que é muito parecido com o genro do médico e
apaixonado pela sua filha. Um amor cortês, uma paixão romântica.
No dia do casamento, o médico e o noivo têm uma conversa
particular e ele fica muito mal, assiste ao casamento e, quando o casal parte
para a lua de mel, senta-se no quarto com o mesmo velho martelo e
recomeça: “torre 138, torre 138, torre 138”. Aqui temos um obstáculo e um
mistério. Sobre o que eles conversaram?
Superada essa recaída, com o auxílio de um amigo, a vida continua
até a Revolução Francesa.
Estoura a revolução na França, o marido (genro do doutor) recebe
uma carta de um velho criado pedindo socorro porque está preso, vai para a
França sem avisar a mulher e o sogro, quando chega, é preso, conduzido à
Bastilha, sem processo. Isso representa, na trama principal, outro
Obstáculo.
Em seu auxílio, o sogro volta para a França, identifica-se como uma
das grandes vítimas do Antigo Regime e consegue libertar o genro que está
sendo perseguido pelo governo francês por ser um emigrado, um ex-nobre
que abandonou as terras. Graças à intervenção do médico, o genro é solto.
Parece ser a decisão desse capítulo. Parece, mas não é.
A família se prepara para sair da França revolucionária e, se
conseguisse voltar para Londres, teríamos uma conclusão, com o doutor em
paz, feliz, com sua família, sua descendência.
Ocorre que estamos tratando de uma narrativa seriada.
A mulher de um ex-criado do doutor ― um criado que o ajudara a
sair da Bastilha, um criado completamente fiel ― vai ao tribunal
revolucionário e denuncia o genro do médico, abre um novo processo
contra ele, acusando-o de criminoso de guerra. Esse obstáculo parece quase
um novo início.
A mulher do criado faz a denúncia em seu nome, no nome do
marido e em nome do médico. O doutor só descobre na hora da audiência
que é um dos denunciantes e não entende nada.
O criado dele, que tinha sido um dos comandantes da tomada da
Bastilha no dia 14 de julho de 1789, é o primeiro a prestar depoimento e
quando lhe é perguntado: “Cidadão, quais são os fatos?” ― os fatos, o
perigo do real ― ele responde: “Quando tomei a Bastilha junto com meus
compatriotas, fui direto à torre 138 e, ao chegar à cela, revistei tudo e
encontrei uma carta. Era uma carta do doutor Manette, a que eu atendi, a
quem ajudei, muitos anos atrás”.
Com esses fatos ― a participação na tomada e o socorro ao doutor
Manette quando ele saiu da França ―, o criado prova que era uma
testemunha leal ao médico e ao governo revolucionário.
O tribunal fica sabendo então ― o tribunal e os leitores de Dickens
― que a mulher do criado é a sobrevivente da família camponesa
massacrada pelos gêmeos filhos do marquês. É pedido ao criado que leia a
carta. Ali está escrita toda a história e o clamor do médico para que, se
algum dia a carta for encontrada, seja feita justiça contra a família do
marquês, até seu último descendente, por seus crimes contra o povo da
França.
Outro obstáculo terrível, quase uma ruptura, se a ruptura não tivesse
sido, lá atrás, foi o médico ter comprado briga com uma família
poderosíssima, da qual, infelizmente, seu genro é descendente. E sua neta
também.
A carta fora escrita quando o médico, preso na Bastilha, sentira que
a sanidade começava a abandoná-lo. O médico escreveu a carta como um
auxílio para ele mesmo e para o povo francês.
Esta é uma das grandes ironias das etapas da narrativa. Auxílio para
um personagem, perdição para outro.
O detalhe genial de Dickens é que o genro do médico era filho de
um dos gêmeos. Era neto do marquês e fora embora para a Inglaterra
horrorizado com o que a família fazia. Nesse ponto, o leitor liga os
acontecimentos e descobre porque o médico surtou no dia do casamento da
filha. O genro havia contado qual era o verdadeiro nome da família dele.
Com base na carta (e maldição do médico), o genro é condenado à
guilhotina. Seria a Decisão, o desenlace, o xeque-mate.
E o que é então que o Charles Dickens faz, brilhantemente?
Traz à cena o advogado, o que era apaixonado pela filha do médico
e parecidíssimo com o marido dela.
O advogado não é protagonista, não quer ser herói de nada, é um
bêbado apaixonado, apenas, que usa um estratagema para entrar na prisão,
troca de lugar com o genro do doutor e acaba guilhotinado no seu lugar.
Talvez o advogado fosse neto bastardo do marquês, porque era francês
também.
A Decisão é aqui. É deslocada do genro para o seu possível primo, o
homem apaixonado por sua mulher, a filha do doutor.
A família do médico consegue fugir para a Inglaterra por causa
desse artifício, mas para o doutor Manette é tarde demais. Ele enlouquece
completamente no julgamento e volta a repetir o bordão: “torre 138, torre
138, torre 138”.
Aqui temos uma Conclusão, de verdade. Desce o pano, a vida de
todos segue, um novo equilíbrio surge, em troca do sacrifício do doutor e do
advogado.
Início
É a etapa em que ocorre a apresentação dos personagens e da story
line (em algumas séries), a apresentação da situação dramática que o
protagonista vive. É a apresentação do mundo dos personagens e de suas
contradições. O início onde a trama se desenrola e quem é quem nesse
mundo.
Em East Los High , Jessica, Maya e Vanessa aparecem como três
personagens que representarão, com suas trajetórias distintas, o mundo de
jovens latino-americanas pobres, numa high school norte-americana, em
Los Angeles.
Em Broadchurch aparece a família e sua vida pacata, a cidadezinha
que é quase uma praça onde todos se conhecem. Na madrugada, uma
criança misteriosa está num penhasco. Ou num sonho?
Em Game of Thrones somos apresentados aos domínios dos Starks,
já com as imagens do reaparecimento dos “outros”, o amor na época, as
diferenças na família.
No primeiro episódio de Downton Abbey , os primeiros dez minutos
mostram um telégrafo batendo notícia, um trem em direção ao interior,
passando por região rural, uma funcionária dizendo para outro funcionário
que não adianta entregar à noite porque eles estarão dormindo.
Em seguida, a mansão e os dois mundos que coexistem dentro dela.
A criadinha acendendo as lareiras, a hierarquia com um criado
“pisando” com palavras em cima do outro. A cena da tábua montada para
passar o jornal tem duas frases, a do mordomo e a do criado. Depois, em
outra cena, a empregada malvada que só aparece falando coisas malévolas,
retoma o tema do jornal, explicando que é para o conde não sujar as mãos.
Isso não é inútil porque isso caracteriza o mundo inconfundível que é
essencial para essa série por causa da história-base.
Ao mesmo tempo, o criado passando os jornais adia a revelação, o
espectador só vai saber o que aconteceu depois que o conde souber. Oito
minutos e não aconteceu nada ainda, só a apresentação dos personagens, os
dois mundos coexistindo dentro da mansão.
No primeiro episódio de Breaking Bad temos o início cinzento,
Walter, que fracassou como empresário, é maltratado pelo imigrante dono
do lava-jato, obrigado a comer bacon de soja pela mulher, aporrinhado
pelos alunos adolescentes que não estão nem aí para a química que ele sabe
ensinar.
Ele tem um cunhado policial que procura por traficantes, a mulher
está grávida e manda nele, um bebê está a caminho, um filho mais velho
que não tem condições físicas para se virar sozinho e, volta e meia, é
humilhado pelos valentões locais (mundo inconfundível = bullying
marcante no high school norte-americano).
Difícil imaginar o que de pior ainda pode acontecer nessa vida chata
e cinzenta de Walter. Será?
Em Homeland , no primeiro episódio, o início é a espera pelo espião
infiltrado, expectativa essa que é plantada no teaser , na sequência em
Bagdá:
Letreiro indica Baghdad
Visão geral da cidade.
Detalhes do cotidiano.
Carrie dirigindo carro e falando ao telefone.
Presídio, área externa. Policiais amarrando corda.
Carrie dirige e fala ao telefone com David Estes, que precisa liberar
o prisioneiro porque ele é importante.
David, saindo de uma festa oficial, se recusa a fazer o que ela quer.
Carrie buzina para os carros parados a sua frente, larga o carro no
meio do engarrafamento e vai andando apressada, ainda ao telefone, em
direção ao presídio.
No presídio, ela consegue convencer o prisioneiro a lhe segredar
alguma coisa muito importante, antes de ser arrastada pelos guardas. O que
o prisioneiro lhe contou? Não sabemos e só teremos acesso a essa
informação se assistirmos, pelo menos, duas temporadas inteiras.
O restante do episódio segue com a apresentação da Carrie, de seu
mundo inconfundível, de “mulher solteira e bipolar procura sexo casual...”,
além de seu trabalho com a equipe da CIA que duvida um pouco dela. É um
bom início de série de ação.
É importante observar em algumas séries a etapa Início marcando
bem o protagonista e o antagonista. É o caso de Ray Donovan , em que
vemos Mickey Donovan atravessando as grades da cela, recebendo seus
pertences de volta do agente penitenciário, saindo do Presídio Estadual de
Walpole. Depois entrando em um carro com motorista, conferindo o interior
de um saco de papelão que está no seu colo para, ao final dessa sequência,
matar um padre.
Apesar do meu desejo de contar aqui o restante da trajetória de
Mickey Donovan na etapa Início, vou resistir para dar a você o prazer de
assistir sem antecipações. O que é importante notar é que essa etapa não
precisa ser linear. Pode aparecer um pedaço da apresentação do antagonista,
depois um pedaço da apresentação do protagonista, inclusive em atos
diferentes. Adiante, quando você chegar ao tópico “Especificidades do
formato”, espero que essas diferenças de apresentação de personagens e de
situações estejam mais claras. Estarão se você, além de ler este livro,
assistir às séries citadas.
Perda ou Ruptura
A Perda ou Ruptura, para Propp, provoca a quebra do equilíbrio
vigente e a divisão entre os personagens. Ruptura, em geral, é um evento
que mobiliza os aspectos mais fortes e os mais sombrios dos personagens.
Nas séries, acaba sendo o conflito central do episódio e, às vezes, da
temporada. Pode vir sob a forma de um mistério ou de um problema
aparentemente insolúvel. O mais importante é que a Ruptura seja algo que
leva a uma mudança tão grande que afetará todos os personagens.
Em Downton Abbey , a morte do herdeiro e noivo da filha do conde
é a ruptura do equilíbrio do primeiro episódio e determina o arco de toda a
primeira temporada.
Em geral, rupturas acontecem em todas as histórias de um mesmo
episódio. Ocorrerão também em todos os episódios de uma temporada. Da
mesma forma como ocorre com as etapas Obstáculos e Auxílio, sequências
importantes também apresentam ruptura. É o que você poderá observar
assistindo, na Netflix, a sequência em que Quinn, em Scandal , chega com
os donuts, no episódio final da primeira temporada.
No caso de Tony Soprano, a Perda praticamente abre a série. É a
crise de pânico do protagonista, a procura por ajuda psiquiátrica, algo em
total desacordo na estrutura mafiosa.
Ruptura não precisa vir em seguida ao início, como ocorre em
Homeland ou Game of Thrones . No arco da temporada, às vezes, a ruptura
acontece muito mais tarde.
Um caso extremo de ruptura tardia acontece em House of Cards por
que Francis Underwood é protagonista, herói de si mesmo e vilão da
maioria das tramas que ocorrem a partir da ação dele. Isso acontece porque
existe uma ruptura na trajetória de Francis quando ele não é nomeado
secretário de Estado. É a perda dele. Isso é fundamental em House of Cards
.
Você lembra que perguntei há pouco se a vida de Walter, em
Breaking Bad , poderia piorar? Pois piora.
Temos a perda ou ruptura quando ele se descobre com câncer,
poucos meses de vida e sem plano de saúde que preste.
Daí em diante, a observação atenta da trajetória de herói de si
mesmo e vilão de meia dúzia dos que se interpõem no seu caminho é
ruptura em cima de ruptura.
Para escrever roteiro de narrativas seriadas em drama é preciso
incorporar a ideia de que cada trajetória de cada personagem tem as
mesmas possibilidades de ruptura, obstáculos que a intensificam e auxílios
que permitiram a trajetória do herói. Imbuído desse entendimento, o
roteirista pode proporcionar a Sam, o gorducho medroso incorporado à
Muralha, em Game of Thrones , uma trama que emociona.
A preparação da perda, em relação à narrativa principal, a da story
line , pode ser feita logo depois de uma detalhada apresentação do mundo
inconfundível, como em Downton Abbey . Pode levar 11 angustiantes
minutos do início, como em Broadchurch . A perda do equilíbrio ali é
preparada com o aparecimento das imagens da cidade, do mar, da noite, a
câmera passeando por Broadchurch deserta, com a frente da delegacia de
polícia e a tabuleta love thy neighbour as thyself = ama ao próximo como a
ti mesmo.
Para quem conseguir reparar na tabuleta.
Depois, num ritmo fantasmagórico vemos a frente da casa e do lado
de dentro um casal dormindo na cama. O relógio marcando 3h20 da manhã,
ao lado do porta-retratos com foto de um bebê.
Porta do quarto do filho do casal com o nome “Danny’s Room”;
visão geral do quarto, cama vazia, ursinho em cima. Em seguida, aparece
um garoto de costas, a mão direita com sangue.
Garoto de costas, fica claro que ele está em um penhasco olhando
para o mar.
Relógio com ponteiros de segundos correndo.
Rosto do garoto fechando os olhos.
Garoto de costas em um penhasco olhando para o mar (visão de
cima).
Casa, quarto. Beth acorda assustada, sonolenta, olha para o criado-
mudo; relógio parado em 3h20; pega um relógio de pulso, vê a hora; se
assusta e vai para a cozinha.
Até aqui nenhuma palavra. Depois disso, Beth começa a tocar a vida
doméstica e somos apresentados à família dela. Todos saem e ela repara que
o filho esqueceu o lanche. Beth sai com o lanche de Danny.
Ela não sabe que o filho morreu, o espectador sabe ou suspeita que
foi o que aconteceu enquanto ela o procura na escola, não acha, liga para o
celular dele, que não atende. Seu marido, enquanto isso, cumprimenta
várias pessoas, tranquilamente, pessoas que mais tarde serão auxílio ou
obstáculo para ele.
Na delegacia de polícia, aparece a detetive Ellie. No penhasco,
somos apresentados ao detetive Alec, de costas, olhando para o mar, e
começamos a entender que já existe uma investigação policial em curso.
Enquanto isso, na cidade, a detetive Ellie reclama da decisão que a
coloca sob as ordens de Alec, e Beth continua procurando pelo filho, já um
pouco inquieta. Toda a ação de Ellie, de Beth, da professora de Danny, dos
colegas ainda está na normalidade, mas o espectador sabe que é só uma
questão de tempo para que a mãe e Broadchurch saibam que alguma coisa
muito ruim aconteceu.
Na estrada, Beth dirige. No rádio uma mulher fala sobre
engarrafamento na entrada principal para a costa de Broadchurch. Beth sai
do carro, se aproxima de outro, pergunta a uma moça no carona o que está
acontecendo, a moça responde que a polícia está na praia e que parece que
encontraram um corpo. Beth, assustada, começa a correr entre os carros.
Praia. Pessoas curiosas em volta, Ellie chega ao local. Policial
levanta a faixa para a detetive passar, ela se desespera ao ver quem é,
reconhece o corpo. Ellie fala com o detetive Alec, que conhece o menino.
Detetive Alec olha para uma gaivota sobre o penhasco e pergunta se é um
lugar de suicidas; Ellie diz que o Danny não faria isso.
Beth passa por debaixo da faixa policial; detetive Alec segura Beth,
mas ela consegue ver o corpo coberto com um pano verde; reconhece os
sapatos; grita desesperada dizendo que são os sapatos de Danny; tentando
fugir dos policiais, grita por Danny.
São 11 minutos e 36 segundos da etapa Início até a Ruptura, que é
quando a mãe descobre o corpo do filho que não levou o lanche para a
escola. Temos nesses 11 minutos a apresentação do mundo inconfundível da
cidade costeira, pequena, onde todos se conhecem e uma infinidade de
perguntas angustiantes.
Em Broadchurch , o encontro do corpo de Danny vai cindir a
comunidade para sempre. Todo mundo se conhece, não existe nenhum
forasteiro por ali. O que aconteceu com Danny?
Em Scandal , cada uma das histórias do primeiro episódio apresenta
uma ruptura distinta. Na negociação com os ucranianos, eles só têm a
metade do resgate. A sequência já começa incrementada: Olívia tenta
resgatar para seu cliente algo que custa seis milhões, apesar de só ter três.
A ruptura pode ser acrescida de um obstáculo ― em Downton
Abbey , o corpo do primo não é resgatado no naufrágio. Esse tipo de
obstáculo será útil para crescer a trama em outra temporada.
Mesmo para um espectador experiente, a ruptura pode se confundir
com prólogo. Um exemplo é a série Enlightened , que foi cancelada. Parece
que a ruptura é a crise nos primeiros minutos, quando a protagonista entra
em colapso contra tudo e contra todos. No entanto, a amante de um homem
casado, demitida por ele, ter um chilique não é o que desmonta tudo. Essa
reação é até previsível. A ruptura ocorre depois, quando ela sai da
reabilitação disposta a converter todos ao seu bom humor compulsivo.
Em Homeland , a ruptura é a chegada de Brody como herói; em
Game of Thrones , a morte do Mão do Rei. Esses dois exemplos são alguns
dos melhores, entre as séries assistidas, de como um evento pode
transformar a vida de todos os personagens a sua volta. Transformar de
maneira a nada ser como antes.
Obstácul o
Divisã o
Auxíli o
Decisã o
TIPOS DE APRESENTAÇÃO
DE PROJETOS DE SÉRIES
ESTRATÉGIAS NARRATIVAS
EM SÉRIES DRAMÁTICAS
ENGENHARIA REVERSA:
CONHECENDO
O DNA DAS SÉRIES
POR QUE
ENGENHARIA REVERSA?
Vários livros sobre roteiro de séries dizem: você precisa saber qual é
o DNA da série que está no ar e para a qual pretende fazer um roteiro
especulativo ( spec ). Eles estão certos. O processo de escrever um roteiro
de série dramática tem como pré-requisito conhecer o DNA de criações
alheias.
A questão é: como identificar o DNA? O pré-requisito é essencial,
mas, se você não sabe como identificar o DNA da série para a qual está se
candidatando a um lugar na sala de roteiristas, como é que fica?
Identificar o DNA da série que propõe faz com que você seja capaz
de explicá-lo quando for vender seu projeto para uma produtora ou um
canal.
Escrever roteiro de série dramática é uma atividade criativa que
demanda o domínio de muitos detalhes de estrutura, desenvolvimento de
trama e construção de personagem. Domínio dos conceitos e domínio da
aplicação dos conceitos.
Para entender como outros roteiristas aplicam os conceitos
fundamentais em suas séries, proponho o exercício de engenharia reversa.
Fazer engenharia reversa facilita a tarefa de aprender quem é o
outro. Aprender é muitas vezes difícil porque implica mudança, implica
fazer as coisas de outro jeito. Aprender a escrever num formato novo
significa sair da zona de conforto.
A proposta é assistir a uma série dramática com um olhar inocente,
se aproximar de roteiros concretizados como nos aproximamos de um
objeto que desconhecemos, mas desejamos conhecer. É uma oportunidade
de dominar o processo e de tornar mais criativo nosso olhar sobre o trabalho
dos outros.
Fazer engenharia reversa de uma série é descrever o que se vê, sem
interpretar, sem usar “pré-conceitos”. Admito que é bastante difícil. O
habitual é assistirmos passivamente às séries de que gostamos, gravando um
ou outro detalhe, sem preocupação em assimilar o formato.
Quem pretende escrever roteiro de série dramática precisa assistir a
episódios como um exercício de musculação para um lado do cérebro que
está desativado. Porque tendemos a substituir descrição por interpretação do
que os personagens fazem.
Não tem nada demais ter opinião sobre o que os personagens vivem,
nem mesmo usando o bordão “Eu não faria isso, no lugar dele”. O problema
é que, se não identificamos e descrevemos o que acontece na narrativa dos
outros, teremos dificuldade para descrever o que atores devem fazer e como
devem agir a partir do que descrevemos.
Assistir a séries sem dissertar a respeito. Interpretar só em função da
estrutura narrativa, do desenvolvimento da trama, de acréscimos ou cortes
nos diálogos. Como escreveu Umberto Eco, no livro Interpretação e
superinterpretação , toda obra têm três intenções: a do autor, a do leitor e a
do texto. A do autor nós nunca saberemos ao certo. Inclusive porque o autor
pode ter esquecido o que pretendia quando escreveu tal ou qual fala. Ou
pode se enganar a respeito.
A do leitor depende de muitas variáveis incluindo horizonte de
leitura, expectativas, conceitos e preconceitos.
Só nos interessa a intenção do texto para entender como funciona
uma série dramática, para dominar o exercício de engenharia reversa.
Porque ela é passível de comprovação. O roteiro que foi gravado e levado
ao ar é a única base importante para nós na engenharia reversa.
É interessante fazer a engenharia reversa, listando ação por ação,
fala por fala para saber, ao fim, se o deputado Russo, em House of Cards , é
um salafrário ou um multitoxicômano. Ou as duas coisas, talvez.
Fazendo o exercício de engenharia reversa em Downton Abbey ,
posso afirmar que Mary Crawel aparece como uma jovem preocupada com
detalhes menores, como o de guardar ou não guardar luto total pela morte
de um ente próximo. Seguindo no exercício, no entanto, o roteiro mostra
Mary como alguém cujo senso de justiça a leva a pedir desculpas quando
comete um erro, independentemente da posição social do interlocutor.
O exercício foi feito primeiro assistindo e tomando notas para só
depois ler o roteiro. No caso de Downton Abbey o roteiro está disponível na
internet.
O exercício ajuda a descobrir/identificar qual a escaleta do roteiro
que foi gravada. Para isso, é preciso indicar quem faz o quê, onde,
interagindo com quem e, se possível, como.
A maioria dos roteiristas que frequentam minhas oficinas acha
difícil descrever um ato, cena por cena. A tendência é resumir. É diferente
de buscar descrever de forma sucinta o que cada personagem faz ou fala.
Quem resume escreve o que considera essencial, não descreve o que
aparece na tela.
No caminho para aprender a escrever em qualquer suporte, o
principal é se impregnar da maneira como outros escreveram.
Como os conceitos da narrativa se concretizam em cada série?
Quais ações e falas caracterizam cada personagem?
“Carrie fala ao telefone com David Estes. Carrie larga o carro no
engarrafamento e segue falando no celular com David.”
Isso ocorre no teaser do primeiro episódio de Homeland . Descrevê-
lo é um começo para aprender a fazer um teaser de uma série de ação.
A descrição acima está completa? Não.
Carrie e David falam sobre o quê? Qual o conflito entre eles nesse
telefonema?
Só saberemos, se quem está descrevendo contar. Quem está
descrevendo só aprenderá a construir um diálogo entre uma agente e o
diretor da CIA — ela, em Bagdá; ele, numa recepção na Casa Branca —, se
identificar o assunto.
Poder-se-ia dizer que basta ler o roteiro para entender como se faz.
No entanto, os roteiros são trabalhados por muitos profissionais depois que
são escritos. Partir do episódio para depois ler o roteiro é mais
enriquecedor. Além disso, não é fácil achar os roteiros originais que foram
ao ar.
O exercício então é assistir ao primeiro episódio de sua série
favorita, ou de qualquer série dramática que preferir, e descrever em no
máximo três linhas o que é mostrado. Seguindo o modelo do discurso
direto: sujeito + predicado + complemento.
Este é um exercício quase zen-budista, muito difícil, na nossa
cultura. A gente adora avaliar, interpretar coisas e não existe nada errado
com isso. A interpretação dos espectadores ajuda, inclusive, a melhorar
nosso trabalho de roteiristas. O problema da interpretação é que ela não
ensina a escrever em um novo formato.
Engenharia reversa ensina. É o mesmo processo pelo qual um pintor
iniciante começa pintando naturezas-mortas, desenhando modelos nus, indo
a museus olhar os mestres, copiando as suas obras.
Numa das minhas oficinas, um roteirista disse que engenharia
reversa é, na espionagem industrial, pegar o produto do outro para aprender
a fazer um modelo mais avançado ou para usar em outro meio.
No nosso caso, fazer a engenharia reversa de episódios ou
temporadas tem o objetivo de identificar, com precisão, o desenvolvimento
da trama. É a base para fazer a própria escaleta.
Para ser criativo, é fundamental fazer a engenharia reversa do maior
número possível de primeiros episódios de séries. É ela ― escrita com
sujeito, predicado, complemento ― que nos permite distinguir entre a
atuação dos personagens e os seus papéis.
No entanto, em Downton Abbey , na sequência do banho da
condessa, se O’Brien não fizesse o que fez, a Perda/Ruptura da primeira
temporada teria sido reparada. A ação insignificante, quase fortuita, de
O’Brien teve efeito decisivo sobre a trajetória de Mary, de Mathew e sobre
toda a trama subsequente. A maldade sempre tem repercussões no drama.
Num primeiro momento, o exercício de engenharia reversa consiste
em anotar personagem e ação. Para isso, é interessante fazer um quadro de
todos os episódios de uma temporada para saber quais personagens
aparecem em cada um deles. Ao final, teremos uma tabela que poderá
esclarecer a importância desses personagens na reiteração do mundo
inconfundível ou na trama.
Minha sugestão é que você tente fazer, em Downton Abbey , o arco
de O’Brien, ou da sra. Pattimore. Em Broadchurch , o arco de Becca Fisher
, a gerente do hotel.
Esse conjunto de atividades amplia nosso repertório de informações
sobre o DNA de cada série.
Um exemplo de engenharia reversa interessante é o do primeiro ato
de Broadchurch . Mesmo uma pessoa bastante atenta pode deixar passar a
frase na tabuleta: love thy neighbor as thyself (ama a teu próximo como a ti
mesmo).
Da primeira vez que assisti à série, não percebi a frase. Da primeira
vez que sentei para assistir com o olhar de engenharia reversa, vi.
O detalhamento do primeiro ato de Broadchurch , dado como
exemplo na primeira parte deste livro, nos permite observar quantas cenas
são necessárias para a apresentação dos personagens e do contexto até a
Ruptura, que é o momento em que a mãe sabe que ali está o corpo do filho.
É um primeiro ato cheio de tensão.
Além do detalhamento de um ato, cena por cena, é bastante útil,
assistindo como roteirista, identificar quais histórias estão sendo contadas
em cada ato.
No primeiro ato de Scandal , episódio 1 da primeira temporada,
estão rolando duas histórias. A de Quinn e a do bebê. No segundo, Sully e
Casa Branca. No terceiro, Amanda e Casa Branca.
Depois de vários exercícios parciais de engenharia reversa, seu olhar
estará treinado para:
Localizar como outros roteiristas apresentaram os personagens.
Identificar qual é a story line , o gênero, a categoria da série.
O tipo de narrativa dominante.
O arco do protagonista.
Quais ações e falas puxaram as tramas para diante.
Como foram conduzidas as duas ou três histórias que aparecem em
cada bloco ou em cada episódio.
Com a prática, você vai conseguir assistir como espectador,
tomando um vinho, uma cerveja, relaxando no sofá e, ao mesmo tempo,
percebendo as nuanças criativas por trás da tela. Pode acreditar, é muito
prazeroso conseguir fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
O exercício de engenharia reversa de séries bastante conhecidas é a
união da teoria com a prática.
Considero o exercício da engenharia reversa aplicado ao maior
número possível de exemplos já realizados o caminho mais rápido e eficaz
para expandir o repertório de quem pretende escrever séries dramáticas.
THE NEWSROOM
GAME OF THRONES
URBANO
No duro, cara! Ela quis me chupar ali mesmo, debaixo da mesa!
Risadas.
JOTA
E você?
URBANO
A gente tem que ser gentil com as mulheres, né?
(mais risadas).
Mas eu fiz ela engolir tudo, pra aprender (risos leves ...)
Essa mulherada tá abusada demais.
JOTA
É o trabalho delas, né, Urbano...
URBANO
Vocação. Tudo vagabunda, Jota!
JOTA
E essa menina. Não vamos mesmo dar um fim nela?
URBANO
Deixa disso. Ela só está doentinha. Não gostou dos
carinhos da turma, acabou se machucando. Mas ela ainda tem
muito uso. O chefe mandou deixar num hospital e boa.
JOTA
Ou a gente podia nós mesmos brincar de médico com ela antes,
né?
Urbano ri.
URBANO
Com ela eu já brinquei e muito!
2 - CAIU!
PRIMEIRO INTERVALO
3 INT/DIA (MANHÃ) - CARRO DE HORÁCIO NA MARGINAL 3
Ele sozinho no carro. O skyline da Berrini passando na
janela. Ele põe um CD com sua música tema (a escolher)
Ele chega numa entrada de favela, devagar. A mesma represa
de antes ao fundo.
TAVARES
Chamar esse avião de “mina” é até
pecado...
3P
Pecado é matar uma mulher dessa.
EDUARDO
(ignorando as bobagens dos
colegas e dizendo a Luisa)
Já dá para dizer alguma coisa?
2.
LUÍSA
Leves manchas no pescoço, sinais de ter sido amarrada pelos pulsos e
pernas... É estranho... Mas nos pulsos
parece haver cicatrizes mais antigas, sob os machucados
atuais...
TAVARES
Amarradinha você não gosta, não?
LUÍSA
(irritada e falando para Eduardo)
A perícia do IML vai dar um quadro mais completo.
Tavares ri.
3P
Meu, acho que é a Fabia Cabral,do Casa dos Famosos.
TAVARES
Ih. A Fabia foi pro paredão...
Um carro de reportagem chega cantando pneu..
EDUARDO
Já chegaram os urubus.
LUISA (CONT’D)
Demorou...
Um repórter, MESQUITA, sai do carro, seguido por um câmera
já com a câmera ligada.
REPÓRTER MESQUITA
Delegado, a morta é mesmo Fabia Cabral, do Casa dos Famosos?
EDUARDO
Pô, qual é Mesquita? Tá fazendo bico para a Revista Caras?
LUÍSA
Pode falar comigo... passou, viu? Não vai acontecer mais nada de mau.
Luísa passa a mão no cabelo dela, maternalmente.
A menina olha pra frente, esquivando-se.
LUÍSA (CONT’D)
Nós vamos pegar o teu pai, Amanda, e ele nunca mais vai te
fazer mal. Agora você está protegida.
Eduardo chega na sala, e faz um gesto chamando Luísa.
Ela tenta passar a mão no cabelo da menina de novo, mas ela
não deixa, agressiva.
Luísa chega para falar com Eduardo. Tavares e 3P se
Aproximam.
LUÍSA (CONT’D)
É o caso de ontem à noite.
EDUARDO
A mulher morta dentro de casa pelo ex-marido bêbado.
Insert de fotos da mãe, morta, e do PAI, ADAMASTOR.
Fotos tipo RG.
LUÍSA (CONT’D)
E não é só isso. A filha foi deixada no hospital ontem à
noite. O pai deve tê-la deixado lá. Eu já suspeitava e o médico confirmou.
Ela tem apenas 11 anos, e sofreu abuso sexual.
TAVARES
Filho da puta!
EDUARDO
É mais comum do que a gente imagina...
3P
Não entendo com um pai pode fazer isso com a filha.
LUISA
O filho da puta matou a mãe e estuprou a filha... Os vizinhos viram ele
fugir, nervoso, antes de a mulher ser encontrada morta. A filha está em
estado de choque.
A menina sozinha num canto.
11 INT/DIA - CASEBRE 11
ADAMASTOR (o pai, identificado pela foto mostrada acima),
chora, abraçado numa garrafa de cachaça.
EDUARDO
A menina vai ficar sob guarda provisória do Juizado de Menores?
LUÍSA
Vai. E vou ficar por perto.
EDUARDO
Temos que achar o canalha que fez isso. Notícias do Horácio?
LUÍSA
Pra variar, não.
EDUARDO
Bom, tudo bem, dá uma força pra menina. Mas e o caso da modelo?
TAVARES
Já temos um primeiro resultado, chefe. Aliás, resultado de
primeira.
Tavares olha na direção da entrada do Salão, onde 3Ps
aguarda com uma mulher, linda, gostosíssima.
TAVARES (CONT’D)
É a melhor amiga da Fabia. Era, né? A gente trouxe ela pro senhor consolá-
la... (risinho)
Eduardo não dá bola.
EDUARDO
Luísa, vem comigo interrogar a moça.
Eles saem. Luisa dá uma última olhada para a menina, sozinha.
JOANA
(agressiva)
Este lugar não é pra ti
HORÁCIO
Pensei que fosse pra todo mundo
JOANA
Não comigo aqui.
(saindo)
Mas quem sabe entre você e Ele ainda tem jeito..
HORÁCIO
Amém.
Horacio a vê saindo. O pastor vem até ele e lhe põe a mão
no ombro, sorrindo.
PASTOR
Bem-vindo, irmão.
TAVARES
Isso é que é Missão mais que Possível! A dica da amiga gostosa da morta
gostosa foi quente. Te mete aí com a mulherada.
3P
Rapaz. Eu adoro o meu trabalho!
3P sai.
TAVARES
Polícia.
JOTA
Tô cagando.
TAVARES
Então te limpa lá fora. Mas, primeiro, chama o teu chefe.
TAVARES (CONT’D)
Quer ver meu distintivo, eu acho.
Tá aqui, ó!
(Tavares saca o revólver
e enfia o cano na boca
de Jota.)
Suave, neném, suave... (ele simula sexo oral com a arma). )
Ahhh, isso...
URBANO
Não fica tão nervoso não, meu senhor.
TAVARES
Você é o Dácio?
URBANO
Não. Não sou. Mas eu posso chamá-lo. Mas antes largue a
arma. O Dácio odeia violência.
TAVARES (CONT’D)
E então, agora dá chamar o teu padrinho?
URBANO
Melhorou. Sobre o que queres falar?
TAVARES
Escuta, mano. Se essa palhaçada não acabar já, eu vou começar a tratar o sr.
Dácio Freitas como suspeito principal do assassinato de Fabia Cabral.
URBANO
Jota, pergunte ao Dácio se ele quer vir.
URBANO
Eu se fosse você, tomava mais cuidado. Ninguém consegue ser
polícia o tempo todo.
TAVARES
Qual é, está me ameaçando, mano?
DÁCIO
Podem parar com o conflito! Oficial, perdão pelos meus
assessores. Eles estão aqui para garantir minha segurança Você entende,
não? Entre, por favor!
DÁCIO
Sente-se por favor. Em que posso ajudá-lo?
TAVARES
O senhor é responsável pela morte de Fabia Cabral?
DÁCIO
O senhor deve estar brincando? Fabia era a minha modelo mais lucrativa!
Já tinha sido mais, é verdade. Quando me procurou, a fama de ex-Casa dos
Famosos ainda tinha algum gás. Mas, mesmo assim, ela me dava bastante
lucro.
TAVARES
O senhor sabe que facilitação de prostituição é crime?
DÁCIO
Eu tenho noções de direito. Fiz alguns anos de faculdade. Também são
crimes o assassinato, o abuso
de poder.... (Dácio frisa o termo abuso de poder).
TAVARES
Não entendi
DÁCIO
Nem eu. Investigador...
TAVARES
Tavares!
DÁCIO
Investigador Tavares, eu sou um homem de negócios bastante
ocupado. Promovo eventos, forneço modelos para fotos e festas, tenho uma
agenda cheia.
TAVARES
O senhor esqueceu de mencionar seus sites de pornografia.
DÁCIO
É verdade. Ingressei no setor de entretenimento adulto há algum tempo.
Como disse, sou um homem ocupado.
DÁCIO
(recolhendo a mão estendida)
Sou empresário, não babá. Não sou responsável pela vida das minhas
modelos. Agora me diga. O senhor tem algo concreto ou veio aqui só para
se meter na minha vida?
Tavares em silêncio.
DÁCIO
Bem, respeito sua curiosidade. Muitos homens de sua idade
gostariam de conhecer minha agência. Pois pode passear à
vontade, viu? E toma meu cartão... Se gostar de alguma
menina me ligue...
Dácio dá o cartão e chega bem próximo a Tavares:
DÁCIO
Mas nunca mais interrompa o meu treino!
3P
(para modelinho, brincalhão)
Então, eu tenho que ir, mas vou te dar um mole, hein?
(os dois riem).
Tavares chega e praticamente o puxa de lá. 3P ainda tenta
dar o telefone.
3P
Ó meu celular... Se você me ligar,
capaz até de eu falar contigo, hein?
DÁCIO
Vocês não me disseram que esse crime não ia chegar a mim?
URBANO
E não chegou, patrão! Isso aí é só investigação de rotina.
DÁCIO
Ainda não entendo como vocês deixaram a Fabia morrer.
JOTA
O cliente que era doidão. Enforcou demais a mina.
URBANO
Nos só limpamos a barra do cara.
DÁCIO
Bom que o cara era juiz. Ao menos agora ele me deve essa.
JOTA
E não tem como chegar ao senhor, não, patrão.
JOTA
E o pai ainda está ameaçando nos denunciar por pedofilia.
DÁCIO
Quem é mesmo essa menina?
URBANO
Chama Amanda. Ela nunca viu o senhor, não, patrão.
DÁCIO
Então, no máximo, vai chegar a você.
URBANO
No máximo.
DÁCIO
Ah bom...
URBANO
Eu só queria autorização para resolver isso.
DÁCIO
É realmente necessário?
JOTA
Chegar no Urbano não vai ser difícil, chefe. Tem sêmem dele na mina.
DÁCIO
Eu já lhe disse para não ficar curtindo no trabalho!
URBANO
Foi só uma vez chefe. Não se repetirá.
DÁCIO
Bem, vou lhe dar uma chance. Pode resolver. Mas faça em total discrição.
Não quero mais ser obrigado a receber policial em meu escritório.
URBANO
Pode deixar patrão. Vamos pegar o pai e a menina, mas sem vestígio algum.
Eu já tenho gente minha atrás dele.
DÁCIO
Ótimo. Pois policial aqui eu só aguento se o cara for meu sócio.
AMANDA
Eu não quero ir para o juizado.
LUISA
Não se preocupe. Lá eles vão te dar carinho.
AMANDA
Lá eles vão conseguir me achar logo, logo.
LUISA
Não se preocupe. Já temos boas pistas para prender o seu pai.
AMANDA
(falando cabisbaixa e mais baixo)
Eu não estou falando dele...
EDUARDO
Luisa, Você já fez o que podia para proteger essa menina.
TWISTED
Under the Dome é baseada num livro de Stephen King, autor com
muitos títulos em torno do mais forte tipo de terror. O horror que nos habita.
Esse terror é tema da série. Se trancados numa redoma, como
lidaremos com nossos segredos? Com as oportunidades de fazer o mal e de
defender o que desejamos? Aliás, a temporada começa e acaba com esta
pensata: “Até que ponto um ser humano com poder é capaz de ir para
proteger seus segredos?”.
Só teremos a resposta quando assistirmos ao último episódio da
temporada que, evidentemente, deixará mais expectativa para a próxima.
Nessa série, o forte é o mistério, portanto, o roteiro precisa caprichar
para não entregar as respostas de uma vez só.
Na obra de Stephen King, existe uma metáfora recorrente (para usar
uma expressão querida dos estudiosos da narrativa). Essa metáfora poderia
ser resumida como: o que o personagem está disposto a sacrificar para
resistir ao Mal e fazer o que é certo?
Stephen King é um escritor épico e de terror. Faz parte do drama
épico, o drama que conta a história de um herói. Under the Dome pode se
inserir na categoria ficção científica, mas a narrativa está presa ao gênero
terror épico que lhe deu origem.
SCANDAL
LEVANTANDO
SUA
PRÓPRIA SÉRIE
A esta altura, você já deve estar pensando em como criar a story line
da sua própria série.
Por onde começar?
Quase todos os livros de roteiro para TV que já li começam dizendo
que a primeira coisa que você deve fazer é estabelecer sua story line e
depois ampliá-la para uma sinopse. Uma story line de algumas linhas, três
ou quatro, uma sinopse de algumas páginas.
Como se levanta uma story line ?
Existem muitas maneiras de colocar nossa imaginação para
funcionar até sair a story line que desejamos contar.
A story line pode estar ali, pronta. S e você tem uma story line ,
ótimo. Confira se estão claros protagonista, profissão do protagonista,
objetivo, problema, lugar, época.
Caso não tenha, tente o cenário, o tema, a pensata até chegar na
story line .
Tema ou pensata podem inspirar inúmeras story lines . De qualquer
forma, definir a pensata, o princípio moral da trama é fundamental.
“Quero escrever sobre como é impossível amar e ser feliz ao mesmo
tempo, frase de Nelson Rodrigues.”
“Quero escrever sobre a dificuldade de ser uma boa pessoa, no
mundo em que vivemos.”
Essa é a pensata de A alma boa de Setsuan , de Bertold Brecht, e é
também a pensata da série The Good Wife .
Qual a grande questão moral de sua história? É sobre as implicações
de um dom, um talento inexplicável, sobre a vida do protagonista, como em
The Dead Zone ? É sobre a responsabilidade com a família, mesmo que a
família seja mafiosa, como em Família Soprano ? Considere que na
continuidade, no roteiro propriamente dito, a pensata pode mudar. Nesse
caso, vale a pena considerar que algumas coisas talvez não combinassem
com a pensata que você definiu. A história ou o mundo inconfundível.
Antes de tudo, examine dois pré-requisitos.
CONSTRUÇÃO DE PERSONAGEM
PARA A PRÓPRIA SÉRIE :
segundo pré-requisito
Da minha experiência de escritora eu diria que escutar nossa voz
interior, examinar nossas próprias histórias de vida com olhar de roteirista é
um hábito útil para construir personagens.
Existem muitas formas de refinar, precisar os perfis de personagens.
Alguns métodos preconizam caracterizá-los por núcleos de relacionamento,
outros por papéis, outros por predomínio da ação na trama, positivos,
negativos ou personagens em transição.
O que proponho aqui é que você pense a construção dos
personagens:
Depois de estabelecer a story line a partir do protagonista.
Depois de estabelecer a pensata ou o ideário da série.
Depois de fazer o rascunho de sinopse da trama.
Antes das escaletas dos episódios.
Nesse ponto, é essencial que se faça uma cartela ou perfil do
protagonista primeiro e dos outros personagens depois.
Quando um escritor coloca no perfil de um personagem que ele é
preconceituoso, isso pode ficar abrangente demais. No entanto, se colocar:
tem preconceitos contra negros e imigrantes não europeus, esse lembrete
pode render falas sobre a relação entre caribenhos e o consumo de maconha
em Tony Soprano ou o preconceito de irlandeses pobres, oriundos de
Boston, contra negros em Ray Donovan .
Sempre escrevemos a partir de nossas referências, a dificuldade
consiste em distinguir e assumir quais são as nossas referências.
No primeiro curso de roteiro que fiz, ganhei de presente de um
famoso roteirista brasileiro um conselho primoroso: quem tem medo de ser
fofoqueiro não deve ser escritor.
Ele disse isso porque apresentei o roteiro de um curta-metragem
baseado numa história terrível sobre um pedido de esmola que uma colega
de ginástica havia contado para mim e para toda a turma. Ela contou sem o
menor senso crítico e eu, pimba, contei do ponto de vista do adolescente de
rua que a havia incomodado com sua fome e sua miséria. A minha
preocupação era a de que minha preconceituosa colega soubesse de minha
inconfidência e ficasse chateada. Eu estava mais preocupada com a opinião
pública do que com a narrativa. Não estava pronta, ainda, para publicar.
A maioria das pessoas não se acha fofoqueira, mesmo quando
exerce o comentário sobre a vida alheia.
Já um escritor, um roteirista é assumidamente alguém que pratica a
fofoca, a inconfidência. Por quê? Porque usa todas as suas referências.
Virginia Woolf disse, uma vez, que a literatura é feita de violência e
escândalo. Se não escrevermos sobre as histórias que nos contam, sobre as
pessoas que conhecemos, escreveremos sobre o quê?
A diferença é que um bom roteirista pega as histórias de vida e as
pessoas de carne e osso e as coloca no mundo inconfundível da sua
imaginação de forma tão essencial que as pessoas não se reconhecem. Isso é
criatividade, e eu estou falando sério. Já escrevi vários livros, vários
roteiros em que os personagens são inspirados em pessoas reais, histórias
reais e os homenageados não se reconhecem. Um espanto. Não se
reconhecem porque se é um homem pouco generoso no amor, um homem
que se preocupa apenas com seus próprios objetivos, eu faço uma irmã de
caridade que vai para outro continente, na véspera do aniversário do pai, e
fica sem aparecer e sem dar notícias durante 20 anos.
A pessoa de carne e osso em questão lê o meu romance e diz “Puxa,
que freira egoísta, do que adianta ajudar tanta gente e não se preocupar em
estar do lado do próprio pai?” É uma coisa boa que a pessoa possa refletir
sobre o egoísmo sem que alguém precise dizer para ela o quanto é egoísta.
Essa é uma função da narrativa magnificamente cumprida em algumas
séries dramáticas. Justamente pela construção benfeita de personagens.
Começar a listar as ações, o que faz ou como reage ao que os outros
fazem com ele é o que dará ao personagem uma feição própria.
Ações e falas, isso é drama, é televisão, não é literatura, não dá para
escrever parágrafos e mais parágrafos sobre como o personagem se sente
em relação a alguém ou a suas emoções.
Quando escrevi telenovela uma coisa que me ajudava era preparar
uma biografia para cada personagem. Eram muitos núcleos, sem a biografia
ficava mais difícil colocar em ação a máquina narrativa.
Quando escrevi teatro, colocava os personagens em ação e um
puxava o outro para a frente. Roteiro de cinema, eu faço primeiro o
argumento e os perfis.
Para construir personagens de séries dramáticas prefiro fazer perfis
com o essencial, o marcante, e deixar biografias e estudos psicológicos para
as notas. Cada roteirista terá o caminho que achar mais confortável e
inspirador.
Imaginar como reage a uma situação da sua história alguém que
você conhece de vista, profundamente ou de ouvir falar é um caminho
interessante.
Se aquele seu tio compassivo fosse o padre de uma comunidade
prestes a linchar moralmente um milagreiro como ele agiria?
Posso fazer uma lista de situações-limite a serem enfrentadas por
personagens inspirados em pessoas que eu conheço. Posso listar essas
pessoas, colocar suas características nos meus personagens e começar a
criar ações e falas para esses personagens.
A dificuldade para criar personagens complexos geralmente está
relacionada aos nossos próprios preconceitos. No roteiro e na vida, nós
tomamos partido, temos nossas simpatias, nossos rancores contra
comportamentos, contra defeitos. Aí é que mora o perigo. Quando criamos
um político manipulador e corrupto, precisamos entregar a ele alguma
qualidade que permita ao espectador enxergá-lo como “gente como a
gente”. Isso não é hipocrisia, é verdade. No mesmo lugar, nas mesmas
circunstâncias, com as mesmas características, nós agiríamos diferente?
Quando se escreve um conto, um roteiro de filme definir papéis é
mais fácil do que numa obra seriada. Porque quanto mais se escreve, mais
os papéis mudam. Um personagem pode ser mentor no episódio 1 e prêmio
22 episódios depois. Ou mentor no primeiro, adversário do protagonista no
14º e aliado do antagonista na quarta temporada.
E o papel de herói, então, que muitos confundem com o de
protagonista? Em Scandal , quando a equipe de Olivia recebe o encargo de
resolver o sequestro da mulher de um general/ditador latino-americano,
nada é o que parece ser, e Abby assume o papel de herói da narrativa
daquela que é a verdadeira protagonista dessa história C: a mulher do
general.
Um personagem pode também exercer mais de um papel,
dependendo do ponto de vista dos personagens com quem interage. Por
exemplo, Amanda Tanner é aliada do Bill, prêmio de Olivia (cliente a ser
salva) e adversária de Fitz, em Scandal .
Tony Soprano, além de ser um homem difícil, é também um
Odisseu, alguém que, para manter sua terra prometida, é obrigado a fazer
muitas tarefas, se submeter a inúmeras provas. É possível que muito do
sucesso da série se deva a nossa necessidade de assistir a esse tipo de
heroísmo.
Dexter mata sociopatas, criminosos cruéis e seriais. Mesmo que
desaprovemos o prazer que ele tira disso, no fundo, no fundo, infligir
sofrimento ou, pelo menos, eliminar sádicos assassinos é uma coisa que
muita gente pode aceitar.
Defina quais são seus personagens, criando perfis rápidos, só o
essencial, quatro a seis linhas para cada um. Em Scandal , é possível
colocar ao lado do nome Olivia Pope: autoconfiante e controladora.
Por quê? Porque ela diz que “sempre confia no próprio instinto, na
própria intuição” e isso é uma demonstração da hybris da protagonista,
hybris que dará ao autor a oportunidade de criar situações nas quais a
intuição dela está errada. Olivia Pope controla até a aliança com a qual o
assistente vai pedir a namorada em casamento ou as frases que vai usar.
ESCREVENDO UM SPEC
DE SÉRIE JÁ EXISTENTE
Você já leu sobre teoria da narrativa, sobre formato de séries, fez a
engenharia reversa de várias séries como exercício... Vamos agora tratar de
uma es colha autoral importante: escrever o roteiro especulativo de uma
série dramática já existente. O spec é uma prática difundida no mercado
internacional para se recrutar roteiristas. Ou para roteiristas que não estão
num projeto mostrarem seu trabalho.
Em minhas oficinas, sempre recomendo que os roteiristas assistam a
uma série, façam uma bíblia fictícia daquela série e o roteiro de um
episódio da temporada seguinte. É um ótimo exercício.
No Brasil, no início de 2014, existem poucas séries dramáticas no
ar. No entanto, todo roteirista tem o direito de ter objetivos elevados. Você
pode escolher fazer um episódio de uma série estrangeira de sucesso:
Homeland , Scandal , Downton Abbey , Lilyhammer , House of Cards ,
Sherlock .
Alguns detalhes que você precisa considerar para escrever um
episódio de série já existente:
Antes e acima de tudo não escreva um episódio mostrando o quanto
você tem ideias mais inteligentes e criativas do que o showrunner que já
está garantindo cinco milhões de espectadores por semana.
Escreva um episódio novo, com os mesmos personagens principais.
Podem aparecer outros que você invente e combinem com a story line da
série. Isso se você fizer muita questão. O mais importante é mostrar que
você sabe fazer, por exemplo, o roteiro do último episódio da terceira
temporada de Scandal , coerente com os perfis já existentes e em
continuidade, de preferência surpreendente, com o que já foi mostrado.
Fazer o roteiro implicará ter feito, por conta própria, a sinopse do episódio e
depois a escaleta. A engenharia reversa da série (que você já fez, eu espero)
vai se mostrar essencial nesse ponto.
Use tópicos que combinem com o meio. Tópicos que permitam criar
cenas com diálogos.
Tópicos que combinem com a série. Você precisa ser íntimo dos
personagens. Caso esteja fazendo um episódio de Scandal procure lembrar
detalhes tais como: Abby “atira no que vê e acerta o que não vê”.
Assuntos que funcionem na tela. Isso parece simples, mas não é,
porque, às vezes, se imaginam coisas sofisticadas ou atmosferas que não
funcionam na tela da TV.
Outra coisa importantíssima: você precisa levantar todas as
perguntas que não foram respondidas no último episódio da última
temporada que está no ar para definir quais dessas perguntas serão
respondidas no seu spec .
No mais, a maioria das observações a seguir vale para escrever o
spec .
ESCREVENDO
A PRÓPRIA SÉRI E
11. Tom tem a ver com autenticidade. Aliás, tudo o que você
definiu até aqui ficará muito melhor se for autêntico.
Autenticidade em relação ao gênero, ao tema, ao tom é
imprescindível para escrever bem um projeto de série dramática.
Se você pretende que as pessoas gostem do que você escreve, seja
sincero. Todo livro para roteiristas diz isso, é uma sugestão importante,
mas, de novo, a questão é: como ser sincero?
Em primeiro lugar, escreva sobre o que toca seus sentimentos, o que
emociona você. São histórias sobre como os poderosos são prepotentes,
corruptos e não ligam para pessoas comuns?
O exercício pode ser escrever sobre um homem comum que
consegue se impor num ambiente dominado por esse tipo de gente.
São histórias de amor desesperado lutando contra todo tipo de
obstáculos?
É a história do seu bisavô, que passou por dificuldades para criar a
família sozinho, sem a ajuda de uma mulher, coisa incomum na época dele?
Mesmo que você não vá estrear em séries dramáticas com suas
histórias pessoais, treine a mão com essas histórias, tentando responder às
perguntas de enredo ― onde se passa, em que época, quais são os
personagens, o que eles fazem... ― de forma diferente do que aconteceu na
vida real. Pelo menos um pouco diferente.
Você vai treinar como expor sua sinceridade.
Use sua experiência, seus conhecimentos, suas ideias para os seus
personagens.
Não escreva histórias que poderiam funcionar com quaisquer
personagens.
Escreva sobre assuntos, eventos que expressem sua experiência, sua
visão e seus conhecimentos.
Stephen King escreveu dezenas de histórias que se passam em
cidades pequenas. Woody Allen levou décadas para sair de Nova York e,
mesmo depois que suas histórias começaram a se situar em outras cidades,
o roteirista e diretor leva os nova-iorquinos para lá. Por que escritores
experientes e bem-sucedidos fazem isso? Porque é mais fácil lidar com o
que conhecemos, é mais fácil ser autêntico assim.
Isso contraindicaria escrever a sinopse de uma série que se passa no
interior do Brasil se o criador é do Rio de Janeiro ou de São Paulo? Não. O
que acontece é que pessoas nascidas e criadas em cidades grandes podem
ter dificuldades de exercer empatia com o quanto é apavorante viver
situações fora do comum, numa cidade pequena, onde todo mundo conhece
todo mundo. Situações como a de Broadchurch , em que um pré-
adolescente cai de um penhasco no meio da noite e morre. O evento faz
com que cada um passe a desconfiar do vizinho que conhece a vida inteira.
Qualquer um, na rua, passa a ser suspeito de ter cometido um assassinato...
Caso você já tenha escrito a sinopse geral e as sinopses dos
episódios, veremos agora a questão das escaletas.
Claro que sua série não está no ar, mas se você seguir o rascunho
sugerido de 1 a 12, terá quase uma bíblia de série e um roteiro de piloto
como demonstração de sua competência como roteirista.
Isso é indispensável para escrever um piloto?
Bíblia não, mas é essencial um projeto de 10, 20 páginas, com story
line , sinopse da temporada, arco e perfis dos personagens principais. Assim
você terá um projeto com uma boa apresentação.
ROTEIRO
DO PRIMEIRO EPISÓDIO
Agora, você já deve estar com tudo pronto para escrever o roteiro do
primeiro episódio.
Veja que não estou dizendo que você precisa escrever os roteiros de
todos os episódios. Série dramática é uma escrita colaborativa.
Roteiro do primeiro episódio é essencial para vender uma série para
um canal ou, no caso do Brasil, para mostrar a uma produtora que você sabe
escrever roteiro.
“Ah, mas eu sou um escritor experiente, dez livros publicados, boa
crítica, conheço as pessoas certas.”
Sinto dizer que nossa informalidade cultural brasileira não funciona
para produzir séries dramáticas competentes. Pode ser até que consiga
emplacar uma série sem uma minibíblia como foi descrito anteriormente.
No entanto, as chances de a série não se sustentar são grandes.
O ideal é que você trabalhe já num programa de roteiro. Story Touch
é brasileiro e muitos roteiristas gostam dele. Existe também o Final Draft e
vários outros. Em geral, os programas têm uma versão free , de teste. Use e
veja qual é mais confortável para você.
De qualquer forma, você precisa ter anotado, no programa e em
outro lugar, os dados abaixo e nunca perdê-los de vista. História-base, tema
(pensata), enredo, personagens + cenários (mundo inconfundível), trama
(etapas). Esses elementos devem ser considerados a cada fala e ação dos
personagens, devem ser considerados a cada interação, a cada diálogo entre
os personagens.
Cada paralela, cada sequência de grupo de personagens precisa
apresentar esses elementos de forma orgânica. Eles são importantes para
cada rubrica de cena.
No primeiro episódio de um drama de ação, ocorre a apresentação
de possíveis conflitos, armadilhas, tentações que o protagonista vai
enfrentar. Ele será herói de si mesmo? Como vai ser sua trajetória de herói?
Essas perguntas não deverão ser respondidas de uma vez só. O que o
espectador precisa saber é quem é o possível antagonista, quem são os
prováveis adversários externos e, se possível, internos.
Vamos recuperar a comparação de Downton Abbey com Scandal .
Em Scandal , primeiro episódio, dois minutos e o que é que o
espectador já sabe?
Sabe que Olivia Pope é “a” cara e que ela é uma mulher, uma
mulher negra, que sabe melhor do que ninguém resolver problemas graves.
Em Downton Abbey , o que é mostrado primeiro é o mundo
representado pela mansão. Mary não é a protagonista, na verdade, a Mansão
é protagonista. Todos avançarão ou sucumbirão juntos. Os avanços, as
derrotas ou os desaparecimentos acontecem em ritmos diferentes, mas todos
estão unidos em torno da mansão.
As ações e falas no primeiro ato do primeiro episódio já apresentam
características importantes dos personagens e do contexto.
Ray Donovan não julga comportamentos dos clientes.
Abby, de Scandal , julga a tudo e a todos.
Abby (mulher de Ray Donovan) invade o iPad do marido e assume.
Bunchy foi molestado em criança, tem anorexia sexual.
Terry tem Parkinson e lutou boxe em excesso, tem medo de se
envolver com mulher.
Carrie leva sua profissão de analista da CIA e suas convicções até as
últimas consequências.
Um parêntese:
A vantagem de apresentar o roteiro de um primeiro episódio é que a
bíblia fica mais clara. A desvantagem é que é fácil errar a mão num
primeiro episódio.
Você pode, então, fazer os roteiros do primeiro episódio e do quarto,
por exemplo, já que você fez as escaletas do primeiro, segundo, terceiro e
quarto. No quarto episódio, a trama estará mais consistente.
RELEITURA
DO PRIMEIRO ROTEIRO
ÚLTIMAS SUGESTÕES
SÉRIES DRAMÁTICAS
NO BRASIL:
ENTREVISTAS
COM QUEM FAZ
ROBERTO D’AVIL A
Produzi 9mm São Paulo e agora Sessão de Terapia , que está indo para a
terceira temporada com texto 100% nosso, já que não existe uma terceira
temporada na série original, israelense.
Na série 9mm eu tinha como sócio na criação o Nilton Canito, que era o
roteirista chefe principal. No início, eram mais dois roteiristas, que
acabaram não funcionando, e a equipe acabou ficando com mais seis
roteiristas e o Nilton como coordenador.
Para a série Sessão de Terapia busquei gente que também tivesse
experiência com teatro, já que é um tipo de dramaturgia muito baseada em
teatro.
Hoje, temos, no momento, no projeto, a coordenadora que assina todos os
roteiros, que é a minha autora principal, minha chefe de desenvolvimento,
Jaqueline Vargas, e temos mais cinco roteiristas.
Essa é a mesma configuração das duas temporadas anteriores.
Recompusemos a equipe de cinco na segunda equipe, porque um não
funcionou e aí voltamos aos mesmos roteiristas que tinham funcionado.
Esses já conheciam a nossa linguagem e jeito de trabalhar.
Não. Quando a gente acredita na série, avança até o piloto porque é onde
você testa as suas premissas. Mesmo que a gente ainda não tenha
compromisso de produção, faz pelo menos a leitura, revisa os personagens,
controla a voz deles, vê se aquelas situações funcionam. Quando você vai
conversar com o canal, isso já deve estar feito.
Um episódio inteiro de temporada mais algumas sinopses de episódios
posteriores dão uma percepção melhor para o outro sobre se aquilo de fato
virá como série ou não.
Aqui na produtora prezamos muito pela consistência da entrega. Tudo o que
a Moonshot tem posto no ar tem funcionado, tem audiência, tem
repercussão, as pessoas se vinculam àqueles personagens e as pessoas dão
um retorno positivo em relação a isso.
Queremos de fato manter consistência, por isso temos grande autocrítica no
nosso trabalho.
A gente tem pouca sofisticação aqui no Brasil nessa discussão sobre séries,
até porque, se você pegar o universo de TV paga de séries estrangeiras, tem
muita coisa diferente misturada.
Na TV paga brasileira, existem séries de TV aberta americana, séries de TV
paga americana, séries de canal premium supersofisticadas, tudo isso se
mistura naquela programação.
Acho que o impacto principal será o de ter mais produção, mais emprego,
quer seja temporário, quer seja permanente. Todo mundo vai fazer mais
séries. Isso vai estabelecer uma curva geral de aprendizado no nosso
mercado. Vai aparecer o roteirista que já escreveu três séries que foram
filmadas e realizadas e o produtor terá base para discutir com essa pessoa
que terá, inclusive, autocrítica. A tendência é de que a série dramática passe
a ser um gênero importante.
Série dramática é uma coisa de que eu gosto muito e sou fã já há muito
tempo, acho, inclusive, que é o formato de dramaturgia que permite mais do
que um longa-metragem. Eu já estive envolvido na produção de 20 filmes,
como produtor principal em dez e acho que a série dramática é o formato
que permite mais aprofundamento em dramaturgia. Mais aprofundamento
especialmente em desenvolvimento de personagens. Você expõe o
personagem em muitos mais ângulos, então é obrigado a ser mais
consistente naquele desenvolvimento. É obrigado a saber muito melhor
onde está pisando porque naturalmente as histórias têm um curso mais
longo. No meu caso, de gostar para fazer foi natural.
Em séries, é preciso estudar bastante, pesquisar bastante e partir das
premissas.
No Brasil, o conceito está muito pendurado em situações determinadas.
Tem a oportunidade de um edital, se escrevem duas folhinhas de papel e
põe lá. Fica no máximo é uma ideia, não é nem uma premissa.
PAULO MORELL I
Para mim, antes de tudo você tem que plantar uma pergunta para o seu
público. Basicamente esta que é a pergunta: e agora o que vai acontecer? A
partir dessa situação, o que acontece?
Plantar um problema inconciliável é outra característica importante na
dramaturgia de série. Alan Kingsberg, o professor americano que a O2
trouxe para fazer um workshop para o nosso pessoal, colocou que uma série
vai para a frente, tem várias temporadas quando o personagem principal
tem objetivos inconciliáveis.
Outra coisa é arrumar trilhas e trajetórias de cada personagem. A série que
estou escrevendo é de ação, um dos personagens deve dinheiro para um
agiota e isso gera uma trilha de consequências e ações, mas, esse mesmo
personagem tem também uma trilha amorosa. A soma das trilhas gera a
trajetória dos personagens. O roteirista precisa estar atento a isso.
Outro conceito que acho importante é transformar em imagens, em
metáforas, se possível, o conteúdo emocional e não o personagem falar,
falar.
Às vezes eu sinto que algumas séries não plantam isso. As séries traduzidas
do exterior são mais espertas em relação a isso do que as séries brasileiras.
Os brasileiros ficam divagando; eu acho que tem que materializar.
Pode ser influência do nosso cinema. Sinto que o cinema brasileiro é muito
intelectualizado. Um cinema cerebral onde o diretor quer discutir coisas
importantes. Coisas importantes têm que estar embutidas na trama. A
importância das questões tem que ser resultado da metáfora e das cenas
construídas. A dramaturgia não está a serviço de um discurso, a reflexão
deve ser produto da dramaturgia e não o contrário. É importante não levar
essa característica do nosso cinema para as séries.
Quando o roteiro não traz perguntas, não tem problemas, o público não vem
junto. Se o roteiro tem uma pergunta, o espectador não desliga, quer a
resposta. Você não muda de canal se está com uma pergunta.
Não sei se é uma tradição que vem desde Oscarito, mas existe uma tradição
de comédia muito forte no Brasil. Acho ótimo esse sucesso todo no cinema.
Eu não vi muito por que acho que existe um problema de linguagem que é
meio tosca, mas fico feliz que haja sucesso associado à comédia. Outro
gênero que tem feito sucesso aqui no Brasil no cinema é de ação. Tropa de
Elite e Cidade de Deus são ação. Tenho pensado que podemos reduzir a
dramaturgia em três gêneros básicos: ação, que no fundo é o mito do herói;
comédia e drama. Todos os outros são fruto desses três. Os filmes que acho
mais interessantes são os que conseguem ficar no meio disso. Acho muito
bacana quando você consegue ficar no centro desse triângulo dos gêneros.
Agora estamos fazendo uma série de cinco episódios de uma hora cada. Isso
dá mais ou menos uns dois longas grandes; 120, 125 minutos é bastante
coisa. Ao mesmo tempo, Breaking Bad daria um total de 24 longas-
metragens. Você tem que ter muito mais fôlego, mais possibilidade de
histórias. No longa você tende a ficar mais focado.
Acho também que a gente é tão invadido por mil estímulos que a pessoa
não aguenta ficar duas horas vendo uma única coisa. O tempo
contemporâneo está mais para 90, 100, 110 minutos. Estou muito
interessado na comunicação com o público e acho que para a gente
conseguir construir uma indústria no Brasil tem que criar essa relação com
o público.
Outra diferença do cinema para a série é que o primeiro episódio, por ser
um piloto, tem que ser impactante e tem que ser um pouco mais explícito do
que em um longa. Você tem que ganhar o público nos primeiros minutos, o
grau de tolerância do público na TV é muito baixo. O público de cinema
pagou o ingresso, foi lá, não vai sair depois de dez minutos.
A gente tem que aprender não só com as séries e, sim, com o mercado
americano de entretenimento, de audiovisual. Lá, o mercado de cinema
sempre foi aquecido e, quando o cinema americano começou a apresentar
alguns sinais de desgaste, ficando mais engessado, se tornando cada vez
mais um investimento altíssimo, o seu espaço de risco diminuiu. A
televisão, por ser mais maleável, com mais possibilidades de fazer
arriscando menos, cresceu. Nos Estados Unidos o pessoal já está fazendo
séries há muitos anos, então a televisão, neste momento, está cumprindo um
papel mais de vanguarda. A TV tem mais espaço para arriscar tanto
tematicamente quanto com relação ao estilo de narrativa. As séries têm
todas as viradas, a estruturação do roteiro; acho que a gente tem que
aprender por aí. Isso não nos impede de continuar executando um cinema
autoral, um cinema nosso. Aqui no Brasil a gente está ainda ligado a um
cinema mais autoral, a um cinema mais engajado.
Pode ser que seja uma questão de momento do mercado, mas também a
comédia no Brasil não é um gênero de passagem, não é um gênero tampão.
Para nós, da Zola, essa proporção de ter mais comédia não existe. A gente
acredita que na televisão, por isso mesmo, a série dramática tem o seu
espaço forte. Briga de igual para igual com a comédia.
Neste momento, o cinema está um pouco preso nisso, o pessoal está
querendo fazer comédia porque tem um retorno financeiro melhor. A TV a
cabo acho que é um pouquinho diferente do cinema.
De qualquer forma, fazer comédia é difícil para caramba também.
Você acha que essa lei da TV a cabo tem um impacto positivo do ponto
de vista da criação artística?
Como toda lei agrada a um e desagrada a outro, mas o fato é que está
fomentando, está fazendo a roda girar. Não vejo outra maneira.
Os canais na verdade se apoiam muito nisso, hoje em dia a programação
deles é muito baseada em um fomento interno, mas também contam com
essa ajuda das leis de incentivo. A lei está na ordem do dia dos canais, das
produtoras, a lei é boa, tem problema disso e daquilo outro, é uma lei que
está ajeitada totalmente, funcionando perfeitamente.
Existem alguns problemas de aplicação mesmo dentro dessa lei, tanto na
parte inicial, até aprovar o projeto, quanto na hora de fato de o dinheiro sair.
A lei tem vários problemas de aplicação, mas é um aliado, é uma força
aliada do produtor independente.
O telespectador não gosta de ser feito de burro, mas também não quer que
você exija algo muito mirabolante dele. É uma mistura de ser conduzido
pelo roteiro, mas querer também descobrir as suas coisas ali.
Em Homeland , por exemplo, você fica na dúvida, mas depois sabe que o
cara realmente é um terrorista e aquilo é tão bem escrito que vai lhe
oferecendo caminhos e tem sub-blocos, subpassagens, caminhos
alternativos. O telespectador pode querer fazer uma conclusão dele ali e, às
vezes, acerta. Outras, o cara acha determinada coisa por causa de uma cena
e logo depois sua conclusão vai por água abaixo por causa da cena seguinte.
A forma como o roteirista apresenta a sua estória oferece ao telespectador
ser conduzido pelo o lado A ou o lado B, isso que é legal, fica uma coisa
mais polissêmica.
AGRADECIMENTOS
Este livro não seria possível sem a valiosa colaboração dos roteiristas que
participaram das oficinas de roteiro de séries dramáticas que ministro. Cito
aqui, em nome de todos, Ana Beatriz Petrini, Angelica Coutinho, Andrei
Maurey, Jesse Castilho e Sarah Duarte.
Um agradecimento superespecial a Bárbara Rodrigues Mota pela
leitura crítica e pelas valiosas sugestões, e a Janaina Senna pela preparação
de originais.
No Brasil, a generosidade de José Henrique Fonseca, Paulo Morelli
e Roberto D’Avila em conceder as entrevistas também merece destaque.
Ajudaram muito a entender o momento que o mercado brasileiro está
vivendo.
Luke Ryan, Katie Elmore Mota e Samie Falvey foram interlocuções
essenciais para que eu conhecesse um pouco do que se faz lá fora.
Maurício Mota, mais uma vez, foi um bom companheiro de viagens
intelectuais. Seu apoio e sugestões foram fundamentais para minhas
pesquisas.
Agradeço também a Adriano Fromer Piazzi, pelo cuidado e esforço
para que este livro desse certo.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BROOKS, Peter. Reading for the plot . Harvard University Press, 1992.
[1]
P ROPP , Vladimir I. Morfologia do conto maravilhoso . Rio de Janeiro: Forense, 1984.