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Year 8 – História – Mr. Nelson de Paula Pereira mor.

A conversa só poderia versar sobre assuntos


científicos e de beneficência. Às quatro e meia, haveria
FABRICANDO O PRÍNCIPE PERFEITO
passeio pelos jardins e leituras. Às oito da noite,
por José Murilo de Carvalho
oração, ceia às nove, e cama às nove e meia. O médico
regulava os banhos e a temperatura da água. O
imperador só podia ir aos aposentos das irmãs depois
do almoço.
D. Pedro incorporou os hábitos de disciplina e
pontualidade que lhe incutiram na infância. Ao longo
da vida, sempre teve mania de estabelecer horários
rígidos para tudo, onde quer que estivesse, em São
Cristóvão, em Petrópolis, nas províncias, em viagens
pelo exterior. Mas o tutor teve pouco êxito no ponto
referente a não comer muito. A comida nos palácios do
Rio de Janeiro e de Petrópolis era ruim, mas o
imperador foi sempre um bom garfo, embora não um
gourmet. O bom apetite, justificado em parte pelo
físico avantajado, acompanhou-o por toda a vida. Nos
diários, inclusive os do exílio, frequentemente anotava
“comi bem”, “comi com apetite”, “o jantar me soube”.
Em 1881, a condessa de Barral referiu-se a um
desmaio que ele sofrera durante uma missa e pediu:
“Pelo amor de Deus, não coma tanto nem tão
depressa”. Tinha um fraco por doces e canja de
galinha. Frango era, por sinal, um dos pratos prediletos
de D. João VI.
Pintura de Arnaud Pallière (1784-1862). Pintada em c. 1830. Pedro de
Alcântara, o futuro D. Pedro II, com 5 anos de idade. O tutor preparou ainda, seguramente com a
colaboração de frei Pedro de Santa Mariana, instruções
A primeira educação de D. Pedro esteve a
a ser observadas pelos mestres na educação literária e
cargo de D. Mariana, de frei Antônio de Arrábida, que
moral de seu pupilo. Eram uma mistura de iluminismo,
já fora preceptor do pai, e de outros mestres, como o
humanismo e moralismo. Itanhaém queria formar um
pintor Simplício de Sá e o coreógrafo Luís Lacombe.
monarca humano, sábio, justo, honesto, constitucional,
Fiel a sua profunda religiosidade, D. Mariana compôs
pacifista, tolerante. Isto é, um governante perfeito,
em 1830, para uso do pupilo, uma “Introdução do
dedicado integralmente a suas obrigações, acima das
pequeno catecismo histórico, oferecido a S.A.I.D.
paixões políticas e dos interesses privados.
Pedra de Alcântara”. Nesse mesmo ano, o menino já
conseguia ler. Fala em favor de D. Pedro I o fato de ter
percebido a falta que lhe fizera, a ele e ao irmão
RECEITA DE IMPERADOR - TRECHOS DAS
Miguel, uma educação adequada. O filho lembrava-se
INSTRUÇÕES DO MARQUÊS DE ITANHAÉM (1838)
de ter ouvido dele, antes da abdicação, que “ele e o
Miguel haviam de ser os últimos malcriados da
família”, querendo dizer, com a expressão, mal- “[...] discernindo sempre do falso o
educados. Após o regresso a Portugal, D. Pedro I ainda verdadeiro, venha [o imperador] em último resultado
escreveria aos filhos deixados no Brasil, insistindo a compreender bem o que é a dignidade da espécie
sempre em que se dedicassem aos estudos. humana, a qual o monarca é sempre homem sem
diferença natural de qualquer outro indivíduo humano,
Assumindo o cargo, Itanhaém preparou um
posto que sua categoria civil o eleve acima de todas as
regulamento a ser seguido por todos os mestres ao pé
condições sociais.”
da letra. D. Pedro devia levantar-se todos os dias às
sete horas da manhã. O almoço era às oito, com a “[...] para que o imperador, conhecendo
presença de um médico “para não comer muito”. As perfeitamente a força da natureza social, venha a
irmãs não comiam com ele. A preocupação com a sentir, sem o querer, aquela necessidade absoluta de
frugalidade devia-se sem dúvida à lembrança do avô, ser um monarca bom, sábio e justo.”
D. João VI, conhecido como grande garfo. Das nove às
onze e meia devia estudar, e então divertir-se até a uma “Em seguimento, ensinarão os Mestres ao
e meia. O jantar era às duas da tarde, novamente com a imperador que todos os deveres do Monarca se
presença do médico, além da camarista e da camareira- reduzem a sempre animar a Indústria, a Agricultura, o

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Comércio e as Artes; e que tudo isto só se pode uma hora por dia, textos de história e literatura e exigir
conseguir estudando o mesmo imperador, de dia e de que o aluno lesse para ele. O hábito da leitura e do
noite, as ciências todas, das quais o primeiro e estudo foi totalmente absorvido pelo pupilo. Mais do
principal objeto é sempre o corpo e a alma do que hábito, leitura e estudo transformaram-se numa de
homem.” suas paixões. Enfurnado no palácio, longe dos pais,
educado por estranhos, à exceção de D. Mariana, fez
“Eu quero que o meu Augusto Pupilo seja um
dos livros um mundo à parte, em que podia isolar-se e
sábio consumado e profundamente versado em todas
proteger-se.
as ciências e artes e até mesmo nos ofícios mecânicos,
para que ele saiba amar o trabalho como princípio de As orientações do tutor e a ação dos mestres
todas as virtudes, e saiba igualmente honrar os marcaram para sempre a personalidade e os hábitos de
homens laboriosos e úteis ao Estado. Mas não D. Pedro. A observação vale, sobretudo, para a
quererei decerto que Ele se faça um literato concepção da igualdade básica dos seres humanos,
supersticioso para não gastar o tempo em discussões para a necessidade de buscar ser imparcial e justo, de
teológicas como o imperador Justiniano; nem que seja não depender de áulicos, de fiscalizar os atos dos
um político frenético para não prodigalizar o dinheiro funcionários públicos, até mesmo dos ministros, de
e o sangue dos brasileiros em conquistas e guerras e preocupar-se com o bem público. Vale igualmente para
construção de edifícios de luxo, como fazia Luís XIV a importância do estudo das ciências e das artes,
na França, todo absorvido nas ideias de grandeza; inclusive as mecânicas.
pois bem pode ser um grande Monarca o Senhor D.
Os deputados acompanhavam de perto a
Pedro II sendo justo, sábio, honrado e virtuoso e
educação do príncipe, examinando os relatórios do
amante da felicidade de seus súditos, sem ter precisão
tutor e fazendo visitas de inspeção. O relatório de 1837
alguma de vexar os povos com tiranias e violentas
dizia que o imperador já falava e escrevia francês, lia e
extorsões de dinheiro e sangue.”
traduzia inglês. O deputado Rafael de Carvalho
“Finalmente, não deixarão os mestres do criticou, no entanto, a falta de exercícios e
imperador de lhe repetir todos os dias que um divertimento, reduzidos que estavam a remar em bote
monarca, toda vez que não cuida seriamente dos em água parada e a teatrinho em francês. O de 1838
deveres do trono, vem sempre a ser vítima dos erros, mencionava que D. Pedro estudava com prodigioso
caprichos e iniquidades dos seus ministros, cujos afinco. “Nunca foi necessário chamá-lo para o estudo;
erros, caprichos e iniquidades são sempre a origem talvez antes se julgasse algumas vezes prudente
das revoluções e guerras civis; e então paga o justo recomendar-lhe a abstenção de aplicação tão
pelos pecadores, e o monarca é que padece, enquanto prolongada.” Frei Pedro surpreendia-o às vezes, a altas
os seus ministros sempre ficam rindo-se de cheios de horas, lendo na cama. Apagava as luzes, mas meia hora
dinheiro e de toda a sorte de comodidades. Por isso depois voltava a flagrá-lo na mesma atividade.
cumpre absolutamente ao Monarca ler com atenção Segundo o relatório de 1839, o aluno compunha e
todos os jornais e periódicos da Corte e das vertia latim sem erros, deixando as poucas brincadeiras
Províncias e, além disto, receber com atenção todas as para só ler e estudar.
queixas e representações que qualquer pessoa lhe fizer
O Arquivo Histórico do Museu Imperial
contra os ministros de Estado, pois só tendo
conserva dezenas de cadernos e folhas de exercícios
conhecimento da vida pública e privada de cada um
escolares de D. Pedro e de suas irmãs. Abrangem
dos seus ministros e agentes é que o monarca pode
caligrafia, cópias, desenho, línguas, retórica, história,
saber, se os deve conservar ou demiti-los
ciências naturais, matemática, astronomia. Mesmo nos
imediatamente e nomear outros que melhor cumprirão
aparentemente inocentes exercícios de caligrafia, os
seus deveres e façam a felicidade da Nação.”
mestres introduziam lições de moral e política. Veja-se
Frei Pedro de Santa Mariana foi nomeado pelo o texto deste exercício, em francês, de 1833, quando D.
tutor aio e primeiro preceptor de D. Pedro. Era um Pedro tinha oito anos: “Lei dos soberanos. O amor do
sábio carmelita, formado no Seminário de Olinda. povo o bem público o interesse geral da sociedade é a
Tinha 51 anos em 1833, e ensinava matemática e lei imutável e universal dos soberanos”. Ou este outro,
geometria na Academia Militar. Era conhecido pela em português, de 1834: “Um rei não é digno de reinar
modéstia e pela severidade dos costumes. Foi nem ser feliz no seu poder senão enquanto o tem [o
encarregado de presidir sempre a todos os atos letivos poder] subordinado a razão”.
e de fazer valer as instruções, pondo-se de acordo com
O menino tinha um espaço para se dedicar à
os outros mestres para uniformizar a educação. Além
jardinagem, mas pouco o frequentava. O tutor e todos
de assistir às lições, frei Pedro devia acompanhar o
os que o conheciam eram unânimes em assinalar que
imperador durante o dia e fazer relatórios diários.
era precoce, dócil e muito obediente. Mas não era uma
Devia comparecer às recepções para ensinar civilidade
criança feliz. Em 1840, transcreveu no diário um
ao pupilo. Devia, por fim, ler para D. Pedro, durante
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diálogo com o mordomo Paulo Barbosa em que este Franceses também eram Luís Aleixo
lhe lembrou que em certa época D. Pedro vivia Boulanger, professor de escrita, caligrafia e geografia;
chorando e nada lhe agradava. Sua grande timidez Lourenço Lacombe, professor de dança, e o cônego
pode ter sido responsável por uma característica que o Renato Pedro Boiret, um emigrado de 1789, Boiret era
marcou pelo resto da vida. A voz não engrossou, não um remanescente da corte de D. Pedro I, companheiro
adquiriu o timbre masculino. Quando adulto, o de cavalgadas da imperatriz Leopoldina. Ensinava
contraste entre o físico avantajado e a voz fina causava francês e geografia. Fortunato Maziotti, italiano,
surpresa aos interlocutores e, certamente, ensinava música; o britânico Nathaniel Lucas, inglês; o
constrangimento a ele próprio. Muitos registraram o austríaco Roque Schüch, latim e alemão. O cientista
fato, mas o imperador nunca a ele se referiu. Alexandre Antônio Vandelli, genro de José Bonifácio,
era professor de ciências naturais. O coronel Luís
Seus poucos companheiros de brincadeiras
Alves de Lima, futuro duque de Caxias, era mestre de
eram filhos de pessoas próximas do paço, como
esgrima. Falava alemão, italiano, espanhol, francês,
Aureliano Coutinho Cândido José de Araújo Viana. Os
latim, hebraico e tupi-guarani. Lia grego, árabe,
mais chegados eram Luís e João, filhos de Luís
sânscrito e provençal. Fez traduções do grego, do
Pedreira do Couto Ferraz; Capanema, filho de Roque
hebraico, do árabe, do francês, do alemão, do italiano e
Schüch, bibliotecário de D. Leopoldina, e Francisco
do inglês.
Otaviano, filho do médico Almeida Rosa. José de
Assis Mascarenhas, filho legitimado do mordomo-mor, As figuras mais importantes no paço, no
marquês de São João da Palma, foi afastado do grupo entanto, desde a abdicação até depois da maioridade,
por ter espancado o imperador. Todos se tornaram eram Aureliano Coutinho e o mordomo Paulo Barbosa
figuras relevantes no mundo político e científico do da Silva. Aureliano colocou amigos no palácio,
Segundo Reinado. O mais próximo amigo de toda a inclusive Paulo Barbosa. Pessoa inteligente e
vida foi Luís Pedreira do Couto Ferraz, futuro visconde insinuante, e político hábil, conseguiu manter sua
do Bom Retiro. Luís Pedreira foi ministro uma vez e influência também após a maioridade. Foi feito
depois, para manter a amizade, renunciou a posições de visconde de Sepetiba em 1855 e morreu nesse mesmo
poder. Não queria ser acusado de se beneficiar do favor ano. Paulo Barbosa era engenheiro de formação.
imperial. Ganhou fama de áulico. Inventou-se o Controlava a vida do paço e morava na Chácara da
seguinte diálogo entre os dois: “- Que horas são, Bom Joana, localizada dentro da Quinta da Boa Vista. Em
Retiro? - As que Vossa Majestade quiser”. Outro 1845, julgou ter sofrido um atentado em Petrópolis.
companheiro constante foi o preto Rafael, veterano da Assustado, pediu ao imperador que o mandasse servir
Guerra da Cisplatina, que carregava D. Pedro nos na Europa como ministro do Brasil. Reassumiu a
ombros. mordomia em 1855, sem exercer mais poder algum.
Entre os mestres, salientava-se, pelos Além das crenças políticas e dos hábitos
conhecimentos, Félix Emílio Taunay, diretor da absorvidos dos mestres, D. Pedro II levou de sua
Academia Imperial de Belas Artes. Félix Emílio era traumática infância e solitária adolescência marcas
filho de Nicolas Taunay, com quem viera para o Brasil mais profundas. Segundo os observadores, era um
como parte da missão artística de 1816, junto com o tio menino tímido, ensimesmado e, seguramente, muito
Auguste Taunay. Além de desenho, Taunay ensinava carente de afeto. Timidez e carência foram traços de
história universal e das artes, literatura antiga e grego. sua personalidade. A timidez, ele a escondeu, após a
Mais tarde, em carta à condessa de Barral, D. Pedro maioridade, atrás da máscara do poder. A posição de
reconheceria seu débito, chamando-o de seu verdadeiro imperador obrigava todos a tratá-lo com respeito e
mestre. Mantiveram amizade por toda a vida, reverência, o que lhe conferia autoridade e segurança.
prolongada, após a morte do pai, na figura do filho, o A carência afetiva, dadas as estritas regras que lhe
visconde de Taunay. O futuro marquês de Sapucaí, impuseram, e que assimilou, de não manter favoritos e
Cândido José de Araújo Viana, mineiro formado em favoritas, ele procurava compensá-la na intensa
Coimbra, ensinava literatura e ciências práticas. Foi atividade epistolar, com homens e mulheres, em busca
também importante conselheiro político. Quando o de reconhecimento e carinho. Por trás das pompas da
cônego Pinto de Campos quis escrever a biografia do monarquia, da aparência de autossuficiência, pode ter
imperador, este mandou que falasse com Araújo Viana. vivido um homem infeliz.
O diretor de estudos, frei Pedro de Santa Mariana,
Fonte:
ensinava latim, aritmética, geometria e religião.
Continuou a morar no paço depois da maioridade. Com CARVALHO, José Murilo de. D. Pedro II. São Paulo:
Araújo Viana, ajudou D. Pedro a se decidir quando Companhia das Letras, 2007, p. 26-33.
consultado, em 1840, sobre a antecipação da
maioridade.

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