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RESUMO
O presente trabalho consiste numa reflexão acerca da condição legal do regime de comunhão parcial de
bens no casamento, que hodiernamente tem aumentado desnecessariamente as demandas legais em seu
entorno, como resultado da desconexão entre a realidade social pretérita protegida por este arranjo legal e
a condição pós-moderna dos arranjos familiares líquidos.
ABSTRACT
The folowing work consists in a reflexion about the legal condiction of partial community property
regime in marriage that, in nowadays, enlarges unnecessary amount of legal demands, as a result of the
disconnection between the past social reality once protected by this legal arrangment and the postmodern
condiction of the liquid familiar arrangments.
A ordem jurídica, sob um certo prisma, pode ser vista com um discurso em contínua
construção, uma narrativa sempre fluente e nunca terminada, cuja função é imprimir
uma perspectiva ordenadora, um modelo de orbis, um ideal de mundo. Narrativa esta
cuja semântica constrói eficácia nos fatos sociais (e, dialeticamente, deles tira sua
legitimidade) em perene devir que não pode ser ignorado pelo teórico do Direito. Tal se
deu, de modo específico, com a figura jurídica da comunhão de bens, tanto em sua
forma universal quanto parcial, irmãs congêneres e descendentes diretas do discurso
normativo herdado ao direito luso-espanhol colonial:
O texto que abre o presente texto vem da legislação ibérica que, por mais de trezentos
anos, vigorou no Brasil Colonial, durante o Império e liminar do período Republicano,
até a entrada em vigor do recentemente revogado Código Civil de 1916. Trata-se,
portanto, de norma jurídica cuja influência na consciência coletiva ainda pode ser vista
aqui e ali, como um espectro ou fantasma de si mesma, que teima em refletir ainda dos
fatos e valores que, ao seu tempo, legitimavam sua existência e vigência.
Assim, parece até que a evolução dos valores que moldam o fenômeno familiar, pelo
menos na orbis brasileira e segundo a descrição da majoritária doutrina juscivilista
(LÔBO, 2013), chegou a um clímax a-histórico :
Os fatos não apontam em outra direção. Dados do IBGE de 2010 apontam que,
enquanto a taxa de nupcialidade no Brasil é de 6,6 pessoas por cada 1000 habitantes, a
de divórcios é de 1,8 para o mesmo grupo. Um simples cálculo aritmético evidencia o
fato de que 27,7% dos matrimônios, no Brasil, acabarão em divórcio. Por óbvio, esta
estatística deixa de fora as uniões estáveis (cuja estabilidade é análoga, pode se
presumir, ao do matrimônio), mas expressa na parte, o todo de uma realidade
empiricamente conhecida: o amor é eterno enquanto dura. Assim, “quem sabe está na
hora de abandonar a expressão 'cônjuge', que tem origem na palavra 'jugum', nome
dado pelos romanos à canga que prendia as bestas à carruagem. Daí o verbo conjugere
designar a união de duas pessoas sob o mesmo jugo, a mesma canga. Talvez seja o caso
de se resgatar a palavra 'amante', que significa tanto a pessoa que ama como quem é
objeto do amor de alguém, expressão que melhor identifica a razão de as pessoas
ficarem juntas: porque se amam. (…) Os amantes nenhum compromisso assumem para
o futuro; a independência de ambos é sagrada. Nas páginas de sua vida nada se escreve
com tinta indelével.” (DIAS, 2004, pp. 37-38.)
O perfil da mulher sob o qual vigeu a comunhão de bens nos últimos séculos não existe
mais, como aliás no restante do mundo ocidental, em que a família hierarquizada,
patriarcal, praticamente desapareceu do horizonte para dar lugar à miríade de
combinações que expressam a orbis de igualdade (mormente econômica) entre homens
e mulheres. Mais uma vez, os dados e fatos não mentem, como é o caso da participação
da mulher no mercado de trabalho (MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO,
2012), que tem se aproximado da igualdade com a masculina:
Parafraseando Maria Berenice Dias, para quem “o novo modelo de família funda-se
sobre os pilares da repersonalização, da afetividade, da pluralidade e do eudemonismo”,
tem-se que igualmente a família na pós-modernidade funda-se, por natureza, nas suas
intrísecas relatividade temporal e seu descolamento do âmbito patrimonial, sendo
necessário que tais novas características sejam levadas em conta na reavaliação da
intervenção estatal no que concerne a tais relações, bem assim seus efeitos de natureza
patrimonial.
Qual a razão, então, para que se mantenha a interferência estatal sobre o regime de bens
de cônjuges presentes, baseado em um desenho de sociedade pretérita?
A comunhão universal de bens, oriunda do direito colonial, foi o regime legal que
continuou em vigor no Código Civil de 1916, sendo alterado apenas com a Lei do
Divórcio, em 1977, passando a ser o da comunhão parcial de bens, mantido pelo Código
de 2002.
O reflexo deste vetusto paradigma patrimonial concebido sob a noção de uma família
perpétua é a proliferação de litígios ocasionados pela sua incidência em caso de ruptura,
onerando o Estado e estimulando a cultura do conflito.
O Estado, como clama Maria Berenice Dias alhures, precisa desestatizar o afeto. Na
prática, nem os fundamentos ideológicos que fundamentavam a imposição de um
regime legal de comunhão parcial existem mais (basta evocarem-se os números que
evidenciam o avanço das mulheres no mercado de trabalho), bem assim o Judiciário,
numa visão economicista do Direito, há de desafogar-se de uma demanda desnecessária.
Idêntico raciocínio aplica-se às uniões estáveis, tanto entre pessoas de sexos distintos
quanto entre as de mesmo sexo. Não havendo contrato escrito, presumir-se-iam, tanto
no casamento quanto na união estável, separadas as esferas patrimoniais dos cônjuges
ou conviventes. Trata-se de uma inovação legislativa necessária para manter
socialmente vigente a já descompassada regra do regime legal de bens entre cônjuges e
companheiros com os fatores socioeconômicos ora reflexo da realidade brasileira.
4.REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
CYMBALUK, Fernando. Mulheres chefes de família não são mais pobres e nem
sozinhas, diz pesquisadora. Disponível em
http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/09/22/mulheres-chefes-de-
familia-nao-sao-mais-pobres-e-nem-sozinhas-diz-pesquisadora.htm. Acesso em
27/11/2012.
DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre o direito das famílias. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2004.