Você está na página 1de 12

O REGIME LEGAL DA COMUNHÃO PARCIAL DE BENS E A

FAMÍLIA PÓS-MODERNA – DESESTATIZANDO O PATRIMONIO


NUMA FAMÍLIA LÍQUIDA1

RESUMO

O presente trabalho consiste numa reflexão acerca da condição legal do regime de comunhão parcial de
bens no casamento, que hodiernamente tem aumentado desnecessariamente as demandas legais em seu
entorno, como resultado da desconexão entre a realidade social pretérita protegida por este arranjo legal e
a condição pós-moderna dos arranjos familiares líquidos.

ABSTRACT

The folowing work consists in a reflexion about the legal condiction of partial community property
regime in marriage that, in nowadays, enlarges unnecessary amount of legal demands, as a result of the
disconnection between the past social reality once protected by this legal arrangment and the postmodern
condiction of the liquid familiar arrangments.

PALAVRAS-CHAVE: Família. Bens. Pós-modernidade.

1.FAMÍLIA E LEI CIVIL – DA PRÉ À PÓS-MODERNIDADE

A ordem jurídica, sob um certo prisma, pode ser vista com um discurso em contínua
construção, uma narrativa sempre fluente e nunca terminada, cuja função é imprimir
uma perspectiva ordenadora, um modelo de orbis, um ideal de mundo. Narrativa esta
cuja semântica constrói eficácia nos fatos sociais (e, dialeticamente, deles tira sua
legitimidade) em perene devir que não pode ser ignorado pelo teórico do Direito. Tal se
deu, de modo específico, com a figura jurídica da comunhão de bens, tanto em sua
forma universal quanto parcial, irmãs congêneres e descendentes diretas do discurso
normativo herdado ao direito luso-espanhol colonial:

“Todos os casamentos feitos em nossos Reinos e senhorios se


entendem serem feitos per carta de ametade: salvo quando entre as
partes outra cousa for acordada e contractada, porque então se
guardará o que entre elles for contractado.
1

Francisco. Advogado. E-mail: carlosandradeadv@gmail.com)


1- E quando o marido e mulher forem casados per palavras de presente
à porta da Igreja, ou per licença de prelado fora della, havendo copula
carnal, serão meeiros em seus bens e fazenda. E posto que elles
queiram provar e provem que foram recebidos per palavras de
presente, e que tiveram copula, se não provarem que foram recebidos á
porta da Igreja, ou fora della com licença do Prelado, não serão
meeiros.

2- outrosi serão meeiros, provando que stiveram em casa teúda e


manteúda, ou em casa de seu pai, ou em outra, em pública voz e fama
de marido e mulher per tanto tempo, que segundo Direito baste para se
presumir Matrimônio antre elles, posto que se não provem as palavras
do presente.

3- E acontecendo, que o marido, ou a mulher venham a ser


condenados por crime de heresia, por que seus bens sejam
confiscados, queremos que comuniquen entre sí todos os bens, que
tiverem ao tempo do contracto do Matrimonio, e todos os mais, que
depois adquirirem, como se ambos fossem Catholicos. O que assi
havemos por bem, por se acusarem conluios e falsidades, que se
poderiam commeter sobre a prova dos bens, que cada hum delles
comsigo trouxe.” (Ordenações Filipinas, Título XLVI do Livro IV)

O texto que abre o presente texto vem da legislação ibérica que, por mais de trezentos
anos, vigorou no Brasil Colonial, durante o Império e liminar do período Republicano,
até a entrada em vigor do recentemente revogado Código Civil de 1916. Trata-se,
portanto, de norma jurídica cuja influência na consciência coletiva ainda pode ser vista
aqui e ali, como um espectro ou fantasma de si mesma, que teima em refletir ainda dos
fatos e valores que, ao seu tempo, legitimavam sua existência e vigência.

Nele está consignada a milenar regra da repercussão patrimonial do matrimônio, pela


qual o casamento, como instituição social e religiosa, tem por efeito a comunhão de
bens presentes e futuros dos cônjuges. A noção de família que lastreia a norma em tela é
por demais clara para permitir divergências: não há família sem matrimônio, este deve
ser abençoado pela Igreja, tornando-se perpétuo e implicando num condomínio ou
meação sobre os bens presentes e futuros. O destino dos bens está atrelado ao da
família, fazendo parte de um pano de fundo maior, um desenho tradicionalmente
ordenado de mundo.

Ocioso aqui seria pincelar a sociedade patriarcal, hierarquizada, institucionalista e


claramente ordenada segundo valores exarados da cosmovisão cristã, legitimadora das
estruturas de poder de uma época, contexto do qual vem, recebida como tradição de
análogo contexto romano (basta lembrar o rei-sacerdote paterfamilias), a figura jurídica
da comunhão de bens entre cônjuges, conforme expressa na antiga norma de direito
luso-espanhol.

O Século XX e a mudança na relação do homem com os meios de produção (aqui vejo


claramente a relação Engeliana entre família e propriedade), trouxe consigo reflexos na
estrutura do fenômeno familiar, desmantelando a instituição hierarquizada, centrada
numa relação de poder e desigualdade, para refletir a realidade da sociedade moderna
comporta de operários e de uma classe média em ascenção, e cuja expressão familiar
que melhor adequou-se aos novos tempos foi a denominada família nuclear, com
gradativa desconstrução das hierarquias intrafamiliares, vale dizer, da relação entre
homem e mulher, e entre pais e filhos. Tudo isso teve patentes reflexos na legislação que
regula o casamento, as relações matrimoniais e em relação aos filhos, evidenciando,
mais uma de tantas vezes, o fato de que a lei civil tem a notória tendência em regular
fatos passados e situações consolidadas pela experiência coletiva. Se a lei,
paradoxalmente, sequer consegue acompanhar o passado recente, sua eficácia como
instrumento de regulação de comportamentos cedo cairá em desuso, como bem apontou
Eduardo Bittar (2005, pp. 213-214) em primoroso trabalho:

Visto no tempo e no espaço, pode-se entender mesmo que um sistema


jurídico válido só possui relevância se está intrisecamente ligado a seu
tempo, ou seja, ao presente. Se ele é inadequado para sua época, se é
mero fruto do passado, funciona como tal, ou seja, como relíquia
histórica. Se está no compasso das necessidades sociais para o
presente e coloca-se afinado com o futuro, é sim um ordenamento que
transparece força por meio de suas normas. Ordenamento a-histórico
não existe, e deve-se saber, quando se está diante de um ordenamento
jurídico concreto, se se trata de um ordenamento que caminha ao fluxo
de sua época, ou se deixa deteriorar pelas rápidas modificações
socioculturais sem acompanhá-las, operando frustrações no alcance
dos seus preceitos e regramentos.

Trata-se de um lugar-comum na literatura jurídica especializada (REIS JÚNIOR, 2013),


sendo repetido amiúde por incontáveis textos dos mais diversos níveis:

“Ao observarmos a origem do nosso extinto Código Civil, percebemos


que seu nascimento deu-se em uma sociedade altamente
individualista, onde o patriarcalismo dominava. Doravante, a família
patriarcal tinha sua constituição fundada no chefe (marido), sua
mulher e seus filhos, sendo estes seus subalternos.”

Se a família pré-moderna refletia, no seu microcosmo, a ordem social hierarquizada e


delineada para fins claramente institucionais e coletivistas, a família da pós-
modernidade, sob a capa politicamente correta do princípio da afetividade, é líquida,
essencialmente instável, servindo mais como locus de satisfação pessoal do indivíduo
que a ela adere sem compromissos de qualquer perenidade ou continuidade, que
propriamente o espaço romanticamente delineado por nossa tradição jurídica cujo traço
ibérico manifesta-se justamente nesse romantismo.

De fato, o eixo valorativo mudou. Mas ao contrário do tom triunfalista da majoritária


doutrina, não pode ser tomado como medida, a priori, sob o ponto de vista existencial,
qualitativamente melhor que o paradigma anterior e que, bem ou mal, trouxe a
Civilização Ocidental até o raiar do Século XX.

Assim, parece até que a evolução dos valores que moldam o fenômeno familiar, pelo
menos na orbis brasileira e segundo a descrição da majoritária doutrina juscivilista
(LÔBO, 2013), chegou a um clímax a-histórico :

“Projetou-se, no campo jurídico-constitucional, a afirmação da


natureza da família como grupo social fundado essencialmente nos
laços de afetividade, tendo em vista que consagra a família como
unidade de relações de afeto, após o desaparecimento da família
patriarcal, que desempenhava funções procracionais, econômicas,
religiosas e políticas.”

Assim, é de se questionar o pressuposto do qual partem os autores do Direito Civil


nacional para afirmar que “a família, ao converter-se em espaço de realização da
afetividade humana, marca o deslocamento da função econômica-política-religiosa-
procracional para essa nova função. Essas linhas de tendências enquadram-se no
fenômeno jurídico-social denominado repersonalização das relações civis, que valoriza
o interesse da pessoa humana mais do que suas relações patrimoniais.”(LÔBO, 2008,
p. 11)
Quem pinta em tons de cinza a nova 'entidade' familiar (entidade aqui em destaque com
finalidade de destacar o claro vício de linguagem de uma figura fenomenológica hoje
dinâmica e volúvel sob os auspícios de um vocábulo que contraditoriamente denota
estabilidade e mesmo perenidade), tornando-a apenas mais um elemento do completo
ético construído pelo mercado (com o perdão do patente antagonismo entre ética e
mercado no contexto atual da civilização ocidental), não é o autor destas poucas linhas,
mas as pesquisas abalizadas em psicologia (ZORDAN, FALCKE & WAGNER, 2013),
que demonstram haver uma definição contemporânea de amor (a afetividade que
fundamenta o princípio jurídico) bastante próxima do que Bauman entende por “amor
líquido”:

“Estudiosos do tema (Garcia & Tessara, 2001; Haddad, 2006)


afirmam que, no contexto contemporâneo, para haver o casamento, é
necessário o amor. Este tendo como característica principal a
intensidade e não mais a eternidade, bem ao sabor da poesia de
Vinícius de Morais (1992): “Que não seja imortal, posto que é chama,
mas que seja infinito enquanto dure”. Cai por terra, portanto, o peso
do “até que a morte nos separe”, surgindo a ideia de que a relação
entre os envolvidos tenha por eixo, cada vez mais, o desejo recíproco
e menos a obrigação (Turkenicz, 1995). Priorizando-se a igualdade e o
respeito à mútua individualidade (Costa, 2007).

Essa mudança na concepção dos relacionamentos se evidencia na


emergência da superficialidade vincular (Mezan, 2003), caracterizada
pela paixão intensa, porém efêmera. Segundo Bauman, essa é a
concepção do que ele denomina amor líquido, um reflexo da
fragilidade dos vínculos humanos na contemporaneidade, que inspira
desejos conflitantes “de apertar os laços e, ao mesmo, tempo mantê-
los frouxos” (Bauman, 2004, p. 8). Dessa forma, os casamentos
tornam-se mais fugazes e, frente às dificuldades da vida em conjunto,
é mais comum a dissolução do vínculo do que a perseverança na
busca de alternativas para a resolução.”

O sociólogo polonês assevera (BAUMAN, 2004, p. 65):

“Nos compromissos duradouros, a líquida razão moderna enxerga a


opressão; no engajamento permanente a dependência incapacitante.
Essa razão nega direitos aos vínculos e liames, espaciais ou temporais.
Eles não tem necessidade ou uso que possam ser justificados pela
líquida racionalidade moderna dos consumidores. Vínculos e liames
tornam 'impuras' as relações humanas – como o fariam com qualquer
ato de consumo que presuma a satisfação instantânea e, de modo
semelhante, a instantânea obsolescência do objeto consumido.”
Assim, da migração temporal de um paradigma de segurança institucionalizada (tipica
da modernidade pretérita) para a liberdade radical (outra vez, filha da pós-modernidade)
fundada no afeto (no seu sentido propugnado por Bauman, i.e., da satisfação
consumerista dos desejos imediatos dos indivíduos imersos no grande mercado mundial
de produtos descartáveis em que se tornou a existência humana), a família romântica
baseada no afeto parece ser apenas uma visão distorcida, enviesada do que realmente
está ocorrendo nas relações humanas de fato e, a reboque, no fenômeno familiar.

A família brasileira, sob a ótica da antropologia, sofre, independentemente da classe


social, de verdadeira síndrome de rotatividade, cujo efeito é a efemeridade atestada dos
laços afetivos, comprovado amiúde (QUINTAS, 2005, pp. 225-227):

“Na pobreza, observa-se uma tela de parentesco esgarçada, na qual a


família se distancia da noção de núcleo para assomar a ideia de rede.
A figura do pai é fluida, a mulher recebe um novo companheiro sem
angústias moralistas, instala-se a rotatividade de parceria, num
cotidiano perverso em ligas de afetividade. A síndrome do abandono
encharca os lares pobres, resultado da descontinuidade do homem que
troca de casa, esquecendo a sua história, o seu passado, o seu
parentesco. Com uma clara volubilidade familiar, a interação
simbólica afetiva atinge níveis pouco significativos e a metáfora do
útero não acontece porque o espaço privado se confunde com o
coletivo, não permitindo edificações de claustro. Em decorrência da
desestabilidade econômica, o processo relacional tem no seu bojo uma
estreita cooperação através de uma sistemática ajuda mútua, o que
provoca uma articulação extrafamiliar conveniente às necessidades
imediatas. O membro agregado desponta como um elemento de
suporte altamente valioso, fazendo parte da estrutura familiar, mas não
se inserindo na linhagem parental, quando de fato não possui laços
consanguíneos. (…)

A outra família guarda peculiaridades que a definem sob a esteira de


uma economia mais estável. No seu centro a liberação da mulher
indica o principal mote das circunvoluções, isto é, o movimento
estrutural se ancora e se ramifica sob a ode das transformações
femininas. A participação da mulher no mercado de trabalho e sua
qualificação profissional 'subvertem' a feição doméstica, porque o
espaço público adquire todo um atrativo anteriormente vedado aos
anseios do sexo frágil. A circulação da mulher se faz entre os dois
âmbitos, num alargamento de horizontes favoráveis às suas
inquietações. O número de separações conjugais aumenta, os níveis de
tolerância diminuem, a atomização do afeto reponta na dinamização
dos núcleos emergentes. (…)
A atomização do afeto decorre das sintomáticas rupturas provenientes
do sentimento de liberdade feminina que, acoplado à emancipação
econômica, cria a possibilidade de alternativas, a gestar um novo
modelo de comando que traz embutido referenciais de poder.
Registra-se um grande número de lares sob a chefia da mulher, o que
realça o sentimento de independência – agora imbricado ao poder –
que se incorpora à cosmogonia feminina como uma cláusula
inovadora à dinâmica cotidiana.”

Os fatos não apontam em outra direção. Dados do IBGE de 2010 apontam que,
enquanto a taxa de nupcialidade no Brasil é de 6,6 pessoas por cada 1000 habitantes, a
de divórcios é de 1,8 para o mesmo grupo. Um simples cálculo aritmético evidencia o
fato de que 27,7% dos matrimônios, no Brasil, acabarão em divórcio. Por óbvio, esta
estatística deixa de fora as uniões estáveis (cuja estabilidade é análoga, pode se
presumir, ao do matrimônio), mas expressa na parte, o todo de uma realidade
empiricamente conhecida: o amor é eterno enquanto dura. Assim, “quem sabe está na
hora de abandonar a expressão 'cônjuge', que tem origem na palavra 'jugum', nome
dado pelos romanos à canga que prendia as bestas à carruagem. Daí o verbo conjugere
designar a união de duas pessoas sob o mesmo jugo, a mesma canga. Talvez seja o caso
de se resgatar a palavra 'amante', que significa tanto a pessoa que ama como quem é
objeto do amor de alguém, expressão que melhor identifica a razão de as pessoas
ficarem juntas: porque se amam. (…) Os amantes nenhum compromisso assumem para
o futuro; a independência de ambos é sagrada. Nas páginas de sua vida nada se escreve
com tinta indelével.” (DIAS, 2004, pp. 37-38.)

Dados recentes apontam que no Brasil, a cada 4 (quatro) casamentos formalizados, há 1


(um) divórcio evidencia a inconveniência econômica de se impor regra patrimonial de
comunicação de bens a uma sociedade afetiva cuja probabilidade de ser inexitosa na
primeira década é de significativos 25% (vinte e cinco por cento).2
2
“A taxa geral de divórcio atingiu, em 2010, o seu maior valor, 1,8% (1,8 divórcios para cada mil pessoas de 20 anos ou mais)
desde o início da série histórica das Estatísticas do Registro Civil, em 1984, um acréscimo de 36,8% no número de divórcios em
relação a 2009. (…) Do total de 243.224 divórcios registrados em 2010, 239.070 foram processos concedidos sem recursos ou
escrituras públicas (feitas em cartório, nos casos em que há consensualidade e inexistência de filhos menores de idade). Em
relação a este último número, houve um acréscimo de 36,8%, em relação a 2009, quando se atingiu 174.747 divórcios
concedidos. (…) Em 2010 foram registrados 977.620 casamentos no Brasil, um incremento de 4,5% em relação a 2009. Destes,
apenas 19.367 foram entre cônjuges menores de 15 anos (2,0%). A maior parte deles envolveu cônjuges solteiros (81,7%). Os
recasamentos (casamentos em que pelo menos um dos cônjuges era divorciado ou viúvo) totalizaram 18,3% das uniões, um
crescimento em relação a 2000 (11,7%). A taxa nupcialidade legal (divisão do número de cônjuges de 15 anos ou mais pela
população desta faixa etária, multiplicada por mil) teve uma ligeira elevação em relação a 2009 (6,5‰), atingindo o valor de 6,6
casamentos para mil habitantes de 15 anos e mais de idade em 2010. Entre os estados, as taxas mais elevadas foram em
Rondônia (9,4%), Espírito Santo (8,7%), Goiás (8,6%) e Distrito Federal (8,6%). As menores foram observadas no Amapá
(2,7%), Maranhão (4,5%) e Rio Grande do Sul (4,5%).” IBGE. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E
ESTATÍSTICA. Registro Civil 2010: Número de divórcios é o maior desde 1984. Disponível em
http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=2031&id_pagina=1. Acesso em 27/11/2012.
2.O INCONVENIENTE REGIME LEGAL DA COMUNHÃO DE BENS E A
CRESCENTE DEMANDA ESTATAL POR SUA PARTILHA

O casamento (e a seu reboque, as uniões estáveis), de perpétuo, tornou-se efêmero,


gerando crescentes volumes de litígios sobre a partilha de bens, fruto de uma imposição
legal oriunda de séculos idos, tempos em que a família, oriunda exclusivamente do
matrimônio, constituía-se numa comunhão de vida e bens.

O perfil da mulher sob o qual vigeu a comunhão de bens nos últimos séculos não existe
mais, como aliás no restante do mundo ocidental, em que a família hierarquizada,
patriarcal, praticamente desapareceu do horizonte para dar lugar à miríade de
combinações que expressam a orbis de igualdade (mormente econômica) entre homens
e mulheres. Mais uma vez, os dados e fatos não mentem, como é o caso da participação
da mulher no mercado de trabalho (MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO,
2012), que tem se aproximado da igualdade com a masculina:

O mercado formal de trabalho contava em dezembro de 2010 com um


estoque de 43,3 milhões empregos. Desses, 25,3 milhões estavam
ocupados por homens e 17,9 milhões por mulheres. Em dezembro de
2006, o estoque de emprego formal era de 35,1 milhões, sendo que os
homens ocupavam 20,8 milhões e as mulheres 14,2 milhões. No
cotejo entre 2006 e 2010, revela-se que a participação das mulheres
aumentou de 40,64% para 41,48% do total do estoque de empregos.

O percentual de mulheres chefes de família igualmente fere de morte o antigo


paradigma patriarcal de que o homem chefia o lar e detém todo o poder sobre o núcleo
familiar (CYMBALUK, 2012):

O número de mulheres que são chefes de família aumenta ao longo


dos anos no Brasil. Em 1996, 20,81% dos lares tinha como chefe uma
mulher, segundo pesquisa do IBGE na época. No Censo realizado em
2000, a porcentagem subiu para 26,55%. Já a Pnad (Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílio), que teve como ano base 2011,
levantamento mais recente do IBGE, divulgada nesta sexta-feira (21),
aponta que 37,4% das famílias têm como pessoa de referência uma
mulher.

Parafraseando Maria Berenice Dias, para quem “o novo modelo de família funda-se
sobre os pilares da repersonalização, da afetividade, da pluralidade e do eudemonismo”,
tem-se que igualmente a família na pós-modernidade funda-se, por natureza, nas suas
intrísecas relatividade temporal e seu descolamento do âmbito patrimonial, sendo
necessário que tais novas características sejam levadas em conta na reavaliação da
intervenção estatal no que concerne a tais relações, bem assim seus efeitos de natureza
patrimonial.

Qual a razão, então, para que se mantenha a interferência estatal sobre o regime de bens
de cônjuges presentes, baseado em um desenho de sociedade pretérita?

No Brasil, desde o período colonial, o matrimônio se submetia à comunhão universal de


bens, conforme se referiam as Ordenações Afonsina, Manuelina e Filipina. Desde então
já facultava-se aos noivos a disposição diversa do seu regime de bens, ficando o da
comunhão total como subsidiário ao silêncio destes.

O Código Civil de 1916 previu quatro regimes de bens, a comunhão universal, a


comunhão parcial, a separação total de bens e o regime dotal. Já o Código em vigor
suprimiu o regime dotal, repetindo os outros três , trazendo ainda o da participação
final nos aquestos.

A comunhão universal de bens, oriunda do direito colonial, foi o regime legal que
continuou em vigor no Código Civil de 1916, sendo alterado apenas com a Lei do
Divórcio, em 1977, passando a ser o da comunhão parcial de bens, mantido pelo Código
de 2002.

O reflexo deste vetusto paradigma patrimonial concebido sob a noção de uma família
perpétua é a proliferação de litígios ocasionados pela sua incidência em caso de ruptura,
onerando o Estado e estimulando a cultura do conflito.

Embora os dados sejam escassos, um levantamento exemplificativo no Foro João


Mendes Jr. (ZARIAS, 2008, pp. 239-240) , em São Paulo-SP, demonstra que as lides
envolvendo divórcio e dissolução de união estável somente são superadas por pedidos
de alimentos e sua execução, sendo portanto significativo o impacto do regime legal em
vigor na litigiosidade nas varas de família.
Não é demais enfático lembrar que, com o recente reconhecimento da união estável
entre pessoas do mesmo sexo, a demanda por partilha de bens legalmente presumidos de
ambos os companheiros irá incorporar mais estar parcela de litigiosidade ainda não
mensurável.

A evolução do regime legal de bens no matrimônio tem caminhado no sentido de sua


extinção, ante a patente desinstitucionalização da família, transmutada em locus de
realização do indivíduo, cuja manutenção é justificada apenas enquanto realiza esta
dimensão existencial.

Maria Berenice Dias corrobora (DIAS, 2004, p. 46):

A exaustiva regulamentação da união estável a faz objeto de um


dirigismo estatal não querido pelos conviventes. Como são relações de
caráter privado, cabe questionar a legitimidade de sua publicização.
Passou o Estado a regular não só os vínculos que buscam o respaldo
legal para se constituir, mas também os relacionamentos que escolhem
seus próprios caminhos e que não desejam qualquer interferência. (…)
No momento em que o formato hierárquico da família cedeu à sua
democratização, em que as relações são muito mais de igualdade e de
respeito mútuo e o traço fundamental é a lealdade, não mais existem
razões, morais, religiosas, políticas, físicas ou naturais, que
justifiquem essa excessiva e indevida ingerência do Estado na vida
das pessoas. A esfera privada das relações conjugais tende cada vez
mais a repudiar a interferência do público, não se podendo deixar de
concluir que está ocorrendo uma verdadeira estatização do afeto.

3.PELA DESESTATIZAÇÃO DO AFETO

O Estado, como clama Maria Berenice Dias alhures, precisa desestatizar o afeto. Na
prática, nem os fundamentos ideológicos que fundamentavam a imposição de um
regime legal de comunhão parcial existem mais (basta evocarem-se os números que
evidenciam o avanço das mulheres no mercado de trabalho), bem assim o Judiciário,
numa visão economicista do Direito, há de desafogar-se de uma demanda desnecessária.

Idêntico raciocínio aplica-se às uniões estáveis, tanto entre pessoas de sexos distintos
quanto entre as de mesmo sexo. Não havendo contrato escrito, presumir-se-iam, tanto
no casamento quanto na união estável, separadas as esferas patrimoniais dos cônjuges
ou conviventes. Trata-se de uma inovação legislativa necessária para manter
socialmente vigente a já descompassada regra do regime legal de bens entre cônjuges e
companheiros com os fatores socioeconômicos ora reflexo da realidade brasileira.

4.REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O Direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro:


Forense, 2005.

CYMBALUK, Fernando. Mulheres chefes de família não são mais pobres e nem
sozinhas, diz pesquisadora. Disponível em
http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/09/22/mulheres-chefes-de-
familia-nao-sao-mais-pobres-e-nem-sozinhas-diz-pesquisadora.htm. Acesso em
27/11/2012.

DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre o direito das famílias. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2004.

IBGE. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Registro


Civil 2010: Número de divórcios é o maior desde 1984. Disponível em
http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?
id_noticia=2031&id_pagina=1. Acesso em 27/11/2012.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades Familiares Constitucionalizadas: para além do


numerus clausus. Disponível em:
http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/9408-9407-1-PB.pdf. Acesso
em: 03 Jan. 2013.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008.


MTE. MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. Mulheres ampliam
participação no mercado de trabalho. Disponível em
http://portal.mte.gov.br/imprensa/mulheres-ampliam-participacao-no-mercado-de-
trabalho.htm. Acesso em 27/11/2012.

QUINTAS, Fátima. A mulher e a família no final do Século XX. Recife: Fundaj,


Editora Massangana, 2005. 2a. ed.

REIS JÚNIOR, A. Família: um novo código civil?. Revista Cesumar – Ciências


Humanas e Sociais Aplicadas, América do Norte, 7, jul. 2007. Disponível em:
http://cesumar.br/pesquisa/periodicos/index.php/revcesumar/article/view/208/118.
Acesso em: 03 Jan. 2013.

ZARIAS, Alexandre. Das leis ao avesso: desigualdade social, direito de família e


intervenção judicial. 2008. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. Disponível
em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8132/tde-24072009-153717/>. Acesso
em: 17/01/2013.

ZORDAN, Eliana Piccoli; FALCKE, Denise; WAGNER, Adriana. Casar ou não


casar? Motivos e expectativas com relação ao casamento. Psicol. rev. (Belo
Horizonte), Belo Horizonte, v. 15, n. 2, ago. 2009 . Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-
11682009000200005&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 03 jan. 2013.

Você também pode gostar