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NOTAS SOBRE A RELAÇÃO ENTRE O ESTADO E A IGREJA

Luiz Alberto G. S. Rocha


Belém, PA, Brasil
luizalbertorocha@unama.br

Doutor em Direito do Estado pela USP


Professor Titular da Universidade da Amazônia – Unama
Diretor-Geral da Escola Superior de Advocacia – ESA/PA

Estudo em homenagem ao Prof. Dr. Manoel


Gonçalves Ferreira Filho, a admiração
intelectual ao homem das ciências jurídicas
que se transformou em referência no estudo
do Estado Constitucional.

Sumário
Introdução. I. Síntese histórica do percurso
relacional desde a Idade Média. II. Acerca da
realidade jurídico-institucional do aspecto
religioso no Brasil. Referências.
Introdução

Qualquer estudo realizado sobre o Estado deve levar necessariamente


em consideração os elementos formadores da figura estatal não somente em
termos institucionais, mas, e talvez principalmente, nas suas bases de
formação social. Pois é dessa comunidade de indivíduos que se forma os
traços delineadores do perfil do corpo estatal.

Dessa leitura preliminar surge como conseqüência lógica a análise dos


contentores de tais elementos formadores e, por todos, os perfis cultural e
antropológico ganham corpo como presença real e imanente na compreensão
do fenômeno estatal.

Se toda essa arqueologia estatal pode apontar para um objeto de


estudos fecundo, eu diria que a observação das bases de formação das
religiões oferece condições de compreensão e solução de muitos dramas
sociais contemporâneos porque são reflexo de um aspecto humano: a crença
no transcendental.

Defende-se a idéia do homo reliosus, ou seja, a concepção do homem


antropologicamente ligado à religiosidade, independentemente de seguir
preceitos de determinada dogmática religiosa. É possível, com base empírica,
sustentar que o homem busca sempre e de alguma forma a transcendência
para ajudá-lo a entender fatos, dos quais não consegue obter uma resposta
tradicional como os mistérios da vida e da morte.

O fato religioso garante algum nível de significado ao aparecimento e


desaparecimento de pessoas e coisas dentro do campo físico em que
habitamos que são em si vazios de sentido sem a experiência do sagrado. A
religião, assim, tem uma função social, não mais por seus aspectos
sobrenaturais do que pelos psicológicos e sociais.

Não é, portanto, despretensioso fazer o liame entre essa “necessidade”


humana e a capacidade da comunidade em organizar modelos de conduta que
sustentem uma composição inteligível dos elementos da fé. Essas profissões
de fé agrupadas sob um fio de condutor dogmático criam religiões com
eclesiologia própria que explica o fenômeno do sagrado a partir de uma ótica
mística particular.

Os grupos religiosos consistentes de um mínimo de organização tendem


a formar hierarquias específicas que se constroem a partir da leitura que fazem
dos livros sagrados criando uma ordem apostólica que gera, como inspiração
direta do próprio Deus que cultuam, a institucionalização da dogmática: a
Igreja.

É também do relato histórico o relacionamento próximo, seja como


modelo de identificação ou de aliança1, que a Igreja tem com o Estado. O

1
Cf. Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Religião, Estado e Direito in Revista de Direito
Mackenzie, Ano 3, n. 2, São Paulo, p. 85-87.

1
passado tem a nos revelar explicações para o curso dos acontecimentos
devidos, em parte, a esta influência, menor ou maior, da Igreja no governo do
Estado. Porém, este fato não é simplesmente histórico, mas, mesmo diante da
difusão moderna do laicismo, ainda hoje temos a variável da Igreja como
elemento importante para a concepção do Estado contemporâneo.

Surge, enfim, um campo de estudos importante quando se percebe que


muito mais do que uma representação organizada da sociedade civil, a Igreja
estabelece padrões de comportamento moral, mas também político, que
repercutem fortemente no Estado.

O trabalho objetiva, dentro deste contexto, lançar algumas ponderações


sobre a relação existente entre o Estado e a Igreja, porém para viabilizar um
concerto mais próximo da realidade brasileira assumirei com “Igreja” o
significado da Igreja Cristã que professa o catolicismo apostólico romano.

I. Síntese histórica do percurso relacional desde a


Idade Média
Deixando para outra oportunidade o relato do surgimento da igreja pré-
histórica e o caminhar para a consolidação do catolicismo apostólico desde sua
difusão no mundo romano-helenista, tomo como ponto de partida o status da
Igreja durante a Idade Média.

O sucesso do apostolado na difusão e confirmação da Igreja como


centro da religiosidade alcançou bases de unidade da comunidade dos povos
do Ocidente durante o século VI até o século XIII. Somente com os diversos
acontecimentos dos séculos XIV a XVIII, no entanto, é que a centralidade do
cristianismo ocidental foi minada tanto por aspectos temporais de poder do
Estado quanto com o surgimento de novas leituras – protestantes – da
dogmática papal sobre o Evangelho e suas interpretações conciliares.

A proeminência da Igreja sobre o poder temporal pode ser datada a


partir da Reforma Gregoriana do século XI em que ela ressurge como
redentora das práticas heréticas bárbaras e como centralizadora do projeto de
salvação implicando em conferir ao Papa redentor o poder sobre a Igreja e
sobre os governos. Nela podemos encontrar a sustentação da tese da
hierarquia do poder papal – teocracia papal – e a impossibilidade da Igreja ser
julgada senão pelo próprio Pai.

O Dictatus Papae de Gregório VII (1074/75) é bastante ilustrativo do


modelo de relacionamento Estado e Igreja do ancien régime:

VI. Que com os excomungados pelo Papa não podemos,


entre outras coisas, permanecer na mesma casa.
IX. Que todos os príncipes devem beijar os pés do Papa.
XII. Que lhe seja lícito depor os imperadores.
XVIII. Que suas sentenças não sejam retratadas por
ninguém e só ele possa revê-la.

2
XIX. Que não seja julgado por nada.
XXII. Que a Igreja Romana nunca errou e não errará
nunca, segundo testemunho das Escrituras.
XXVII. Que ele pode eximir os súditos da fidelidade para
com príncipes iníquos.

No mesmo sentido a bula Unam Sanctam de Bonifácio VIII de 1302 que


afirma:

As palavras do Evangelho nos ensinam: esta potência


comporta duas espadas, todas as duas estão em poder da
Igreja: a espada espiritual e a espada temporal. Mas esta
última deve ser usada para a Igreja enquanto que a primeira
deve ser usada pela Igreja. O espiritual deve ser manuseado
pela mão do padre; o temporal, pela mão dos reis e cavaleiros,
com o consenso e segundo a vontade do padre. Uma espada
deve estar subordinada à outra espada; a autoridade temporal
deve ser submissa à autoridade espiritual.

Esta unidade entre o religioso e o temporal com supremacia do primeiro


sob a tutela do sucessor de Pedro, garantiu um amplo domínio da Igreja no
Ocidente.2 3

O advento da modernidade, não obstante, trouxe um forte declínio da


postura universalizante da Igreja romana, pois o desenvolvimento de uma
contraposição aos até então inabalados dogmas de poder espiritual e temporal
foram levantados em diversos campos sociais.

Do ponto de vista filosófico-político-econômico, o liberalismo centra foco


na pessoa como ser individual capaz de conduzir isoladamente os caminhos de
sua vida, prescindindo, pois, do projeto salvético oferecido pela Igreja. A
autoridade do relacionamento social baseia-se agora no contrato de trabalho
em que o indivíduo deve buscar maximizar seus interesses econômicos que se
desenvolvem segundo regras próprias de mercado. Qualquer planejamento ou
intervenção neste livre jogo deve ser excluído, afastando-se, portanto, a Igreja
de sua autoridade na salvação da humanidade.

2
A tentativa de submeter o Patriarca de Constantinopla ao primado romano, levou ao Cisma do
Oriente em 1054 que só foi superado nove séculos depois com a Declaração Conjunta
assinada em 1965 pelo Papa Paulo VI e o Patriarca Ecumênico de Constantinopla, Atenágoras,
em que suspenderam os anátemas que tinham sido decretados.
Teologicamente a disputa eclesiológica era sobre o acréscimo do Filoque (expressão latina – et
in Spiritum Sanctum, Dominum, et vivificantem: qui ex Patre Filioque procedit - que a Igreja
acrescentou ao credo para explicitar que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho, fato que é
negado pela Igreja Ortodoxa por entender que o Espírito Santo procede apenas do Pai) ao
credo Niceno-constantinopolitano do qual discordava o Patriarca de Constantinopla, levando a
auto-cefalia da sua Igreja e, pelo lado romano, à excomunhão dos infiéis.
3
Os quatro Concílios de Latrão e o Primeiro de Lião durante os séculos XII e XIII culminaram
na independência da Igreja do poder temporal com o reforço de sua supremacia na definição
dos caminhos da sociedade.

3
O reequilíbrio do poder social em favor da burguesia, até então ancilada
no poder dos senhores feudais e da própria Igreja, liberta-a para uma
concepção niilista de vida tratando a religião como um valor indiferente para a
conquista do sucesso social.

No campo religioso, a Igreja perdeu a autoridade sobre a sociedade


diante do crescimento do sentimento anticlerical trazido pelo liberalismo da
Revolução Francesa que identificava a Igreja como um dos opressores do
regime que se derrubava. Aliado ao crescimento da racionalização
antropocêntrica que produzia no sentimento do indivíduo um crescente
indiferentismo religioso, não era mesmo provável manter-se o campo de
ingerência político religiosa que a Igreja detinha até então e a separação das
coisas de Deus e do Homem (laicismo) ganhou corpo progressivamente.

A resposta da Igreja frente a série de ataques sofridos ante o


anticlericalismo, o laicismo e o ateísmo promovido pela cultura burguesa, mas
também reforçado por socialistas e republicanos, foi o projeto de Cristandade
lançado por Leão XIII como grande obra de restauração da hierarquia papal e
da própria Igreja. A perspectiva era que a Cristandade era o único modelo de
salvação do mundo infestado por revoluções e desordem, daí a importância de
voltar ao modelo de Igreja da Idade Média.

Um dos homens da restauração – Félicité de Lemennais – escreveu:

Se a religião católica, com a influência que exerce inclusive


nas áreas onde deixou de ser dominante, não se opusesse ao
progresso da descrença protestante, há muito tempo já teriam
desaparecido todos os traços de cristianismo, e essas áreas,
se fossem ainda habitadas, o seriam por um tipo de bárbaro
tão feroz e tão horroroso que a humanidade jamais viu; e essa
seria a sorte da Europa toda, se fosse possível pensar na
extinção completa do catolicismo. Pois bem, todo ataque ao
poder do Soberano Pontífice tende a isso: é um crime de lesa
religião para o cristianismo de boa fé e capaz de pôr lado a
lado duas idéias; para o homem de Estado, é um crime de lesa
civilização, de lesa sociedade.4

Analisados os passos da Igreja na Restauração percebe-se o sinal


inequívoco da reação antiliberal ao individualismo e da reafirmação do papel
público da Igreja no pastoreio da vida dos povos, por meio do reflexo da
doutrina da cristandade nas formas institucionalizadas de poder. “Era, por isso,
necessário operar a restauração da sociedade cristã, na qual a Igreja e o
papado constituíam o fundamento e a legitimação última da autoridade”.5 6 7
4
Réflexions sur l´état de l´Église en France pendant le XVIIIème siècle et sur la situation
actuelle. Paris, 1808, p. 10 apud Zagheni, Guido. Curso de História da Igreja, v. IV – a Idade
contemporânea. São Paulo: Paulus, 1999, p. 43.
5
Zagheni, Guido. Op. cit., p. 45.
6
A primeira encíclica de Leão XIII (Inscrutabili Dei consilio) ilustra à exaustão esse
posicionamento da Igreja:
3. Ora, havemo-Nos convencido de que esses males [os males da modernidade] têm a sua
principal causa no desprezo e na rejeição dessa santa e augustíssima Autoridade da Igreja que

4
Mesmo entre os cardeais e bispos da Igreja, no entanto, era notória a
impossibilidade de retornar ao velho esquema medieval no relacionamento da
Igreja com o Estado, e por isto a defesa da restauração do modelo de
cristandade, se por um lado fechou a Igreja em si mesmo afastando-a em parte
do mundo exterior, também a defendeu enquanto instituição ao se preservar a
autoridade do papado diante do confronto com outros projetos universais de
sociedade: o socialismo e o liberalismo.

Se olhado sob o enfoque da doutrina social da Igreja, representada


sobretudo pela Rerum novarum (1891), veremos que a Igreja buscava
equilibrar-se entre estas duas frentes opostas sem se sustentar sobre um
projeto concreto de sociedade.8 9 A eclesiologia do Vaticano I não era
propositiva no sentido de tornar-se uma terceira via concreta aos modelos de
civilização propostos.

Daí que o caminho para superação do Vaticano I e sua substituição por


uma proposta mais coerente com a realidade10 foi um trabalho de rediscussão

governa o gênero humano em nome de Deus, e que é a salvaguarda e o apoio de toda


autoridade legítima.
(...) Daí, pois, saíram essas leis subversivas da divina constituição da Igreja Católica, leis cuja
promulgação na maioria dos países temos de deplorar; daí promanaram o desprezo do poder
espiritual, e os entraves opostos ao exercício do ministério eclesiástico, e a dispersão das
Ordens religiosas, e o confisco dos bens que serviam para sustentar os ministros da Igreja e os
pobres; daí, ainda, o resultado de haverem sido subtraídas à salutar direção da Igreja as
instituições públicas consagradas à caridade e à beneficência; daí essa liberdade desenfreada
de ensinar e de publicar tudo o que é mal, ao passo que, contrariamente, de toda maneira se
viola e se oprime o direito da Igreja à instrução e à educação da juventude. E outro não foi o
fim que os homens se propuseram apoderando-se do Principado temporal que a Divina
Providência havia longos séculos concedera ao Pontífice romano para que este livremente e
sem peias pudesse, para a salvação eterna dos povos, usar do poder que Jesus Cristo lhe
conferiu.
13. (...) E não é, Veneráveis Irmãos, nem por espírito de ambição, nem por desejo de domínio
que somos impelidos a pedir esse retorno; mas sim pelos deveres do Nosso cargo e pelos
compromissos religiosos do juramento que Nos liga: ademais, somos a isso impelido não
somente pela consideração de que esse principado Nos é necessário para defender e
conservar a plena liberdade do poder espiritual, como ainda porque tem sido plenamente
verificado que, quando se trata do Principado temporal da Sé Apostólica, é a própria causa do
bem público e da salvação de toda a sociedade humana que está em questão.
7
O tema da Igreja como sociedade perfeita, retomado do Concílio Vaticano I, dominou o
papado de Leão XIII (Diuturnum illud – 1881; Immortale Dei – 1885; Libertas – 1888; Sapientiae
christianae – 1890; Praeclara gratulationis – 1894).
8
“Esta orientação [instituição de medidas de proteção ao trabalhador], adotada pelos
socialistas reformistas alemães, por Augusto Comte e seus discípulos, veio a contar com o
reforço da Igreja Católica, a partir da Encíclica Rerum Novarum editada por Leão XIII, em 1891.
Com esta, surge o cristianismo social (ou doutrina social da Igreja) que, aliado ao socialismo
reformista, iria redundar na afirmação dos direitos sociais, principalmente no texto da
Constituição de Weimar”. Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Princípios Fundamentais do
direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 86.
9
A Centesimus annus de João Paulo II (1991) acabou “agradecendo” a Leão XIII por ter
indicado à Igreja a necessidade de voltar-se para sua missão de salvar a humanidade
escolhendo preferencialmente defender os pobres por meio da discussão da questão social. A
Rerum novarum foi a primeira encíclica que trata da questão social e das questões de justiça,
dos direitos da pessoa e de solidariedade.
10
Diga-se que esta auto-exclusão dos acontecimentos externos é fortemente condenada do
ponto de vista das Guerras Mundiais que tiveram a Europa como palco principal. Porém, em

5
da própria Igreja favorecendo sua renovação interna e abertura ecumênica. É o
que pode ser visualizado na Constituição Apostólica Humanae Salutis (1961)
de João XXIII:

5. (...) Assim, se o mundo aparece profundamente mudado,


também a comunidade cristã está em grande parte
transformada e renovada: isto é, socialmente fortalecida na
unidade, intelectualmente revigorada, interiormente purificada,
pronta, desta forma, a enfrentar todos os combates da fé.
6. Diante deste duplo espetáculo: um mundo que revela um
grave estado de indigência espiritual e a Igreja de Cristo, tão
vibrante de vitalidade, nós, desde quando subimos ao supremo
pontificado, não obstante nossa indignidade e por um desígnio
da Providência, sentimos logo o urgente dever de conclamar os
nossos filhos para dar à Igreja a possibilidade de contribuir
mais eficazmente na solução dos problemas da idade
moderna.

Este novo rumo pode ser visualizado na encíclica Ecclesiam suam (1964)
de Paulo VI que interpreta o papel do Vaticano II. É exemplar o texto de
abertura da carta:

2. Não ambicionamos, porém, dizer coisas novas nem


completas, para isso está o Concílio Ecumênico; esta nossa
despretensiosa conversação epistolar não deve perturbar a sua
obra, mas sim honrá-la e dar-lhe novo ânimo. Nem quer esta
nossa Encíclica revestir caráter solene e propriamente
doutrinal, ou propor ensinamentos determinados, morais ou
sociais; quer ser apenas mensagem fraterna e familiar. Só
desejamos, com este escrito, cumprir o dever de vos abrir a
nossa alma, com a intenção de dar maior coesão e maior
alegria à comunhão de fé e de caridade, que reina felizmente
entre nós. Pretendemos assim imprimir vigor renovado ao
nosso ministério, contribuir melhor para a celebração frutuosa
do Concílio Ecumênico e clarificar alguns critérios doutrinais e
práticos, que podem guiar utilmente a atividade espiritual e
apostólica da Hierarquia eclesiástica e de quantos lhe prestam
obediência e colaboração, ou mesmo só atenção benévola.

A Igreja traduz o cenário humano do final do século XX como um mundo


rodeado de preocupações com a política e a ordem econômica que havia
deixado de lado o cuidado com a ordem espiritual, o que lhe trouxe como
implicação direta um vigoroso ódio crescente entre as pessoas.11

termos exclusivamente da preservação da Sede Apostólica, tal posicionamento conseguiu


poupá-la como estado papal e, neste sentido, pode ser considerada vitoriosa.
11
Este posicionamento do Vaticano II guiou a Igreja desde então. João Paulo II em Mensagem
à Assembléia Geral das Nações Unidas na celebração do 50º aniversário de fundação (outubro
de 1995) refere-se à necessidade de construir uma civilização do amor, fundada em valores
universais da paz, da solidariedade, da justiça e da liberdade: “16. É um dos grandes
paradoxos do nosso tempo que o homem, que começou este período que chamamos
“modernidade” com a autoconfiante afirmação de sua própria “maturidade” e “autonomia”, se

6
Em síntese podemos dizer que, ao passo que o Vaticano I falava da
Igreja enquanto “sociedade”, o Vaticano II falará em “mistério” que se aproxima
com o estudo da Igreja como comunhão entre os homens e o mundo. Revela-
se um conceito-chave para o ecumenismo do Vaticano II.12

O Vaticano I falava em “sociedade perfeita” e o Vaticano II falará em


“necessidade de renovação”. “A idéia de Igreja como sociedade perfeita
representava a auto-suficiência da Igreja ante a sociedade, e por isso os
católicos implantaram um mundo cultural próprio: a Igreja constituiu quase uma
cópia católica das estruturas e dos organismos sociais: escolas, universidades,
hospitais, sociedades esportivas, cinemas, sindicatos, imprensa e literatura,
tudo marcados com o timbre “católico”. E tudo num clima asséptico e
defensivo, ou seja, fechado ao que acontecia fora”13, o que demonstra a
revolução interna realizada pelo Vaticano II na organização e na pastoral da
Igreja com a retomada da patrística e do estudo bíblico pela Nouvelle Theologie

O Vaticano I falava da Igreja enquanto “sociedade perfeita desigual e


hierárquica” e o Vaticano II retomará o tema sob o olhar “de comunhão, de
colegialidade, de co-responsabilidade”. Resgata com isto a co-responsabilidade
do episcopado na realização da missão de comunicar o Cristo ao mundo, além
de difundir que o valor básico da missão pastoral é o ser cristão.14

É, por fim, uma Igreja revigorada que sai do Vaticano II. Sai
conhecedora de que deve servir a todos os homens, ampliando sua missão de
conciliação ecumênica para as demais Igrejas cristã (Decreto Unitatis
redintegratio) e não-cristãs (Decreto Nostra aetate). Sai fortalecida para
confrontar as mudanças ocorridas na sociedade que tinham fortes implicações

aproxima do final do século vinte com medo de si mesmo, assustado com o que ele mesmo é
capaz de fazer, assustado com o futuro. Em realidade, a segunda metade do século XX tem
visto o fenômeno sem precedentes de uma humanidade incerta sobre a possibilidade mesma
de que haja um futuro, devido à ameaça de uma guerra nuclear. (...)
Para que o milênio que está já às portas possa ser testemunha de um novo florescimento do
espírito humano, favorecido por uma autêntica cultura de liberdade, a humanidade deve
aprender a vencer o medo. Devemos aprender a não ter medo, recuperando um espírito de
esperança e confiança. A esperança não é um otimismo vazio, ditado pela confiança ingênua
de que o futuro é necessariamente melhor que o passado. Esperança e confiança são a
premissa de uma atuação responsável e são nutridas no íntimo santuário da consciência, onde
“o homem está só com Deus” (Guadium et spes, 16), e por isto mesmo intui que não está só
entre os enigmas da existência, porque está acompanhado pelo amor do Criador!
(...)
Senhoras e Senhores: Estou diante de Vós, igualmente ao meu predecessor o Papa Paulo VI
há exatos trinta anos, não como alguém que tem poder temporal – são palavras suas – nem
como um líder religioso que invoca especiais privilégios para sua comunidade. Estou aqui
diante de Vós como uma testemunha: uma testemunha da dignidade do homem, uma
testemunha da esperança, uma testemunha da convicção de que o destino de cada nação está
nas mãos da Providência misericordiosa.”
12
Cf. Zagheni, Guido. Op. cit., p. 77-78.
13
Zagheni, Guido. Op. cit., p. 79.
14
Cf. Zagheni, Guido. Op. cit., p. 79-80.

7
com o aspecto religioso da Igreja: a secularização, o pluralismo de “projetos de
salvação” e a democracia.15

A Igreja do terceiro milênio orienta-se pela afirmação da necessidade de


responder ao vazio espiritual criado pelos fenômenos contemporâneos com a
retomada dos valores espirituais.

A crença humana na possibilidade de alcançar o bem-estar por meio do


progresso tecnológico e acúmulo de bens materiais criou um homem apático e
oprimido pela solidão na multidão com medo de si e da comunidade em que
vive.

Se a Igreja do Vaticano I preocupou-se em poupar-se dos desvios


políticos e sociais enfrentados pela Igreja, o projeto que segue atualmente é a
defesa da espiritualização, defendendo e propondo o respeito à dignidade da
pessoa humana como salvaguarda da dimensão transcendente e espiritual da
experiência humana.

II. Acerca da realidade jurídico-institucional do aspecto


religioso no Brasil

Não é de grande expressão política a vida da Igreja durante o Brasil


colônia tanto pelo pouco número de sacerdotes enviados em expedição
missionária (jesuítas e franciscanos, principalmente) quanto pela ausência de
independência destes, ante o padroado que ligava Portugal à Roma. O
episcopado era, na realidade, um departamento do Estado português sem
maiores repercussões na vida da colônia, aliás, o governo português criou
mesmo um departamento religioso no Estado: a Mesa da Consciência e
Ordens16, pelo que se percebe que a matéria religiosa era administrada pela
instituição leiga do padroado.

A Independência em 1822 alterou, em parte, a posição da Igreja, pois se


de um lado ganhou o status de religião oficial17, por outro teve sua situação
política diminuída pelo Império ante o controle constitucional a que era
submetida.

O artigo 102, XIV da Constituição de 1824 estabelecia como


competência exclusiva do Imperador conceder ou negar o Beneplácito aos
Decretos dos Concílios, Letras Apostólicas e quaisquer outras Constituições
Eclesiásticas que não se opusessem à Constituição, bem como nomear bispos

15
A Constituição Pastoral Guadium et spes (1965) trata de pluralidade de culturas. Expressa o
entendimento que diversas formas de trabalhar, se exprimir, de praticar a religião, de formar os
costumes, de estabelecer leis e instituições jurídicas possibilitam surgir diferentes modos de
vida e diversas escalas de valores, o que constitui um patrimônio da comunidade humana.
(Guadium et spes, n. 53).
16
Cf. Fausto, Boris. História do Brasil, 12 ed. São Paulo: USP, 2006, p. 60 e seguintes.
17
Constituição de 1824. Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a
Religião do Imperio.

8
e prover os benefícios eclesiásticos. Exemplos, pois, de uma política regalista
imperial que manietava a missão evangelizadora da Igreja.

É somente com a República em 1889 que começa a haver uma forte


mudança no relacionamento da Igreja no Brasil, pois, apesar de Roma ter
acabado de aprovar o Vaticano I e o clero brasileiro ter iniciado um processo de
romanização com a reafirmação da ortodoxia católica, a torrente do Iluminismo
e da Modernidade trouxeram à imberbe República brasileira a definitiva
separação entre a Igreja e o Estado (laicismo18).

O famoso Decreto n. 119-A de 07 de janeiro de 1890 proibiu a


intervenção da autoridade federal e dos Estados federados em matéria
religiosa, consagrando a plena liberdade de cultos e extinguindo o padroado.
Tendência, aliás, corroborada pela Constituição de 1891 que no artigo 72 trata
em seis parágrafos (§§ 3º, 5º, 6º, 7º, 28º e 29º) da liberdade religiosa.

Daí em diante a liberdade religiosa e o laicismo são repetidos com maior


ou menor detalhamento nas demais Constituições, ora permitindo-se a
colaboração do poder público com as obras religiosas em prol do interesse
coletivo ora negando-se o auxílio.

A Constituição de 1988 não inova nesta seara confirmando a


inviolabilidade da liberdade religiosa, especificando-a em liberdade de
consciência, de crença e de culto19 (art. 5º, IV) – e que ainda podem ser
desdobradas em liberdade de organização religiosa e de respeito à religião –,
mantendo a separação dentro do modelo colaborativo citado no parágrafo
anterior (art. 19, I).

É, portanto, conclusiva a idéia de que no Estado Constitucional brasileiro


a separação Igreja e Estado tem o mesmo sentido ecumênico proposto no
Vaticano II – i.e., o respeito ao pluralismo religioso –, ao se disponibilizarem
aqui a expressão ampla e direta das religiosidades, estejam elas inseridas no
seio de uma religião dogmaticamente construída ou não.

Sobre o campo semântico do laicismo pode-se afirmar:

18
“O conteúdo da laicidade como princípio jurídico – que a distingue das liberdades de
pensamento, consciência e religião e a situa em um plano superior a elas –, ao nosso
entender, vem conformado pelos seguintes elementos essenciais: a) a separação orgânica e
de funções, assim como a autonomia administrativa recíproca entre os agrupamentos
religiosos e o Estado, b) o fundamento secular da legitimidade e dos princípios e valores
primordiais do Estado e do Governo, c) a inspiração secular das normas legais e políticas
públicas estatais, d) a neutralidade, ou imparcialidade frente às diferentes cosmovisões
ideológicas, filosóficas e religiosas existentes na sociedade (neutralidade que não significa
ausência de valores, mas imparcialidade perante as diferentes crenças), e e) a omissão do
Estado em manifestações de fé ou convicção ideológica junto aos indivíduos”. Huaco, Marco. A
laicidade como princípio constitucional do Estado de Direito in Em Defesa das Liberdades
Laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 42.
19
“A consagração da liberdade de crença religiosa arrastou consigo a liberdade de culto. Na
verdade, se logicamente crença religiosa e culto podem ser separados, as religiões
normalmente reclamam o culto que, destarte, se torna incindível da crença”. Ferreira Filho,
Manoel Gonçalves. Op. cit., p. 88.

9
L’expression achevée et de principe qui constitue
l’aboutissement de la marche vers la séparation des deux
sociétés, la civile et la religieuse, est simple et nette de
formulation. Elle se ramène à deux propositions. La première
est que l’État n’exerce aucun pouvoir religieux. La seconde est
que l’Église ou les Églises n’exerce(nt) aucun pouvoir politique.
(...) Celles-ci sont en définitive elles-mêmes réductibles à deux
formules de présentation: l’indifférence de l’État au fait religieux
et la tolérance pour le même fait.20

A questão da separação entre o poder temporal e religioso não se refere


ao fato de que não exista verdade na religião, mas porque não é o papel do
Estado dizer às pessoas em qual verdade acreditarem.21 22

É com essa perspectiva que o Estado institucionaliza a liberdade


religiosa como uma das mais antigas liberdades civis, pois ela é mesmo o
ponto de partida para o reconhecimento de outras liberdades, como a de
expressão, de reunião e de pensamento.

A configuração, portanto, do Estado brasileiro, a despeito do preâmbulo


constitucional invocar a “proteção de Deus”, é de instituição estranha, alheia às
ordens sacras, eclesiásticas. Não que a religião seja algo do qual o Estado
deva se abster, mas sua ação é própria da defesa da pluralidade das crenças e
do exercício indiscriminado do culto religioso. Ou seja, a ação estatal deve
buscar o meio termo, caminhando entre a proteção da diversidade religiosa e o
lacaismo estatal.

O ditame constitucional impõe um forte trabalho de tolerância e respeito,


principalmente, aos não crentes porque pressupõe grande esforço de
compreensão dos credos religiosos que, não sendo demonstráveis por
métodos científicos, são simples expressões da fé de determinada coletividade
na transcendência adquirindo uma misticidade singular.

Ao que parece a dificuldade maior de reconhecer a abrangência da


proteção à religião é dada, quase sempre, pela tentativa de definição de um
conceito único de religião para justificar a garantia dos direitos civis. A procura
por elementos comuns na prática religiosa acaba por exercer essa dificuldade
de compreensão fazendo com que muitas dessas mesmas práticas não sejam
aceitas, ou mesmo, gerem contrariedade, descontentamento e até aversão por
parte dos não crentes.

20
Durand-Prinborgne, Claude. La Laïcité. Paris: Dalloz, 2004, p. 13-14.
21
“La laïcité n’apparaît plus comme un principe qui justifie l’interdiction de toute manifestation
religieuse. L’enseignement est laïque non parce qu’il interdit l’expression des différentes fois
mais, au contraire, perce qu’il les tolere toutes. Ce renversement de perspective qui fait de la
liberte le principe et de l’interdit l’exception nois paraît particulièrement important. (CE, 2
novembre 1992, MM. Kherouaa, M. Balo et Mme Kizic, RFDA, 1993, p. 112 et s.)”. Durand-
Prinborgne, Claude. Op. cit., p. 18.
22
Ementa: Compete exclusivamente à autoridade eclesiástica decidir a questão sobre as
normas da confissão religiosa, que devem ser respeitadas por uma associação constituida para
o culto. STF, RE n. 31.179/DF, rel. Min. Hahnemann Guimarães, j. em 08/04/1958.

10
A trivialidade da oração, da rejeição a determinados alimentos, do
vestuário específico para o culto ou do repouso em dia santo são atos
justificados pelo conjunto das crenças religiosas organizadas sob as mais
diversas variantes da fé. E é pela possibilidade de cada qual praticá-los que se
configura a integridade da liberdade religiosa.

Aliás, a liberdade religiosa está configurada não exclusivamente como


uma liberdade de crença senão também na liberdade de conduta, de prática
religiosa. E a fina inter-relação entre esses dois aspectos da liberdade religiosa
tem que ser respeitados, apesar da dificuldade de realizá-las no ordenamento
jurídico, como sabiamente afirma Jónatas Eduardo Mendes Machado:

Compreende-se que as condutas coloquem mais


problemas jurídicos do que as crenças em si. No entanto, a
construção dogmática de uma teoria das restrições do direito à
liberdade religiosa com base na distinção entre umas e outras
teria como conseqüência a descaracterização do fenômeno
religioso e a subversão completa, ou o esvaziamento, do
programa normativo que a Constituição lhe faz corresponder.23

Na impossibilidade da existência de um modo de pensar único e,


conseqüentemente, na irrealidade da idéia de que todos devam professar a
mesma fé. A tolerância surge como a única alternativa plausível para que a paz
entre as pessoas seja possível a partir da “disposição de admitir, nos outros,
modos de pensar, de agir e de sentir diferentes dos nossos”24 e, ainda, “o
direito à liberdade religiosa implica, complementarmente, uma obrigação de
tolerância, entendida como dever de respeito pela dignidade e pela
personalidade dos outros, bem como pelas suas diferentes crenças e opções
de consciência”.25

A tolerância deve ser ao mesmo tempo um modo de agir individual e


estrutural na sociedade e no Estado, respectivamente. Um sistema legal
tolerante é o que permite que haja efetiva liberdade religiosa. Pois, a
sociedade, enquanto locus de convivência comum, deve ser capaz de fazer
com que os preceitos da religião de maior número de praticantes, não tornem a
vida, dos que professam outras crenças, impraticável. Esse é o único caminho
para a manutenção da unidade na diversidade.

Nesse sentido, o Tribunal Federal suíço já se posicionou:

que dans les pays où la liberte de culte est garantie,


on doit pouvoir exiger de toutes les communautés religieuses et
de leurs adhérants un certain degré de tolérence reciproque à

23
Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva in Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Studia Iuridica nº 18. Coimbra: Coimbra,
1996, p. 223.
24
Vocábulo Tolerância, 2 in Grande Dicionário Larousse Cultural da Língua Portuguesa.
São Paulo: Nova Cultural, 1999.
25
Jónatas Eduardo Mendes Machado. Op. cit., p. 255.

11
l’égard des manifestations de culte extérieures. (BGE 108 Ia 43
E. 2a. )

É também interessante o contexto fático da decisão da Suprema Corte


dos Estados Unidos da América no caso Sherbert v. Verner (374 U.S. 398) de
1963 que examinava uma apelação à decisão da Suprema Corte da Carolina
do Sul, na qual foi negado à apelante, membro da Igreja Adventista do Sétimo
Dia, o direito de receber os benefícios sociais ao desempregado, uma vez que
perdera o emprego por recusar-se a trabalhar no sábado, o Dia Sabático na
sua religião.

A apelada, Employment Security Commission, negava-se a pagar o valor


do benefício porque considerava que a restrição ao trabalho no sábado não era
razão suficiente para a apelante escusar-se de aceitar emprego quando
oferecido pelo seu escritório de recolocação profissional, logo o caso não se
enquadrava no South Carolina Unemployment Compensation Act que colocava
como condição para receber o benefício estar o desempregado apto para o
trabalho, mas não o encontra.

Na mesma linha foi a decisão da Suprema Corte da Carolina do Sul


afirmando que não havia infração na legislação quanto à liberdade
constitucional ou restrição à liberdade religiosa enquadrando-se perfeitamente
na Primeira e Décima Quarta Emenda. Isso porque não havia qualquer
restrição ao direito da apelante em observar seus credos religiosos segundo os
ditames de sua consciência.

Reformando a decisão da Suprema Corte da Carolina do Sul, a Suprema


Corte dos Estados Unidos da América por maioria decidiu segundo a opinião
do Mr. Justice Brennan afirmando:

[i]f the purpose or effect of a law is to impede the


observance of one or all religions or is to discriminate
invidiously between religions, that law is constitutionally
invalid even though the burden may be characterized as
being only indirect.
Braunfeld v. Brown, supra, at 607. Here, not only is it
apparent that appellant's declared ineligibility for benefits
derives solely from the practice of her religion, but the pressure
upon her to forego that practice is unmistakable. The ruling
forces her to choose between following the precepts of her
religion and forfeiting benefits, on the one hand, and
abandoning one of the precepts of her religion in order to
accept work, on the other hand. Governmental imposition of
such a choice puts the same kind of burden upon the free
exercise of religion as would a fine imposed against appellant
for her Saturday worship.
Nor may the South Carolina court's construction of the
statute be saved from constitutional infirmity on the ground that
unemployment compensation benefits are not appellant's
"right," but merely a "privilege." It is too late in the day to doubt

12
that the liberties of religion and expression may be infringed by
the denial of or placing of conditions upon a benefit or privilege.
(grifo nosso)

Parece inteligível a perspectiva de que o fundamento principal da


secularidade do Estado e do Governo não pode mais retornar aquele momento
histórico do ancien régime, no qual a legitimidade e os valores sociais básicos
buscavam identificação com a doutrina ditada pela Igreja. Hoje tal fundamento
é o Estado Democrático de Direito que afirma sua disposição em respeitar a
dignidade da pessoa humana e o pluralismo filosófico e político.

Veja-se que não pretende a leitura contemporânea, pós-secularista,


afastar da vida social a Igreja, porque ela é espaço de expressão da cultura
das comunidades humanas, porque ela oferece fundamento psico-social
importante para o equilíbrio do indivíduo quanto ao transcente. A Igreja é, em
si, parcela relevante da vida da sociedade e suas opiniões e doutrina social e
moral têm reflexo na construção da eticidade da sociedade, ipso facto,
transfere um feixe de valores para a administração pública.

Porém, já não é mais a Igreja a única e exclusiva fonte de informação


cultural para o Estado, tanto do ponto de vista do ecumenismo de outros
credos quanto na referência a outros grupamentos sociais civilmente
organizados.

Os valores do Estado democrático se jurisdicializam no Estado de Direito


através da Carta Constitucional que reflete esse consenso cultural e moral que
pode ou não refletir a doutrina da Igreja em determinado momento histórico. “O
Estado não busca a salvação das almas, mas sim, a máxima expansão das
liberdades humanas em um âmbito de ordem pública protegida, ainda que às
vezes o exercício de tais liberdades seja contrário aos padrões éticos das
religiões. A comunidade política deve responder a uma constelação de valores
próprios e plenamente secularizados”.26

A chamada crise do Estado Moderno é reveladora do sentido que a


religião pode oferecer atualmente. Isto porque a expressão cultural da pós-
modernidade tem trabalhado muitas vezes com uma incapacidade dos
indivíduos libertados das amarras do racionalismo iluminista de unificarem
passado, presente e futuro com a própria experiência biográfica. Houve
redução substancial, pós-secular, dos significantes espirituais substituindo-os
por conceitos de consumismo e de materialidade que transformam a vida em
uma série de puros presentes, não relacionados no tempo.27

A verdade é que o modelo de Estado Constitucional moderno saído das


revoluções liberais trazia uma forte carga de homogeneidade cultural que não
corresponde mais à realidade de experiências culturais múltiplas e
diversificadas.

26
Huaco, Marco. Op. cit., p. 43.
27
Cf. Rocha, Luiz Alberto G. S. Estado, Democracia e Globalização. Rio de Janeiro: Forense,
2008, p. 148.

13
O Estado Democrático de Direito é o processo de busca de
legitimação que tem desempenhado atualmente o papel mais
proveitoso para manter o republicanismo ainda de pé.
Acontece que na sociedade caracterizada pelo pluralismo
cultural, a tarefa do compartilhamento da vida em sociedade
não depende exclusivamente, como pareceu possível no início
do Estado moderno, da garantia legal dos direitos civis, mas
também do reconhecimento de todas as experiências culturais
dos cidadãos.28

No mesmo sentido, leciona Manoel Gonçalves Ferreira Filho:

Para enfrentar os conflitos de interesse que se multiplicam,


a atual estruturação do Estado democrático não prevê
mecanismos especiais. Preparado tão-somente para enfrentar
conflitos de direito, o seu modelo institucional procura assimilar
esses conflitos de interesse aos conflitos de direito, a fim de
solucioná-los pelo único procedimento de solução de conflitos
que conhece.29

Não havendo, pois, mais espaço para um discurso teológico unificador.


O sistema social aposta na epistemologia de natureza discursivo-teorética que
não corresponde a valores de base religiosa. Porém, por surpreendente que
possa ser. A relação não orgânica entre Igreja e Estado difundida em boa parte
do mundo ocidental desde o século XVIII não tem representado,
necessariamente, uma hostilidade do Estado frente ao fenômeno religioso.
Aliás, sob a ótica jurídico-constitucional, sendo a religião um determinante
aspecto cultural da sociedade, ela é fonte necessária para a formação da
pluralidade e do multiculturalismo pregado pela pós-modernidade, desejável
não mais como o único sistema social, mas como um subsistema social que,
por uma lógica não universalizante, colabora na interpretação criativa da
defesa do homem.30 Ele ajuda, assim, a confirmar o essencial na
fundamentação política e social do poder da Constituição: sua legitimidade,
pois adéqua o exercício deste poder ao que a comunidade considera como
justo.31

28
Rocha, Luiz Alberto G. S. Op. cit., p. 158. No mesmo sentido: “a primeira impressão que caí
por terra na virada do século é a idéia de placidez que nos manteve durante boa parte do pós-
guerra altivamente paralisados na esperança irrealizada de que os mecanismos liberais do
Estado Moderno nos pudesse cumprir as promessas constitucionais impregnadas em seus
textos”. Rocha, Luiz Alberto G. S. A Escola Francesa e as definições de poder: Georges
Burdeau e Michel Foucault in Revista do Mestrado em Direito. Direitos Humanos
Fundamentais. Unifieo, 2010. (artigo aceito para publicação).
29
Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Aspectos do Direito Constitucional Contemporâneo.
São Paulo: Saraiva, 2003, p. 35.
30
Cf. Weingartner Neto, Jayme. Liberdade Religiosa na Constituição: fundamentalismo,
pluralismo, crenças, cultos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 34 e seguintes.
31
Cf. Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Aspectos do Direito Constitucional
Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 59 e seguintes. Seguindo a mesma linha de
raciocínio, mas tratando especificamente d’A Ineficácia da Constituição vide do mesmo autor.
Estado de Direito e Constituição. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 91 e seguintes, e O Poder
Constituinte. São Paulo: Saraiva, 1999, no capítulo em que trata da legitimidade e legitimação
do Poder Constituinte (p. 47 e seguintes).

14
Não é outro o fenômeno que se observa hoje diante de uma verdadeira
explosão da religiosidade não mais no sentido do projeto de cristandade do
século XVIII, mas como uma categoria sociológica de ancoragem do indivíduo
frente à perda de projetos universalizantes com a derrocada do socialismo
soviético e a procura por um ponto de sustentação espiritual e da esperança.

As religiões retomam o espaço público que haviam perdido ao longo do


processo de secularização passando a representar elemento de exame na
identidade cultural e nacional como é o caso no Brasil da expansão dos
movimentos evangélicos na segunda metade do século XX.

Originalmente derivados da Igreja Batista, as Igrejas Neopentecostais


têm oferecido serviço religioso baseado em doutrinas da salvação, do batismo
no Espírito Santo, na cura divina e na segunda vinda de Cristo (Igreja do
Evangelho Quadrangular) que podem ser resumidas na “teologia da
prosperidade” (Igreja Pentecostal Deus é Amor, Igreja Universal do Reino de
Deus, Igreja Internacional da Graça de Deus e Igreja Renascer em Cristo). Tal
serviço religioso tem sido capaz de arregimentar grande número de fiéis,
normalmente carentes de esperança.32

O que leva à conclusão de que os processos de secularização e de


laicismo não são sinônimo de anti-religião, a própria Igreja percebeu isto ao
tomar ciência de si e da sociedade pluralista que a cerca. Vive-se uma fase de
nova ordem política e cultural a favor de uma reacomodação dialética entre
razão e fé na qual a Igreja tem uma contribuição a oferecer à sociedade.33 34

Exemplo deste diálogo pós-secular possível para as relações Igreja e


Estado é a terceira encíclica do papado de Bento XVI: Caritas in Veritate
(2009). Nela o descedente de Pedro relê a Populorum progressio (1967) de
Paulo VI para transmitir uma mensagem de eticidade no desenvolvimento
econômico, social e político reforçando a articulação entre caridade e verdade.

32
Em sentido similar a Igreja Católica produziu, a partir da década de 1960, o fenômeno da
Renovação Carismática Católica (RCC), inicialmente chamada de movimento católico
pentecostal, que no Brasil espalhou-se rapidamente por todos os Estados. A RCC utiliza muita
música de louvor durante a celebração das missas tendo como ponto alto a Eucaristia.
Também é presente no movimento a “Efusão no Espírito Santo” como renovação do contato
com Deus e a devoção a Maria como a bem-aventurada e intercessora do homem junto ao
Filho. “A Virgem Maria, num mundo em que a humanidade vive em clima de perigo e de
ameaça, torna-se a grande consoladora e uma valiosa ajuda na luta contra as novas
encarnações do mal”. Zagheni, Guido. Op. cit., p. 72.
33
Cf. Weingartner Neto, Jayme. Op. cit., p. 39.
34
Angela Randolpho Paiva sinalisa a importância da transcendência como fundamento para a
ação social modificadora da realidade, ou seja, os valores religiosos podem ser úteis para
inspirar os indivíduos no exercício da cidadania: “fica a evidência de que a afinidade eletiva
apontada por Weber entre religião e política sempre que a vivência da religiosidade seja capaz
de transcender a experiência humana e passe a nortear a conduta do cristão no cotidiano, ou
melhor, no momento em que a esfera religiosa permeie a participação do indivíduo/cristão na
esfera social, num encontro da Igreja com a história humana, fazendo-se então necessária a
conquista de um mundo mais humano como condição da conduta cristã”. Católico,
protestante, cidadão: uma comparação entre Brasil e Estados Unidos. Belo Horizonte:
UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003, p. 219-220.

15
78. Sem Deus, o homem não sabe para onde ir e não
consegue sequer compreender quem é. (...) Diante da vastidão
do trabalho a realizar, somos apoiados pela fé na presença de
Deus junto daqueles que se unem no seu nome e trabalham
pela justiça. Paulo VI recordou-nos, na Populorum progressio,
que o homem não é capaz de gerir sozinho o próprio
progresso, porque não pode por si mesmo fundar um
verdadeiro humanismo. Somente se pensarmos que somos
chamados, enquanto indivíduos e comunidade, a fazer parte da
família de Deus como seus filhos, é que seremos capazes de
produzir um novo pensamento e exprimir novas energias ao
serviço de um verdadeiro humanismo integral. (...) a reclusão
ideológica a Deus e o ateísmo da indiferença, que esquecem o
Criador e correm o risco de esquecer também os valores
humanos, contam-se hoje entre os maiores obstáculos ao
desenvolvimento. O humanismo que exclui Deus é um
humanismo desumano. Só um humanismo aberto ao Absoluto
pode guiar-nos na promoção e realização de formas de vida
social e civil — no âmbito das estruturas, das instituições, da
cultura, do ethos — preservando-nos do risco de cairmos
prisioneiros das modas do momento. (...) O amor de Deus
chama-nos a sair daquilo que é limitado e não definitivo, dá-nos
coragem de agir continuando a procurar o bem de todos, ainda
que não se realize imediatamente e aquilo que conseguimos
atuar — nós e as autoridades políticas e os operadores
econômicos — seja sempre menos de quanto anelamos.

Logo, o caminho ao pluralismo religioso real não pode ser construído


sobre a ignorância religiosa nem da própria Igreja em si nem dos indivíduos,
fiéis ou não, perante o diálogo intercultural ecumênico e os diversos
subsistemas sociais, ambos como instrumentos de enriquecimento da
experiência humana na Terra.

16
Referências

Durand-Prinborgne, Claude. La Laïcité. Paris: Dalloz, 2004.

Fausto, Boris. História do Brasil, 12 ed. São Paulo: USP, 2006.

Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Aspectos do Direito Constitucional


Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 35.

Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. São


Paulo: Saraiva, 2002.

Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Princípios Fundamentais do direito


constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009.

Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Religião, Estado e Direito in Revista de


Direito Mackenzie, Ano 3, n. 2, São Paulo, p. 81-89.

Huaco, Marco. A laicidade como princípio constitucional do Estado de


Direito in Em Defesa das Liberdades Laicas. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2008.

Klein, Carlos Jeremias. Curso de História da Igreja. São Paulo: Fonte, 2007.

Machado, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade Religiosa numa Comunidade


Constitucional Inclusiva in Boletim da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, Studia Iuridica nº 18. Coimbra: Coimbra, 1996.

Paiva, Angela Randolpho. Católico, protestante, cidadão: uma comparação


entre Brasil e Estados Unidos. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro:
IUPERJ, 2003.

Rémond, René. La laïcité, um concept qui n’a cessé d’évoluer in La


Documentation Catholique, n. 2.307, 1er février 2004, p. 123-128.

Ribeiro, Milton. Liberdade Religiosa: uma proposta para debate. São Paulo:
Mackenzie, 2002.

Rocha, Luiz Alberto G. S. A Escola Francesa e as definições de poder:


Georges Burdeau e Michel Foucault in Revista do Mestrado em Direito.
Direitos Humanos Fundamentais. Unifieo, 2010. (artigo aceito para
publicação).

Rocha, Luiz Alberto G. S. Estado, Democracia e Globalização. Rio de


Janeiro: Forense, 2008.

Zagheni, Guido. Curso de História da Igreja, v. IV – a Idade contemporânea.


São Paulo: Paulus, 1999.

17
Weingartner Neto, Jayme. Liberdade Religiosa na Constituição:
fundamentalismo, pluralismo, crenças, cultos. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007.

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