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ESTUDO SOBRE O PRINCÍPIO DA

PROPORCIONALIDADE OU RAZOABILIDADE

LUIZ ALBERTO G. S. ROCHA


Doutor em Direito do Estado– Universidade de São Paulo
Professor de Direito Constitucional – Universidade da Amazônia
luizalbertorocha@unama.br

Revista Forense, v. 400, p. 155-177, junho 2009. Forense – Rio de Janeiro/RJ


RESUMO

O objetivo principal deste trabalho é ressaltar a importância de uma teoria de princípios


para a formação do jurista e para o entendimento do sistema legal. Neste ponto de vista os
princípios trabalham dando sentido ao sistema legal. Eles ajudam a manter sua unidade,
estimulando sua consistência através da troca de valores na busca interminável pela Justiça. Os
princípios, como uma teoria de sistema, contribuem para uma contínua recalibração da ordem
legal para a manutenção do ethos social. Dentre os princípios, gostaria de apontar o princípio da
proporcionalidade ou razoabilidade como o mais importante princípio da Justiça. Sobretudo
porque o princípio da proporcionalidade ou razoabilidade fornece base material e procedimental
para a concretização do devido processo legal. O foco da minha apresentação, neste sentido, é a
jurisprudência de ambas as Supremas Cortes, brasileira e estadunidense. Elas utilizam,
igualmente, a proporcionalidade para achar as soluções dos casos em discussão. Das lições
tiradas destas jurisprudências, pude constatar que o julgador deve encontrar a equivalência
razoável entre os direitos em conflito. As soluções parecem ser usar a Relação de Precedência
Condicionada. Essa técnica utiliza a adequação, a necessidade e a proporcionalidade stricto
sensu como as chaves fundamentais para o entendimento do princípio da proporcionalidade ou
razoabilidade. É um instrumento para o desafio intersubjetivo para harmonizar a dialética dos
conflitos de acordo com a Constituição.

Palavras-chave: Princípio. Proporcionalidade. Razoabilidade. Devido processo.

ABSTRACT

The main objective of this essay is to underline the importance of a theory of principles in
the formation of the jurist and in understanding the legal system. In this viewpoint, principles
work by giving sense to the legal system. They help to maintain its unity, stimulating its
consistency through the exchange of values in the endless quest for Justice. Principles, as a
system theory, contribute to a continuing recalibration of the legal order for the maintenance of
the social ethos. Among principles, I would like to highlight the principle of proportionality or
reasonableness as the mayor principle of Justice. Above all things, the principle of
proportionality or reasonableness provides the procedural and material basis for the due process
clause. The focus of my presentation in this point is the case law of both Brazilian and U.S.
Supreme Courts. They both use, mainly, proportionality to active the solutions of the cases
presented. From the lessons learned from such case law, I could state that one should find the
reasonable equivalence between rights in conflict. The solutions seemed to be using the
Relation of Conditioned Precedence. This technique uses adequacy, necessity and
proportionality scricto sensu as the fundamental keys for to understand the principle of
proportionality or reasonableness. It is an instrument for the intersubjective challenge to
harmonize the dialects of the conflicts in correspondence to Constitution.

Key words: Principle. Proportionality. Reasonableness. Due process.

Revista Forense, v. 400, p. 155-177, junho 2009. Forense – Rio de Janeiro/RJ


ESTUDO SOBRE O PRINCÍPIO DA
PROPORCIONALIDADE OU RAZOABILIDADE
LUIZ ALBERTO G. S. ROCHA
Doutor em Direito do Estado– Universidade de São Paulo
Professor de Direito Constitucional – Universidade da Amazônia
luizalbertorocha@unama.br

SUMÁRIO

Introdução........................................................................................................................................1
Parte I – A Importância dos Princípios como base social e ética ....................................................2
Como os princípios funcionam? ..................................................................................................3
Princípios como uma Teoria de Sistemas....................................................................................6
Princípios implícitos....................................................................................................................8
A diferença entre regras e princípios...........................................................................................9
Parte II - Princípios da Proporcionalidade ou Razoabilidade como o mais importante princípio da
Justiça ............................................................................................................................................10
A jurisprudência brasileira sobre o uso dos princípios da proporcionalidade ou razoabilidade11
A relação de precedência condicionada.....................................................................................13
Marco constitucional brasileiro para a proporcionalidade ou razoabilidade.............................15
O princípio da proporcionalidade ou razoabilidade e o devido processo legal .........................16
Conclusão ......................................................................................................................................17
Referências ....................................................................................................................................18

Introdução

Dentre os variados temas de estudo do Direito, recentemente tive minha atenção voltada
para a importância do estudo sobre a base judicial dos princípios. Neste sentido, muito se tem
escrito sobre como adequar a análise social e ética da Constituição com aquela utilizada pelos
juristas e pelas Cortes quando se tem que aplicá-la com o propósito de alcançar os objetivos de
uma sociedade livre e justa.

O estudo desta base ética é feito através da Teoria dos Princípios, o que ressalta, dentro
de um quadro de Direito sistêmico, a relevância de seu conhecimento.

Resta claro que não é uma tarefa fácil analisar a essência dos valores que fundam uma
sociedade, tendo em mente que uma sociedade não é uma comunidade homogênea de interesses,
ou mesmo porque a oposição de interesses não resulta num plácido, mecanicamente racional e
imutável conjunto de princípios. É sobre este tema que pretendo desenvolver a primeira parte
deste trabalho; revelando a importância do entendimento do sentido material por trás do sistema
legal positivado.

Não obstante, esta análise não estaria completa se eu não fosse mais além e adentrasse no
estudo do princípio da proporcionalidade ou razoabilidade, o qual considero o princípio mais
importante para a busca da justiça. Isto quer dizer, dentre os diferentes princípios que cada ramo
do Direito utiliza para sua compreensão específica, tenho considerado que o princípio da
proporcionalidade ou razoabilidade tem o papel principal numa coerente e consistente
organização do ordenamento normativo.
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É este princípio que fornece o balanço necessário dentre os interesses sob disputa na
sociedade. É este princípio que fornece a exata consonância da dialética diária entre os interesses
coletivos e individuais. Esse princípio é o que garante que por meio do balanço das divergências
possa guiar o Estado a executar o seu papel fundamental de harmonização e paz social.

Toda esta segunda argumentação será desenvolvida na segunda parte do trabalho. Irei
usar as lições que podem ser extraídas das jurisprudências das Supremas Cortes, tanto do Brasil,
quanto dos Estados Unidos. É do resultado do estudo conjunto da doutrina constitucional e da
jurisprudência das Supremas Cortes brasileira e estadunidense que pretendo fornecer a base para
uma análise mais profunda da comunidade legal sobre o desenvolvimento deste tema. Se ao final
eu conseguir ter atraído atenção sobre estes pontos, acredito que terei, de alguma maneira, tido
sucesso.

Parte I – A Importância dos Princípios como base social e ética

I. Uma análise antropológica dos estágios mais primitivos da formação da comunidade


humana deve levar a uma percepção clara de que a existência social foi, e ainda é, um modo de
ação coletiva que estava muito mais ligado a uma linguagem ética do que a algum poder
institucionalizado por meio de regras legais. É razoável imaginar a sociedade sendo construída
sob valores de coexistência social que, primeiramente, baseavam-se em um padrão de ações
moralmente aceitáveis antes de tornarem-se um sistema normativo complexo que utiliza o poder
atribuído ao Estado com o objetivo de regulamentar coercitivamente o que deveria e não deveria
ser feito.

Esse papel de ação social e ética é o que fornece o sentido principal de produção do
sistema legal. Este conjunto de valores informa a sociedade sobre um senso geral de igualdade,
que mais determina a evolução social do que qualquer lei consiga fazê-lo. Certamente, devo
demonstrar adiante que as regras legais são uma síntese de valores sociais e éticos que podem ser
achados na essência da formação da comunidade. E são estes valores que são traduzidos por
meio dos princípios. Os princípios são significados lógicos que o sistema legal utiliza para dar a
si mesmo senso e consistência.

Este é o motivo de serem úteis hoje como o foram no início da sociedade. Isto é, a
realidade contemporânea do Estado é tão complexa e a necessidade de atender os interesses dos
indivíduos, que sempre diferem, é tão intensa, que o direito tem frequentemente incluído
elementos de formalidade nas regras legais, os quais parecem ignorar os valores fundamentais de
toda esta realidade legal. Com o objetivo de tentar responder às demandas contemporâneas, o
Direito usa constantemente de um exacerbado formalismo que exclui de suas decisões
herméticas aqueles não iniciados em assuntos jurídicos. Isso mantém uma grande parte da
sociedade fora do Contrato Social. Eles raramente entendem, mas frequentemente apóiam o
fetichismo das instituições e o ritualismo do Poder que, em vez de incluí-los, os exclui mais e
mais dos benefícios sociais.

O maior benefício que o retorno à teoria dos princípios poderia nos trazer no presente
momento, seria reaver o sentido material, o que traria alma às leis e à Constituição,
restabelecendo as promessas sociais e éticas que fornecem, muitas vezes, os valores de
cometimento assumidos por todos a partir do Contrato Social, como liberdade, igualdade e
fraternidade.

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Tudo isso pode ser sintetizado como um conjunto de valores que dão conteúdo material à
constituição. Logo, eles fornecem a substância necessária para a institucionalização do poder
social acontecer dentro do texto constitucional. Disto deriva o entendimento essencial de que a
regra legal é uma escrava do senso social e ético na base do Direito Constitucional.

Não obstante, mesmo que a regra legal mude com o tempo, é o conjunto de princípios
que oferece a mutabilidade estável ao corpo sistêmico do Direito.1 Os princípios permitem que,
apesar de novas regras serem frequentemente incorporadas ao sistema legal, todas essas regras
continuam a fornecer uma trilha social legitimada para que a sociedade alcance aqueles objetivos
iniciais. Fornecendo senso e unidade, eles trabalham fornecendo integração a diferentes regras
legais, num seio de sentido constitucional.

Como os princípios funcionam?

II. Mas para que este esquema funcione, precisamos mergulhar na fonte das idéias do
Direito, em outras palavras, precisamos entender melhor como os princípios funcionam. Em
primeiro lugar, precisamos ter em mente que os princípios são o manifesto nuclear de um
sistema; eles são a base de todo o funcionamento do sistema. Nesse sentido, eles funcionam
dando sentido à variedade de normas, trabalhando por sua vitalidade, assim como dando-lhes um
padrão para sua máxima compreensão. E ainda, os princípios têm uma textura aberta que é
semanticamente condensada pelas regras.

Similar ao antigo entendimento de Direito Natural e ao da Idéia de Direito, os princípios


são o caminho para que possamos entender essas noções. Eles são, numa perspectiva de Direito
positivo, o mais próximo que se pode chegar daqueles valores que nos pode ajudar a perceber a
razão pela qual todo este sistema legal foi fundado. Essa generalidade é útil para fornecer ao
restante das normas um senso de unidade que as faz interagir melhor do que se fossem somente
um bando de normas desconectadas. Princípios são a dominante ratio juris e não somente uma
ratio legis.2 3

Raciocinando seriamente sobre esta generalidade, podemos nos deparar com outro nível
de utilidade dos princípios. Eles são úteis para manter o sistema funcionando durante a passagem
do tempo por que com eles, as normas podem variar num campo mais profundo de sentido,
mesmo que elas sejam gramaticalmente as mesmas. Vejamos, por exemplo, o Princípio da
Igualdade. É definitivamente o mesmo princípio hoje daquele que tínhamos décadas atrás, mas, e
principalmente, a compreensão de igualdade tem mudado de geração em geração conforme a
própria ética social da sociedade vai mudando.4

1
Este ponto de mutação humana tem uma conexão fraternal com a tão falada ‘identidade do indivíduo pós-
moderno’. O indivíduo sociológico que nasceu na segunda metade do século passado firmou sua identidade com a
crescente complexidade da sociedade moderna pós-guerra. Nesta linguagem podemos identificar homens tentando
sobreviver num mundo de mudanças, para preencher o espaço entre o exterior e o interior.
O sonho de completa unidade e identidade era utopia, mesmo porque a transformação do sonho em realidade seria a
transformação do homem em um peão de causalidades. A globalização trouxe uma nova forma de vida altamente
reflexível, quando a interconexão de todo um mundo novo não é mais uma fantasia. Onde, então, poderia a
identidade do homem pós-moderno ser encontrada? Esta é uma pergunta que ainda aguarda por uma resposta.
2
Quando nos encontramos em momentos-limite, como os períodos revolucionários, descobrimos, na companhia de
Ferdinand Lasale (¿Que és una constituición? Santa Fé: Temis, 1997), que princípios são de extrema importância
nesses momentos quando a ratio legis está aberta a questionamento.
3
Esta é a diferença entre uma interpretação judicial e uma simplória interpretação filosófica do texto.
4
Vide a doutrina “separado, mas igual” de Plessy v. Ferguson, 163 US 537 (1896) e sua posterior interpretação pela
Suprema Corte em Brown v. Board of Educacion, 347 US 483 (1954).

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Se procurarmos em livros antigos e compararmos com o que temos hoje, provavelmente
os fundamentos dos capítulos sobre igualdade serão os mesmos, mas toda a reinterpretação, com
os olhos do presente, sobre como podemos manter a igualdade entre as pessoas, será bastante
diferente.

Um estudo mais concentrado dos Direitos Humanos nos leva a interpretação de Igualdade
em três momentos. O primeiro está ligado às Revoluções Liberais do século dezenove com o
estabelecimento da igualdade perante lei. O segundo momento é a formação do Estado do Bem-
Estar Social (Wellfare State), com o entendimento da necessidade de seguir a trilha para a
compreensão da igualdade material, na qual o Estado será o patrocinador principal da igualdade
dentro do corpo social através de políticas de Discriminação Positiva. O terceiro momento
amplifica as preocupações do Estado do Bem-Estar Social para a perspectiva global através de
um conjunto de preocupações sobre os Direitos Humanos Internacionais. De tal momento faz
parte o debate em Davos ou Porto Alegre acerca da igualdade material em favor do
desenvolvimento e da distribuição dos bens mundiais. Mas por que tanta transformação em uma
mesma matéria? Por que o dispositivo normativo não é gramaticamente o mesmo, ou porque
andamos por um largo campo de significados que os princípios nos fornecem, o qual nos faz
reconsiderar o senso de igualdade. Entendo que os princípios são texto abertos de
regulamentação não exaustiva e que sua amplitude em face de novas situações os permite
absorver a mobilidade da sociedade, o que ajuda na harmonização do sistema legal sem
necessariamente invalidar as normas existentes.5

Com o intuito de evitar confusão do que expus até então, gostaria de explicar um pouco
mais do meu entendimento sobre o funcionamento dos princípios que fornecem unidade ao
sistema legal. O ponto chave é perceber que a unidade principal é a unidade material de sentido
do sistema. Muito mais importante que o estudo geral da ordem das regras num sentido de
hierarquia superior e inferior, é vislumbrar que todas elas retornam à fonte dos princípios gerais
do Direito que as dá valores básicos para o entendimento de sua importância e de sua posição no
complexo sistema legal. A construção lógica do sistema legal explica melhor o sentido da
unidade como uma ordem para a sociedade que um mero sistema positivo como desculpa para o
uso do poder pelo Estado. 6

5
Mas, para ser bem claro, não posso negar a imperatividade e normatividade dos princípios, mesmo porque eles são
usual e explicitamente baseados na Constituição. Concordo com Hebert Hart ( The Concept of Law) quando ele
discorda de Ronald Dworking (Taking Rights Seriously) que a diferença entre princípios e normas não é auto-
excludente, mas de aplicação. Dworking acredita que se acharmos antinomias na aplicação de uma regra num caso
específico, isto será determinante para a exclusão da regra que “perdeu na competição”. Todavia, quando duas
regras (ou princípios) estão em conflito em um caso específico, o juiz deve escolher aquela de maior importância
para resolver a disputa. Isso não quer dizer que, nesse meio tempo, a regra (ou princípio) não aplicada naquele caso
não terá importância em outro caso com outras circunstancias.
6
“Não há dúvidas de que o propósito principal dos direitos fundamentais é proteger a esfera individual de
liberdade frente a intervenção do poder publico: eles são a defesa dos cidadãos contra o Estado. Isso emerge tanto
de seu desenvolvimento no que concerne a história intelectual e sua adoção às constituições de variados Estados,
quanto à história política: é verdade também nos direitos fundamentais da Lei Básica, os quais enfatizam a
prioridade da dignidade humana frente ao poder do Estado, criando logo ao começo uma seção de direitos
fundamentais e permitindo que a reivindicação constitucional (Verfassungsbeschwerde), o instrumento legal
específico para reivindicar estes direitos, esteja somente em respeito aos atos do poder publico.
Mas longe de ser um sistema livre de valores [referências], a Constituição erige um sistema objetivo de valores
em sua seção de direitos fundamentais, e assim expressa e reforça a validade destes direitos [referencias]. Esse
sistema de valores, centrado na liberdade do ser humano para seu desenvolvimento na sociedade, deve ser aplicado
como um axioma constitucional ao longo de todo o sistema legal: deve direcionar e informar a legislação,
administração, e as decisões judiciais. Ele naturalmente influencia a lei privada também; nenhuma regra de
direito privado deve conflitar com ele, e todas as regras devem ser construídas de acordo com seu espírito”. Corte
Constitucional Federal, (Primeiro Senado), 15 de janeiro 1958 BVerfGE 7, 198. (grifos nossos).

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Logo, todas as regras deveriam ser interpretadas de acordo com os valores dos princípios,
ou seja, deveriam estar em harmonia com estes. Os princípios, portanto, mostram sua face
axiológica exatamente quando garantem o espírito de unidade sistemática e valorativa no sistema
legal, desde que todas as regras devem originar-se necessariamente de sua estrutura valorativa.
Este é o objetivo destas regras; produzir concretude indispensável para a regulação das
atividades humanas, mas sempre sobre o conhecimento prévio da superioridade dos valores
fundamentais da sociedade, como descrito na Constituição.

Neste sentido, a unidade do sistema legal não é uma lógica de poder, ou mesmo uma
questão de coerência conceitual, é uma dialética dentre os homens num diálogo da comunidade
que troca valores axiológicos para a concretização da Idéia de Direito. Para que estas dialéticas
resultem em algum produto com significado para a organização social, o Direito precisa de
coerência, ou melhor, de consistência. E essa consistência é a projeção das funções dos
princípios num sistema legal. Princípios, em outras palavras, consistem em demandas de
otimização, permitindo o balanço entre valores e interesses individuais. Eles aproximam de um
equilíbrio perfeito entre as normas axiológicas e o espaço da ação individual.

Para concluir, princípios de fato conferem uma visão trasncedental à realidade do


ordenamento positivo do direito, dando-lhe uma uniformidade semântica. Eles influenciam, por
isso, na aplicação, interpretação e na prevenção das regras que conflitam com seu núcleo
axiológico; funcionando como reais padrões de interpretação e re-interpretação das outras
normas não-axiológicas do sistema. Esses padrões serão usados pelo legislador, quando for criar
uma nova regra, e por juristas e juízes quando forem aplicar a regra já criada. Eles são o

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comando otimizado do sistema legal. Eles verificam a validade e logicidade que aproximam ao
direito positivo à Idéia de Direito.

Princípios como uma Teoria de Sistemas

III. Agora, tentarei focar o problema com outros instrumentos: aqueles da Teoria de
Sistemas. Não só porque a teoria de sistemas está presente em numerosas abordagens de
múltiplos de estudos de Direito, mas porque ela tem uma boa relação com a análise da
performance dos princípios.

Primeiramente, pareceu-me que a grande problemática trazida pela teoria de sistemas é


descrever as relações de interdependência entre fatos sociais como conexões que organizam toda
a sociedade. Esta é talvez a razão pela qual a teoria de sistemas tenta determinar a otimização de
uma unidade de sistema, formado por subsistemas sociais que interagem. Mas, para que este
balanço interaja dentre os numerosos tipos de ações, o sistema precisa de meios de regulação
para manter a expectativa da justiça social em uma lógica política que organiza estas ações, as
quais estão constantemente em conflito.

Uma vez que pensamos na comunidade como um corpo de subsistemas que trabalham
juntos no sentido de promover sua manutenção para seu próprio benefício, temos que encarar
que estes subsistemas (tais como economia, cultura, política e o direito também) devem ter
autonomia para agir em seu campo de atuação. Graças a essa capacidade de regular parte do
interesse da sociedade, cada subsistema pode absorver informações que podem ser cambiadas em
muitas direções, primeiramente numa direção centralizada para a fonte de regulação e
racionalização de todo o sistema e depois para outro(s) subistema(s). Mas essa autonomia em
dirimir problemáticas não pode ser entendida como uma capacidade ilimitada de fazer sua
própria auto-regulação porque o sistema global precisa ter sua própria coordenação, a qual
poderia otimizar o funcionamento de uma unidade.

Esse pensamento é demonstrado por dois exemplos. Um deles pode ser extraído do
Sistema Federativo de Estado. Cada um dos Estados-membros tem sua própria autonomia para
organizar assimetricamente suas características regionais, como na cultura, na lei civil, na
organização administrativa, e assim por diante. Esta é a suprema inteligência da construção do
sistema federativo porque cada vez que um Estado-membro é autorizado a seguir seus próprios
passos, ele ainda tem como marco central a Constituição Federal. Neste sistema as funções do
Estado são divididas dentre as entidades federativas para permitir uma coordenação global
através de autonomias parciais. Se cada um dos Estados-membros é um subsistema; eles juntos
formam o inteiro corpo da Federação que tem os seus princípios sensíveis de Federação
respeitados (consistência).

O segundo exemplo tem uma perspectiva contrária da problemática em discussão. No


Direito Administrativo, mesmo que em submissão ao Estado de Direito (Rule of the Law), o
administrador não terá todas as respostas para a praxis nas leis; assim como não pode o
legislador olhar para o futuro e imaginar cada caso concreto que será apresentado à
administração com o intuito de prever uma solução positivada para o caso, também não é
interessante que ele, em todos os casos, pré-determine uma solução única para os casos abstratos.
Inicialmente a complexidade de eventos não pode ser atingida por uma única solução, mesmo
que seja de nossa intenção solucionar os problemas. Logo, devo considerar que as regras
administrativas permitem o elemento da discricionariedade da autoridade administrativa.

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Este espaço de discricionariedade, criado pelas leis, conferem aos órgãos do Executivo a
competência adequada para tomar decisões autônomas que sejam mais compatíveis ao caso
concreto. Se a decisão tivesse de ser tomada somente diretivas centrais, então a estrutura do
Estado estaria impossibilitada para agir mesmo em casos comuns, e, consequentemente o sistema
iria falhar. Esse é um exemplo de como um subsistema legal deve funcionar em equilíbrio
optimum. Esse optimum é a melhor cooperação que um subsistema pode atingir na distribuição
de funções de maneira centralizada ou descentralizada.

É o que acontece na tentativa de achar uma medida justa entre os interesses público e
privado. É um problema difícil de resolver, onde o excesso ou falta de liberdade dos indivíduos
podem ser optimum para o desenvolvimento do benefício social e individual. Em outras palavras,
qual é o ponto entre o excesso e o déficit da regulação estatal? A resposta fundamental é obtida
através da regulação dos interesses sociais feita pela ação combinada da complexidade de
subsistemas. Sobretudo, este trabalho leva em conta a regulação legal, o que quer dizer a conduta
no campo estatal. Certamente, a orientação do Direito na coordenação da conduta de um homem
é a integração e a harmonização de um subsistema legal para atingir suas necessidades. Pela
escolha de múltiplas alternativas de comportamento, as regras indicam aquele que é compatível
com as necessidades e tolerâncias da estrutura global contemporânea da comunidade.

Assim, o entendimento dos subsistemas legais pode ser sintetizado naquelas


competências e no processo de regulação com o ambiente social que vem em duas direções. Uma
do ambiente social que organiza a regulação das necessidades, éticas e valores que irão
influenciar o funcionamento do positivismo com o fim de construir os procedimentos legais,
regulando condutas e ações individuais, as quais são juridicamente relevantes (input). A outra
está intimamente ligada com a primeira reação e é naturalmente a ação-resposta. É a resposta do
sistema legal à sociedade (output). Eles selecionam o que é e o que não é importante para a
sociedade regular; destarte, os indivíduos devem ter padrões de comportamento. O subsistema
legal funciona, finalmente, determinando e sendo determinado pelas estruturas sociais.

Não é novidade que o subsistema legal é um tipo de sistema aberto que permite a troca de
informações com outros subsistemas sociais, e com as relações entre suas regras positivadas e a
reação da sociedade7, ou seja, cada reação pode ser pela manutenção do sistema (retorno
negativo), ou, justamente o contrário, sua ruptura (retorno positivo), mas funciona como um
sistema de regulação contínua que mantém um objetivo consistente por Justiça. Ou ainda, os
princípios completam o subsistema legal com a capacidade de reduzir os conflitos contínuos das
relações humanas intersubjetivas; portanto, a consistência do subsistema legal depende do
padrão atual de organização de suas estruturas de valores (princípios) que reinterpretam a lei
fundamental (Constituição), revalidando-a continuamente.

É interessante notar que, se o Estado de Direito (Rule of Law) pode ser explicado como
uma coleção de princípios, como da Democracia ou da República, os princípios, separadamente,
têm seu próprio significado e densidade de valor. Todavia, somente quando se trabalha com eles
conjuntamente, os entendendo como um único corpo de valores culturais, é que se torna possível
adequá-los à base antropológica da Constituição. Se eles têm um propósito específico de
assegurar um direito individual, somente quando estão em conjunto é que podem estruturar e
harmonizar a realidade para a práxis constitucional.

7
Se considerarmos o subsistema legal como um sistema fechado, estaremos considerando um congelamento das
relações humanas, ou melhor, estaremos esquecendo a demanda da natureza humana por transformação, para
repensar a própria noção de humanidade que poderia (e pode) alterar substancialmente (até mesmo em direção
contrária) as aspirações da sociedade.

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A utilidade do subsistema legal deve-se a sua capacidade de assimilação e adaptação a
novas opiniões e mudanças de objetivo, tanto quanto o interesse e disposição das pessoas em
admitir soluções heterodoxas a novos conflitos e realidades.

O dinamismo humano não pode ser cem por cento controlado pelo próprio subsistema, e
é isso o que traz a incerteza à visão cibernética do Direito. Mas, por outro lado, é também
formado por um complexo de condutas orientadas para um senso de Justiça governada por leis –
esses são os elementos que criam a unidade. E os princípios são, dentro de uma unidade legal, os
marcos para a interpretação do comportamento individual e coletivo em uma sociedade que
promove a integração, já que eles garantem um modelo abstrato de orientação que deve ser feito
real dentro da análise dos fatos.8

Princípios implícitos

IV. Autores que se baseiam no Direito Natural são geralmente seduzidos pela
argumentação da pré-existência de princípios implícitos antes da própria Constituição. Eles
argumentam que por uma dedução axiológica do Direito Natural, puderam achar princípios não-
escritos e dar-lhes imperatividade. Eu já não entendo desta maneira. O caráter normativo dos
princípios advém de sua existência dentro da Constituição. A palavra “dentro” é usada aqui para
reafirmar a noção da existência de princípios implícitos, mas não no sentido que estes autores
colocam.

Se é verdade que um princípio só terá imperatividade se existir dentro da Constituição,


será possível também encontrar alguns deles que estão explícitos nas normas e alguns que não
estão, mas estão sempre dentro da Constituição. O jurista, sob este ponto de vista, não acrescenta
nada de novo à ordem legal; ele somente extrai algo que já estava lá, latente no Direito
positivado. É necessário que ele demonstre através das técnicas de interpretação (como a
sistemática, a teológica, a histórica e assim por diante) o elo entre seus pensamentos e a realidade
do texto normativo.

8
É comum que nos refiramos à estrutura e ao processo dos princípios como um subsistema interno útil somente nos
limites das fronteiras do Estado. É como se estivéssemos sempre considerando só a produção normativa e a
reprodução em um Estado. Ademais, é necessário perceber que existe um subsistema externo (outros Estados
Legais), especialmente quando falamos de um Estado pós-moderno. Eles produzem uma influência considerável na
avaliação e reavaliação do sistema axiológico por sua estrutura de princípios até sua concreta e finalística aplicação.
É necessário, por conseguinte, completar o ordenamento, ou, ao menos, estar alerta que a troca de informações
culturais, sócio-políticas e econômicas também interfere no processo de compreensão axiológica.

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É de todo verdade, porque não é possível acreditar que um princípio possa ser obtido de
alguma concepção de Direito Natural, e assim o é desde que a sociedade percebeu a imensa
importância da contenção do Estado por meio das leis. Se não observarmos o respeito do Estado
de Direito (Rule of Law), estaremos abrindo a guarda para interpretações arbitrárias.

Os princípios não são uma invenção jurisdicional da Cortes e não existem fora da
Constituição, logo, a autoridade judicial não faz senão declarar o que já está no texto
constitucional, mesmo que esteja implícito. Se eu pudesse pensar nos princípios distintamente do
que pensou o poder constituinte que o criou, qualquer que seja a desculpa que eu use, estaria
abrindo portas para a introdução de regras exóticas, destruindo bem-construídas concepções e
causando confusão e desordem levando arbitrariedade, onde deveria prevalecer claridade,
harmonia e segurança.9

A melhor lição, assim, não é negar a existência de princípios implícitos, mas dar a eles
algum padrão objetivo de entendimento que possa garantir uma interpretação que esteja em
consonância com toda a sistemática constitucional. Tudo isso é para evitar que, com o objetivo
de descobrir novos princípios através da aplicação de dúbios instrumentos de interpretação, eu
possa estar confiante na manutenção de um padrão ético e moral, mesmo que possa atestar a
“emergência” de um novo princípio, ou de um princípio que não está literalmente escrito na
Constituição.

A diferença entre regras e princípios

V. A última seção desta primeira parte eu guardei para a inconclusa questão sobre regras
e princípios, suas diferenças e relações no sistema legal.

Especificamente a Teoria Constitucional tem um axioma que é a unidade da Constituição.


O que significa dizer que as regras e princípios são parte do sistema positivo no mesmo nível
hierárquico. Logo, não posso considerar os princípios como revogadores da regras. Eles devem
funcionar harmonicamente, mesmo porque um conflito entre eles seria um jogo de soma zero.
Não posso assumir que as regras sejam superiores hierarquicamente do que os princípios, nem o
contrário. Eles, de fato, têm uma função diferente na Constituição; sua maior distinção,
consequentemente, tem relação com o nível de abstração das normas constitucionais. Assim,
posso falar de normas-regras e normas-princípios sob uma distinção qualitativa.10 É parte do
conceito essencial dos princípios que eles têm uma dimensão mais ampla que as leis, porque
somente com este entendimento é que eles podem assumir sua importância funcional.

Na medida em que as normas-princípios perdem importância para um conteúdo objetivo,


elas ganham em influencia valorativa no conjunto de normas constitucionais. O que perdem em
densidade semântica, ganham guiando todo o corpo de normas. Assim, a distinção entre eles é
muito mais de interpretação material de sua condição pragmática axiológica do que qualquer
outra distinção de fonte formal. Por esta perspectiva, o trabalho do legislador é preciosamente
tomar o que é textura aberta e esquemática (princípios) e fazê-la concreta e precisa.

9
Cf. Marcelo Hager. Princípios Constitucionais do Processo Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
10
Hart (O Conceito de Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 201, p. 191) confirma este pensamento dizendo que os
princípios são mais genéricos e não são sentenças específicas. É dizer que, o que pode ser normatizado por uma
série de normas, pode ser reduzido em um único princípio. Ele adiciona que princípios são o senso valorativo mais
apurado da sociedade; logo, é desejável que todos sejam seduzidos por sua influência, não somente como uma
explicação lógica das regras, mas principalmente como uma justificação para as suas obrigações.

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Parte II - Princípios da Proporcionalidade ou Razoabilidade como o mais
importante princípio da Justiça

I. O princípio da proporcionalidade ou razoabilidade é a práxis requerida para a formação


da interpretação constitucional, a qual é suficientemente eficiente para aproximar-se da Idéia de
Direito. E o principal objetivo desta parte é demonstrar isto. Claro que a minha intenção não é
montar uma estrutura hierárquica de princípios no sistema legal, mesmo porque seria uma
abordagem mal-sucedida, uma vez que não há propriamente uma hierarquia e nem motivo para
exista. Mas, para além destas palavras, eu poderia ressaltar o princípio da proporcionalidade ou
razoabilidade como o mais importante princípio da Justiça num sentido de que é muito útil para
quase todas as questões judiciais que poderíamos enfrentar.

O sistema legal é conhecido como um sistema de comunicação. Assim, um conjunto de


padrões de comunicação é necessário com o intuito de se atingir uma conduta desejável por parte
da sociedade. Mas, não obstante possam ser úteis para um grande número de casos, esses
padrões revelam a si mesmos indeterminados para que outro largo número possa ser resolvido.
Com o intuito de melhorar a capacidade para resolver casos, a Teoria do Direito foi determinada
como um tipo aberto. Tipo aberto, em Direito, é basicamente, em termos legais, a capacidade de
poder superar obstáculos comunicativos que existam na classificação geral das condutas
individuais. Neste sentido, sempre há uma opção dentre alternativas abertas para a aplicação da
regra ao caso real, simplesmente por que somos homens, e não Deuses. Esse aspecto da condição
humana é relevante porque decidimos sob a influência de duas desvantagens: (a) a relativa
ignorância dos fatos, e (b) a relativa indeterminação de seus propósitos.

A primeira opção acima esclarece que se vivêssemos num mundo caracterizado por um
finito número de aspectos e conseguimos organizar todos eles de maneira lógica, logo
poderíamos prever uma regra pra cada caso. Se todos os aspectos já fossem conhecidos,
poderíamos simplesmente determinar a solução perfeita para o conflito. Se tudo isso é verdade,
estaríamos produzindo jurisprudência mecanicamente, o que é exatamente o oposto do que a
jurisprudência é!

O Poder Legislativo, por exemplo, analisa fatos passados para formar uma convicção da
necessidade de criar uma nova regra legal ou de que alguma norma já existente precisa ser
modificada. Desta forma, produz-se um novo Direito da interpretação da realidade social;
entretanto, nem mesmo o Poder Legislativo, nem ninguém seria capaz de montar uma equação
com todas as variações dos fatos e interferências sociais e ambientais que informariam a
produção de uma nova norma legal. Desta forma, a relativa ignorância dos fatos não obstrui o
Poder Legislativo de executar o seu papel, mas também não o exime de produzir a regra legal o
mais cuidadosamente possível e maximizar as chances de aproximar-se da justiça legislativa,
mesmo que suas limitações sejam conhecidas.

A segunda desvantagem é que o Legislativo não pôde identificar todas as possíveis


combinações de circunstancias que poderiam resultar em um futuro melhor. O que quer dizer
que somos incapazes de antecipar as conseqüências das decisões tomadas pelo Direito, desde que
há uma relativa indeterminação de propósitos. 11

Esses argumentos têm sido as principais críticas ao positivismo. É um erro pressupor que
um sistema legal positivado não necessita de um exercício posterior de escolha na aplicação de
regras gerais a casos individuais. Supondo que alguém utilize o mesmo entendimento geral de

11
A indeterminação relativa aponta que os homens podem usar sua inteligência para aprender com o passado e
planejar o futuro de tal modo que suas ações possam ser padronizadas, mas não é imaginável que seja suficiente para
prever o futuro.

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uma regra para aplicar em casos futuros independentemente dos futuros aspectos e das
conseqüências sociais da aplicação desta regra, é dizer que a certeza viria em detrimento da
indeterminação dos fatos futuros que não conhecemos!

Para uma melhor resposta à realidade do sistema legal, é mais adequado que estejamos
abertos ao uso de princípios na formação da jurisprudência. Isto é exatamente o que as Cortes
fazem. A posição do juiz no momento da decisão, ou melhor, no momento em que ele tem a
alternativa de aplicar as regras para obter a justiça é a que ele o faça através de seu entendimento
do Direito e ponderando sobre os padrões de conduta da sociedade no sistema legal. Mas isto é
mais teoria do que práxis porque, ao invés, o juiz faz um julgamento de valores de como esses
fatos podem transformar a “normalidade” da sociedade.

O que estou tentando demonstrar é que os princípios trabalham na concepção legal de


cada jurisconsulto e, ainda mais nos tribunais. E dentre todos os princípios nos vários ramos do
Direito, o princípio da proporcionalidade é de soberana importância e deve ser enfatizado nos
estudos legais. É o que me proponho a fazer neste trabalho.

A jurisprudência brasileira sobre o uso dos princípios da proporcionalidade ou


razoabilidade

II. A Suprema Corte brasileira tem encarado, em certo número de casos, a questão da
aceitação da evidencia obtida por meios ilícitos. Alguns advogados têm argumentado em suas
causas no sentido de convencer a Corte que, através do princípio da proporcionalidade, o réu
pode ser considerado culpado se as evidencias (ilegais) puderem comprovar a prática de atos
ilegais. A linha de argumentação é mostrar que a liberdade humana não pode ser enterrada em
nome da visão positivista do sistema legal se as evidencias, quer legais ou ilegais, demonstrarem
que o réu é culpado. Em algumas decisões, a Suprema Corte brasileira tem seguido a opinião da
doutrina de dar uma resposta pronta e eficiente a alguns dos crimes mais sérios quando admite a
evidência ilegal, usando exatamente o princípio da proporcionalidade ou razoabilidade como
base legal para a decisão. 12 Apesar disso, a posição da Suprema Corte brasileira reside na
inadmissibilidade da evidência ilegal nos procedimentos criminais, alegando que o princípio da
proporcionalidade ou razoabilidade não pode ser usado para descartar uma disposição
constitucional, 13 todavia é necessário pesar os interesses no caso concreto.
O Ministro Celso de Mello apresentou sua opinião para a Corte – HC n. 8.948/ES:

“É importante ressaltar que o princípio da proporcionalidade não pode ser


transformado numa ferramenta de frustração da norma constitucional, a qual rejeita o
uso, nos processos, de evidências obtidas por meios ilegais.

12
Analise o Habeas Corpus n. 3.982/RJ, por exemplo. A decisão foi no sentido de admitir uma gravação telefônica
ilegal para manter o suporte ético de valores mais importantes (como liberdade, segurança, bem-estar e igualdade)
da sociedade usando o princípio da razoabilidade para aceitar tal evidência no processo criminal, o que levaria o réu
a prisão. O Ministro Ademar Maciel conduziu a opinião da Corte: “Numa análise apressada da jurisprudência
americana anterior a 1987, pode-se constatar que a Exclusionary Rule não é tomada em termos absolutos. Como
em termos absolutos não é tomada na Alemanha, e não deve ser no Brasil. Além de casos gritantes de proteção
individual, pode haver, do outro prato da balança, o peso do interesse público a ser preservado e protegido. Na
própria Alemanha, como ainda noticia a Professora Ada Pellegrini Grinover, as provas ilícitas não são sempre
afastadas de plano. Sua contaminação é relativa. O princípio da proporcionalidade ou razoabilidade
(Verhältnismässigkeitsprinzip) é aceito”.
13
A visão brasileira desta questão tem um aspecto particular. O artigo 5º, LVI da Constituição brasileira diz
claramente: “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. Portanto, a barreira para admitir
quebrar uma norma de alto valor (neste caso particular o processo criminal luta contra o interesse individual),
ganhou mais um importante passo que é o princípio da Supremacia da Constituição.

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Esse postulado, assim, não pode ser invocado indiscriminadamente, ainda
menos quando direitos fundamentais assegurados pela Constituição são expostos a uma
situação inequívoca de risco, como ocorre neste caso”14

Pode o leitor estar perguntando, entretanto, o que estou pretendendo fazer escolhendo
uma jurisprudência aparentemente contraditória à importância do uso de tal princípio. Mas
escolhi exatamente esta para começar a seção com uma recomendação significativa do uso do
princípio da proporcionalidade ou razoabilidade. É que os princípios são importantes no contexto
do entendimento da relação entre as diversas normas positivas que temos, dentre os sistemas, e
entre os termos legais e a realidade da sociedade. Mas isto não pode ser usado como um cânone
pelo jurista porque existem outros valores que devem ser respeitados também. Trocar as regras
legais pelo uso indiscriminado do princípio da proporcionalidade não garante um melhor nível de
justiça; pelo contrário, promove insegurança e perda do objeto de critério da aplicação do
Direito.

Neste caso específico, o Princípio da Supremacia da Constituição teve um papel mais


essencial do que o Princípio da Proporcionalidade teve. Em outro contexto, o Ministro Moreira
Alves (ADI n. 1.344-MC/ES) alertou sobre a interpretação conforme a Constituição.

“Não é possível dar-se-lhe outra interpretação, para reduzir o seu alcance, e,


assim, torná-la conforme à Constituição Federal, porque a técnica de interpretação
conforme só é utilizável quando a norma impugnada admite, dentre as várias
interpretações possíveis, uma que a compatibilize com a Carta Magna, e não quando o
sentido da norma é inequívoco, como sucede no caso presente”. 15

Isto significa dizer que mesmo que eu reconheça a importância de entender o que este
princípio representa em termos legais, não posso usá-lo insensatamente, sobrepondo sua
aplicação a todos o contexto legal. O que positivismo representou, aqui, no Rule of the Law
(Supremacia da Constituição), é de suprema proeminência e se fosse admitido que uma regra
clara da Constituição pudesse ser “reinterpretada” livremente, seria como dizer que nenhuma
única palavra de seu texto sobreviveria. Cada pessoa escreveria a Constituição em seu próprio
benefício.16 No caso de normas polisemânticas, devemos usar a interpretação, com grande ajuda
do princípio, para adequar as normas à Constituição, mas usá-lo indiscriminadamente não é
senão maltratar a mens legis criando uma nova regulamentação, longe de suas origens.

14
Precedentes desta decisão podem ser achados em HC 80.949/RJ, HC 73.351/SP e HC 72.588/PB.
15
“O aplicador da norma não pode contestar o caráter e o senso desta norma por uma interpretação em
conformidade com a Constituição, mesmo que por meio desta interpretação [ele] consiga a conformidade entre a
norma infraconstitucional e as constitucionais.” J.J. Gomes Canotilho. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 1099-1100.
16
A idéia da hierarquia de normas é uma das bases da organização social. Se o critério único de organização das
regras foi o da prevalência da regra posterior contra a anterior incompatível, o avanço da ordem legal seria
constante, tornando constantemente e efetivamente a harmonia em um grupo social difícil. Portanto, a interpretação
da legislação infraconstitucional deve estar aliada à postulação da Supremacia da Constituição. No mesmo sentido o
Ministro Celso de Melo (ADI n. 293-MC/DF) decidiu: “o constitucionalismo, por isso mesmo, enquanto processo e
movimento, projetou-se numa dimensão político-jurídica e operou, em bases formais, a instauração de uma ordem
normativa destinada a conter a própria onipotência do Estado. Como tive a oportunidade de salientar em
julgamento anterior, o poder absoluto exercido pelo Estado, sem quaisquer restrições e controles, inviabiliza, numa
comunidade estatal concreta, a prática efetiva das liberdades e o exercício dos direitos e garantias individuais ou
coletivas. Por isso mesmo, a sujeição do poder estatal a regras jurídicas claramente definidas e formalmente pré-
estabelecidas no instrumento constitucional revela-se conseqüência necessária da técnica da racionalização do
poder, a qual visa, em última análise, por meio de sistemas institucionalizados de controle, a impedir, no processo
governamental, o abuso de poder. (...) É preciso respeitar, de modo incondicional, os parâmetros de atuação
delineados no texto constitucional, que impõem diretrizes e traçam esquemas normativos condicionadores da
própria atuação governamental”

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Feito este alerta, é hora de mergulhar na compreensão do princípio da proporcionalidade
ou razoabilidade.

A relação de precedência condicionada

III. De numerosas decisões da Suprema Corte brasileira na década passada, eu poderia


dizer que a correta síntese jurisprudencial do princípio da proporcionalidade seria: deve-se achar
a razoável equivalência entre os direitos em conflito. É dizer que, como não estou usando
nenhum tipo de hierarquia inimaginável de normas constitucionais, tenho que decidir como
adequar os meta-conflitos que se colocam a julgamento. A solução nos parece ser o uso da
Relação de Precedência Condicionada.

Quando encaramos a aparente impossibilidade de resolver conflitos entre dois princípios


descritos na Constituição, a lição que a jurisprudência brasileira nos ensina é a de que, em vez de
procurar argumentações para segregar um deles em uma interpretação artificial do Direito,
podemos utilizá-los conjuntamente para resolver aquele caso. Claro que o status dos axiomas da
Constituição nos previne de tentar escolher uma de nossa própria consciência judicial e relegar a
outra(s) a uma escala secundária. Deveremos, então, ponderar sobre uma possibilidade de aplicá-
los em nível de otimização dos valores de justiça, ou seja, na efetiva realidade da pluralidade de
soluções legais. Isso estabelece a necessidade de arranjá-las da maneira inteligente como, por
exemplo, usar a teoria da Relação de Precedência Condicionada, em conformidade com as
peculiaridades do caso. O que nos leva a dizer que, em outros casos, a necessidade de otimização
do valor de justiça pode forçar o uso de uma diferente, e até oposta, ordem de aplicação dos
princípios em conflito.17 Mas ela não autoriza a exclusão de um princípio, valor ou norma
constitucional. O que a jurisprudência quer dizer pela teoria, é organizar a solução mais exitosa
que a atividade jurisdicional pode produzir. O sistema constitucional não deve jamais admitir o
nulidade da normatividade em favor da utilidade, mas deve aplicar um dos princípios em conflito
para melhor resolver o caso real. Neste sentido, a teoria determina quais princípios têm conexão
com o contexto no caso real, e então analisa qual deve ter precedência na recepção legal sob uma
visão pragmática para a solução do caso real. Mas esta precedência é uma condição para a
solução do caso específico, ou seja, a ordem de precedência deve ser totalmente diferente na
análise de outros fatos.
Esses tipos de dificuldade podem ser resolvidos com a ajuda do princípio da
proporcionalidade ou razoabilidade, porque “um conflito entre normas, diferentemente de um
conflito entre leis, é resolvido não pela revogação ou redução teleológica de uma das normas
conflitantes nem pela explicitação de distinto campo de aplicação entre estas normas, mas antes
e tão-somente pela ponderação do peso relativo de cada uma das normas em tese aplicáveis e
aptas a fundamentar decisões em sentidos opostos”.18

A construção desta ponderação é formada por três conclusões parciais. A primeira é a


adequação – habilidade de produzir e efeito desejado. A segunda é a necessidade – um objetivo
a ser atingido através de uma medida que seja menos dolorosa, mas igualmente efetiva para o
indivíduo. E a terceira é a proporcionalidade stricto sensu – ponderando a relação entre a
extensão da restrição dos direitos da parte ofendida e a extensão da realização dos objetivos
constitucionais. Portanto, a simples evidencia de que a decisão suporta uma inadequação ou
desnecessidade ou ainda, desproporcionalidade entre o ônus imposto à parte e os objetivos a
serem alcançados, é suficiente para desfazer a alegação de direitos. Finalmente, eu concluo que o

17
Em Munn v. Illinois, 94 U.S. 113 (1877), a Corte decidiu que aquelas leis de Illinois não violavam o devido
processo legal, todavia poderiam violar, “sob algumas [outras] circunstancias”.
18
IF n. 2.915/SP – Ministro Gilmar Mendes.

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julgamento da proporcionalidade é uma análise da conformidade do caso real a essas três
conclusões parciais que juntas irão revelar os efeitos do processo de ponderação.

A adequação é, em última instância, a exata confirmação da razoabilidade do ato público.


Se todo ato público deve ter validade legal, deve ter uma razão para explicar aos indivíduos que
o Estado está usando o seu poder social para a efetiva resolução de um problema existente, ou
seja, está em conformidade com os efeitos esperados. Isso permite evitar a maquiavélica
proposição de que os fins justificam os meios, que poderia nos afastar do Estado de Direito.19

A necessidade é o entendimento de que o indivíduo, mesmo vivendo em sociedade, deve


ter seu círculo de livre vontade respeitado. É dizer que a universalidade do Estado não pode
esquecer a liberdade essencial de cada um. Claro que a sociedade política foi construída para
ordenar a comunidade em harmonia para as suas relações intersubjetivas; todavia, isto não pode
ser assumido como um padrão inflexível pela má conseqüência da perda da individualidade em
nome do Leviatã.

É o mesmo apontamento que se encontra na Filosofia do Direito de Hegel, quando ele


revela seus pensamentos sobre o Estado. Hegel acredita num Estado como a realidade da
liberdade concreta. Essa liberdade concreta é o completo desenvolvimento e reconhecimento dos
direitos do indivíduo e sua integração ao interesse universal, admitindo que sua mente
substantiva o leva à conquista de seu propósito final. Em conseqüência, o valor universal vai
resultar na realidade se vier “em conjunto com interesses particulares e através da cooperação
do conhecimento e da vontade particular”. Hegel termina dizendo que a base do Estado
moderno é para permitir “a culminância da extrema particularidade de auto-subsistência, e ao
mesmo tempo trás de volta a unidade substantiva e assim mantém a unidade no princípio da
subjetividade em si mesma”.20

Resumindo, a necessidade é a consideração de que, se o objetivo conseguir ser atingido


por um outro meio ainda menos doloroso mas de igual efetividade, o caminho mais doloroso
deve ser abandonado. Esta análise, ao final, é acerca das necessidades materiais do particular no
espaço-tempo. Nem a duração, extensão ou individualidade dos direitos fundamentais podem ser
mais restringidos que o mínimo requerido para o sucesso.21

19
Claro que não existe tal expressão em qualquer livro de Maquiavel, mas ela é um bom sumário axiomático de seus
pensamentos. Atualmente, a melhor maneira de entender esta sentença é assumir que os fins determinam os meios,
de tal maneira que os homens deveriam planejar seu futuro procurando o resultado que lhes interessa. É uma receita
para os homens alcançarem o sucesso ou, na expressão do século dezesseis, para um príncipe manter seu reino.
Porém, e esta cética visão também é possível, porque Maquiavel aspirou a separação entre ética e política,
superando os sistemáticos tratados da escolástica medieval, ele não inclui a moralidade como um princípio humano.
Logo, é plenamente razoável para um indivíduo assumir que ele deve usar todas as suas forças para buscar a
recompensa que ele pretende sem qualquer questionamento, e também o Estado deve fazer o mesmo. E é esta a
razão porque o devido processo legal é tão eficiente em controlar o excesso de poder.
20
Georg F. Hegel. Filosofia del Derecho. Buenos Aires: Claridad, 1987, § 260. E, em outro parágrafo iluminado (§
289), ele relembra-nos sobre os limites do Executivo: “A manutenção do interesse universal do estado, e da
legalidade, nessa esfera particular de direitos, e o trabalho para trazer estes direitos de volta para o universal,
requer a atenção dos governantes, pelo (a) servidores civis do executivo, e (b) os altos conselheiros das autoridades
(que são organizadas em comitês). (...) Somente na sociedade civil está o campo de batalha onde todos os interesses
individuais privados encontram todos os outros, então aqui deve acontecer a batalha (a) de interesses privados
contra problemas particulares e comuns e (b) de ambos destes juntos contra a organização do estado e seu
interesse superior. Ao mesmo tempo a corporação de mentes, engendradas quando a esfera particular une seus
direitos, é agora internamente convertida em mentes do estado, desde que encontre no estado o interesse de manter
os fins particulares”
21
[Deve ser] “enfatizado que, na prática, adequação e necessidade não tem o mesmo peso ou relevância no
processo de ponderação. Logo, somente o que é adequado pode ser necessário, mas o que é necessário pode ser
inadequado. Pieroth e Schlink ressaltam que a prova da necessidade tem maior relevância que o teste da
adequação. Sendo o teste da necessidade ser positivo, o teste da adequação deverá ser negativo. Por outro lado, se

Revista Forense, v. 400, p. 155-177, junho 2009. Forense – Rio de Janeiro/RJ 14/20
A proporcionalidade stricto sensu é o toque final do princípio da proporcionalidade ou
razoabilidade, porque quando a análise da adequação e da necessidade é feita, o terceiro passo é
a ponderação. Ou seja, os meios e fins da política estatal estão organizados de uma maneira
quase matemática de balanço linear para uma última consideração se os meios são efetivamente
proporcionais aos fins.

Processo de Ponderação Palavra-chave


Adequação Razoabilidade
Necessidade Meio menos doloroso
Proporcionalidade stricto sensu Balanço

A Constituição, somente com isto, pode ser mais do que um trivial conceito legal.

Marco constitucional brasileiro para a proporcionalidade ou razoabilidade

IV. É óbvio que o processo de ponderação requerido pelo princípio da proporcionalidade


ou razoabildiade obriga-nos a ter uma acurada diligência na aplicação dos padrões ético e moral
como também para efetivamente atingir o adequado, necessário e proporcional resultado da
ponderação de valores a serem aplicados. E isto porque na grande maioria dos casos a relação
entre princípios requer a combinação de circunstâncias que somente no caso concreto nós
poderemos colocá-las juntas. Nós somos incapazes, portanto, de considerar com antecedência e
precisamente os sacrifícios e combinação de interesses e valores que nos deveremos assumir para
reduzir a soma de danos. A razão da jurisdição de proteger os indivíduos de danos é
indeterminada até que os fatos apresentem a experiência de contradições nos atos da vida.
Somente quando eles são apresentados é que o movimento de ponderação de princípios (relação
de precedência condicionada) poderá elucidar a complexidade de conexões do sistema legal.

A indicação constante da jurisprudência brasileira é que a razoabilidade das


circunstâncias que o sistema legal pode limitar devem ser integradas ao princípios gerais da
Constituição Federal brasileira. Isto é, a razoabilidade é uma técnica de conformidade dos fatos
da experiência com os cardinais padrões constitucionais. No contexto da razoabilidade, a
sociedade tem sua própria representação naqueles fundamentos da Constituição Federal
brasileira como Republicanismo, Democracia, Estado de Direito e Direitos Humanos que o
Preâmbulo é uma boa demonstração.

O texto inicial da Constituição do Brasil de 1988 é, ipsis litteris: “Nós, representantes do


povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado
Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de
uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e
comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias,
promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do
Brasil”.

o teste da necessidade é negativo, o resultado positivo para o teste da adequação não deve mais afetar o conclusivo
e final resultado”. Pieroth/Schlink. Grundrechte – Staatsrecht II. Heidelberg: 1998, p. 67 apud Gilmar Mendes. “A
Proporcionalidade na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”, in Direitos Fundamentais e Controle de
Constitucionalidade: Estudos de Direito Constitucional, 2ª ed., Celso Bastos Editor, IBDC: São Paulo, 1999.

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É evidente que o preâmbulo da Carta Constitucional não tem a mesma função normativa
que uma norma constitucional, mas não pode ser deixada de lado desde que todas as expressões
do poder constituinte, seja o preâmbulo sejam as normas constitucionais, forma a Constituição
no sentido formal.22 Mesmo assim, o preâmbulo usualmente trabalha organizando os
antecedentes e enquadramento histórico da Constituição, bem como sua justificação e
objetivos,23 ele tem uma função interpretativa relevante do status constitucional do Estado que é
de grande utilidade para a análise concreta das decisões políticas fundamentais. Parece ser um
bom caminho de valor para conferir bases para a adequação, necessidade e proporcionalidade
stricto sensu usadas para balancear o conjunto de direitos e interesses em conflito.

O princípio da proporcionalidade ou razoabilidade e o devido processo legal

V. O princípio da proporcionalidade ou razoabilidade tem sido usado nos Estados Unidos


– ou melhor em quase todos os Estados da Common Law – como a cláusula do devido processo
legal, “que tinha sido originalmente criada para concretizar um modo de procedimento, tem se
tornado um teste constitucional de crescente procura pelo conteúdo substantivo da
24
legislação”.

Para se mais historicamente preciso nos precisamos ter em mente que o devido processo
legal foi originalmente inscrito no capítulo 39 da Magna Charta inglesa do remoto século treze.
No começo era usada como uma mera garantia dos nobres contra os abusos da coroa inglesa sob
o princípio do law of the land. O cláusula do devido processo legal foi recebida pela história
jurídica estadunidense desde as Constituições de Maryland, Pennsylvania e Massachusetts até
sua soberana inclusão na Constituição Norte-americana através da Quinta Emenda e,
posteriormente, na Décima-quarta Emenda. Na origem inglesa, o devido processo legal era
essencialmente entendido somente na formal procedimental, talvez porque a supremacia inglesa
do Parlamento não poderia aceitar o controle jurisdicional sobre suas leis, logo o florescimento
do devido processo legal substantivo só foi possível no território norte-americano. Desde de o
começo o uso foi diretamente ligado com a análise da proteção da vida, liberdade e propriedade,
como na fórmula usada na Quinta Emenda, e somente depois com o era do Chief Justice Earl
Warren sua extensão foi capaz de incluir o limite ao excesso de poder do Estado, principalmente
sobre direitos civis; como pode ser localizado na Décima-quarta Emenda.

Desde o entendimento inicial da proteção procedimental focada na ordenação de


procedimentos, como a proibição da condenação sem prévio julgamento, de leis retroativas e do
réu ser julgado duas vezes pelo mesmo crime, o devido processo dilata seu campo para
questionar as políticas públicas desproporcionais e incoerentes para assegurar a execução de
direitos constitucionais fundamentais contra esse tido de ingerência. Claro que a doutrina e a
jurisprudência norte-americana têm discutido o devido processo legal desde então e tem
modificado sua extensão, 25 mas sempre trabalhando sobre políticas públicas e as relações de
comandos proporcionais ou razoáveis com a restrição dos direitos civis.26

22
Cf. Jorge Miranda. Manual de Direito Constitucional, t. II. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 240.
23
Nós podemos achar esses valores, e.g., no preâmbulo das Constituições espanhola e francesa. Aliás, a última tem
um texto interessante quando proclama solenemente seu vínculo com os direitos humanos e o princípio da soberania
nacional e “aqueles que são definidos pela Declaração de 1789, confirmada e completada pelo preâmbulo da
Constituição de 1946”. Ele ressalta a exceção da Teoria do Bloco de Constitucionalidade construída pela decisão do
Conselho Constitucional Francês (Decision n. 71-44 DC, 16 de julho de 1971), que confere normatividade
constitucional para o texto expresso no preâmbulo francês.
24
E. Corwin. Liberty against Government. Westport: Greenwood, 1948, p. 114 apud Geoffrey R. Stone et all.
Constitutional Law. New York: Aspen, 2001, p. 711.
25
V. por exemplo Griswold v. Connecticut, 381 US 479 (1965), Roe v. Wade, 410 US 113 (1973), Moore v. City of
East Cleveland, 431 US 494 (1977) e Cruzan v. Director, Missouri Department of Health, 457 US 261 (1990). E em

Revista Forense, v. 400, p. 155-177, junho 2009. Forense – Rio de Janeiro/RJ 16/20
O argumento inicial contra seu uso para restringir atos legislativos caiu por terra com
uma importante decisão da Suprema Corta Norte-americana em Murray v. Hoboken Land &
Improvement Co., 59 US (18 How.) 272 (1856): “É manifesto que ele [o devido processo legal]
não deixa mais ao poder legislativo que execute qualquer processo que possa lhe ser contrário.
A cláusula é uma restrição ao legislativo assim como aos poderes executivo e judiciário, e não
pode ser assim construída como a deixar o congresso livre para fazer do devido processo legal
conforme seu próprio desejo”. É de absoluta importância porque o Poder Legislativo tem uma
capacidade abstrata de regulamentar a Constituição, mas nem essa abstração nem a tão falada
representação democrática do povo confere ao Legislativo a liberdade para impor uma lei
desproporcional ou desrazoável à população. 27 28 Proporcionalidade ou razoabilidade é um
poderoso instrumento para eliminar os excessos do Estado, primeiro contra a própria
Constituição (Estado de Direito) e secundo, e como última conseqüência, contra o povo.29

VI. Em resumo, o devido processo legal é um instrumento do desafio intersubjetivo para


harmonizar a dialética do conjunto de axiomas para construir os objetivos axiológicos da
Constituição.30 Ele assegura aos indivíduos a capacidade de exercício de direitos de natureza
processual e certifica a função jurisdicional do Estado a cumprir seu papel constitucional. Logo,
qualquer norma que falhe em termos de proporcionalidade ou razoabilidade, ou seja, que não
seja law of the land, é contra o Direito e deve sofre controle de constitucionalidade.

Conclusão

Eu disse no começo que tinha dois desafios neste ensaio: primeiramente, demonstrar a
importância dos princípios no entendimento do sistema positivo e, em segundo lugar, salientar a
proporcionalidade ou razoabilidade como um dos mais significantes princípios do Direito.

Evidente que o sucesso de minhas pretensões é uma avaliação do leitor, mas para mim al
menos gostaria de focar em um último esforço de sumarização da intenção que guiou-me desde a
primeira linha: a mitologia da Constituição. Parece, e provavelmente é, estranho declara tão

Washington v. Glucksberg, 521 US 707 (1997): “nós temos regularmente observado que a Cláusula do Devido
Processo Legal especialmente protege aqueles direitos e liberdades fundamentais [de preservação de toda a vida
humana] que são, objetivamente, ‘profundamente inseridos na história e tradição da Nação’, e ‘implicitamente no
conceito de liberdade ordenada’, tais que ‘nem liberdade nem justiça deve existir se eles forem sacrificados’, Palko
v. Connecticut, 302 US, 319, 325, 326 (1937)’.
26
Sob diferente ponto de investigação, a interpretação jurisprudencial do devido processo legal tem permitido ao
Judiciário trabalhar eficientemente na realização da Teoria da Separação de Poderes, principalmente quando é
referida pela técnica do freios e contrapesos. Isto é com a capacidade de adequar finalidade e conflitos de valores, a
Suprema Corte tem trabalhado para contribuir para a limitação do excesso que é a cerne da concepção de
proporcionalidade ou razoabilidade em nome do interesse público.
27
“Eu não posso subscrever a onipotência do Estado legislativo, ou de ser ele absoluto e sem controle; entretanto
sua autoridade não pode ser expressamente restringida pela constituição, ou lei fundamental do estado. O povo dos
Estados Unidos erigiu suas constituições ou formas de governo para estabelecer justiça, para promover o bem-
estar social, para assegurar as bênçãos da liberdade, e para proteger-se e suas propriedades da violência. Os
propósitos pelos quais os homens entraram na sociedade determinarão a natureza e os termos do pacto social; e
como eles são a base do poder legislativo, eles decidirão quais são objetos próprios da legislação. A natureza, e
fins do poder legislativo limitará o exercício dele. Estes princípios fundamentais caminham da própria natureza de
nossos governos republicanos. [Existem] atos que o legislativo federal ou estadual não pode fazer, sem exceder sua
autoridade. Existem certos princípios vitais em nossos livres governos republicanos, que irão determinar e regular
um aparente e flagrante abuso do poder legislativo”. Mr. Justice Chase in Calder v. Bull, 3 US (3 Dall.) 386 (1798).
28
A recente jurisprudência constitucional brasileira mantém a mesma visão sobre o controle dos excessos do Poder
Legislativo, v. g., IF n. 2.915/SP – Ministro Gilmar Mendes e ADIN n. 1.407/DF – Ministro Celso de Mello.
29
Talvez seja bom lembrar en passant a visão romântica rousseauniana da vontade geral que afirma sua
incapacidade de errar, mas sim a incompreensão de seus governados, in O Contrato Social – Livro II Cap. III.
30
Um estudo provocativo da prova como um critério de valor pode ser seguido em Ambrosio L. Gioja. Ideas para
una Filosofía del Derecho. Buenos Aires: R. Entelman, 1973.

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complexo assunto nas últimas linhas do ensaio, mas eu não poderia declinar de escrever
rapidamente sobre a conexão da mitologia com a estrutura de princípios do sistema legal.

A mitologia da Constituição representa uma crença social na construção de um conjunto


ideal de valores que possam ser trabalhados conjuntamente pelos indivíduos e que possa produzir
o objetivo geral do bem-estar coletivo. O mito da Constituição foi desenvolvido com grande
força durante o século dezoito com a Teoria do Contrato Social, e foi conservado na sociedade
contemporânea nas bases de um acordo coletivo e sagrado que deve ser respeitado por todo o
corpo social.

É do caráter mitológico que os princípios crescem como emanações de valores a serem


construídos na constituição viva, a qual é adaptável ao modelo de sociedade que nós queremos
construir. De fato, esta é a crença utópica da sociedade do futuro que garante o mito
constitucional como um conjunto de valores que, revividos pelos princípios da proporcionalidade
e razoabilidade, por exemplo, pode fundar o sistema normativo que leva-nos ao ideal utópico de
justiça social. Neste caminho, a construção da utopia depende efetivamente da crença de
realização dos mitos constitucionais da liberdade e igualdade. Logo, nós podemos usar os valores
representados nos princípios do Direito para manter o sistema trabalhando e, portanto, para usá-
los como um poderoso instrumento na interminável procura por Justiça.

Referências

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CUNHA, Paulo Ferreira da. Teoria da Constituição – mitos, memórias e conceitos, t. I.
Lisboa: Verbo, 2002.
DWORKIN, Ronald. Los Derechos en Serio. Barcelona: Ariel, 1999.
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Saraiva, 1999.
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Forense, 2001.
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001.
HEGEL , Georg F.. Filosofía del Derecho. Buenos Aires: Claridad, 1987.
MENDES, Gilmar. “A Proporcionalidade na Jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal”, in Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: Estudos de
Direito Constitucional, 2ª ed., Celso Bastos Editor, IBDC: São Paulo, 1999.
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, t. II. Coimbra: Coimbra, 2000
NADAL, Fábio. A Constituição como Mito – o mito como discurso legitimador da
Constituição. São Paulo: Método, 2006.
NERY JUNIOR, Nelson. Princípio do Processo Civil na Constituição Federal. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2004.
RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. Coimbra: Armênio Amado, 1997.
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