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A UNIÃO ESTÁVEL PUTATIVA E OS SEUS REFLEXOS NO DIREITO


SUCESSÓRIO

PUTATIVE STABLE UNION AND ITS EFFECTS ON PROBATE LAW

Victor de Castro Braga1


Clarissa Vasconcelos de Alencar2

RESUMO
O presente trabalho monográfico almeja estudar as Uniões Estáveis Putativas, utilizando
método de pesquisa dedutivo, teórica e qualitativa, com o emprego de material bibliográfico e
legal, a fim de percorrer o caminho da compreensão do conceito de família, para entendermos
como o possível reconhecimento de tais entidades, em disputa contra ideais religiosos e
monogâmicos, pode gerar efeitos aos envolvidos, principalmente no campo sucessório. No
primeiro capítulo há a tentativa de trazer a modificação do conceito de família como ponto de
partida para entendermos o surgimento dos ideais monogâmicos e o casamento como única
entidade familiar. No segundo, estuda-se a origem etimológica do termo União Estável e os
seus desdobramentos, com enfoque no que a Legislação Pátria versa sobre tal entidade, a fim
de observar as diferenças em relação ao Casamento e a evolução legislativa e jurisprudencial
do tema. No terceiro capítulo, a abordagem recai sobre a União Estável Putativa, na tentativa
de conceitualizá-la e traçar suas diferenças em relação ao seu semelhante, o Casamento
Putativo, com especial discussão acerca da boa-fé pertinente à ambas as entidades como
requisito para assegurarem-lhe os efeitos, além de observar a intersecção entre a putatividade e
a simultaneidade de tal entidade. No capítulo derradeiro, há, por fim, o raciocínio acerca da
possibilidade de reconhecimento dos efeitos sucessórios, discorrendo acerca das diferenças
legislativas entre cônjuge e companheiro para entender como a União Estável Putativa é
desprivilegiada em relação ao Casamento Putativo, de modo que há, ainda, a prevalência do
infame princípio da monogamia como fundamento para rechaçar as famílias paralelas,
atingindo tambem as Uniões Estáveis Putativas, além de tratar acerca do panorama atual da
Jurisprudência, que não prevê o reconhecimento de tais relações, mas dá indícios de que num
futuro não tão distante, o cenário acerca da discussão pode tomar novos rumos, atribuindo
plenamente efeitos sucessórios e afastando a incidência absoluta do princípio da monogamia.

PALAVRAS-CHAVE: União Estável Putativa. Família. Direito Sucessório. Paralelismo


Familiar. Efeitos Jurídicos.

1
Acadêmico do curso de Direito da Faculdade de Petrolina – FACAPE/AEVSF. E-mail:
castrobragavictor@gmail.com
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Professora universitária, Pós-graduada em direito do trabalho e previdenciário pelo URCA - Universidade
Regional do Cariri; Mestranda - Univasf - Programa de Pós-Graduação em Propriedade Intelectual e Transferência
de Tecnologia para a Inovação. Advogada atuante nas áreas de direitos das família e sucessões.
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ABSTRACT
This monographic work aims to study the Putative Stable Unions, using a deductive, theoretical,
and qualitative research method, with the use of bibliographic and legal material, to walk the
path of understanding the concept of family, to understand how the possible recognition of such
entities, in dispute against religious and monogamous ideals, can have effects on those involved,
especially in the field of Probate Law. In the first chapter, there is an attempt to bring the
modification of the concept of family as a starting point to understand the emergence of
monogamous ideals and marriage as the only family entity. In the second, the etymological
origin of the term Stable Union and its developments are studied, focusing on what the Brazilian
Legislation deals with the referred entity, in order to see the differences in relation to Marriage
and the legislative and jurisprudential evolution of the subject. In the third chapter, the approach
falls on the Putative Stable Union, in an attempt to conceptualize it and outline its differences
in relation to its similar, the Putative Marriage, with special discussion about the “good faith”
pertinent to both entities as a requirement to ensure its effects, in addition to observing the
intersection between the putativity and the simultaneity of the mentioned entity. In the last
chapter, finally, the reasoning about the possibility of recognizing the effects of succession,
discussing the legislative differences between spouse and partner to understand how the
Putative Stable Union is underprivileged in relation to the Putative Marriage, so that there is
still the prevalence of the infamous principle of monogamy as a basis for rejecting parallel
families, also affecting Putative Stable Unions, as well as the current scenario of Jurisprudence,
which does not recognize such relationships, but gives indications that in the not so distant
future, the scenario surrounding the discussion can take new directions, fully attributing
succession its effects and removing the absolute incidence of the principle of monogamy,
always with the objective of protect and safeguard all the rights of those who for a long time
were outsided by the Law.

KEY WORDS: Putative Stable Union. Family. Probate Law. Family Parallelism. Legal
Effects
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I. INTRODUÇÃO

Com a constante mutação do conceito e do alcance de família, a pluralidade de relações


familiares vem crescendo. Importante marco desta afirmação é a Constituição Federal de 1988,
que ao prever em seu texto novas entidades familiares, afastou o caráter absoluto e superior do
casamento, efetivando princípios e valores extramatrimoniais, como o do pluralismo familiar,
e os princípios da igualdade, do afeto e da dignidade humana. Porém, o reconhecimento dessas
novas entidades familiares não fez com que fossem prontamente aceitos e tuteladas logo após
a sua constitucionalização, o que ensejou a necessidade da edição de Leis para tratar
especificamente dos efeitos de tais relações.

Contudo, mesmo com o constante avanço legislativo, doutrinário e social, ainda é


notório que há uma carga pejorativa acerca do tema, principalmente porque em nossa
Sociedade, e em suas ramificações, existe uma forte influência dos ideais conservadores e
tradicionais, o que se faz presente no assunto aqui tratado através do princípio da monogamia,
sendo ele a base para as entidades familiares, alicerçado nos artigos 1.566 e 1.724 do Código
Civil. Assim, a enorme ingerência da fidelidade como dever jurídico legal nas entidades
familiares, acaba por frear e até repudiar o reconhecimento de entidades familiares simultâneas,
como pode ser o caso da União Estável Putativa, quando esta origina-se a partir do
desconhecimento de entidade familiar prévia. Corolariamente, aqui reflete-se qual deve ser o
poder de tal valor, de modo que se defende que o sistema monogâmico, norteador das famílias
aqui no Brasil, não pode ser absoluto, não podendo ter o condão de afastar e elidir o
reconhecimento jurídico de tais relações paralelas, pois estas, em inúmeras situações, são
verdadeiras famílias que devem ser tuteladas pelo Estado, principalmente quando é permeada
pela putatividade de seus integrantes.

Portanto, reflete-se se nessas situações há uma relação juridicamente tutelável, com


enfoque na integrante da relação porvindoura e as consequências do (não) reconhecimento de
tal vínculo como entidade familiar, presente a boa-fé e consequentemente a putatividade. Nesta
diapasão, o que resta evidente é que se levarmos em consideração a frequência com que tais
relações surgem, o reconhecimento jurídico destas ainda é ínfimo e insuficiente, ao passo que
até mesmo o estudo dos efeitos decorrentes de tais situações torna-se complexo.

Por fim, há a indagação acerca do atual panorama jurisprudencial, servindo como ponto
de partida para refletir o que se entende sobre o tema no nosso Ordenamento Jurídico,
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oferecendo uma perspectiva acerca do futuro das famílias paralelas, com a possibilidade do
reconhecimento destas tornar a boa-fé perquirida nas Uniões Estáveis Putativas apenas um
acessório, garantindo então, de forma plena, os efeitos decorrentes da verificação de uma
verdadeira família.
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II – CONTEXTO HISTÓRICO DA FAMÍLIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO


BRASILEIRA

II.1 – O CONCEITO DE FAMÍLIA

A família como organismo social e jurídico foi a que mais teve o seu conceito,
compreensão e a sua extensão modificadas ao longo do tempo. Inicialmente, deve-se observar
a família como fato social, para depois examiná-la como fenômeno jurídico.
Antigamente, nas principais civilizações, a família era vista como um agrupamento
amplo e caracterizado por uma hierarquia entre seus membros, ao passo que todos eles se
relacionavam sexualmente, com a presença do incesto e da poligamia, pois os homens sempre
buscavam relacionar-se com diversas mulheres, inclusive fora da sua tribo. Posteriormente,
com o avanço da crença religiosa influenciada por uma Igreja Católica predominante, a
promiscuidade começou a ceder espaço para a monogamia, que foi o ponto de partida para que
a família fosse convertida em um fator econômico de produção, pois restringiu-se ao exercício
do poder familiar pelo homem, e que considerava os familiares como mão-de-obra para a
produção no campo, principalmente tendo a subsistência em vista.
Em diversas sociedades, mesmo que concomitantes, o conceito de família era diverso.
Na sociedade Romana, por exemplo, o poder exercido pela figura paterna era quase que
absoluto, e o que ligava os membros da família não era o vínculo afetivo, mas sim a necessidade
de perpetuação do culto familiar, baseados na religião doméstica e culto aos antepassados, que
via a família como um grupo, legitimado apenas pelo casamento religioso fundado no poder
paterno, dando seguimento a linhagem familiar, sem considerar como família qualquer relação
havida fora do casamento religioso.
A principal mudança do conceito de família se deu com a Revolução Industrial. A partir
da industrialização, houve o êxodo rural, e diante deste fenômeno, as famílias não mais eram
caracterizadas como pequenos núcleos econômicos, passando a ter a partir de então uma função
afetiva, servindo a família como instituição na qual se desenvolvem os valores morais, afetivos,
espirituais e de assistência recíproca entre seus membros (Bossert-Zannoni,1996:5). A partir de
então, sucessivas mudanças começam a atingir o núcleo familiar, que passaria a ser altamente
regulado pelo Estado. Além disso, com a industrialização, como a família deixou de ser uma
unidade de produção, a formação familiar agora envolvia apenas o casal e sua prole, e agora os
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cônjuges trabalhavam fora do núcleo familiar, o que representou um grande avanço para a
mulher, que teve de ingressar no mercado de trabalho e tornar-se também uma fonte de sustento,
transformando o seu papel na sociedade.
Originalmente, a tradução da família como um fato social para fenômeno jurídico se dá
pela criação de um vínculo conjugal regulado pelo Estado, que por forte influência religiosa
apenas reconhece o matrimônio. Para o Direito, a família é a base da sociedade, sendo um
núcleo natural e fundamental desta, devendo ser protegida pelo Estado.
Nas palavras de Maria Berenice Dias (2021, p. 44), “a família é tanto uma estrutura
pública como uma relação privada, pois identifica o indivíduo como integrante do vínculo
familiar e também como partícipe do contexto social.”
No Ordenamento Jurídico Brasileiro, a família percorreu o mesmo caminho. No Código
Civil de 1916, a família resumia-se simplesmente ao casamento, ideia que surgia de uma
sociedade altamente religiosa. Prova disso é que o Códex supramencionado trazia uma
desigualdade familiar, em que o Pai detinha todo o poder familiar em detrimento da cônjuge.
Além disso, havia um caráter punitivo para todas as relações consideradas extramatrimoniais,
deixando aqueles que não constituíam família por meio do matrimônio à margem ou até mesmo
punidos pela Lei, o que englobava os filhos ilegítimos e os vínculos não matrimoniais, em busca
de forçar as práticas sociais a se adequarem a preservação da família matrimonializada como
única entidade familiar.
Todavia, a Legislação Brasileira evoluiu drasticamente, com atenção especial para a
pioneira Lei 4.121/1962 - Estatuto da Mulher Casada - e posteriormente a instituição do
divórcio pela EC 09/1977 e Lei 6.515/1977, acabando com a indissolubilidade do casamento.
Mas o maior avanço veio com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que
pregou a igualdade entre homem e mulher, além de tratar de forma igualitária todos os membros
da família, ampliando o seu conceito e sua extensão. Agora, família não correspondia só àquela
constituída pelo casamento, mas também à união estável e família monoparental, representando
um grande avanço no nosso Direito, que passou a tutelar as diversas famílias existentes no
Brasil.
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II.2 – O CASAMENTO COMO ÚNICO VÍNCULO RECONHECIDO PELO ESTADO

Diante de uma sociedade com crenças religiosas altamente enraizadas, a família era vista
como uma entidade sagrada, que seria consolidada somente através do matrimônio, e este, feito
por meio do casamento. Durante muito tempo, família era sinônimo de casamento, e vice-versa,
e todos os vínculos mantidos fora dessa estrutura religiosa eram discriminados e repudiados
tanto pela sociedade como pelo Direito.
Quando se fala em vínculos extramatrimoniais, não se entende somente aqueles em que
um dos cônjuges, enquanto casado, mantem relações com outra pessoa. A sociedade, e por
conseguinte, o Direito, não reconhecia o vínculo nutrido somente pelo afeto, em que duas
pessoas, livres e desimpedidas, mantinham relações familiares mas não estavam casadas, pois
entendia-se que o casamento era a única possibilidade de constituir uma família.
No âmbito nacional, o casamento religioso era a única forma de obter acesso ao
matrimônio, situação que permaneceu até o ano de 1891, com o advento do casamento civil,
que apesar de diferenciar-se daquele, ainda continha em seu âmago um caráter altamente
religioso, e portanto, patriarcal e sagrado. Esse panorama social foi traduzido para as linhas do
Código Civil de 1916, que determinava a constituição da família apenas pelo casamento,
refletindo os ideais religiosos de uma sociedade altamente patriarcal e conservadora.
Essa perspectiva ainda produz efeitos atualmente, ao passo que se encontra altamente
enraizada a monogamia. O princípio da monogamia, previsto legalmente no nosso ordenamento
jurídico, é considerado a base do casamento, o que não representa a fase social que permeia
nossa sociedade, que agora tem as suas relações constituídas a partir de uma construção afetiva,
emocional, sentimental.
O reconhecimento de outras entidades familiares que não o Casamento evidencia que o
nosso Ordenamento Jurídico caminha, mesmo que timidamente, a uma oxidação das leis. O
Direito baseia-se nas condutas humanas, sendo impossível prevê-las em sua totalidade. Assim
sendo, abalizado numa evolução exponencial das relações pessoais que surgem atualmente,
diante do advento das redes sociais, da maior expectativa de vida e outros fatores, os vínculos
familiares constituem-se das mais variadas formas, não podendo o Direito fechar os olhos para
as diversas formas de família, sendo a União Estável o destaque destas novas entidades
familiares.
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II.3 - EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA UNIÃO ESTÁVEL NO ORDENAMENTO


JURIDICO BRASILEIRO

O instituto familiar da União Estável é relativamente novo no nosso Ordenamento


Jurídico. A primeira menção desta modalidade de entidade familiar como conhecemos hoje, um
vínculo baseado no afeto entre as pessoas, e não mais a simples constituição religiosa e
matrimonial de uma família, foi na atual Constituição Federal da República,
no ano de 1988. Durante muito tempo, motivada por uma visão conservadora e religiosa, o
casamento foi a única possibilidade de vínculo conjugal reconhecido pela Sociedade.
Consequentemente, o Direito também assim entendia, vide o Código Civil de 1916, que não só
não reconhecia a então considerada Família Ilegítima, como também penalizava sua
existência, considerando que apenas o casamento, vínculo conjugal reconhecido pelo Estado,
estaria apto a produzir efeitos jurídicos, o que não merecia prosperar, pois a família é um
fenômeno social anterior ao casamento.
Ainda durante a vigência do antigo códex civel, partindo da ideia de que há entidade
familiar que não seja o casamento, o Ordenamento Jurídico Brasileiro começou a caminhar no
sentido de conferir às relações concubinárias - imperioso dizer que, à época, toda relação que
não fosse reconhecida como um vínculo matrimonial, ou seja, aquelas sem o selo de casamento,
era vista como concubinato, termo pejorativo que perpetuava o estigma das relações que tinham
como origem o vínculo puramente afetivo – efeitos jurídicos. Inicialmente, deste tipo de relação
gerava o direito da concubina – companheira, nos termos atuais - de ser ressarcida, a título de
indenização por serviços domésticos, na hipótese de separação ou morte do então companheiro,
com fundamento na ideia de que este, ao usufruir do trabalho e esforço despendido pela
companheira em virtude da relação afetiva, não poderia a deixar desamparada, pois isto
caracterizar-se-ia como enriquecimento ilícito.
Nesta esteira evolutiva, o Judiciário Brasileiro deu mais um passo em direção a
consolidação da União Estável como entidade familiar, pois passou a reconhecer direitos
obrigacionais no desfazimento das relações concubinárias, ao reconhecer que a relação entre os
concubinos era societária, devendo eles repartirem os lucros obtidos na constância do
casamento, mediante a demonstração de esforço comum. Corrobora-se tal fase evolutiva pela
posição do Superior Tribunal Federal nos dizeres da Súmula 380, no ano de 1964:
“Comprovada a existência da sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua
dissolução judicial com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”. Ainda neste
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sentido, a Lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos) conferiu a companheira o direito de usar
o sobrenome do seu companheiro.
Posteriormente, finalmente a União Estável teve sua consolidação como entidade
familiar, ao figurar no artigo CR 226 § 3.º, da CF/88, quando passou a gozar de proteção
constitucional, mencionando pela primeira vez o termo companheiro, e não mais concubino.
Porém, o reconhecimento constitucional por si só não foi suficiente para, desde já, equiparar tal
instituto ao casamento, evidenciando que entre eles havia diferenças significativas,
principalmente no que tange aos direitos sucessórios dos companheiros. Para mudar este
panorama, foi necessário que o legislador pátrio consolidasse efetivamente os direitos dos
companheiros a partir da edição das Leis 8.971/94 e 9.278/96 , solidificando o entendimento de
que não havia hierarquia entre o Casamento e a União Estável.
Destarte, com o passar dos anos, o reconhecimento moroso, mas contínuo da União
Estável, trouxe pequenas vitorias àqueles que constituíam famílias a partir da existência de um
vínculo afetivo, e não mais necessariamente matrimonial, ao considerar que a supramencionada
Entidade Familiar seria capaz de produzir efeitos jurídicos, que no primeiro momento
restringiam-se somente a ressarcir a companheira a receber verbas pelos serviços domésticos,
evoluindo para o reconhecimento do vínculo não matrimonial como uma sociedade de fato,
conferindo aos atores desta direitos obrigacionais no desfazimento das relações concubinárias,
nos levando para o momento atual, que teve sua real consolidação a partir da edição das Leis
8.971/1994 e 9.278/1996, sendo necessário admitir que o processo de valorização,
reconhecimento e aplicação dos efeitos decorrentes da União Estável estão em constante
aprimoramento, pois ao passo que a sociedade evolui, sendo o vínculo conjugal um fato social
de imensa relevância, o Direito deve acompanha-la, porquanto tem o dever de regulamentar
todas as relações particulares e as implicações que dela decorrem.

III - ORIGEM ETIMOLÓGICA E CONCEITUAL DA UNIÃO ESTÁVEL

A origem etimológica do termo União Estável se deu a partir da tentativa de consolidar


tal relação como Entidade Familiar reconhecida pelo Estado, ao mesmo tempo que pretendia
afastar o vocábulo concubinato, expressão que carrega consigo um estigma, uma forte carga
pejorativa que se traduzia no preconceito às relações não matrimoniais.
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Da expressão União Estável, extrai-se etimologicamente o entendimento de que essa


espécie de família se consubstancia a partir da existência de uma relação afetiva não
matrimonializada, que se permeia essencialmente do objetivo de constituir uma família.
A palavra União tem como significado a ligação entre duas ou mais partes distintas, o
ato de tornar-se um só. No contexto da família, a União perfaz-se, então, quando duas pessoas
se relacionam, combinando esforços e pensamentos, associando-se a partir de uma ligação
afetiva, unindo-se de alma e corpo.
No que tange a palavra Estável, que significa duradouro, firme, inalterável etc., quando
trazemos à luz do Estudo da Família, tal vocábulo traduz-se na vontade de originar uma família,
a partir de uma convivência contínua que se caracteriza pela existência do “ animus familiae “.
Como ensina Maria Berenice Dias (2021, p. 590), “Nasce da consolidação do vínculo de
convivência, do comprometimento mútuo, do entrelaçamento de vidas e do embaralhar de
patrimônios.”, lição que explica o uso da palavra Estável.
No que tange à natureza jurídica da União Estável, esta pode ser entendida como um
ato-fato jurídico, conforme lição de Paulo Lôbo. Ou seja, é um fato jurídico que evolui para a
constituição de ato jurídico, de modo que deste último originam-se os efeitos jurídicos, ou em
outras palavras, quando a relação afetiva evoluciona a ponto de observar-se a existência do
objetivo de constituir uma família, passando então a produzir efeitos no Direito de Família e
Sucessório.
Já num exercício mais estrito e conceitual, pode definir-se a União Estável a partir da
leitura do art. 1.723 do CC/2002, que dita “ é reconhecida como entidade familiar a união
estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e
duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.
Como fato social, antes mesmo de ser reconhecida como entidade familiar pelo Estado,
a União estável já estava amplamente presente na Sociedade, e por isso o seu posterior
reconhecimento, mesmo que tardio. Todas as relações familiares que não formalizadas pelo
casamento eram entendidas como concubinato, termo que abarcava todas as relações havidas
fora do lastro matrimonial. Assim sendo, entendia-se como família ilegítima tanto a família
simultânea, o que hoje nomina-se de concubinato impuro ou adulterino, quanto a família
constituída só pelo afeto, a atual União Estável ou Concubinato Puro. A equiparação destas
duas modalidades de família, ao serem reduzidas ao concubinato, resultou em enorme
discriminação das relações não matrimoniais, estigma que perdura até os dias atuais, mas que
com a evolução da sociedade e das relações sociais, caminha para a aceitação e acolhimento,
tanto social como jurídico.
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Por um lado, a entidade familiar da União Estável vem se distanciando deste


preconceito, mesmo que ainda haja certa resistência a essa espécie de família. Já as relações
puramente concubinárias ainda são discriminadas, inclusive pelo legislador pátrio, que traz no
art. 1.727 uma tentativa de dissociar as relações paralelas da União Estável. Segundo
pensamento de Maria Berenice Dias, essa discriminação, nos tempos atuais é altamente
descabida, in verbis:

Nitidamente punitiva a postura da lei, pois condena à invisibilidade e nega


proteção jurídica às relações que desaprova, sem atentar que tal exclusão
pode gerar severas injustiças, dando margem ao enriquecimento indevido de
um dos parceiros, certamente do homem. (DIAS, 2021, p. 593)

A União Estável como entidade familiar percorreu longo caminho até sua efetivação
como tal, sendo primeiramente mencionada na Constituição Federal de 1988, no art. 226, §3º,
que conferiu proteção constitucional para tal modalidade de familiar. Todavia, sua efetiva
aplicação se deu apenas com o posterior surgimento de legislação neste sentido.

III.1 – A LEI 8.971/1994 E SUA APLICAÇÃO CONCOMITANTE COM A LEI


9.278/1996

A Lei 8.971 de 29 de Dezembro de 1994 regulava os direitos dos companheiros a


alimentos e à sucessão, com enorme importância para a materialização da proteção
constitucional concedida à União Estável na CF de 88. Entre suas disposições destaca-se a
previsão do companheiro ter direito a alimentos pelo rito da Lei 5.478/68, importante inovação
legislativa que amparava o companheiro, bem como o reconhecimento da capacidade de herdar,
mesmo que com algumas ressalvas.
A referida Lei trazia consigo o já ultrapassado requisito temporal para a configuração
da União Estável e, consequentemente, dos seu efeitos. O art. 1º versava que o prazo mínimo
de convivência ou coabitação exigido era de 5 anos ou que houvesse a existência de prole
comum, demandas infundadas, visto que o Supremo Tribunal Federal, ao editar a Súmula 382,
com vigência anterior ao dispositivo supramencionado, dispôs que era dispensável o requisito
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da convivência more uxório sob o mesmo teto, entendimento aplicado pela Jurisprudência
Nacional, afastando o requisito temporal.
No que tange à sucessão, a referida Lei dispõe que o convivente poderá herdar, desde
que, quando concorrer com os ascendentes ou descendentes do de cujus, não tenha constituído
nova união, e, na falta de herdeiros necessários, receberiam a totalidade da herança.
A Lei 9.278 de 10 de Maio de 1996, que regulava o artigo 226, § 3º da Constituição
Federal, pode ser considerada uma evolução em relação a Lei 8;971/94, ao passo que esta não
foi revogada por aquela, mas apenas aperfeiçoada, sendo possível o uso síncrono. Cabe dizer
que na nova Lei, inúmeras inovações foram introduzidas no que diz respeito à União Estável,
o que será discorrido a seguir.
Inicialmente, a referida carta legal conceitua o instituto da União Estável,
caracterizando-a como “ convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma
mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família”, o que desde já nos demonstra
a exclusão do requisito do prazo mínimo de convivência ou coabitação, derrogando o art. 1º da
Lei 8.971/94. Assevera ainda os direitos e deveres iguais dos companheiros, com especial
atenção ao respeito e consideração mútuos, a assistência moral e material recíproca e a guarda,
sustento e educação dos filhos comuns.
No que diz respeito ao Direito Patrimonial, a legislação nos trouxe que os bens
adquiridos durante a constância da União Estável a título oneroso, seriam partilhados entre os
conviventes, aludindo que os bens pertenceriam a ambos em condomínio, e não comunhão, o
que posteriormente com o Novo Código Civil seria alterado. Ainda nesta toada, diferentemente
do que acontecia antes quando o companheiro ou companheira precisava provar que colaborou
para a aquisição dos bens, decaindo sobre ele o ônus da prova, com a intervenção do art. 5º da
Lei n.º 9.278/96 este ônus foi invertido, presumindo a colaboração dos companheiros na
aquisição do patrimônio comum durante a união estável, cabendo ao outro companheiro negar
a participação daquele que pleiteia a metade dos bens, caso discorde.
Ainda no bojo da Lei n.º 9.278/96, duas novidades importantes: O reconhecimento do
Direito Real de Habitação como direito sucessório do convivente, que é tópico de debate e será
debatido oportunamente, e a atribuição da competência da Vara de Família para toda a matéria
referente à União Estável, assegurado o segredo de justiça.
Portanto, revisando a inteligência das Leis supramencionadas, extrai-se que há, em
ambas, sintomas da evolução da União estável, com o Estado reconhecendo sua existência e
conferindo a ela efeitos patrimoniais, sucessórios etc., tendo a última mais relevância para tal
entidade familiar, reconhecendo, todavia, que ambas consolidaram a proteção constitucional
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deferida pelo art. 226, §3º da Constituição Federal, mesmo que o desenvolvimento da União
Estável como entidade familiar ainda não tenha se desenvolvido plenamente.

III.2 – O CÓDIGO CIVIL E A UNIÃO ESTÁVEL

Mesmo após toda a evolução da União Estável como reconhecida entidade familiar, o
Novo Código Civil de 2002 atrasou tal progresso em decorrência da tenra idade desta unidade
familiar, pois não conseguiu traduzir o panorama social para seus dispositivos. No que diz
respeito ao Regime de Bens, a União Estável segue a mesma regra do Casamento, de modo que
prevê a Comunhão Parcial de Bens como regime escolhido na ausência de estipulação prévia
pelos companheiros, conforme acepção do art. 1.725. Quanto aos direitos sucessórios, o atual
Códex Cível conferiu às entidades familiares em questão, quais sejam o Casamento e a União
Estável, tratamento distinto. Inicialmente, o cônjuge foi favorecido em comparação ao
companheiro, de modo que este não foi considerado como herdeiro necessário, diferentemente
daquele. Adicionalmente, também não foi previsto ao companheiro Direito Real de Habitação,
cabendo a jurisprudência prolongar a incidência do art. 7º, da Lei 9.278/96, que previa tal
benefício para o convivente.
Felizmente, com a maturação do assunto no decorrer dos anos, impulsionado por uma
evolução social, comportamental e axiológica da sociedade brasileira, o Supremo Tribunal
Federal decidiu por considerar o art. 1.790 do Código Civil como inconstitucional, e reconheceu
para fins sucessórios a equiparação entre cônjuge e companheiro, concedendo a ambos a
qualificação de herdeiro necessário.
Tal decisão foi de extrema importância para a total equiparação da União Estável em
relação ao Casamento, ao passo que a discussão sobre o referido dispositivo civel atingiu
também o mérito do Princípio da Igualdade, de modo que a equiparação para fins sucessórios
deveria repercutir nos outros âmbitos conjugais tutelados pelo Ordenamento Jurídicos,
especialmente no Direito de Família e em outras divergências do Direito Sucessório, que ainda
serão discutidos aqui. A referida decisum que garante aos companheiros tratamento idêntico
aos cônjuges na sucessão por morte busca valorizar o afeto e a constituição de família que
marcam ambas as instituições familiares, de forma a compreender que há que se valorizar não
somente as formalidades requisitadas pelo Estado que implicam na constituição de um
casamento, mas também as reais motivações para que aquele núcleo se constitua como tal,
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conferindo aos reais sujeitos desta relação o poder de escolher viver em comunhão, como
aqueles que casam, sem obrigatoriamente trazer ao vinculo a atuação estatal.
Refazendo o caminho percorrido, originalmente, o vínculo afetivo sem o selo de
casamento era visto como uma afronta a sociedade, passível de punição estatal, sendo repudiado
e tratado como uma Família Ilegítima, inclusive denominado de concubinato, expressão infeliz
que demonstrava um caráter amplamente discriminatório, reflexo de uma sociedade arcaica e
excessivamente religiosa.
Com o passar dos anos e com a imparável evolução social e de todas as relações
amorosas, o conceito de família muda constantemente, de forma que cada vez mais novas
espécies de família originam-se. Inevitavelmente, diante de novas realidades sociológicas
surgem outras possibilidades dentro do instituto da União Estável, que agora, seguindo a esteira
dos acontecimentos sociais, pode ser observado em situações cada vez menos tradicionais e
comuns, como o caso da União Estável Putativa.

IV – A UNIÃO ESTÁVEL PUTATIVA

IV. 1 – UNIÃO ESTÁVEL PUTATIVA E A BOA-FÉ

A União Estável Putativa pode ser conceituada como um vínculo familiar em que há um
impedimento matrimonial que reveste a relação, porém tal obstáculo é desconhecido por pelo
menos um dos cônjuges, que, permeado pela boa-fé, acredita constituir uma entidade familiar
legitima. Destarte, quando falamos da União Estável Putativa, temos uma relação baseada na
afetividade, em que estão presentes todos os requisitos da União Estável propriamente dita, mas
que detém um obstáculo legal desconhecido por pelo menos um dos companheiros, que afasta
a legitimidade do vínculo.
O cerne da discussão sobre o reconhecimento da União Estável Putativa reside na
existência de boa-fé por parte dos companheiros ou de pelo menos um deles. Apesar da boa-fé
em alguns casos ser presumida, no âmbito da discussão da putatividade das relações familiares,
esta deve ser energicamente comprovada pela parte que a ela aproveita. Tão assim é que,
embora ainda embrionária a possibilidade de reconhecimento de efeitos da União Estável
Putativa, estes só são conferidos quando aquele que os persegue comprova que estava de boa-
15

fé, comprovação esta que deve ser feita seguindo os seguintes requisitos, conforme lição de
Rolf Madaleno:
Boa-fé, por evidente, suficientemente escusável, pois deve conter a presença de
diligência, cautela e interesse da parte acerca das qualidades daquele que elegeu
para ser seu parceiro, pois não se espera que a escolha de um companheiro não
passe por um razoável e diligente crivo de informações precedentes, ou como
ensina Alípio Silveira, “a vítima deve ter sido cautelosa, diligente, ou então
deverá apresentar um motivo razoável por não ter diligenciado”, para não
descobrir em tempo e a tempo, que seu companheiro era casado e que vivia ao
mesmo tempo com seu cônjuge. (MADALENO, 2019)

Ainda de acordo com o pensamento do autor, a natureza deste desconhecimento por


parte da companheira de boa-fé trata-se de erro de fato, que não sabe da preexistência do
casamento ou que o companheiro de má-fé ainda se encontra casado, ignorando que ele segue
coabitando com seu cônjuge por ter sido induzida a acreditar que existe uma separação de fato
que em realidade não existe ou que ele não é casado. Nesta toada, reflete que não é nada fácil
lograr convencer judicialmente a escusabilidade do erro, e segundo ele (2019 apud CAHALI,
Yussef Said. O casamento putativo. 2. ed. São Paulo: RT, 1979. p. 81), relata que não basta a
boa-fé, a errônea representação da realidade, mas se reclama que tenha sido usada certa
diligência visando atingir, ainda que sem êxito, a exata notícia da coisa, configurada assim a
boa-fé no resultado negativo da atividade intelectual exercida para se conhecer a verdade.
Noutro olhar, tal complexidade confere ao companheiro de boa-fé uma onerosidade
injusta, pois afasta a presunção de boa-fé que ao cônjuge no casamento putativo é imputada
(DIAS, 2021, p. 528), demonstrando uma diferença de tratamento entre o companheiro e
cônjuge que não mais merece prosperar, pois conforme lição de DIAS (2021, p. 644), perquirir
a boa ou má-fé é tarefa complexa, de modo que a linha entre a má-fé a boa-fé é demasiadamente
tênue, podendo ser impossível, imperceptível averiguar tal diferença.

IV.2 – UNIÃO ESTÁVEL PUTATIVA X CASAMENTO PUTATIVO

A União Estável Putativa é uma variação da União Estável, sendo conceituada como um
vínculo familiar que se reveste de ilegitimidade, mas pode ser reconhecida a sua capacidade de
produzir efeitos se verificado que pelo menos um de seus integrantes estava de boa-fé. Em
16

relação ao conceito, podemos dizer que a União Estável Putativa assemelha-se ao Casamento
Putativo, de modo que este configura-se a partir da ilegitimidade originada da verificação dos
impedimentos matrimoniais que constam no art. 1.521 do Código Civil, que serão estendidos à
verificação da União Estável de igual forma, como assevera o art. 1723, §1º. O tema
controvertido é acerca da possibilidade de conferir aos companheiros de boa-fé os efeitos
decorrentes dessa modalidade de união estável, assim como são conferidos efeitos ao cônjuge
de boa-fé na constância do casamento putativo, principalmente no que diz respeito aos reflexos
sucessórios destas relações simultâneas.
Apesar da tentativa de equiparar as entidades familiares, o Código Civil tutelou apenas
as relações putativas matrimoniais, deixando de abarcar as entidades familiares putativas
extramatrimoniais. Porém, da mesma forma que os impedimentos se estendem à União Estável,
também os direitos e efeitos do Casamento Putativo devem ser observados na União Estável
Putativa, a fim de consolidar a equiparação das referidas entidades. Assim ensina a louvável
doutrinadora Maria Berenice Dias

Ora, se são emprestados efeitos ao casamento putativo quando contraído de boa-fé,


indispensável reconhecer a mesma qualificação à união estável com relação ao
convivente de boa-fé. Ou seja, quando preenchidos os requisitos da união estável -
ostentabilidade, publicidade e durabilidade- e comprovada a boa-fé de um dos
parceiros, invoca-se a analogia ao casamento putativo. (DIAS, 2021, p. 644)

De tal modo, a previsão de conferir efeitos ao cônjuge de boa-fé, nos termos do art.
1.561, deveria ter sua aplicação e interpretação estendida aos companheiros de boa-fé, com base
na tentativa atual de equiparar as entidades e cessar qualquer tipo de diferença que se origine a
partir do preconceito e conservadorismo exacerbado, a fim de conferir aqueles que por muito
tempo ficaram à margem da lei, proteção jurisdicional eficaz e justa.

IV.3 UNIÃO ESTÁVEL PUTATIVA X CONCUBINATO IMPURO

Inicialmente, é necessário diferenciarmos a União Estável Putativa do Concubinato


Impuro, de modo que àquela caracteriza-se pela boa-fé de pelo menos um dos envolvidos, já
que por força de algum motivo relevante, desconhece que o outro é casado ou convivente,
mantendo uma relação que contêm todos os requisitos de uma União Estável propriamente dita.
Já no Concubinato Impuro, temos a “má-fé” dos envolvidos, ao passo que há no relacionamento
17

um impedimento matrimonial de conhecimento de todos, visto que mesmo que a relação possua
os requisitos da união estável, é classificada como concubinato, uma vez que um de seus
participantes já é casado ou possui outra união estável, não estando separado de fato ou
judicialmente como excepciona o artigo 1.723 do Código Civil, no seu parágrafo primeiro.
Cumpre dizer que essa má-fé não é absoluta, ou seja, o simples fato de a natureza da relação
afetiva extraconjugal ser de conhecimento dos envolvidos não é em todos os casos motivo
suficiente para classificar tal relação como impura, imoral ou ilegal.
Com o avanço da sociedade atual, cada vez mais o afeto tem um papel determinante na
consolidação de uma família. Assim, há em determinadas relações “concubinárias impuras”
um elemento afetivo que transcende a simples verificação de relações conjugais concomitantes,
sendo que a primeira relação por muitas vezes perdura somente por motivos alheios ao afeto,
seja pela inconveniência do divórcio, seja por razões patrimoniais.
Cada vez mais o Direito Das Famílias busca afastar a incidência absoluta e
desproporcional do princípio da monogamia, que trava um grande embate contra o princípio da
dignidade humana e da pluralidade familiar, demonstrando que o afeto é, nesta nova era social,
o alicerce sob a qual as famílias se sustentam.

IV.4 A UNIÃO ESTÁVEL PUTATIVA E AS FAMÍLIAS SIMULTÂNEAS

É importante trazer as distinções entre as variadas formas de famílias simultâneas, de


modo que a União Estável Putativa adentra nesta modalidade de família. A união estável
putativa como família simultânea caracteriza-se a partir da observância de uma união estável
concomitante a um casamento ou outra união estável, de modo que a simultaneidade das
entidades familiares é configurada a partir da natureza putativa do relacionamento posterior.
Para além das relações putativas, há também a hipótese de famílias concomitantes ou
paralelas, quais sejam casamento e união estável ou duas uniões estáveis, de modo que a
cônjuge ou companheira do primeiro vínculo tem conhecimento da relação extraconjugal, e
mesmo assim continua com a relação, o que de certa forma convalida a existência da relação
paralela, conferindo à companheira a possibilidade de ser abraçada pelos efeitos cíveis do
vínculo familiar, mesmo tratando-se, para a Lei, de um concubinato impuro.
Nesses casos, há de se pontuar que as famílias paralelas assim são consideradas a partir
da verificação dos pressupostos para a sua classificação como União Estável, de modo que
18

aquelas relações concubinárias passageiras e interesseiras, apenas fundados nos interesses


carnais ou visando certa ascensão social, não merecem ser tutelados como entidades familiares.
Logo, quando se fala em famílias paralelas, trata-se de vínculos baseados no afeto, em que há
uma dedicação mútua, mesmo que não exclusiva, em que ambos os companheiros nutrem um
sentimento mútuo em que acreditam e objetivam constituir uma família.
Assim, nas hipóteses em que há a concomitância de um casamento e uma união estável
ou duas uniões estáveis, há a possibilidade da relação paralela à primeira entidade familiar
constituída ser reconhecida e consequentemente os seus efeitos serem conferidos à companheira
superveniente, se observado que há na relação superveniente os pressupostos necessários que a
caracterizem como uma União Estável.

IV.5 – AS POSSIBILIDADES DE RECONHECIMENTO DE ENTIDADES


FAMILIARES SIMULTÂNEAS OU PARALELAS

O princípio da monogamia sempre exerceu enorme influência nas entidades familiares,


de modo que antes da vigência da CF/88 até mesmo privou o reconhecimento de filhos havidos
fora do selo matrimonial, assim como impediu o então concubinato puro – agora União Estável
- de ser reconhecido por nosso Ordenamento Jurídico. Contudo, este princípio vem cada vez
mais perdendo espaço no nosso Ordenamento Jurídico, dando lugar para o princípio da
dignidade humana, da pluralidade de entidades familiares e da igualdade.
Assim, o reconhecimento de entidades familiares simultâneas, antes inimaginável, pode
ser encontrado esporadicamente no sistema jurídico brasileiro. Apesar da impossibilidade da
coexistência absoluta de dois casamentos (art. 1.521, IV, CC), em certas hipóteses os nossos
tribunais vem reconhecendo a possibilidade da existência de entidades familiares paralelas.
Uma dessas hipóteses foi introduzida a partir da Emenda Constitucional 66, de 2010,
que determinou a possibilidade de o cônjuge estabelecer uma União Estável em concomitância
com o casamento caso esteja separado de fato da sua cônjuge, como prega o art. 1.723, §1º do
Código Civil, mencionando que apesar dos impedimentos matrimoniais elencados no art. 1.521
da Carta Civil serem aplicados à União Estável, o impedimento do inciso IV do artigo por
último mencionado não se aplica caso o cônjuge esteja separado de fato. Sob outra perspectiva,
extrai-se que mesmo separado de fato, ainda existia no momento da origem da União Estável o
19

vínculo matrimonial anterior, mas este foi afastado para que fosse respeitado o principal aspecto
da família: o afeto.
Outra hipótese é no caso de a situação de simultaneidade perdurar por tanto tempo que
todos os envolvidos acabam aceitando a realidade dos fatos, não havendo qualquer oposição à
situação desenvolvida. Assim, a entidade familiar superveniente, seja no caso de casamento e
união estável ou de duas uniões estáveis, se estiver composta por todos os requisitos para sua
configuração, pode produzir efeitos para a “concubina”.
O tema é controverso, ao passo que apesar do STF tender ao não reconhecimento do
paralelismo de entidades familiares (STF, RE 397.762.8/BA e RE883.168/SC), existem
julgados em outros Tribunais (REsp 1185337/RS) que admitem o paralelismo nas hipóteses da
simultaneidade ter perdurado por longo tempo e estar presente a anuência dos envolvidos, que
aceitaram a situação, conferindo a concubina – ou a companheira, visto que as peculiaridades
da situação demonstram que ali havia todos os requisitos para que a relação fosse caracterizada
como União Estável – direito à verbas alimentares. Em um desses julgados da Nossa Corte
Suprema, o voto vencido do Ministro Ayres Britto atribuía à relação paralela o caráter de
entidade familiar, o que, segundo TARTUCE (2022, p. 1339), era o razoável a se fazer, sob o
argumento de que o conhecimento da Esposa sobre o relacionamento paralelo e a sua aceitação
por longo tempo ensejaria na aceitação da partilha de direitos com a “concubina”, até mesmo
atraindo a aplicação do princípio da boa-fé objetiva, que veda o comportamento contraditório
(venire contra factum proprium non potest).
Portanto, ainda é tímido o reconhecimento da simultaneidade familiar. Contudo, em
esporádicos casos, tais relações, diante de todos os pré-requisitos de uma união estável
propriamente dita, são conhecidos como uma entidade familiar, mesmo que não esteja presente
a exclusividade afetiva pelo bígamo. Afastado a hipótese do relacionamento ser um mero caso,
algo volátil e passageiro, o vinculo deve gerar efeitos à “concubina”, que deve ser abraçada pela
possibilidade de receber alimentos e direitos previdenciários, sendo possível imaginar também
o direito à meação e à herança, a depender do caso concreto e da ponderação dos princípios
feito pelo Magistrado, que deve decidir entre supervalorizar o principio da monogamia ou
afastá-lo, e trazer ao caso a aplicação do principio da pluralidade de família e da dignidade
humana, tutelando os direitos da companheira.
20

V – UNIÃO ESTÁVEL PUTATIVA E OS REFLEXOS NO DIREITO SUCESSÓRIO

Mesmo com o reconhecimento constitucional da União Estável como entidade familiar,


tal previsão não foi suficiente para que o companheiro fosse abraçado desde já pelos direitos
sucessórios. Apenas com a vigência das Leis 8.971/94 e 9.278/96 que os companheiros
passaram a ser albergados pelos Direitos Sucessórios, uma conquista que merece ser celebrada,
mas que não é suficiente, pois o Código Civil de 2002 tratou de retroceder, ou ao menos atrasar,
todo o avanço de tal entidade familiar ao distingui-las do casamento no que diz respeito à
Sucessão.
Apesar das lacunas legislativas, com o passar dos anos a jurisprudência e a doutrina vem
traçando o caminho para que os integrantes das famílias não matrimoniais, como a União
Estável e a União Homoafetiva, sejam cada vez mais aceitas e protegidas pelo nosso Direito,
tendo como exemplo marcante disto os temas 498 e 809 do STF, e o julgamento da ADPF 132
e ADI 4277, que elevaram tais entidades familiares ao patamar do Casamento, a fim de conferir
a elas todos os Direitos concedidos aos cônjuges, inclusive os Sucessórios, demonstrando o
caminho que nosso Ordenamento Jurídico deve seguir para que não mais aqueles que integram
tais entidades familiares fiquem à margem da lei ou nem mesmo por ela sejam reconhecidos.
Contudo, no que tange às relações simultâneas, tal reconhecimento ainda é ínfimo, com
decisões esporádicas que reconhecem os direitos dos companheiros destes vínculos familiares.
Como anteriormente discorrido, o entendimento da Corte Suprema é de não as reconhecer sob
o argumento de defesa ao princípio da monogamia, entretanto, é possível averiguar certas
hipóteses em que os integrantes destas relações familiares são tutelados pela nossa Jurisdição,
concedendo-os direitos sucessórios, alimentares e previdenciários.
Ao olharmos sob a perspectiva do Direito Sucessório, a União Estável Putativa vem
vagarosamente ganhando terreno no nosso Direito. Indaga DIAS (2019, p. 103) até mesmo o
porquê que tal modalidade de União Estável não estar legalmente prevista, de modo que se os
companheiros que se uniram de boa-fé e desconheciam ambos da condição obstativa, deveriam
ser dados todos os efeitos provenientes do vínculo familiar originado até haver sentença
anulatória. Se apenas um dos companheiros estava de boa-fé, somente a ele alcançam os efeitos
civis da relação putativa, medida que se assemelha ao Casamento Putativo. A diferença de
tratamento legislativo, jurisprudencial e moral que se dá entre União Estável Putativa e
Casamento Putativo é só uma dos desfavores concedidos ao companheiro se comparado ao
cônjuge em sede de Direito Sucessório, como será discorrido melhor a seguir.
21

V.1 – DIFERENÇAS ENTRE CONJUGE X COMPANHEIRO

O Código Civil de 2002 foi deveras infeliz ao legislar acerca dos Direitos Sucessórios,
principalmente quando versa sobre a União Estável. Originalmente, o companheiro, em
comparação ao cônjuge, foi visivelmente desprivilegiado pela Lei, já que não foi reconhecido
como herdeiro necessário, ficando apenas em quarto lugar na ordem de vocação hereditária,
atrás dos colaterais. A ele não é assegurada quota mínima, bem como é limitado o direito
concorrente aos bens adquiridos durante a união. A única hipótese de receber a herança na
totalidade é se não houver nenhum parente do de cujus, desde os em linha reta até os colaterais.
Por outro lado, ao cônjuge foram conferidos todos os direitos mencionados, sendo elevado ao
patamar de herdeiro necessário e ainda concorrendo diretamente com os descendentes.
O tratamento diferenciado é ainda mais categórico quando observamos a redação do
famigerado art. 1.790, que segundo DIAS (2019, apud VELOSO, Direito Sucessório dos
Companheiros, p. 231), é um dispositivo que merece censura e critica severa pois significa um
retrocesso evidente, representando um verdadeiro equívoco. É, ademais, inconstitucional, por
violar flagrantemente o princípio da igualdade. Destarte, diante da ofensa à nossa Carta Magna,
por tratar-se o referido artigo de norma materialmente inconstitucional, conforme ensina
DIAS (2019, p. 100), pois no lugar de dar especial proteção à família fundada no
companheirismo, retira direitos e vantagens anteriormente existentes em favor dos
companheiros, o STF acabou por declarar inconstitucional o art. 1790 do Código Civil, dando
origem ao tema 498, que versa que:

É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e


companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas
hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do
CC/2002.

Conforme extrai-se da decisão em comento, a Suprema Corte buscou equiparar as


entidades familiares, assim como originalmente previa a Constituição, defendendo que “ não é
legitimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e companheiros, isto é, a família
formada pelo casamento e pela união estável.
Mesmo que o entendimento jurisprudencial caminhe para a real e efetiva equiparação
das entidades, ainda se vê que há entre elas uma certa hierarquia, de modo que o casamento, e
22

consequentemente o cônjuge, goza de direitos sucessórios que não são estendidos à União
Estável e ao companheiro. Por outro lado, as punições e restrições estendem-se a relação não
matrimonial, como por exemplo os impedimentos matrimoniais e a obrigatoriedade da
separação legal como o regime de bens a ser observado nas relações familiares que forem
constituídas por pessoas acima de 70 anos.
O tratamento diferenciado ainda persiste, e é notadamente encontrado quando
observamos os privilégios conferidos ao Casamento Putativo, privilégios estes que não são
plenamente conferidos à União Estável Putativa. Inicialmente, insta destacar que há previsão
legal do vínculo matrimonial putativo, o que não acontece com a União Estável Putativa.
Ademais, aos cônjuges que protagonizam o matrimônio putativo, ou pelo menos aquele que
estava de boa-fé, os efeitos cíveis são legalmente previstos. Já as relações estáveis putativas não
são reconhecida uníssona e pacificamente pela nossa Jurisprudência, não sendo possível
assegurar os efeitos cíveis dela decorrentes aos companheiros, que devem demonstrar sua boa-
fé de forma irrefutável e absoluta, para que seja possível conceder os efeitos da relação.
Quando se verifica o entendimento pátrio acerca do Casamento Putativo, em diversos
casos há a presunção de boa-fé dos cônjuges (Acórdão - TJDF3 e Acórdão TJPR4), inclusive no
caso de o impedimento ser a existência de matrimônio prévio. Tal presunção deriva-se das
solenidades perquiridas para a realização do matrimônio, de modo que se presume a boa-fé no
momento de celebração do casamento. Portanto, a hierarquia observada entre as entidades
familiares estende-se para as suas respectivas modalidades, de modo que o casamento putativo
recebe tratamento legislativo e jurisprudencial favorável se compararmos com a União Estável
Putativa, que fica à margem da Lei e só é reconhecida quando se entende que há a aplicação
analógica do matrimônio putativo, além de perseguir a comprovação de boa-fé por parte da
companheira de boa-fé, ônus complexo e muitas vezes impossível de ser demonstrado.

V.2 – A INTERSEÇÇÃO ENTRE O PARALELISMO E A PUTATIVIDADE DA UNIÃO


ESTÁVEL

Quando se fala em União Estável Putativa, é necessário observar qual o impedimento


que envolve a relação, de modo que se o fato ou motivo que é desconhecido pelo companheiro

3
https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-df/904166748
4
https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-pr/23666387
23

é a existência de matrimônio anterior ao vínculo afetivo, efetiva-se então a existência de


famílias paralelas, que atrai a maior polêmica e debate acerca da União Estável Putativa e os
direitos sucessórios ao companheiro de boa-fé. Os impedimentos que obstam a legitimação do
vínculo familiar são elencados no art. 1561 do CC, que na verdade regram o Matrimônio, mas
estendem-se à União Estável, vide o art. 1723, §1º do Código Civil.
Na hipótese de a putatividade da união convivente originar-se do desconhecimento de
relação matrimonial existente, exceto se houver a separação de fato, haverá então uma
simultaneidade de famílias, de modo que seria então a relação porvindoura caracterizada como
União Estável Putativa, caso o integrante desta relação estivesse de boa-fé, ou seja,
desconhecesse que o integrante comum às duas relações mantinha um casamento antes de
constituir a União Estável.
Como sabemos, o Ordenamento Jurídico Brasileiro é conservador neste tema,
desfavorecendo os integrantes das famílias simultâneas ao defender ferrenhamente a
observância do princípio da monogamia, não conferindo às entidades familiares supervenientes
os efeitos jurídicos. Assim, quando há uma União Estável Putativa originada pela existência de
matrimônio prévio, o Direito Brasileiro, conferindo maior valor ao princípio da monogamia,
não reconhece, via de regra, que o companheiro deva ser abarcado pelos direitos sucessórios,
por entender que há na verdade a simultaneidade de entidades familiares, o que é proibido no
nosso Ordenamento.
Por outro lado, há a possibilidade do reconhecimento da relação putativa, mas somente
quando há a boa-fé do companheiro ou companheira da União Estável Putativa, que como
aludido anteriormente neste trabalho, pode ser extremamente difícil de ser comprovado pela
parte que a aproveita.
Para ilustrar a situação, tem-se a hipótese do homem que já é casado, e passa a
estabelecer com outra mulher uma relação duradoura, publica e permeada pela assistência
mútua, em que há um afeto evidente. Este homem, por conta do seu trabalho, passa 15 dias em
sua casa, com sua esposa, e 15 dias na casa da sua companheira, em outra cidade, onde é notório
pelas pessoas mais próximas que há uma relação familiar entre eles. A situação perdura por
longo tempo, existindo até mesmo prole deste vínculo posterior. As envolvidas não tem ciência
que estão nesta situação, não tendo conhecimento de que o homem mantem relações familiares
com ambas. Ora, como poderia a companheira neste caso comprovar a sua boa-fé ? Poderia
muito bem o homem ter sido diligente o suficiente para persuadi-la, afastá-la da veracidade dos
fatos, e como poderia ela apresentar provas inescusáveis de sua boa-fé para que somente assim
fosse abraçada pelos efeitos cíveis desta relação ? Parece ser demasiado custoso impor a ela,
24

mesmo diante da incontestável existência de um vínculo familiar, com todos os pressupostos


preenchidos, que deve se desincumbir do ônus de provar que não agiu de má-fé.
Neste caso deve-se presumir que houve boa-fé por parte da companheira, de modo que
há por parcela da doutrina o entendimento de que mesmo que não esteja presente a boa-fé,
haveria de se conceder à ela os direitos provenientes da relação familiar, pois pensar diferente
seria beneficiar o infrator, que manteve relações afetivas com ambas e colheu as regalias da
duplicidade. Os magistrados pátrios, no entanto, entendem o contrário. Com base na
supervalorização do princípio da monogamia, fundamentam que o paralelismo familiar impede
o reconhecimento dos direitos da companheira, deixando-a à margem da Lei. A realidade social
nos demonstra que prejuízo nessas situações recai principalmente sobre as mulheres, pois elas
se dedicam ao lar familiar, muitas vezes colocando seus próprios objetivos e vontades de lado
para que possa cuidar e sustentar o seio familiar contraído juntamente com o adúltero, para ao
fim do relacionamento, por qualquer motivo que tenha causado seu término, não ser abarcada
pelos efeitos cíveis.
Por outro lado, nas hipóteses em que há a incidência dos outros impedimentos, como no
caso da União Estável constituída por dois irmãos que não sabiam da condição obstante do
vínculo familiar, entende-se que há a aplicação dos comandos inerentes ao Casamento Putativo,
de modo que se presume que há a boa-fé dos integrantes e portanto, serão a eles concedidos os
efeitos cíveis existentes até que haja sentença que cesse a entidade familiar. Logo, se neste caso
houver o falecimento de um dos companheiros, o outro será abarcado pelos Direitos Sucessórios
se ao tempo do falecimento, com ele ainda permanecia junto e não tinha conhecimento do fato
que impedia a legitimidade da entidade por eles constituída. Em contrapartida, se neste último
caso um dos companheiros estava de má-fé, a ele não caberiam os efeitos decorrentes da
relação, e a sentença que extinguir a relação terá efeito retroativo para ele, permanecendo os
efeitos ao companheiro de boa-fé, no entanto.
Destarte, a polêmica da União Estável Putativa reside principalmente no impedimento
que a constitui, que caso seja a existência de matrimônio ao tempo do início da União Estável,
o Judiciário Brasileiro ainda é resoluto em não conceder plenamente ao convivente de boa-fé
os direitos provenientes da relação, em especial os sucessórios, requisitando que ele prove que
agiu de boa-fé e que não detinha conhecimento da relação anterior. Isso se dá pelo fato de que
a putatividade e o paralelismo familiar interseccionam-se, provocando ideais religiosos e
conservadores que se alocam unicamente no infame princípio da monogamia, que penaliza o
companheiro da relação putativa e premia o outro, que acaba beneficiando-se deste vínculo, ao
passo que o outro companheiro é esquecido por nossa Legislação.
25

V.2.1– OS EFEITOS SUCESSÓRIOS DO RECONHECIMENTO DA UNIÃO ESTÁVEL


PUTATIVA E OUTRAS FAMILIAS PARALELAS

Por mais que esteja engatinhando, vagarosamente, é possível encontrar em nosso


Ordenamento Jurídico o reconhecimento de efeitos cíveis para a União Estável Putativa e
também para as famílias paralelas, esta última bem mais incomum.
Como discutido no tópico anterior, quando há a intersecção da putatividade e do
paralelismo na relação familiar, o reconhecimento do vínculo como entidade familiar é de difícil
sucesso. Contudo, existem casos em que o Judiciário, entendendo ser a situação análoga ao
Casamento Putativo, confere ao companheiro de boa-fé os efeitos sucessórios. Portanto, ao
companheiro de boa-fé da União convivente posterior, seja ela simultânea à outra União Estável
ou a Casamento, é assegurado a metade dos bens adquiridos na constância do vínculo por ele
constituído.
VENOSA (2017), ao ensinar os efeitos do Casamento Putativo, discorre que no caso da
simultaneidade de matrimônios, ocorrendo a morte do bígamo, ambas as cônjuges poderão ser
consideradas herdeiras, dividindo a herança em partes iguais entre o cônjuge legitimo e o
putativo. Ou seja, sobrevindo o falecimento do cônjuge bígamo antes da sentença de invalidade
do casamento, caberá ao cônjuge sobrevivente de boa-fé todos os efeitos próprios de um
matrimônio tido como valido, pois o vínculo conjugal dissolveu-se pela morte, e não pela
sentença de anulação ou nulidade. Isso se dá pelo fato de que se entende que os efeitos do
Casamento Putativo são observados e constituídos até a sentença que torna nulo tal vínculo, na
medida que a dissolução determina a desconstituição do vínculo, mas os resultados conjugais
produzidos até a sentença são conservados (MADALENO, 2019). Então, com o falecimento do
cônjuge anterior ao trânsito em julgado da anulação, persistem os efeitos sucessórios ao cônjuge
de boa-fé, tendo ele direito à herança e à meação, a depender do regime de bens, e também o
direito a alimentos, até que seja declarada a invalidade do casamento.
Aplicando a inteligência desta lição à União Estável Putativa, entende-se que o
companheiro será abarcado pela sucessão do outro, dividindo a herança com o cônjuge ou
companheiro da relação familiar anterior à relação de convivência putativa. Portanto, em
decorrência da boa-fé da companheira, a putatividade garante que os efeitos cíveis constituídos
até o trânsito em julgado da decisão sejam a ela garantidos. Então, se a nulidade for decretada
após a morte do bígamo, os direitos sucessórios serão conferidos à companheira de boa-fé, que
terá direito a herança, dividindo-a igualmente com a cônjuge ou companheira do primeiro
26

vínculo, pois em decorrência de sua boa-fé, a decisão terá efeito ex-nunc. Em contrapartida,
caso a decisão da nulidade do vínculo aconteça antes da morte do ente comum às duas entidades,
então a companheira da relação superveniente não será abarcada pela sucessão do de cujus,
visto que a sentença desde já produzirá seus efeitos, pondo fim ao vinculo familiar, subsistindo,
entretanto, a possibilidade de alimentos à companheira, caso os requisitos para tal estejam
configurados no caso concreto, pois deve persistir o dever alimentar em favor do companheiro
inocente na União Estável Putativa (CAHALI, 1979; pág. 124)
Por fim, havendo o reconhecimento da União Estável Putativa, no que tange à Sucessão,
o companheiro de boa-fé será abarcado pelos seus efeitos, de modo que poderá se habilitar na
herança do de cujus, em relação aos bens comuns, se concorrer com filhos próprios ou a toda
herança se concorrer com outros parentes e ao direito previdenciário, sem prejuízo de outras
reivindicações jurídicas, como por exemplo uma pensão alimentícia, se provar a dependência
financeira do companheiro casado (MADALENO, 2019; pág. 2000)

V.2.2 – O RECONHECIMENTO DAS FAMILIAS SIMULTANEAS E SEUS


POSSIVEIS EFEITOS

Giselda Hironaka defende que a família paralela não é uma família inventada, nem é
família imoral, amoral ou aética, nem ilícita. Nos ensina a grande jurista que se trata de famílias
estigmatizadas, sendo o núcleo familiar posterior concebido como estritamente adulterino, sem
ao menos serem observadas as peculiaridades do caso concreto, de modo que se presume que
todas as situações de paralelismo familiar estão inseridas no mesmo contexto, que, permeado
por um preconceito social que se traduz em marginalização pela Lei e pela Jurisprudência, não
é reconhecida sua natureza como entidade familiar.
No que diz respeito aos efeitos cíveis das relações simultâneas, ainda é embrionário o
reconhecimento dos direitos decorrentes destes vínculos. Inicialmente, há de se analisar as
circunstâncias do caso concreto, de modo que primeiramente devemos observar a constituição
de uma verdadeira família, em que estão presentes todos os pressupostos para uma União
Estável propriamente dita. Ora, para que o paralelismo não afaste o reconhecimento da relação
como uma entidade familiar apta a gerar efeitos a seus integrantes, é mister que a relação
concomitante se perfaça pelo afeto, corroborado pela existência do animus familiae,
27

consubstanciado por uma certa publicidade da relação eivada pelo respeito, carinho e cuidado
mútuo.
Como citado anteriormente, em alguns julgados é possível observar o reconhecimento
das famílias paralelas como União Estável, capaz de reverberar efeitos para a integrante do
vínculo simultâneo. Na maioria destes casos, observa-se que há por parte da cônjuge ou
companheira do vínculo anterior o conhecimento da relação paralela, de modo que não se opõe
à sua existência, o que de certa forma pode ser entendido como uma aceitação da duplicidade.
Alia-se à essa condição o fato de que em muitos destes casos a relação simultânea perdura por
muitos anos, afastando a ideia de fugacidade da relação e a elevando a um patamar de família,
visto que o vínculo contém todos os requisitos e as características de uma família, e assim
deveria ser reconhecida.
Assim, quando ambas as integrantes das famílias concomitantes aceitam a situação,
torna-se estável a relação adulterina e não furtiva, portanto regular, merecendo ser judicialmente
agasalhada para colocar a companheira no mesmo patamar da esposa (MADALENO, 2019).
Quanto à divisão dos bens, DIAS (2019, p. 127) assevera que quando o varão se manteve
casado até o seu falecimento, a depender do regime de bens, cabe afastar a meação da viúva.
Apurado o acervo hereditário e excluída a legítima dos herdeiros, a parte disponível, com
referência aos bens adquiridos durante o período de convívio com a companheira, deve ser
dividida entre elas, o que se denomina de “triação”, e vem sendo aplicado nos tribunais pátrios
quando a duplicidade familiar é reconhecida.
Nesta toada, em exercício logico louvável, PIANOVSK (2006. p. 24), reflete a partir da
seguinte situação: alguém que, já casado pelo regime da comunhão parcial, contrai novo
relacionamento, sendo este evidente perante terceiros e aceito pelo outro cônjuge e pela
companheira da relação paralela, havendo a eficácia da simultaneidade plena.
Em casos como esse, entende o autor que, apesar do Código Civil tratar a relação
superveniente como concubinado (art. 1.727), o nosso arcabouço legal não exclui de forma
expressa a possibilidade desta relação gerar efeitos jurídicos, exceto pela vedação à nomeação
do concubino como herdeiro legatário do testador (art. 1.801, III CC) e à doação de bens feita
pelo cônjuge adultero ao seu cumplice (art. 550, CC). Da leitura destes artigos, parece o Código
Civil vedar a possibilidade do testador ou adultero alienar seus bens à “concubina” provenientes
daquelas relações passageiras, efêmeras, em que não há na verdade um afeto constituído entre
os “concubinos”, não caracterizando a existência de uma entidade familiar, diferente das
famílias simultâneas que detém todos os requisitos e devem ser reconhecidas como entidades
familiares.
28

Assim, PIANOVSK (2006) defende que o silencio da Lei nestes casos não pode
implicar na exclusão destas pessoas, pois verifica-se na relação paralela as características
inerentes à uma união estabilizada, de modo que assim deveriam ser reconhecidas as relações
simultâneas em que há a notoriedade, o afeto e o animus familae, corroborado ainda pela livre
anuência por parte da integrante do núcleo familiar originário. Assim, reconhecendo o vínculo
familiar paralelo como uma União Estável, tais relações concomitantes ao matrimônio ou União
Estável previa gerariam os seguintes efeitos sucessórios para as partes:

I.os bens adquiridos onerosamente ao tempo do vínculo original e antes da constituição


da união concomitante, em nome de qualquer um dos seus integrantes, integram a
comunhão de bens relativa apenas à relação prévia e, havendo a dissolução desta,
ocorrerá a meação, não se comunicando com o companheiro da relação paralela;
II.os bens adquiridos onerosamente ao tempo da concomitância entre as entidades
familiares, estando em nome do integrante originário que não integra as duas famílias,
mas apenas integrante do primeiro núcleo familiar, submete-se à meação, não se
comunicando com o integrante exclusivo da segunda relação;
III.os bens adquiridos após intersecção temporal dos dois vínculos familiares e em nome
do integrante exclusivo da segunda união, se submeterá à meação sem haver
comunicação com o cônjuge exclusivo da primeira relação;
IV.já os bens adquiridos onerosamente após a constituição de ambas as famílias e em
nome daquele que concomitantemente integra ambos os núcleos, irão se sujeitar à
triação, exceto se houve participação efetiva apenas da integrante de um dos núcleos,
que deve ser comprovado por meio de prova e então a divisão será restrita apenas ao
núcleo familiar que efetivamente contribuiu para a aquisição do bem.

Como defende Maria Berenice Dias (2019, p. 127), deixar de reconhecer a família
paralela como entidade familiar leva à exclusão de todos os direitos do âmbito do direito das
famílias e sucessório, não havendo direito à herança nem à meação dos bens adquiridos em
comum, somente divisão do patrimônio mediante a prova da participação.
O principal algoz do reconhecimento das famílias paralelas reside unicamente no
princípio da Monogamia, que obsta a elevação destes vínculos ao patamar de entidade familiar.
Inumeras são as decisões que rechaçam o reconhecimento da familia paralela ao privilegiar a
absoluta observância do sistema monogâmica enraizado no nosso País, decorrente de uma
erupção de ideais religiosos e tradicionais que sempre permearam nossa sociedade e tambem
nosso Direito. Há doutrinadores que sequer reconhecem a monogamia como princípio,
alegando que não há nesta ideia força suficiente para afastar a proteção às famílias paralelas.
Outros pensam que por mais que esteja ele previsto no nosso Ordenamento Jurídico, não tem a
capacidade de se sobrepor aos princípios da pluralidade de famílias, da dignidade da pessoa
humana e da igualdade, sendo estes princípios constitucionais, que deveriam, no caso concreto,
afastar o dever de fidelidade como absoluto e inviolável. Em decisão louvável, o TJ-RS
corroborou os direitos à companheira integrante de família paralela:
29

Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO E


DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. PLEITO DE RECONHECIMENTO DO
INSTITUTO ENTRE 1961 E 2006. CABIMENTO. CONCOMITÂNCIA COM
O CASAMENTO QUE NÃO AFASTA A PRETENSÃO NO CASO.
SENTENÇA REFORMADA. I. Caso dos autos em que presente prova categórica
de que o relacionamento mantido entre a requerente e o falecido entre 1961 e a
dezembro de 2005 – lapso posterior já reconhecido em sentença até o seu
falecimento, à vista da separação fática da cônjuge – se dava nos moldes do artigo
1.723 do Código Civil, mas também a higidez do vínculo matrimonial do de cujus
até tal data. Caso provada a existência de relação extraconjugal duradoura,
pública e com a intenção de constituir família, ainda que concomitante ao
casamento e sem a separação de fato configurada, deve ser, sim, reconhecida
como união estável, mas desde que o cônjuge não faltoso com os deveres do
casamento tenha efetiva ciência da existência dessa outra relação fora dele, o
que aqui está devidamente demonstrado. Ora, se a esposa concorda em
compartilhar o marido em vida, também deve aceitar a divisão de seu
patrimônio após a morte, se fazendo necessária a preservação do interesse de
ambas as células familiares constituídas. Em havendo transparência entre
todos os envolvidos na relação simultânea, os impedimentos impostos nos
artigos 1.521, inciso VI, e artigo 1.727, ambos do Código Civil,
caracterizariam uma demasiada intervenção estatal, devendo ser observada
sua vontade em viver naquela situação familiar. Formalismo legal que não
pode prevalecer sobre situação fática há anos consolidada. Sentimentos não
estão sujeitos a regras, tampouco a preconceitos, de modo que, ao analisar as
lides que apresentam paralelismo afetivo, indispensável que o julgador decida
com observância à dignidade da pessoa humana, solidariedade, busca pela
felicidade, liberdade e igualdade. Deixando de lado julgamentos morais, certo
é que casos como o presente são mais comuns do que pensamos e merecem
ser objeto de proteção jurídica, até mesmo porque o preconceito não impede
sua ocorrência, muito menos a imposição do “castigo” da marginalização vai
fazê-lo. Princípio da monogamia e dever de lealdade estabelecidos que devem
ser revistos diante da evolução histórica do conceito de família,
acompanhando os avanços sociais.
Neste compasso, é notório que a realidade social não mais atém-se à interpretação fria
e ultrapassada dos comandos legais, de modo que ao analisarmos os casos concretos, as famílias
paralelas não necessariamente subsomem-se à previsão legal de concubinato, porquanto
caracterizam-se como verdadeiras famílias, apesar da extraconjugalidade presente. Assim,
como brilhantemente exposto pelo Magistrado no excerto jurisprudencial por último
30

colacionado, há de se reavaliar o princípio da monogamia (se é que se trata de um princípio) e


o dever de lealdade como pressupostos para negar direitos a relações paralelas, ainda mais em
situações em que há o conhecimento notório de todos os envolvidos e a relação perdura por
longo tempo.

V.3 – PANORAMA ATUAL DA JURISPRUDÊNCIA NACIONAL SOBRE OS


EFEITOS SUCESSÓRIOS DA UNIÃO ESTÁVEL PUTATIVA

Capitaneando pelo reconhecimento constitucional da União Estável e Família


Monoparental, as entidades familiares diversas do matrimônio vêm sendo reconhecidas por
nosso Ordenamento Jurídico. Apesar do progresso ser lento, inconsistente, ele vem acontecendo
gradualmente. Exemplo disso é o reconhecimento da União Estável Homoafetiva pelo STF, que
em 2011, no julgamento da ADI nº 4277 e ADPF nº 132, beneficiou os casais do mesmo sexo,
elevando o vínculo familiar homossexual ao patamar de entidade familiar, conferindo ao seus
integrantes todos os Direitos provenientes da União.
No que tange à União Estável Putativa, ao longo dos anos, desde a constitucionalização
da União Estável, é possível encontrar esporadicamente decisões favoráveis ao companheiro,
mas desde que esteja cabalmente comprovado a sua boa-fé, o que pode ser difícil em certas
hipóteses. Contudo, ainda é maior a incidência das decisões que desfavorecem o companheiro
da relação putativa, todos fundamentados na incidência do princípio da monogamia, alegando
que havia na verdade concubinato e não reconhecendo sequer a putatividade da relação, ao
passo que na maioria das vezes tal argumento surge da incapacidade de a parte demonstrar que
desconhecia ou ignorava, de boa-fé, o impedimento que constituía a relação paralela.
Assim, mesmo que ainda recaia sobre essas famílias a aplicação do supramencionado
princípio, é possível encontrar decisões que favorecem o reconhecimento da União Estável
Putativa como entidade familiar, conferindo a elas os efeitos cíveis, desde que seja comprovada
a boa-fé da companheira da relação putativa. A seguir, em ordem cronológica, algumas
decisões que corroboram o que foi anteriormente dito:

“União estável. Disputa entre duas companheiras. Situação putativa. Prova oral.
Reconhecimento. Reconhecimento de união estável. Conviventes, uma desde 1978 e
outra desde 1960 que mantiveram relações concomitantes, notórias e ininterruptas
31

com o de cujus, até o seu falecimento. Prova oral que confirma o reconhecimento do
companheirismo concomitante com ambas perante parcelas distintas da sociedade
pela qual transitava o falecido, tendo elas vivido em affectio maritalis com o de cujus,
cada qual à sua forma. Pessoas de boa índole e bem-intencionadas que firmemente
acreditavam na inexistência de uma relação amorosa intensa do obituado com a outra,
havendo êxito deste em ludibriá-las por longos anos, e de se reconhecer a existência
de união estável putativa com a apelante e com a apelada. Aplicação, por analogia
do art. 221 do CC de 1916. Desprovimento do recurso” (TJRJ, Acórdão 15225/2005,
Rio de Janeiro, 2ª Câmara Cível, Rel. Des. Leila Maria Carrilo Cavalcante Ribeiro
Mariano, j. 10/08/2005).

“CIVIL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL POST


MORTEM. (...). RECONHECIMENTO DE DUAS UNIÕES ESTÁVEIS HAVIDAS
NO MESMO PERÍODO. POSSIBILIDADE. BOA-FÉ. EXCEPCIONALIDADE.
RECURSO DESPROVIDO. DECISÃO UNÂNIME. (...). Os elementos
caracterizadores da união estável não devem ser tomados de forma rígida, porque as
relações sociais e pessoais são altamente dinâmicas no tempo. Em regra geral, não se
admite o reconhecimento de duas uniões estáveis concomitantes, sendo a segunda
relação, constituída à margem da primeira, tida como concubinato ou, nas palavras de
alguns doutrinadores, união estável adulterina, rechaçada pelo ordenamento jurídico.
Todavia, as nuances e peculiaridades de cada caso concreto devem ser analisadas para
uma melhor adequação das normas jurídicas regentes da matéria, tendo sempre como
objetivo precípuo a realização da justiça e a proteção da entidade familiar. Desiderato
último do direito de família. Comprovado ter o de cujus mantido duas famílias,
apresentando as respectivas companheiras como suas esposas, tendo com ambas filhos
e patrimônio constituído, tudo a indicar a intenção de constituição de família, sem que
uma soubesse da outra, impõe-se, excepcionalmente, o reconhecimento de ambos os
relacionamentos como uniões estáveis, a fim de se preservar os direitos delas
advindos. Aplicável o princípio da união estável putativa, a exemplo do que
ocorre com o casamento putativo” (TJSE, Apelação Cível n. 2009204800, Acórdão
12787/2010, Segunda Câmara Cível, Rel. Des. Cezário Siqueira Neto, DJSE
20/12/2010, p. 94).

“RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL.


CONTROVÉRSIA QUANTO AO PERÍODO INICIAL DA CONVIVÊNCIA.
PROVA TESTEMUNHAL. PROVA DOCUMENTAL. UNIÃO ESTÁVEL
PUTATIVA. POSSIBILIDADE. BOA-FÉ DA COMPANHEIRA. RECURSO
APELATÓRIO NÃO PROVIDO POR UNANIMIDADE. 1. A sentença baseou-se na
prova testemunhal produzida em audiência e, sobretudo, na escritura pública de sessão
de posse e benfeitoria celebrada em 13.9.2009 na qual a apelada é qualificada
32

expressamente como companheira do apelante, na condição de cessionária. 2. No


depoimento prestado em sede de audiência de instrução, o apelante prestou
informações conflitantes quanto ao período de início da união estável, as quais,
inclusive, se chocam com a prova documental juntada aos autos. 3. Não merece
prosperar a alegação recursal de que a sentença foi proferida em face da equivocada
apreciação da prova produzida. A sentença apelada, lastreou-se na prova testemunhal
e documental colacionada aos autos, levando em consideração, inclusive, a
possibilidade de uniões estáveis paralelas. 4. A união estável dúplice não obsta ao
reconhecimento e à dissolução das convivências assemelhadas ao casamento (Apl
3113293. Segunda Câmara Cível. Relator: Des. Cândido José da Fonte Saraiva de
Moraes. Julgamento: 28.4.14). 5. Recurso não provido por unanimidade” (TJPE,
Apelação n. 0028038-83.2014.8.17.0001, Terceira Câmara Cível, Rel. Des. Francisco
Eduardo Gonçalves Sertório Canto, julgado em 27/07/2017, DJEPE 15/08/2017).

O STJ, em 2018, (REsp 1.754.008/RJ), admitiu a possibilidade da aplicação analógica


da norma do Casamento Putativo à União Estável Putativa, desde que provada de forma
irrefutável a boa-fé. Ou seja, pelo teor do julgado, enxerga-se uma indisposição para reconhecer
a União Estável Putativa e os seus efeitos, evidenciando que ainda há por parte da referida Corte
a predisposição de supervalorizar o sistema monogâmico, pois repulsa qualquer possibilidade
de paralelismo, mesmo quando este possa originar-se de uma situação de putatividade,
imputando à companheira um ônus descabido e desproporcional, pois há de se levar em conta
as peculiaridades do caso concreto, de modo que a boa-fé, por mais que não fique demonstrada
cabalmente e irrefutavelmente, deve ser presumida em situações que verifica-se a índole da
companheira, a constituição de uma verdadeira família, estando presente todos os requisitos
para que seja reconhecida como tal.
No caso das relações paralelas, o reconhecimento é ainda mais raro, mas, possível de
ser encontrado em nosso Ordenamento Jurídico. O panorama jurisprudencial acerca desse tema
é de afastar qualquer possibilidade de reconhecimento da concomitância de famílias, inclusive
com entendimento do STF vedando tal possibilidade (Tema 526 e 529). Contudo, em instâncias
inferiores, magistrados corajosos e atentos à realidade social do nosso País, vem reconhecendo,
em casos específicos, a possibilidade de conferir efeitos à família paralela. Em seguida, alguns
julgados que admitem a tutela à tais famílias:

APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO ESTÁVEL. RELACIONAMENTO PARALELO AO


CASAMENTO. Se mesmo não estando separado de fato da esposa, vivia o falecido
em união estável com a autora/companheira, entidade familiar perfeitamente
33

caracterizada nos autos, deve ser mantida a procedência da ação que reconheceu a sua
existência, paralela ao casamento. A esposa, contudo, tem direito sobre parcela dos
bens adquiridos durante a vigência da união estável. RECURSO ADESIVO. Os
honorários advocatícios em favor do patrono da autora devem ser fixados em valor
que compensa dignamente o combativo trabalho apresentado. Apelação dos réus
parcialmente provida. Recurso adesivo da autora provido. (TJRS, Apelação Cível nº
70015693476, Rel. Des. José S. Trindade, J. 20/07/2006)

APELAÇÃO. UNIÃO ESTÁVEL CONCOMITANTE AO CASAMENTO.


POSSIBILIDADE. DIVISÃO DE BEM. “TRIAÇÃO”. VIÁVEL O
RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL PARALELA AO CASAMENTO.
PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS Caso em que a prova dos autos é robusta em
demonstrar que a apelante manteve união estável com o falecido, mesmo antes dele
se separar de fato da esposa. Necessidade de dividir o único bem adquirido no período
em que o casamento foi concomitante à união estável em três partes. “Triação”.
Precedentes jurisprudenciais. DERAM PROVIMENTO, POR MAIORIA. (TJRS,
Apelação Cível nº 70024804015, Rel. Des. Rui Porta Nova, j 13/08/2009)

DIREITO DAS FAMÍLIAS. UNIÃO ESTÁVEL CONTEMPORÂNEA A


CASAMENTO. UNIÃO DÚPLICE. POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO
FACE ÀS PECULIARIDADES DO CASO. RECURSO PARCIALMENTE
PROVIDO. Ao longo de vinte e cinco anos, a apelante e o apelado mantiveram um
relacionamento afetivo, que possibilitou o nascimento de três filhos. Nesse período de
convivência afetiva - pública, contínua e duradoura - um cuidou do outro,
amorosamente, emocionalmente, materialmente, fisicamente e sexualmente. Durante
esses anos, amaram, sofreram, brigaram, reconciliaram, choraram, riram, cresceram,
evoluíram, criaram os filhos e cuidaram dos netos. Tais fatos comprovam a concreta
disposição do casal para construir um lar com um subjetivo ânimo de permanência
que o tempo objetivamente confirma. Isso é família. O que no caso é polêmico é o
fato de o apelado, à época dos fatos, estar casado civilmente. Há, ainda, dificuldade
de o Poder Judiciário lidar com a existência de uniões dúplices. Há muito
moralismo, conservadorismo e preconceito em matéria de Direito de Família. No
caso dos autos, a apelada, além de compartilhar o leito com o apelado, também
compartilhou a vida em todos os seus aspectos. Ela não é concubina - palavra
preconceituosa - mas companheira. Por tal razão, possui direito a reclamar pelo
fim da união estável. Entender o contrário é estabelecer um retrocesso em
relação a lentas e sofridas conquistas da mulher para ser tratada como sujeito de
igualdade jurídica e de igualdade social. Negar a existência de união estável,
quando um dos companheiros é casado, é solução fácil. Mantémse ao desamparo
do Direito, na clandestinidade, o que parte da sociedade prefere esconder. Como
34

se uma suposta invisibilidade fosse capaz de negar a existência de um fato social


que sempre aconteceu, acontece e continuará acontecendo. A solução para tais
uniões está em reconhecer que ela gera efeitos jurídicos, de forma a evitar
irresponsabilidades e o enriquecimento ilícito de um companheiro em desfavor
do outro. DERAM PROVIMENTO PARCIAL DERAM PROVIMENTO
PARCIAL. (TJMG, Apelação Cível nº 1.0017.05.016882-6/003, Relª. Des. ª Maria
Elza, public. 10/12/2008).

Conforme retira-se das decisões, a tendência jurisprudencial, eivada de ideais


conservadores, religiosos, prefere repudiar a realidade social, dando espaço para o preconceito
ao não admitir, reconhecer que o conceito de Família muda constantemente, de modo que hoje
não pode não ser caracterizada como família uma relação que mesmo que não haja a dedicação
exclusiva, há o afeto, o carinho e a intenção de constituir-se como tal. Assim, reconhecer a
geração de efeitos jurídicos para estas famílias é buscar efetivar a real proteção das
companheiras que compuseram tal vínculos, que na maioria das vezes é composta pelas
mulheres, evidenciando que os valores patriarcais ainda permeiam nossa sociedade e
infelizmente, nosso Direito, pois impedem que haja o reconhecimento da simultaneidade
familiar baseado num sistema monogâmico que só atende aos interesses dos homens, de modo
que ao fazermos um recorte social, nestes casos são eles que se beneficiam da duplicidade de
relacionamentos, ao passo que a mulher fica estigmatizada e marginalizada pela sociedade,
enquanto o nosso Ordenamento se omite.
Destarte, a possibilidade de reconhecimento das famílias paralelas, apesar de lenta e
rara, deve ser o caminho a ser tomado por nosso Direito. Admitir que essas vínculos afetivos
geram efeitos ao seus integrantes é efetivar os valores dos princípios da dignidade humana, da
pluralidade de famílias, da igualdade, de modo a afastar a incidência absoluta do princípio da
monogamia através da frieza legal de dispositivos que contêm em seu âmago ideais
ultrapassados, conservadores e preconceituosos, incondizentes com o status quo social e
familiar presente na atualidade.
Corolariamente, a possibilidade das famílias paralelas serem reconhecidas e tuteladas
também atinge a União Estável Putativa, de modo que, se observados os pressupostos para a
sua configuração, agora a boa-fé passaria a ser apenas um acessório, de modo que a
simultaneidade de famílias não deveria ser empecilho absoluto para o reconhecimento de seus
efeitos, afastando a necessidade excessiva da comprovação de boa-fé do companheiro, já que
seria abarcado pelos direitos advindos da família mesmo que tivesse conhecimento do
impedimento, pois seria este afastado diante do enfraquecimento do sistema monogâmico.
35

Em obra bastante pertinente, Giselda Hironaka e Flávio Tartuce (2019) revisam o


entendimento jurisprudencial acerca das famílias paralelas, revisando as decisões judiciais e
entendimentos doutrinários acerca do tema nos últimos anos. Os autores concluem que apesar
da raridade em encontrar decisões favoráveis a tais vínculos familiares, a jurisprudência pátria
vem sendo menos rígida em admitir a pluralidade de entidades familiares, seja a pluralidade de
uniões estáveis ou a concomitância de um casamento e uma união estável. Assim, os autores,
em reflexão acalentadora, ensinam que as alterações jurídicas são reflexos das alterações
sociológicas, e no que diz respeito às relações de afeto, concretizadas no que as pessoas de fato
realizam, estas são indiferentes ao que desejam os legisladores e julgadores. Cabe destacar da
referida lição o seguinte trecho:

Quando pessoas suficientes se encontrarem nessa situação e o grito delas não puder
mais ser contido, a alteração de entendimento não será mais opcional; o vento da
mudança será inexorável. (HIRONAKA; TARTUCE, 2019)

Contudo, advertem que não há como prever o que acontecerá nos próximos anos, já que
apesar da admissão de certos efeitos jurídicos à pluralidade familiar, a contínua negligencia do
legislativo acerca do tema não nos deixa afirmar com certeza do caminho que nosso
Ordenamento Jurídico tomará, a depender de fatores políticos e socioeconômicos, mesmo que
a realidade já bata a porta para dizer que é preciso mudar e encarar os fatos.
36

CONCLUSÃO

O presente trabalho buscou estudar o conceito de Família e sua constante evolução, para
então entender como surgiu a União Estável como conhecemos, e os desdobramentos dela
decorrentes. O conteúdo aqui exposto demonstra que as realidades sociais colidem com a
defasagem das nossas Leis, evidenciando que a inércia do Legislador não pode obstar o
reconhecimento de entidades familiares diversas daquelas já previstas na Constituição Federal.
Apesar do reconhecimento esporádico da União Estável Putativa, é notório que há ainda
um enorme caminho a ser percorrido. A dificuldade do reconhecimento desta modalidade de
entidade familiar origina-se da aversão preconceituosa ao paralelismo familiar, presente nos
vínculos em que a putatividade nasce da ignorância de entidade familiar preexistente, que se
funda no princípio da monogamia. Ainda é notório que há uma hierarquia entre o Casamento e
as demais entidades familiares, ao passo que a discrepância de tratamento legal e jurídico entre
o matrimônio e a União Estável, em especial no âmbito sucessório, prejudicam demasiadamente
o companheiro, que na hipótese da União Estável Putativa, tem de comprovar absoluta e
inegavelmente a sua boa-fé, ao contrário do que se exige do cônjuge.
Noutro olhar, observou-se que, apesar da predominância das decisões judiciais serem
em desfavor das relações paralelas, ressalta-se a existência de sentenças reconhecendo tais
vínculos como entidades familiares, demonstrando que embora não rápido o suficiente, é de se
imaginar que num futuro próximo, com a continuidade do debate, da discussão e da profusão
de realidades sociais confrontantes com a omissão da Lei, a Doutrina e a Jurisprudência
intervenha a fim de conferir proteção dos Direitos aos integrantes destas verdadeiras famílias,
conferindo maior segurança jurídica para os integrantes de tais relações afetivas, pois
marginalizá-las ao negar-lhes reconhecimento e tutela jurídica nas hipóteses em que há a boa-
fé da companheira ou nas relações simultâneas em que todos os envolvidos estão cientes e
consentem a situação, é afrontar princípios basilares de nosso Ordenamento Jurídico, como o
da dignidade da pessoa humana e da igualdade.
37

REFERÊNCIAS

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental:


ADPF 132 RJ. Relator: Min. Ayres de Britto. Brasília, DJ 05 mai. 2011, Tribunal Pleno.
Disponívelem:https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/20627227/arguicaodedescumpriment
o-de-preceito-fundamental-adpf-132-rj-stf

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 – DF.
Relator: Min. Ayres de Britto. Brasília, DJ 05 mai. 2011. Tribunal Pleno. Disponível
em:https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/20627236/acao-direta-de inconstitucionalidade-
adi- 4277-df-stf>.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 397.762-8/BA – Proc. 45874-


1021. Relator: Min. Marco Aurélio. Brasília, DJ 11 set. 2008. Disponível em:
<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=547259>.

BRASIL. Lei 8.971, de 29 de dezembro de 1994. Regula o direito dos companheiros a


alimentos e à sucessão. Brasília, DF, 29 dez. 1994. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8971.htm>.

BRASIL. Lei 9.278, de 10 de maio de 1996. Regula o §3º do art. 226 da Constituição Federal.
Brasília, DF, 10 maio. 1996. Disponível
em:<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9278.htm>.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14ª ed. rev. atual. e ampl. Editora
Juspodivm, 2020.

___________________. Manual das Sucessões, 6ª ed. rev. atual. e ampl. Editora Juspodivm,
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HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. TARTUCE, Flávio. Famílias paralelas: visão
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de Direito, Universidade de São Paulo, v. 108, 2013, p. 199 -219. Disponível em:
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MADALENO, Rolf. Direito De família, 10ª ed. rev. atual. e ampl. Editora Forense, 2019.

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PIANOVSKI, Carlos Eduardo. Famílias Simultâneas e Monogamia. Anais do V Congresso


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VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil, Volume 5. 17. ed. – São Paulo: Editora Atlas, 2017.
(Coleção Direito civil; 5)

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