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INDENIZAÇÃO POR ABANDONO AFETIVO – DECISÕES JUDICIAIS E

FINALIDADES ECONÔMICAS1

CIVIL LIABILITY FOR PARENTAL DERELICTION – JUDICIAL DECISIONS AND


ECONOMIC GOALS

RESUMO

O presente artigo busca evidenciar que, sem uma adoção expressa, mecanismos de indução de
comportamento a partir da redistribuição dos custos do comportamento ilícito, como
propugnada pela Análise Econômica do Direito, são a ferramenta implicitamente adotada pelo
Poder Judiciário no caso da tese de abandono afetivo. Parte do pressuposto que os indivíduos
tomam decisões baseados em escolhas racionais em relação aos custos dos seus atos. Visa
igualmente, e de forma paralela, destacar o papel de elementos empíricos na pesquisa do
Direito, no fundamento das decisões judiciais e no estudo da eficácia da norma.

ABSTRACT

This paper seeks to show that, without an express mention, induction mechanisms of behavior
using the redistribution of the costs on civil liability, as advocated by the Economic Analysis
of Law, is a tool adopted by the Judiciary in the case of emotional dereliction. As cardinal
assumption, this paper is based in the premise that human individuals conduct themselves
based on rational choices and always in order to manage and reduce the costs os their
transactions. The paper also seeks in parallel emphasize the empirical elements and its
importance in development of resarch at Law study, as analysis in judicial decisions and rules
efficiency research.

Advogado. E-mail: carlosandradeadv@gmail.com)


PALAVRAS-CHAVE: Dano. Afetivo. Análise. Econômica. Direito.

KEYWORDS: Liability. Emotional. Dereliction. Economic. Analysis. Law.

1.INDENIZAÇÃO POR ABANDONO AFETIVO – UMA OUTRA PERSPECTIVA

No Brasil, ao contrário dos EUA, ainda é incomum o estudo detido da relação entre decisões
judiciais dos Tribunais Superiores, ainda mais em matéria de Direito de Família, e suas
repercussões nos custos sociais e no comportamento dos indivíduos, repercutindo nas
gerações subsequentes. A literatura jurídica especializada, ainda afeita ao estilo lógico-
dedutivo de aplicação da norma ao fato, tem deixado passar despercebido o fato mesmo de
que, por baixo da capa principiológica que frequentemente floreia os manuais de Direito e as
decisões judiciais em casos paradigmáticos, está o aplicador do direito mais afeito aos fins e
consequências que sua decisão poderá gerar no bojo da sociedade – i.e., os comportamentos
induzidos ou desestimulados nos indivíduos – que apenas e tão somente na realização pura e
simples de um princípio abstrato na resolução justa do caso concreto, abstraída de quaisquer
ponderações fático-econômicas em sentido mais amplo.

É o caso do recente julgamento, pelo Superior Tribunal de Justiça, do Recurso Especial


1.159.242/SP, o qual inaugurou, pela Terceira Turma do referido Tribunal, a adoção definitiva
da indenização por danos morais em face do denominado abandono afetivo.

O presente artigo busca evidenciar que a decisão paradigmática referida supra tem, sob a
perspectiva dos pressupostos teóricos da AED (Análise Econômica do Direito), todo o perfil
de uma decisão, por assim dizer, consequencialista, na medida em que, malgrado todo o
esforço argumentativo para se demonstrar cabalmente a justiça da tese – dentro de uma
perspectiva do Direito como fenômeno abstrato de essência axiológica e construção dedutiva
das soluções dos conflitos no caso concreto, tem-se que a finalidade buscada, mas
sonoramente omitida pela jurisprudencia, é de natureza prática, e advém do fato
indutivamente observado de que há uma correlação forte entre o abandono afetivo e a
delinquência infanto-juvenil.

2.RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABANDONO AFETIVO E FUNDAMENTOS


CLÁSSICOS

No discurso jurídico clássico, a figura da responsabilidade civil constitui-se numa espécie


obrigacional complexa, com elementos vários e subespécies oriundas de um processo
histórico de construção de adaptações do instituto às demandas da modernidade industrial.

Ocioso portanto repisar e indicar que historicamente a responsabilidade civil, tendo por
princípio a justiça comutativa aristotélica, emerge do direito canônico para as codificações
liberais como obrigação de indenizar decorrente de ato culposo do autor da lesão ao
patrimônio da vítima, para em tempos mais recentes afastar a culpa como elemento essencial
de sua definição e abarcar hipóteses de indenização por danos morais e à lesão de outras
categorias de bens, tais como, apenas a título de exemplo, os de natureza ambiental, que são
considerados difusos e coletivos.

Assim, como todo objeto cultural, está a responsabilidade civil sujeita às adaptações que o
contexto social demanda, notadamente a partir das lides judiciais, local onde as soluções mais
criativas tem sido construídas em praticamente qualquer âmbito de aplicação do Direito, ante
o fato de que a realidade dos conflitos está sempre um passo à frente da letra da lei feita para
regular o futuro baseado na experiência passada:

Todo este quadro heurístico foi construído em cima da premissa, cristalizada


e condensada pelo movimento positivista, de que o juiz era um mero
executor da lei. Mas esse mundo – o mundo do direito reduzida à lei e às
“suas” apertadas formas de exegese – desabou e desapareceu. Basta pensar
quão longe estamos da escola do direito positivo e dos seus corolários; basta
pensar na verdadeira revolução metodológica que a aplicação do direito
sofreu no último século. Não há hoje quem não tenha consciência do papel
criativo e constitutivo do juiz na prolação da decisão judicial, da sua
intervenção própria, da sua tensão criadora de direito para o caso concreto.
(RANGER, 2007, p. 90)

Entretanto, a cultura jurídica nacional, com seu modus argumentandi, sua retórica lógico-
dedutiva e seus conceitos próprios, ainda é profunda e arraigadamente positivista. Maior
prova disto está nos centros produtores de pesquisa jurídica, cuja pobreza e petrificação da
denominado saber jurídico tem sido objeto de preocupação:

Portanto, as questões que avassalam contemporaneamente a ciência jurídica


advém dos seus modelos, de inspiração positivista (Séculos XIX e XX),
encontrando-se, no início do século XXI, em situação absolutamente
calamitosa a pesquisa científica do direito, que se manteve atrelada aos
fluxos normativos advindos dos poderes do Estado. Pouco se fez e pouco se
faz no sentido da genuína pesquisa histórica, sociológica, filosófica...do
direito, dominando na cultura jurídica nacional um profundo apreço pela
ideia de que o direito é uma ciência social aplicada, e que, portanto, deve-se
ater à discussão e ao comentário da legislação positiva. (BITTAR; 2005, p.
368)

Como não poderia deixar de ser, dentro deste contexto juspositivista atrelado ao discurso
lógico-dedutivo de aplicação do direito, a figura jurídica do abandono afetivo é definida como
um corolário da ausência ou omissão do dever legal de educação dos pais, no seu sentido mais
amplo:

O abandono afetivo se configura, desta forma, pela omissão dos pais, ou de


um deles, pelo menos relativamente ao dever de educação, entendido este na
sua acepção mais ampla, permeada de afeto, carinho, atenção, desvelo. Esta
a fundamentação jurídica para que os pedidos sejam levados ao Poder
Judiciário, na medida em que a Constituição Federal exige um tratamento
primordial à criança e ao adolescente e atribui o correlato dever aos pais, à
família, à comunidade e à sociedade. (HIRONAKA, 2007)

Com a citada autora faz coro a majoritária doutrina nacional, classificando ainda a referida
indenização na categoria de dano moral ou extrapatrimonial.

A responsabilidade civil por dano moral, segundo a abalizada literatura jurídica a respeito,
tem por finalidade primordial, na realização da justiça comutativa, compensar o dano causado.
Autores de referência na matéria como Paulo Lôbo, associam o dano moral à violação de
direitos da personalidade, e conseguintemente, à indenização com finalidade compensatória
do ofendido (LÔBO, 2001), sem nenhuma palavra no sentido de um fim punitivo do ofensor
ou desestimulante da conduta a este ou outros potenciais ofensores.

Por vezes, escapa à pena dos autores o fato de que a indenização, notadamente aquela
atribuída à violação dos direitos da personalidade (i.e., por danos morais), pari passu à sua
função compensatória da vítima, evidencia subliminar caráter comportamental, a saber,
desestimular o comportamento considerado ilícito, exercendo a função de sanção ou punição
pelo ato praticado:
Fácil é denotar que o dinheiro não terá na reparação do dano moral uma
função de equivalência própria do ressarcimento do dano patrimonial, mas
um caráter, concomitantemente, satisfatório para a vítima e lesados e
punitivo para o lesante, sob perspectiva funcional. (ALVARENGA, 2009)

Especificamente no que se refere ao abandono afetivo indenizável, também de modo muito


incipiente, há referências aqui e ali às consequências do comportamento que se quer sancionar
como sendo lesivo, tanto à vitima da negligência afetiva quanto, como adiante se evidenciará,
à coletividade, por implicar em custos sociais (externalidades negativas 2) advindos de atos
individuais:

Assim, não há dúvidas de que o pai negligente, que deixa faltar o cuidado e
o afeto, tão indispensáveis ao filho, causa perenes danos à saúde psicológica
dessa criança, com reflexos em toda sua vida. Isso não quer dizer que uma
pessoa que sofreu abandono afetivo jamais lute por seus direitos ou saiba
respeitar os demais indivíduos da sociedade; definitivamente, não é isso.
Pelo contrário, muitas pessoas existem que passaram por esse tipo de
abandono e, hoje, são adultos com família constituída, bem-sucedidos
profissionalmente, exercendo seus papéis de cidadãos na sociedade.
Contudo, não há como negar que a falta de afetividade causa marcas para o
resto da vida, como a mágoa, a tristeza e a sensação de abandono.
(MOYSÉS, 2012).

Ainda de que modo indireto, utilizando-se da negativa, faz a missivista supra referência clara
à conexão existente entre a paternidade exercida sem responsabilidade, os danos à
personalidade daí advindos e o custo social de tal conduta, traduzidos no desajustamento
pessoal, familiar e social do indivíduo lesado.

Como é de praxe na exposição de temas jurídicos, as assertivas que fundamentam as decisões


judiciais ou a interpretação de dispositivos legais para o fim de reprimir comportamentos
socialmente indesejáveis são comumente lastreadas em lugares-comuns e raramente se
baseiam em estudos científicos sobre a matéria. A tese do abandono afetivo é desses lugares-
comuns que tomaram a posição de verdade inquestionável e pressuposto fático do dano pela
sua existência, ainda que sob difícil delineio fático.

Nada poderia ser mais temerário para a segurança dos cidadãos do que deixar ao arbítrio do
magistrado julgar por lugares-comuns, opiniões pré-científicas e jargões consolidados se

2
Por externalidades negativas nos referimos ao exercicio de atividades que causam efeitos em terceiros não
participantes e que são lesados em seus interesses por estas (DA SILVEIRA, 2016)
houve ou não dever de indenizar para, num segundo momento, arbitrar a seu bel prazer, sem
critério algum a priori, o quanto de seu patrimônio acumulado pelo trabalho de anos será
dilapidado pelo “prudente arbítrio judicial”:

A negligência e/ou omissão paterna, nas obrigações imateriais, poder gerar


danos morais no menor. Conforme já mencionado, é notória e
imprescindível a presença materna e paterna na vida de uma criança, jovem
e adolescente, pois a ausência daqueles, pode comprometer a adequada
estruturação da personalidade destes. O divórcio e a dissolução põem fim a
conjugalidade, nada interferindo na relação filial, que se mantêm
indissolúvel. A proteção, cuidado, convivência familiar e outras condutas de
ordem imaterial, são imposições inerentes da paternidade responsável.
Pressuposto para o sadio e equilibrado crescimento psíquico, social e ético-
existencial da criança, jovem e do adolescente. (ALVARENGA, 2012)

A análise de excertos da doutrina jurídica relativa à responsabilidade civil, e mais


especificamente ao abandono afetivo indenizável, indica que a busca da justiça no caso
concreto tateia nos fundamentos e na busca de desestimular as condutas lesivas que sanciona,
ainda que implicitamente reconheça esta finalidade.

2.INDENIZAÇÃO POR ABANDONO AFETIVO, SUA FINALIDADE E A


PONDERAÇÃO DAS CONSEQUENCIAS DAS DECISÕES JUDICIAIS – UMA
PERSPECTIVA A PARTIR DA ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO

Em seu best-seller, Freakonomics, o economista Steven Levitt evidencia a relação de causa e


efeito entre a legalização do aborto nos Estados Unidos, promovida por decisão da Suprema
Corte em 1973, e a queda vertiginosa e uniforme dos índices de violência nos anos 90. O que
se evidencia do fato, de difícil negação, que emerge implícito da constatação descrita é a
relação de causa e efeito entre paternidade e maternidade irresponsável e o seu custo social e
econômico:

Acontece que, quando se trata de criminalidade, nem todas as crianças


nascem iguais. Ou mesmo parecidas. Décadas de estudo demonstraram que
uma criança nascida em um ambiente familiar adverso tem muito mais
probabilidade que outras de se tornar um bandido. E os milhões de mulheres
com mais probabilidade de fazer um aborto na esteira de Roe x Wade –
pobres, solteiras e adolescentes para as quais, no passado, os abortos ilegais
costumavam ser caros demais ou pouco acessíveis – eram, em sua maioria,
exemplos rematados de adversidade, ou seja, precisamente as mulheres
cujos filhos, se nascidos, teriam mais probabilidade do que outras crianças
de se tornarem criminosos. Devido, contudo, ao caso Roe x Wade, essas
crianças não nasceram. Esse famoso processo viria a produzir um efeito
drástico no futuro distante: anos mais tarde, justamente quando essas
crianças não-nascidas atingiriam a idade do crime, o índice de criminalidade
começou a despencar. Não foi o controle sobre as armas nem uma economia
em crescimento ou as novas estratégias políticas o que finalmente reverteu a
onda americana de criminalidade, mas, entre outros, o fato de o número de
criminosos potenciais ter minguado drasticamente. Agora vejamos: quando
os especialistas em queda de criminalidade (os ex-profetas da catástrofe)
apresentaram à mídia suas teorias, quantas vezes a legalização do aborto foi
mencionada? Nenhuma. (DUBNER, Stephen; LEVITT, Steven; 2005, p. 18)

Ainda, segundo Levitt, geralmente por trás dessas mães proibidas de abortar estavam
mulheres que não planejaram a maternidade, viciadas em drogas, adolescentes desempregadas
e diversas outras categorias cuja maternidade não estava nos planos de vida e que, com raras
exceções, não iriam contar com uma estrutura familiar suficiente para construir no infante em
formação um ser humano apto à convivência social sem grandes conflitos com a lei e a
ordem.

Do ponto de vista econômico, a responsabilidade civil cumpre um papel de desestímulo a


determinadas condutas consideradas socialmente lesivas, pelo estabelecimento de uma sanção
pecuniária ao seu agente:

A finalidade econômica da responsabilidade civil é induzir os autores e


vítimas de lesões a internalizarem os custos do dano que pode ocorrer em
consequencia da falta de cuidado. O direito da responsabilidade civil
internaliza esses custos fazendo o causador da lesão indenizar a vítima.
Quando os autores de atos ilícitos em potencial internalizam os custos dos
danos que causam, eles tem incentivo para investir em segurança no nível
eficiente. A essência econômica do direito da responsabilidade civil consiste
em seu uso da responsabilização para internalizar externalidades criadas por
custos de transação elevados (COOTER, ULEN; 2010, p. 322).

Com o precedente aberto, a Corte de Uniformização de Lei Federal mandou um recado para
toda a sociedade: o ato da paternidade impõe um correspectivo ônus de natureza
personalíssima que transcende a dimensão financeira, e que impõe uma conduta continuada de
cuidado e convivência. A conduta positiva de gerar um filho, sob a égide da indenizabilidade
do abandono afetivo impõe uma “internalização dos custos” de uma paternidade ou
maternidade irresponsável, a teor da teoria econômica aplicada ao instituto juscivilista.
Em outras palavras, gerar um filho significa comprometer-se com a formação da
personalidade do infante, notadamente no seu aspecto emocional e social. A indenização aqui
tem, por óbvio, não a restauração de um status quo ante, uma vez que a formação de uma
personalidade é processo temporal aparentemente irreversível, mas um desestímulo, não ao
pai faltoso, mas aos demais que ainda podem corrigir o rumo.

A decisão do STJ pode bem ser explicada pela perspectiva consequencialista da


responsabilidade civil: é razoável a expectativa de que, diante da certeza da sanção civil (fato
que Levitt igualmente destaca como positivo para a condução do comportamento humano), o
indivíduo candidato a pai ou mãe pensará duas vezes antes de aventurar-se a uma paternidade
ou maternidade irresponsável, uma vez que sabe, estará empenhando sua prosperidade
material futura a uma perseguição indenizatória do filho “mal-amado”.

Se a paternidade irresponsável – sem afeto e sem cuidado, estava justificando a proliferação


de filhos cuja personalidade mal-formada expunha a sociedade e futuros psicopatas e párias
sociais (com a palavra, os números de Levitt), numa decisão economicista, o Superior
Tribunal de Justiça inseriu um elemento de racionalidade a mais no jogo, decisão esta que
capilariza-se nos tribunais e juízes amiúde, nas petições dos advogados e defensores públicos,
nas bocas das comadres, nos artigos de jornais, nas conversas de bar, nos diálogos íntimos
entre amantes, nas respostas ríspidas de filhos menores, enfim, que incorpora-se à cultura
popular e redireciona o comportamento dos indivíduos de modo a racionalizar seus ganhos e
minimizar suas perdas, e cujos frutos, analogamente ao caso da Suprema Corte Norte-
Americana em 1973, somente serão colhidos muitos anos depois.

3.INDENIZAÇÃO POR DANO AFETIVO E RESPONSABILIDADE CIVIL SOB


NOVA PERSPECTIVA

Maria Celina Bodin de Moraes pondera:

Assim, além de sua função estrutural, a reparação do dano, a chamada


função compensatória, estaria ela sendo distorcida para cumprir tantas
outras funções, de caráter variado: função punitiva, pedagógica, exemplar,
de consolo, de desestímulo, de instrumento de justiça social, de distribuição
de renda, de substituição dos deveres do Estado etc. (…) As inundações de
fato estão ocorrendo como resultado do encontro entre um instrumento
ainda não consolidado e demandas sociais por longo tempo reprimidas.
Cabe agora, respeitado o modelo solidarista imposto pela Constituição,
reelaborar os conceitos, delimitar as funções, racionalizar os critérios de
imputação, em suma, proceder à reconstrução racional do sistema da
responsabilidade civil no âmbito do ordenamento jurídico nacional. Este é o
trabalho da doutrina e precisa ser realizado. (MORAES, 2006, p. 255)

A perspectiva da autora é de que a flexibilização do instituto jurídico da responsabilidade civil


estaria funcionando como uma distorção da função do instituto. À guisa de conclusão
ousamos divergir desta visão.

À uma porque, tipos jurídicos sofrem, ao longo do tempo, mutações e adaptações oriundas da
dialética inerente ao fenômeno cultural que é o próprio Direito. Nem precisamos tecer longas
considerações ou mergulhar fundo na História. Basta apenas lembrar que o próprio conceito
jurídico emprestado ao termo “família” ampliou sua conotação, atingindo grupos sociais
tradicionalmente não reconhecidos como “familiares (tais como a união estável e a união
homoafetiva), e a sua função (tradicionalmente uma relação geralmente duradoura de poder,
procriativa e célula de cosmovisão clássicamente ligadas ao mundo cristão, do ponto de vista
Ocidental), para uma família despojada de hierarquias, mutante e, no jargão do sociólogo
polonês Zigmunt Bauman, líquida3, i.e., baseada em relações frágeis e dinâmicas.

Se o Direito reputa por família o fenômeno líquido e multiforme hodiernamente considerado


como familiar, não há justificativa plausível, do ponto de vista sociológico para sustentar-se
uma ferramente jurídica sob o status de categoria imutável e antever o manejo multifuncional
de suas aplicações como uma distorção, com toda a carga pejorativa do termo.

A duas, pelo fato de que a mudança de paradigma na pesquisa jurídica, na abordagem dos
problemas enfrentados pelo operador do Direito e, concomitantemente pela literatura
especializada claramente tem por desafio enfrentar a realidade do comportamento humano em
suas múltiplas dimensões. Se o Direito regra comportamentos, não pode reproduzir nas
academias a subreptícia e inocente crença de que que vivemos num mundo ideal em que as
decisões judiciais tem por finalidade única a busca de algum ideal de Justiça dedutivamente
construído, sem levar em conta finalidades comportamentais individuais e coletivas e custos
sociais envolvidos.
3
“Afinal, automóveis, computadores ou telefones celulares perfeitamente usáveis, em bom estado e em
condições de funcionamento satisfatórias são consideradas, sem remorso, como um monte de lixo no instante
em que ´novas e aperfeiçoadas versões´ aparecem nas lojas e se tornam o assunto do momento. Alguma razão
para que as parcerias sejam consideradas uma exceção à regra?” (BAUMAN, 2004, p. 14.)
4.REFERÊNCIAS

ALVARENGA, Maria Amália de Figueiredo Pereira. O quantum da indenização por dano


moral. APMP Revista, v. XI, p. 78-81, 2009.

ALVARENGA, Maria Amáilia Figueiredo. A responsabilidade civil em face do abandono


afetivo e a problemática do quantum indenizatório. Revista Eletrônica da Faculdade de
Direito de Franca, v. 5, n. 1, 2012.

BAUMAN, Zigmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

BITTAR, Eduardo C. B. O direito na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 2005.

COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Direito e Economia. 5. ed. Porto Alegre: Bookman,
2010.

DA SILVEIRA, Stefano José Caetano. Externalidades negativas: as abordagens neoclássica e


institucionalista. Revista da FAE, v. 9, n. 2, 2016.

DUBNER, Stephen; LEVITT,Steven. Freakonomics : o lado oculto e inesperado de tudo


que nos afeta : as revelações de um economista original e politicamente incorreto;
tradução Regina Lyra. – Rio de Janeiro : Elsevier, 2005.

HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Pressuposto, elementos e limites do dever


de indenizar por abandono afetivo. Repertório de Jurisprudência IOB. [S.I.], v. 3, n. 13, p.
418-411, 2. quinz. Jun./2006.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Danos morais e direitos da personalidade. Jus Navigandi,
Teresina, ano, v. 7, 2001.

MORAES, Maria Celina Bodin de. A constitucionalização do direito civil e seus efeitos
sobre a responsabilidade civil In: Direito, Estado e Sociedade - v.9 - n.29 - p 233 a 258 -
jul/dez 2006.

MOYSÉS, Helena Carvalho. O abandono afetivo dos filhos e a possibilidade de


compensação por danos morais. De jure: revista jurídica do Ministério Público do Estado de
Minas Gerais, 2012.

RANGER, Paulo Castro. Estado fraco, tribunais fortes: de novo as questões de


legitimidade e função. In: Julgar, 03. 2007. p.87-95. Coimbra Editora.

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