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ROGÉRIO B . ARANTES E LUCAS C . PETRONI ( ORGS .

E LUCAS C . PETRONI (ORGS . )


ROGÉRIO B . ARANTES
Este livro reúne trabalhos da nova geração de
cientistas político/as brasileiros/as, premiados
nas sucessivas edições do Seminário Discente
da Pós-Graduação em Ciência Política da USP,
ao longo de seus dez anos de realização.
Representativos das diversas linhas de pesquisa
que compõem a ciência política contemporânea,
os trabalhos que integram essa coletânea
compartilham um novo “ethos de pesquisa”,
uma maneira mais coletiva e aberta de produzir
trabalhos acadêmicos, baseada no escrutínio
público, no compartilhamento de métodos e
técnicas e na crítica e aprovação pelos pares,
em contraste com o antigo modelo monográfico
e de estilo ensaístico. Nela, os leitores AUTORAS E AUTORES

encontrarão não apenas análises de qualidade Andréa Freitas


sobre temas substantivos, mas perceberão Bruno Boti Bernardi
o firme compromisso dessa nova geração de Camila Góes
pesquisadoras e pesquisadores com Danilo Medeiros
o desenvolvimento da própria ciência política. Davi Cordeiro Moreira
Felipe Freller
ORGANIZADORES
Jaqueline Porto Zulini
Rogério B. Arantes Leonardo Octavio Belinelli de Brito
Doutor em Ciência Política. Lucas Petroni
Professor do Departamento de Ciência Marcello Fragano Baird
Política da Universidade de São Paulo e Marina Merlo
ex-coordenador de seu Programa de Maurício Yoshida Izumi
Pós-Graduação (2011-2014). Patrick Cunha Silva
Ricardo Ceneviva
Lucas C. Petroni Roberta K. Soromenho Nicolete
Doutor em Ciência Política. San Romanelli Assumpção
Pesquisador do Centro Brasileiro de Sérgio Eduardo Ferraz
Análise e Planejamento (Cebrap). Sergio Simoni Junior
A NOVA CIÊNCIA DA POLÍTICA

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universidade de são paulo
Reitor
Vahan Agopyan

Vice-Reitor
Antonio Carlos Hernandes

faculdade de filosofia, letras e ciências humanas


Diretor
Paulo Martins

Vice-Diretora
Ana Paula Torres Megiani

departamento de ciência política


Chefe
João Paulo Candia Veiga

Vice-Chefe
Elizabeth Balbachevsky

programa de pós-graduação em ciência política


Coordenador
Paulo Ricci

Vice-Coordenador
Rafael Villa

Este livro teve apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de


Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001

Proibida a reprodução parcial ou integral SERVIÇO DE EDITORAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO


desta obra por qualquer meio eletrônico, Rua do Lago, 717 – Cidade Universitária
mecânico, inclusive por processo xerográ- 05508-080 – São Paulo – São Paulo – Brasil
fico, sem permissão expressa do editor (Lei Telefax: (11) 3091-0458
nº. 9.610, de 19.02.98). e-mail: editorafflch@usp.br
https://editorahumanitas.commercesuite.com.br

Foi feito o depósito legal


Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Dezembro 2020

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Rogério B. Arantes & Lucas C. Petroni
(organizadores)

A NOVA CIÊNCIA DA POLÍTICA

São Paulo, 2020

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Copyright 2020 Autores

Catalogação na Publicação (CIP)


Serviço de Biblioteca e Documentação da FFLCH/USP
Maria Imaculada da Conceição – CRB-8/6409

N935 A nova ciência da política / Rogério Arantes, Lucas Petroni


(organizadores). -- São Paulo : FFLCH/USP, 2020.
606 p.

ISBN 978-65-87621-23-4

1. Política. 2. Instituições políticas. 3. Políticas públicas.


4. Ideologia política. I. Arantes, Rogério. II. Petroni, Lucas.

CDD 320

Serviço de Editoração e Distribuição

Coordenação Editorial
Mª. Helena G. Rodrigues – MTb n. 28.840

Projeto Gráfico e Diagramação


Selma Consoli – MTb n. 28.839

Capa
Monique Schenkels

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APRESENTAÇÃO

Rogério Arantes
Lucas Petroni

A ciência política brasileira conheceu grande expansão nas últimas


décadas, em termos quantitativos e qualitativos. Tributária de uma longa
tradição de análise política e tendo iniciado seu processo de diferencia-
ção e institucionalização a partir da segunda metade dos anos 1960,
a disciplina está organizada hoje em 62 programas de pós-graduação,
agrupados sob a mesma rubrica no sistema de avaliação da CAPES, mas
divididos em quatro subáreas: Ciência Política, Relações Internacionais,
Políticas Públicas e Estudos de Defesa. No conjunto, contam com cerca
de 2500 alunas e alunos matriculados, produzindo cerca de 600 teses e
dissertações ao ano e com um grande volume de publicações na forma
de artigos e livros, segundo dados atualizados da mesma CAPES. Há
20 anos, a ciência política contava com apenas 10 programas, cobrindo
leque bem menor de linhas de investigação e com números bem mais
modestos.
O crescimento e a diversificação qualitativa da ciência política bra-
sileira foram impulsionados por pelo menos três grandes processos, que
seguem influenciando o desenvolvimento da área. O primeiro é de na-
tureza contextual e envolve tanto a redemocratização do país nos anos
1980 quanto o processo de globalização em suas diversas dimensões.
Tais transformações, extensas e profundas, desafiaram as ciências sociais
de um modo geral e incentivaram a especialização da ciência política
em particular. Não cabe nos limites dessa apresentação levantar as ques-
tões surgidas desses processos, que reorientaram a agenda de pesquisas,
mas foi e tem sido notável como elas animaram e seguem animando a
reflexão teórica, a pesquisa empírica e o contínuo aperfeiçoamento de
métodos e técnicas de investigação científica.
Em meio à redemocratização e a globalização, a ciência política bra-
sileira inovou a análise institucional e passou a oferecer interpretações

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originais sobre o funcionamento do sistema político, as relações entre
poderes e no interior da federação, os partidos e as eleições, a burocracia
pública e os diversos órgãos especializados de Estado, dentre outros. A
democratização, também impulsionada por novos movimentos sociais,
encetou outras formas de organização e participação populares, acarre-
tou mudanças significativas na produção de políticas públicas nos três
níveis da federação, abriu espaço para a atuação de atores institucionais
externos ao mundo da política – como juízes e membros do Ministério
Público – nesse ponto alavancada também por uma nova e pulsante
constituição, a de 1988. Tais dimensões e temas ganharam relativa au-
tonomia e passaram a orientar linhas de investigação baseadas em ques-
A tões teóricas e métodos de pesquisa bastante autocentrados. De outro
lado, o recurso cada vez mais frequente à perspectiva comparada expan-
N
O
diu o horizonte das análises e a capacidade de produzir explicações. No
V campo das ideias, à forte tradição de estudos do pensamento político
A – sempre renovada pelo desafio de reinterpretar o presente – vieram se
juntar outras abordagens de teoria política, com destaques para a teoria
C
I
normativa – responsável por fomentar a reflexão sobre justiça social,
Ê direitos individuais, representação política e demais desafios normativos
N da democracia contemporânea – e as teorias críticas do gênero, raça e
C
I
etnicidade – responsáveis tanto por aprofundarem o escopo disciplinar
A da ciência política como por questionar o modo como a fazemos. No
D
plano internacional, o fim da guerra fria e a aceleração da globalização
A abriram nova agenda de pesquisas para a ciência política dedicada às
relações internacionais, à política externa do país e às questões de defesa
P
O nacional. Verdade seja dita, o impacto de tais transformações foi tão sig-
L nificativo que essas linhas de pesquisa foram se autonomizando em no-
Í
T
vos cursos de graduação e de pós-graduação (em instituições públicas,
I de governo e privadas), bem como desenvolveram corpus teórico pró-
C
prio e constituíram suas próprias associações profissionais e científicas.
A
.
Os outros dois processos que determinaram o desenvolvimento da
ciência política dizem respeito justamente à expansão do sistema univer-
6
sitário brasileiro a partir de meados dos anos 1990 e à crescente interna-
cionalização da disciplina. O crescimento do número de universidades
públicas e privadas – fortemente induzido pelos sucessivos governos
– passou a demandar cada vez mais profissionais com título de pós-
-graduação, especialmente doutores. Essa expansão foi acompanhada
do fortalecimento e consolidação do sistema nacional de avaliação da

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pós-graduação pela CAPES. Esse segundo aspecto teve, por sua vez,
um duplo efeito: i) não apenas exigiu dos programas um contínuo pro-
cesso de aperfeiçoamento com vistas à necessidade de titulação de bons
quadros acadêmicos e profissionais, como ii) o sistema de avaliação es-
timulou a concorrência entre as instituições acadêmicas e a procura dos
interessados por aquelas mais bem sucedidas na escala de notas. Assim,
beneficiada por essas políticas de grande envergadura, a ciência política
conheceu não apenas forte expansão acadêmica, quantitativa e qualita-
tiva, como pôde avançar na profissionalização de quadros para outros
setores do mercado de trabalho, nas esferas governamental e do setor
privado.
A internacionalização representa o terceiro fator importante de
nosso desenvolvimento recente. Por internacionalização não entende-
mos apenas a circulação de pesquisadores para além das fronteiras na-
cionais, mas a ambição (e a adoção de estratégias correspondentes) de
internacionalizar o ambiente no qual se dão a formação discente e a
produção intelectual de professores e alunos, especialmente no nível da
pós-graduação. A internacionalização tem se tornado assim um princí-
pio constitutivo dos programas e tem impregnado suas políticas e ações,
das mais cotidianas como a seleção de bibliografia para os cursos, até as
A
mais ambiciosas como organização de eventos, construção de projetos
P
de pesquisa em colaboração com pesquisadores estrangeiros, atração de R
professores visitantes e alunos do exterior, criação e manutenção de pro- E
gramas internacionais de formação de pesquisadores. S
E
O Programa de Pós-Graduação do Departamento de Ciência N
Política da USP (PPGCP) foi criado no final de 1973 e iniciou suas T
atividades em 1974. Responsável desde então por formar inúmeros pes- A
quisadores, nos níveis de mestrado e doutorado, o PPGCP contribuiu Ç
Ã
de modo decisivo para a geração de quadros durante o processo de insti-
O
tucionalização das ciências sociais brasileiras e, mais recentemente, para
a expansão, profissionalização e internacionalização da ciência política. .

Nesse período de quase cinquenta anos, há registro de que 1.168


7
pessoas passaram pelo PPGCP. Se as décadas de 1970 e 1980 foram
marcadas pela formação de uma geração de cientistas sociais e políticos
que contribuiram para a institucionalização da área nas universidades
brasileiras, os anos 1990 conheceram significativo crescimento decor-
rente dos processos apontados acima. No caso do PPGCP, o ponto de

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inflexão ocorreu em 1993, quando o número de ingressantes pratica-
mente triplicou (de 12 para 35). A estratégia de expansão se manteve
em ritmo acentuado até 2006, quando mais de 50 candidatos foram
selecionados por concurso. A partir daí, o ciclo anual de recrutamento
variou entre 30 e 40 selecionados, conforme o ritmo de concluintes do
mestrado e do doutorado (cujos prazos de titulação são sabidamente
diferentes), mas sempre mirando a capacidade máxima de orientação
do corpo docente. No mesmo período, a taxa de evasão veio declinando
sistematicamente, partindo de elevados 30% nos anos 1980 para algo
próximo de zero nos últimos três anos. Acreditamos que esse êxito se
deu por uma combinação de fatores: do aperfeiçoamento contínuo da
A pós-graduação promovida pelo DCP à valorização da profissão de cien-
N
tista político, passando pela já mencionada expansão do sistema univer-
O sitário até anos recentes.
V
Qualitativamente, o PPGCP conheceu importante desenvolvi-
A
mento de suas linhas de pesquisa. Fundado nos campos de estudo das
C Instituições Políticas e da Teoria e Pensamento Políticos, o programa se
I desdobrou na criação de uma área de Relações Internacionais nos anos
Ê
N
1990 e mais recentemente uma de Políticas Públicas. No sistema nacio-
C nal de avaliação CAPES, temos obtido as notas máximas pelo menos
I desde o triênio 2004-2006 (quando 6 foi a maior nota da área), pas-
A
sando pelos triênios 2007-2009 e 2010-2012 e pelo quadriênio 2013-
D 2016 (todos com nota máxima 7). Nesse período, foram intensos e
A
sistemáticos os investimentos feitos pelo DCP para o alcance desse pa-
P drão de excelência acadêmica. Buscou-se com êxito a crescente interna-
O
L
cionalização da carreira docente, das atividades de pesquisa e produção,
Í da formação do corpo discente, com grande destaque para a participa-
T
I
ção efetiva de visitantes estrangeiros no programa, além de significativa
C circulação internacional de professores e pós-graduandos.
A
Superando a velha fórmula da cátedra, o PPGCP universalizou a
.
forma de acesso à pós-graduação, horizontalizou as relações de trabalho
e conclamou todos à observância das regras básicas da pesquisa e produ-
8
ção acadêmica. A permanente incorporação de novas técnicas e teorias,
muitas decorrentes da internacionalização, tem sido outra característica
do programa. Temos mantido uma estrutura curricular e uma oferta de
disciplinas em quantidade e qualidade elevadas nos níveis de mestrado
e doutorado, que oferecem boa formação teórica e metodológica. Além

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da grade convencional, a criação e manutenção da “IPSA-USP Summer
School on Concepts, Methods and Techniques in Political Science”, que se
encontra em sua décima edição, representou um grande salto na pro-
moção das capacidades técnicas e metodológicas não apenas de nossos
alunos, mas de uma ampla gama de estudantes nacionais e estrangeiros
que comparecem à escola anualmente. Completam a internacionaliza-
ção do PPGCP os estágios de pós-doutorado dos docentes no exte-
rior, os períodos “sanduíche” dos pós-graduandos (com bolsas CAPES e
FAPESP) e outros cursos e estágios que nossos alunos e alunas têm tido
o êxito de realizar.
Considerando apenas a última década (2011-2019), foram conclu-
ídos com êxito 167 mestrados e 103 doutorados. Dentre os formados
mestres, 62 ingressaram no doutorado logo em seguida, porém mediante
nova seleção competitiva. Outros sete preferiram cursá-lo no exterior,
tendo sido bem sucedidos na conquista de vagas de doutorado em Yale,
Virginia, Michigan, Texas A&M, Washington St. Louis, dentre outras,
sempre com o apoio do PPGCP. Enquanto isso, a nova ciência política
tem se tornado cada vez mais jovem: a média de idade dos concluintes
do doutorado caiu de 42,4 anos do início da década para cerca de 32
nos últimos dois anos, o que é bastante positivo.
A
Em se tratando dos egressos do doutorado, a questão mais im- P
portante diz respeito ao seu destino profissional. Nesse aspecto, tem R

sido grande o êxito do PPGCP. Nada menos do que 51,5% dos 103 E
S
doutores formados entre 2011-2020 são hoje professores universitá- E
rios e, dentre eles, vinte e cinco se encontram em universidades públi- N
cas, nas quais ingressaram por concurso. Vale citá-las nominalmente: T
UERJ, UFABC, UFBA, UFES, UFGD, UFPA, UFRGS, UFSC, UFU, A
Ç
UNICAMP, UNIFESP, UNILAB, UNIOESTE, UFU e USP. Em algu-
Ã
mas dessas instituições, nossos egressos estão atuando em programas de
O
pós-graduação que contam com as melhores avaliações, e alguns destes
.
jovens doutores já se tornaram bolsistas Produtividade em Pesquisa do
CNPq, uma das colocações mais almejadas pelos pesquisadores brasi-
9
leiros. Outros foram contratados pela FGV (em São Paulo e no Rio de
Janeiro), outros pela PUC-SP e UNISINOS. Cerca de 26% dos douto-
res estão em outras faculdades privadas e há dois doutores e um mestre
egressos que se tornaram professores no exterior (Argentina, Chile e
Estados Unidos).

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Metade dos doutores (egressos do período 2011-2019) que se tor-
naram professores universitários passaram antes pela condição de Pós-
Doc. O pós-doutorado tem sido uma forma efetiva de salvaguardar o
investimento feito no doutorado, de dar prosseguimento à pesquisa de
tese, de alavancar a produção intelectual e, em muitos casos, de ex-
perimentar a atividade docente. Evidentemente, o objetivo da maioria
dos pós-doutorandos é ingressar no sistema universitário e os egressos
do PPGCP têm tido esse êxito, como vimos. Hoje, 16 dos doutores
formados pelo Programa entre 2011 e 2019 estão realizando pós-dou-
torado, dois deles no exterior (Yale University e University of Zurich).
Há outros dois que decidiram realizar novo doutorado na University of
A Michigan e na University of Cornell.
N Outra prova de êxito desse grupo de jovens doutores que se enca-
O minha para a vida acadêmica é a quantidade de prêmios, nacionais e in-
V
ternacionais, recebidos durante essa década. Destaquem-se os prêmios
A
CAPES de melhor tese obtidos em 2020, 2018, 2017, 2013 (e menção
C honrosa em 2014), além do prêmio ABCP de 2019, os três prêmios Tese
I Destaque USP no período e prêmios internacionais como ALACIP e
Ê
N
Fulbright Commission em 2015, e ENMISA Martin O. Heisler Award
C (International Studies Association – ISA) em 2020.
I
A
Cerca de 1/3 dos doutores egressos do PPGCP entre 2011 e 2019
se distribuem por uma série de outras atividades profissionais. Alguns
D
A
deles já estavam inseridos em tais atividades quando ingressaram no
doutorado, outros o fizeram posteriormente. São dois tipos de traje-
P
tórias, portanto, nas quais os doutorados cumprem papéis distintos.
O
L Temos egressos atuando no mercado privado, em consultorias, assesso-
Í rias e empresas, uma delas no exterior. Outros são funcionários públicos
T
I concursados, alguns em posições especiais de alto escalão. Em menor
C número há doutores trabalhando em ONGs, no Brasil e no exterior,
A
bem como jornalistas e outros profissionais que buscaram qualificar sua
.
formação em ciência política.
10
Uma medida central do êxito da empreitada de concluir um dou-
torado diz respeito ao intervalo de tempo entre a titulação e a primeira
inserção profissional. Considerando 89 dos 103 egressos sobre os quais
temos informação, quatorze já estavam empregados quando concluíram
seu doutorado, de modo que o título de doutor não constituiu instru-
mento para a entrada no mundo profissional, embora possa ter vindo

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em seu reforço. Dentre os demais 75 recém-doutores, nada menos do
que 33,3% alcançaram inserção no mercado no mesmo ano em que se
titularam e outros 34,7% o fizeram no ano seguinte, totalizando 68%
dos casos. Entre os 53 professores universitários, desconsiderando 10
que estavam na função quando se doutoraram, nada menos do que 14
(26,%) conseguiram o posto no mesmo ano em que se titularam, outros
13 (24,5%) levaram um ano para alcançá-los, e os demais levaram dois
anos ou mais.
Em resumo, todos os 103 doutores formados pelo PPGCP entre
2011 e 2019 estão inseridos no mundo do trabalho, a quase totalidade
deles em ocupações nas quais o doutorado em ciência política é peça
chave do sucesso profissional. Pode-se afirmar que a maioria se encon-
tra em cargos e funções típicas dos extratos superiores do mercado de
trabalho. Não por acaso, metade deles (49 em 100 com informação
disponível) teve experiência internacional efetiva, seja como período/
bolsa sanduíche, seja como estágios de pesquisa ou estadias de longa
duração no exterior.
A presente coletânea oferece ao leitor uma amostra significativa da
nova ciência política brasileira. Nova não apenas pelos avanços do con-
junto da área, destacados acima, mas também porque reúne um con- A
junto de trabalhos de jovens cientistas políticos formados pelo PPGCP. P
Todos eles foram premiados ao longo de sucessivas edições do Seminário R
Discente da Pós-Graduação em Ciência Política da USP (SD), que com- E
S
pletou dez anos de existência em 2020.
E
O SD se destina à apresentação pública de trabalhos dos alunos, N
propiciando o exercício da exposição e do debate, bem como a circu- T
lação de conhecimento entre docentes e discentes, entre linhas de pes- A
Ç
quisa do PPGCP e com a participação de comentadores externos. Em
Ã
10 anos, foram mais de 500 trabalhos apresentados, incluindo os 65 O
de 2020, ano marcado por severas limitações impostas pela pandemia.
.
Muitos deles foram publicados em periódicos que figuram nos estratos
superiores do Qualis, fazendo da produção discente do PPGCP uma 11
das mais elevadas do país. Teses e dissertações associadas a esses traba-
lhos receberam grandes prêmios nacionais, mas somos particularmente
orgulhosos das premiações do SD, uma das iniciativas que melhor ex-
pressa as mudanças e conquistas do programa e a nova cara da ciência
política no Brasil.

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O SD expressa o desenvolvimento de um novo “ethos de pesquisa”,
uma maneira mais coletiva e aberta de produzir trabalhos acadêmicos,
baseada no escrutínio público, no compartilhamento de critérios e
na crítica e aprovação pelos pares, em contraste com o histórico mo-
delo catedrático e em consonância com os centros de produção de
conhecimento.
Uma pequena, porém, valiosa amostra dessa nova ciência política
praticada por jovens pesquisadoras e pesquisadores chega agora ao pú-
blico mais amplo, na forma dessa coletânea. Nela os leitores encon-
trarão não apenas análises de qualidade sobre temas substantivos, mas
perceberão o firme compromisso dessa nova geração com o desenvolvi-
A mento da própria ciência política.
N Não poderíamos terminar essa apresentação sem agradecer, em
O nosso nome e de todos os autores e autoras dessa obra, ao apoio do
V
Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política
A
da USP, bem como às agências de fomento à pesquisa no Brasil, em
C
especial CAPES, CNPq e FAPESP. Todos aqui recebemos em algum
I momento o apoio dessas agências e não é exagero dizer que essa nova
Ê
geração de cientistas sociais deve sua trajetória de sucesso à existência
N
C de um sistema de financiamento e apoio à pesquisa e à pós-graduação
I no Brasil. Cabe-nos defendê-lo sempre, em nome dessa e das gerações
A
futuras.
D
A
Os Organizadores
P
O
São Paulo, 18 de novembro de 2020
L
Í
T
I
C
A
.

12

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SUMÁRIO

PARTE I: ESTADO, DIREITO E POLÍTICAS PÚBLICAS


Da hegemonia sanitarista ao predomínio liberal: investigando os fatores
que impediram uma inflexão liberal na ANS (2004-2014)............................ 17
Marcello Fragano Baird

“Ganhei na loteria! Mas e o prêmio?”: a mobilização sócio-legal do direito


internacional dos direitos humanos no caso da guerrilha do Araguaia ....... 55
Bruno Boti Bernardi

O Nível de governo importa para a qualidade da política pública? Algumas


lições da municipalização da educação fundamental no Brasil ................... 81
Ricardo Ceneviva

Não tomarás seu nome em vão. O Programa Bolsa Família em discursos


do PT e do PSDB .................................................................................... 125
Davi Cordeiro Moreira

PARTE II: INSTITUIÇÕES REPRESENTATIVAS


A Dinâmica Política do Império: Instabilidade, Gabinetes e Câmara dos
Deputados (1840-1889) .......................................................................... 155
Sérgio Eduardo Ferraz

Presidencialismo da coalizão: Presidente, coalizão e maioria ........................ 197


Andréa Freitas

A Produção Legislativa nos Municípios brasileiros: um estudo de


27 Câmaras Municipais (2001 a 2011) ....................................................... 233
Patrick Cunha Silva

Comportamento legislativo antes da democracia: evidências do Brasil


na Primeira República (1900-1930) ........................................................ 269
Jaqueline Porto Zulini

PARTE III: ELEIÇÕES E ATUAÇÃO PARTIDÁRIA


Focalização ou diálogo? Uma análise quantitativa dos discursos dos
senadores brasileiros ............................................................................ 303
Maurício Yoshida Izumi

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Coalizões e Comportamento Legislativo no Brasil (1988-2010) ....................... 327
Andréa Freitas, Maurício Izumi, Danilo Medeiros

Volatilidade Eleitoral e Sistema Partidário: em busca de uma abordagem


alternativa ............................................................................................ 361
Sergio Simoni Junior

Mulheres tomando partido e partidos fazendo candidatas: a trajetória de


vereadoras da cidade de São Paulo em 2016............................................ 395
Marina Merlo

PARTE IV: HISTÓRIA DO PENSAMENTO


POLÍTICO E SOCIAL
Que horas são? Roberto Schwarz e a crítica do contemporâneo .................... 431
Leonardo Octavio Belinelli de Brito

Guizot, Tocqueville e os princípios de 1789 ................................................... 459


Felipe Freller

Catecismo do cidadão – constitucionalismo e soberania popular em


Guillaume de Saige ............................................................................... 493
Roberta K. Soromenho Nicolete

PARTE V: TEORIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA


Família, liberdades básicas e direito de saída: questão de justiça, tolerância
e direitos humanos ................................................................................ 527
San Romanelli Assumpção

Os estudos subalternos na Índia e o capitalismo visto da periferia:


uma hegemonia fora do lugar? .............................................................. 549
Camila Góes

Temos o dever de tolerar? ........................................................................... 573


Lucas Petroni

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PARTE I: ESTADO, DIREITO E
POLÍTICAS PÚBLICAS

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Marcello Fragano Baird

Graduado em Relações Internacionais pela


PUC-SP (2006) e em Ciências Sociais pela USP
(2007). Mestre em Ciência Política pela USP
(2012) e doutor em Ciência Política também
pela USP (2017). Durante o doutorado, fui
pesquisador visitante na Universidade de
Columbia (NY) (2015). Atualmente, além de
trabalhar como coordenador de advocacy na
ONG ACT Promoção da Saúde, sou professor
no curso de Relações Internacionais da ESPM
e no MBA em Economia e Gestão – Relações
Governamentais da FGV-SP.

Meu objeto de estudo é o lobby e sua influência


nos processos decisórios, especialmente em
agências reguladoras. No mestrado, estudei o lobby na regulação da publicidade de
alimentos da Anvisa. Em 2021, será lançado, pela Editora UFABC, um livro baseado
nesta pesquisa. No doutorado, investiguei, por meio de análise de redes, as disputas
de poder no âmbito da ANS, que regula os planos de saúde, buscando compreender
os impactos para a regulação do setor. Este capítulo, fruto da pesquisa de doutorado,
permite-nos compreender melhor o funcionamento do presidencialismo de coalizão e
o papel dos grupos de interesse nesse sistema.

Em novembro de 2020, lancei o livro "Saúde em Jogo: atores e disputas de poder na


Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)", pela Editora Fiocruz, baseado em
minha tese de doutorado. Anteriormente, em setembro de 2019, foi publicado o livro
"Presidencialismo de Coalizão em Movimento", com novas interpretações sobre o
presidencialismo de coalizão no Brasil, no qual tenho um capítulo em parceria sobre
lobby e os lobistas no Congresso Nacional.

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DA HEGEMONIA SANITARISTA AO
PREDOMÍNIO LIBERAL: INVESTIGANDO OS
FATORES QUE IMPEDIRAM UMA INFLEXÃO
LIBERAL NA ANS (2004-2014)1

Marcello Fragano Baird

Introdução
O setor de planos de saúde no Brasil gera bilhões de reais de fatu-
ramento e envolve empresas poderosas, como a Amil, a Bradesco Saúde
e a Qualicorp. Grupos sanitaristas, defensores do sistema público de
saúde, e entidades de defesa dos consumidores, proponentes de uma
regulação mais abrangente, também se mobilizam dentro do setor. O
principal lócus de embate dessas forças é a Agência Nacional de Saúde
Suplementar (ANS), responsável por regular o setor.
O objetivo deste capítulo é analisar a política do setor de saúde
suplementar, com foco na disputa de poder na ANS. Para tanto, rea-
lizamos uma análise do jogo político na agência entre 2004 e 2014,
caracterizando o embate de forças políticas dentro da agência a partir
das nomeações políticas aos cargos de direção. Ao mapear as redes de re-
lações e a trajetória dos diretores, identificamos os grupos políticos que
atuaram na ANS ao longo de quatro gestões e suas respectivas agendas.
Paralelamente, examinamos as decisões-chave tomadas pela ANS,
de forma a observar os direcionamentos regulatórios produzidos em
cada gestão. Ao cotejar a coalizão dominante com as regulações edita-
das, pudemos verificar o efeito da influência na ANS e quais projetos
políticos foram implementados com maior êxito.

1
Esse capítulo é uma versão adaptada do artigo “Da hegemonia sanitarista
ao predomínio liberal: investigando os fatores que impediram uma inflexão
liberal na ANS (2004-2014)”, publicado na Revista Dados, Rio de Janeiro,
v. 62(4), 2019. Agradecemos aos editores a autorização para publicação nessa
coletânea.

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A literatura sobre regulação não tem dado conta de abarcar a com-
plexidade do jogo político na regulação estatal. Este capítulo busca
contribuir para os estudos sobre política, burocracia e grupos de in-
teresse ao incorporar na análise fatores institucionais, políticos e seto-
riais, como o papel da burocracia da ANS, o arcabouço regulatório do
setor e o próprio formato organizacional das empresas que atuam nesse
mercado.
Na próxima seção, discutiremos a literatura sobre regulação. Em
seguida, trataremos do setor de saúde suplementar e do desenho ins-
titucional da ANS. A seção seguinte será dedicada à caracterização dos
embates políticos na ANS e à influência resultante na regulação. Na
A sequência serão discutidos os fatores que explicam a influência e a con-
N formação mais geral do setor. Ao final, traçaremos um panorama da
O saúde suplementar no Brasil.
V
A
Elementos para uma análise da configuração
C político-institucional-setorial
I
Ê
A literatura que trata de regulação teve diversos desenvolvimentos,
N
C mas nenhum conseguiu construir um arcabouço teórico sofisticado
I para dar conta das complexas relações entre sistema político, burocracia
A
e grupos de interesse. A seguir avaliamos os limites e aportes de diversas
D teorias regulatórias.
A
O primeiro corpo teórico a se ocupar de questões regulatórias foi
P
a teoria do interesse público, em voga nos Estados Unidos nas décadas
O
L
de 1950 e 1960. De cunho fortemente normativo, essa teoria simples-
Í mente buscava justificar a necessidade de regulação estatal a partir das
T
I falhas de mercado, com vistas a garantir a maximização do bem-estar da
C população (Majone, 1999).
A
No início da década de 1970, uma nova corrente teórica surgiu con-
.
trariando os postulados da teoria anterior e revelando uma outra faceta
18 da regulação: a captura do regulador. A teoria da regulação econômica
ou da captura alertava para o fato que a regulação costumava ser posta
em marcha não para corrigir falhas de mercado, mas para beneficiar
indústrias em detrimento dos consumidores. Com base em modelagem
econômica e na assunção da maximização de interesses, essa abordagem
propunha que as indústrias demandariam regulação para se proteger da

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concorrência, enquanto os políticos ofertariam essa regulação, pois de-
penderiam dos recursos do setor privado para se financiar politicamente
(Stigler, 1975).
Essas teorias foram alvo de inúmeras críticas por seu caráter for-
malista e, principalmente, pelo papel marginal atribuído às variáveis
político-institucionais. Moe (1987, p.475) foi certeiro e incisivo ao cri-
ticar a teoria da captura, igualando-a ao pluralismo:

Often referred to as capture theory, it is better understood as a


formal version of pluralism in which public policy is explained
in reference to social interests and the resources that can be
mobilized on their behalf. Institutions are purposely omitted from
these models, appearing as black boxes that mysteriously mediate
D
between interests and outcomes.
A

A teoria positiva das instituições, cuja perspectiva teórica é a relação H


E
agente-principal, foi a principal resposta da Ciência Política à ausência
G
de instituições nas discussões vigentes. O foco dessa corrente, que tam- E
bém parte de pressupostos economicistas, como assimetria de informa- M
ções, está no controle político. Como as políticas públicas só podem O

funcionar mediante delegação, objetiva-se analisar como os atores polí- N


I
ticos lançam mão de mecanismos para controlar o funcionamento das A
agências. Essa teoria surgiu analisando os meios pelos quais o Congresso
S
norte-americano buscava monitorar as agências; posteriormente, o es- A
copo analítico foi expandido para se compreender a supervisão exercida N
I
pelo Executivo e pelo Judiciário (Carrigan; Coglianese, 2011). T
Embora essas novas correntes teóricas, especialmente a perspectiva A
R
do agente-principal, levem em conta elementos institucionais, algumas I
questões não são tratadas com a devida profundidade e outras sequer S
T
são abordadas, como as relações entre Executivo e Legislativo, o pa- A
pel do profissionalismo burocrático e o contexto político. Novamente A
é Moe (1985, p. 1095) quem defende que a teoria positiva das insti-
tuições funcione como uma perspectiva ampliada do agente-principal:
19

In this way, it is possible to investigate simultaneously the influence


of presidents and congressional committees, the constraining
role of the courts, the impact of economic conditions, the internal
decisions of agency staff, and grievance-filling behavior of business

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and labor – and do so by taking account of their locations and
interdependence within the regulatory system they constitute.

Nesse sentido, este estudo pretende contribuir com elementos para


que análises mais sofisticadas sejam feitas sobre como interagem atores
sociais e políticos na produção de políticas públicas. Isso significa am-
pliar a perspectiva do agente-principal para incluir outras questões além
do controle político, como a interação entre Executivo e Legislativo, o
papel da autonomia burocrática e as características do setor.
O ponto de partida, necessariamente, para se analisar o direcio-
namento mais geral de uma burocracia pública federal é atentar para
A a relação entre os Poderes Executivo e Legislativo. O funcionamento
N
do presidencialismo de coalizão brasileiro tem como base o compar-
O tilhamento do poder por meio da construção de uma coalizão de go-
V verno (Limongi; Figueiredo, 2001). Isso significa que o presidente
A da República precisa distribuir cargos para obter apoio político no
Congresso Nacional. No caso das agências reguladoras, o poder de bar-
C
I ganha do Legislativo e, particularmente, do Senado Federal, torna-se
Ê maior, na medida em que as indicações presidenciais devem passar por
N
sabatina e aprovação naquela Casa.
C
I É sob essa lógica de funcionamento das relações entre Executivo e
A
Legislativo que analisaremos as indicações aos postos de comando da
D ANS. As nomeações devem ser compreendidas como a possibilidade
A
de alçar ao poder uma determinada agenda política. Daí a importância
P de, como faremos aqui, evidenciar as redes de relações, dentro e fora
O
L
do governo, que dão sustentação ao indicado para ocupar um posto na
Í diretoria colegiada da agência. Assim, cada nomeado será visto como
T
I
portador de um projeto político de determinada coalizão de interesses.
C
Inserir as agências no contexto do presidencialismo de coalizão bra-
A
sileiro ganha importância quando temos em mente que um dos prin-
.
cipais corpos teóricos sobre as agências reguladoras é a nova economia
20 institucional, focada na construção de um modelo autônomo para esses
órgãos como forma de garantir a credibilidade e minar ações oportu-
nistas do governo (Levy; Spiller, 1996). No entanto, tanto este traba-
lho como a literatura brasileira sobre agências reguladoras (Silva, 2010;
Bonis, 2016) demonstram que a maior autonomia formal conferida às
agências reguladoras, incluindo o mandato fixo dos dirigentes, não as

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exclui das disputas de poder dentro e fora do governo. Mais ainda, a
possibilidade de nomeação de seu corpo dirigente pode comprometer
sua independência, como ocorre em qualquer outro órgão público.
Retomando a discussão sobre outros elementos fundamentais para
a compreensão da produção regulatória, destacam-se, para além da re-
lação Executivo-Legislativo, dois fatores relevantes. Em primeiro lugar,
o papel da profissionalização e autonomia burocráticas. A profissionali-
zação e estabilidade típicas do modelo weberiano, bem como o conflito
entre os Poderes Executivo e Legislativo, contribuem para o fortaleci-
mento e a autonomia de organizações burocráticas, que passam a ter
interesses e visões de mundo próprias. Esse processo tende a reduzir o
peso das indicações políticas, pois os indivíduos que assumem os cargos
D
de direção se veem divididos entre a lealdade aos políticos que o nomea-
A
ram e ao corpo burocrático e projetos da organização que devem liderar.
Quem coloca isso de forma jocosa é Wilson (1989, p. 260), segundo H
E
o qual, imediatamente após fazer o juramento para assumir um cargo G
de direção burocrática, “[...] the oath takers begin to experience a soul- E
-changing conversion. Suddenly they see the world through the eyes of M

their agencies – their unmet needs, their unfulfilled agendas, their loyal O
N
and hard-working employees”. I
O outro elemento que deve ser acrescentado numa análise holística A

de uma regulação estatal é o contexto ou a configuração do setor. Quem S


introduziu essa ideia de forma pioneira foi Lowi (1972, p. 299), ao afir- A
N
mar que não apenas a política impacta as políticas públicas, mas que as I
políticas públicas também afetam a política, de tal modo que “[...] one T
A
can say little new about the politics of regulation without introducing
R
the general policy context within which regulation is only one small, I
albeit important, part”. S
T
Mesmo sem a pretensão de construir um modelo analítico com- A

pleto, entendemos que somente a conjugação de fatores políticos, ins- A


titucionais e setoriais terá o condão de explicar a política e a influência
no âmbito da ANS. 21

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O setor de saúde suplementar e a ANS
O Brasil é hoje o segundo maior mercado de planos privados de
saúde do mundo, atrás apenas dos EUA. Aproximadamente 47 milhões
de pessoas, o equivalente a 25% da população, têm planos de saúde.
Para que se tenha uma ideia da força do setor, basta observar que as mais
de 1.000 empresas que nele atuam tiveram uma receita de mais de R$
179 bilhões em 2017, valor bastante superior ao orçamento aprovado
para o SUS, de R$ 125 bilhões, responsável por atender os outros três
quartos da população (ANS, 2018).
Empresas atuavam no setor sem qualquer regulação desde 1940.
Em que pese a criação do SUS em 1988, a saúde suplementar passou
A
por forte expansão durante as décadas de 1980 e 1990. Com isso, cres-
N ceu a mobilização pela regulamentação da saúde privada. Foi assim que,
O
em 1998, pela primeira vez, a saúde suplementar foi regulada.
V
A A Lei no 9.656/98, que regula o setor, tem dois eixos centrais: a re-
gulação econômica e a assistencial. Do ponto de vista econômico, esta-
C beleceram-se requisitos para o funcionamento das operadoras de planos
I
Ê de saúde. No eixo assistencial, verificou-se importante avanço, pois re-
N gras de proteção ao consumidor foram estabelecidas, como a instituição
C de um plano-referência, o teto de reajuste e a proibição do rompimento
I
A unilateral de contratos. Definiu-se também a garantia de ressarcimento
ao SUS caso o cliente de um plano privado utilize a rede pública.
D
A A ANS seria criada apenas em 2000, tendo como objetivo “promo-
ver o interesse público na assistência suplementar à saúde, regulando as
P
O operadoras setoriais” (Brasil, 1998). A ANS é uma autarquia especial
L vinculada ao Ministério da Saúde e tem autonomia financeira, admi-
Í
T
nistrativa e política, na medida em que seus dirigentes, segundo a Lei
I 13.848/2019, têm mandato fixo de 5 anos e não podem ser demitidos
C
pelo presidente da República (antes de 2019, o mandato era 3 anos,
A
com direito a uma recondução). Isso ocorre apesar de os diretores serem
.
indicados pelo presidente e aprovados pelo Senado.
22 A ANS possui uma diretoria colegiada composta por cinco direto-
res, sendo um deles nomeado, via decreto, pelo presidente, para assumir
o cargo de diretor-presidente. A diretoria mais poderosa é a Diretoria
de Normas e Habilitação de Produtos (Dipro), responsável pela regu-
lação assistencial, seguida pela Diretoria de Normas e Habilitação de
Operadoras (Diope), responsável pelas regras econômico-financeiras

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das empresas. Desde a 2a gestão, o diretor da Dipro assume também a
presidência da agência.
À Diretoria de Desenvolvimento Setorial (Dides) compete garantir
o ressarcimento das empresas ao SUS. As outras duas diretorias são a
de Fiscalização (Difis) e de Gestão (Diges). A primeira tem a função de
apurar e aplicar sanções às empresas; a segunda deve coordenar as ques-
tões administrativo-financeiras.

Metodologia
O objetivo deste capítulo é caracterizar o jogo político e a interme-
diação de interesses na ANS. Essa discussão envolverá a reconstituição
dos principais grupos políticos na agência e a análise das decisões-chave D
tomadas nas diferentes gestões entre 2004 e 2014. Para tanto, anali- A

saremos as conexões entre os diretores da agência e os atores políticos H


da coalizão governamental e observaremos a trajetória profissional e o E
G
perfil dos diretores em cada gestão.
E
Afastamo-nos, assim, em alguma medida, dos estudos de lobby, M
como o de Taglialegna e Carvalho (2006) e Baird (2016), mais focados O
nas ações pontuais dos grupos de interesse. Adotamos aqui uma abor- N
I
dagem de cunho mais estrutural, capaz de identificar a inserção dos A
atores, com suas agendas e projetos, e, por conseguinte, a estrutura e
S
distribuição de poder existentes no âmbito da ANS, analisando como A
isso se traduziu, ao longo do tempo, em resultados políticos concretos. N
Ao fazê-lo, teremos condições de avaliar a influência exercida e tam- I
T
bém se há sinais de captura da ANS, com o favorecimento do mercado A
em detrimento dos consumidores, conforme enunciam autores como R
Scheffer e Bahia (2010). I
S
Para a reconstituição do jogo político, fizemos uso de métodos mis- T
A
tos. Por um lado, recorremos à pesquisa documental e ao trabalho de
A
campo com a realização de entrevistas semiestruturadas. Ao todo, foram
realizadas 46 entrevistas com a elite do setor: empresários, diretores e
funcionários da ANS e ex-ministros da Saúde. Por outro lado, das en- 23
trevistas realizadas, 28 tiveram uma segunda parte dedicada à coleta de
dados para a montagem das redes.
Para a análise de redes, seguimos o procedimento de Marques
(2003), cuja premissa é identificar algumas lideranças do setor e deixar

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que as próprias pessoas que atuam na área estabeleçam as conexões exis-
tentes. Assim, criamos inicialmente uma “semente”, uma lista com 31
figuras-chave do setor ao longo da história da ANS. Líamos para os
entrevistados um a um os nomes da lista. Nesse processo, pedíamos que
os entrevistados apontassem até três nomes que estivessem associados
a cada um dos nomes da lista. Assim, as conexões entre as pessoas no
setor foram se revelando. Pedimos também aos informantes que iden-
tificassem o período de início dessas relações. Ao final da pesquisa, a
rede tinha 146 pessoas conectadas por meio de 414 relações. Essas in-
formações foram então transportadas para o software Ucinet (Borgatti;
Everett; Freeman, 2002), responsável pela produção de estatísticas refe-
A rentes às redes elaboradas.
N Assim, pudemos montar as redes divididas em quatro períodos cor-
O respondentes às gestões dos diretores-presidentes da ANS entre 2004 e
V 2014. Para poder caracterizar as pessoas das redes por meio de atributos,
A
como pertencimento ao setor público e a campos político-ideológicos,
lançamos mão de entrevistas e analisamos o currículo dos 146 indiví-
C
I duos da rede ao longo dos quatro períodos em bases como o Linkedin e
Ê o Currículo Lattes.
N
C Essas informações nos permitiram caracterizar o principal embate
I dentro da ANS, qual seja, entre as visões liberal e sanitarista. Os sani-
A
taristas são historicamente ligados à construção do SUS e refratários ao
D crescimento do setor privado de maneira geral. Na ANS, seus objetivos
A voltaram-se para a expansão da proteção ao consumidor. Os liberais,
P por sua vez, seja por ideologia, seja por trajetória vinculada ao mercado,
O defendiam uma abordagem menos intervencionista e favorável à expan-
L
Í
são do mercado, visando flexibilizar a regulação existente e impedir a
T imposição de novos ônus ao setor.
I
C Para avaliar as decisões-chave, analisamos as principais resoluções
A expedidas pela ANS entre 2004 e 2014. Fizemos um recorte no tipo de
. decisão, de forma a apreciar apenas aquelas que efetivamente tiveram
impacto regulatório. Seguindo modelo adotado por Matos (2011), res-
24
tringimo-nos à análise das Resoluções Normativas (RN). Em função da
tecnicidade das normas e para garantir maior abrangência, recorremos
também ao suporte narrativo dos entrevistados e à análise dos relatórios
de gestão.

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Redes de influência e jogo político na ANS
Períodos 2004-2006 e 2007-2009: as gestões sanitaristas do PT
A primeira gestão da ANS (2000-2003) esteve sob o comando do
PSDB. O segundo e o terceiro períodos correspondem aos anos de
2004 a 2006 e 2007 a 2009, momento em que o PT já havia suce-
dido o PSDB no governo federal. Como essas duas gestões apresentam
forte linha de continuidade, optamos por agrupá-las na mesma seção.
O período petista traz um cenário de compartilhamento do poder com
a coalizão governante e disputas dentro do próprio partido. Essa mul-
tiplicidade de atores pode ser observada na figura abaixo, que traz as
relações existentes entre os diretores da ANS, os ministros da Saúde e
os políticos2. A espessura dos laços entre os atores indica a intensidade
D
dessa relação, medida pelo número de citações.
A

H
Figura 1: Rede entre diretoria colegiada da ANS, políticos
E
e ministro da Saúde (2004-2006)
G
Dilma Rousseff
Alexandre Padilha
E
Lula
Mozart Sales
M
Roberto Jefferson Patrus Ananias O
Diope Diretor-Presidente / Dipro N
I
Helvécio Magalhães A
Humberto Costa
Fernando Pimentel
S
José Gomes Temporão A
Diges
Dides Saraiva Felipe N
Deputado Luiz Sérgio I
Januário Montone T
Difis Benedita da Silva
A
R
José Gregori
José Serra I
Fernando Henrique Cardoso S
Barjas Negri
T
Gabriel Ferrato A
Legenda: Políticos Ministro da Saúde Diretores ANS. A
Fonte: Elaboração Própria.

25
2
Os mandatos dos diretores são não coincidentes. Como dividimos os períodos
conforme a gestão dos diretores-presidentes, necessariamente alguns diretores
terão ocupado esse posto ao longo de duas gestões diferentes. Nesses casos,
optamos por alocar o diretor na gestão em que ele exerceu a maior parte do
mandato. Em relação ao ministro da Saúde, optamos por deixar os dois que
ocuparam a pasta nesse período.

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Com a passagem de poder do PSDB para o PT, a quase totali-
dade dos diretores foi trocada. A única remanescente foi Maria Stella
Gregori, da Difis, que teve seu mandato renovado antes do término do
governo FHC. É possível notar que ela e seu grupo político permanece-
ram isolados no governo do PT.
O governo comandou a montagem da diretoria colegiada nas qua-
tro vagas remanescentes. O PT dividiu entre si a ocupação de três dire-
torias, negociando a última com o PTB. O ministro Humberto Costa
indicou Fausto dos Santos, médico sanitarista de Minas Gerais, à Dipro
e à presidência da agência, contemplando o PT-MG. Fausto indicou
pessoalmente Gilson Caleman, um sanitarista histórico, para a coman-
A dar a Diges. O caráter pessoal da escolha fica evidenciado pela Diges
N não apresentar nenhuma outra relação na rede.
O Dois grupos distintos do PT, em realidade, disputaram as vagas
V
A
da agência. Além do PT-MG, o PT-RJ mostrou-se muito influente na
ANS, emplacando José Leôncio Feitosa na Dides. Além de médico pes-
C soal do ex-presidente Lula, Feitosa havia sido secretário de Saúde de
I Benedita da Silva, ex-governadora do Rio de Janeiro.
Ê
N Por fim, há o indicado de um partido da coalizão, o PTB. O de-
C putado federal Roberto Jefferson (PTB-RJ) indicou Alfredo Cardoso,
I
A vinculado à Amil, para assumir a Diope. O apoio de Jefferson expressa,
na verdade, a força da Amil. Segundo relatos, Edson Bueno, dono da
D
A
Amil, teria feito algumas indicações, via aliados, e o nome de Alfredo
Cardoso foi o que vingou (entrevista ao autor). Desde então, a Amil
P
passou a contar com um diretor com passagem em seus quadros na
O
L Diope, indicado, inclusive, por partidos diferentes. Isso denota que a
Í empresa tem um papel mais relevante do que eventuais partidos aliados
T
I na conformação da diretoria colegiada da ANS. O quadro a seguir traz
C a composição completa da diretoria colegiada.
A
.
O fato mais relevante a se identificar é que a disputa central na ANS
ocorre entre liberais, favoráveis à expansão do mercado, e sanitaristas,
26 que propugnam uma regulação mais rígida e abrangente. Os grupos
sanitaristas ligados ao PT são majoritários nesse período, ocupando a
presidência da agência junto com a Dipro, a Dides e a Diges, enquanto
os liberais aparecem representados apenas na Diope. A Difis, cuja di-
retora era ligada a entidades de defesa do consumidor, não apresentava
nenhum alinhamento automático.

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Quadro 1: Perfil diretoria colegiada ANS (2004-2006)
Nome Posição/Cargo Governo Partido Instituição anterior
Fausto Pereira dos Santos Diretor-presidente / Dipro Lula 1 PT Ministério da Saúde
Gilson Caleman Diretor Diges Lula 1 Faculdade de Medicina de Marília
Maria Stella Gregori Diretor Difis Lula 1 Procon/SP
Alfredo Cardoso Diretor Diope Lula 1 Amil
José Leôncio Feitosa Diretor Dides Lula 1 PT Secretaria de Estado de Saúde/RJ

Fonte: Elaboração Própria.

O período seguinte não apresenta grande variação, até pela reno-


vação de três diretores. Destaque-se que, embora Roberto Jefferson
permaneça vinculado a Cardoso, da Diope, o deputado já perdera seu
mandato no “Mensalão”. O senador Renan Calheiros (PMDB-AL) teve D
papel central na recondução de Cardoso (entrevista ao autor). Esse fato A
é o primeiro indício na ANS da crescente e intensa ligação entre PMDB H
e Amil. E
G
As duas mudanças na composição da diretoria colegiada ocorreram
E
na Difis, com a saída de Gregori, e na Diges, com a saída de Caleman. M
A Difis foi ocupada por Eduardo Sales, procurador federal vinculado O
ao PT do Rio de Janeiro e, particularmente, ao deputado federal Luiz N
I
Sérgio (PT-RJ). Assim, o PT-RJ, que já dirigia a Dides, foi fortalecido A
com a Difis. Hésio Cordeiro, filiado ao PDT, foi indicado para a Diges
S
pelo ministro da Saúde, José Temporão, do PMDB. A figura a seguir A
traz essas mudanças. N
I
Nesse contexto, seria de se esperar que o predomínio da vertente T
sanitarista gerasse regulações mais pró-consumidor, enquanto caberia A
à Diope veicular posições liberais. Segundo interlocutores na agência, R
I
Cardoso buscou, por várias vezes, transferir a atribuição de controle S
do reajuste de preços da Dipro para a Diope. Mesmo sem sucesso, ele T
A
defendia tetos de reajuste maiores do que aqueles propostos pela Dipro
A
(entrevista ao autor).
Em relação ao posicionamento mais geral da Diope, diversos entre-
vistados afirmaram que a diretoria tinha forte orientação pró-grandes 27

empresas, de modo que o principal enfrentamento interno na agência


era em torno de não regular tão fortemente o setor do ponto de vista
econômico, a ponto de inviabilizar as pequenas operadoras (entrevista
ao autor). Tal visão, condizente até mesmo com o apoio que levou

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Cardoso à agência, da Amil, não seria propriamente liberal, mas sim de
mercado.

Figura 2: Rede entre diretoria colegiada da ANS,


políticos e ministro da Saúde (2007-2009)

Fernando Pimentel

Mozart Sales Helvécio Magalhães


Dilma Rousseff

Saraiva Felipe
José Gomes Temporão
Alexandre Padilha
Roberto Jefferson
Lula
A Diope Diretor-Presidente / Dipro

N Patrus Ananias
O
V Humberto Costa
Diges
A Dides

C Benedita da Silva
I
Difis
Ê Deputado Luiz Sérgio

N
C Legenda: Políticos Ministro da Saúde Diretores ANS.
I Fonte: Elaboração Própria.
A

D
A Quadro 2: Perfil diretoria colegiada ANS (2007-2009)

P Nome Posição/Cargo Governo Partido Instituição anterior


O Diretor-presidente
Fausto Pereira dos Santos Lula 2 PT Ministério da Saúde
L / Dipro
Í
Alfredo Cardoso Diretor Diope Lula 2 Amil
T
I Secretaria de Estado de
José Leôncio Feitosa Diretor Dides Lula 2 PT
C Saúde/RJ
A
Hésio Cordeiro Diretor Diges Lula 2 PDT Universidade Estácio de Sá
. Eduardo Sales Diretor Difis Lula 2 Advocacia-Geral da União

Fonte: Elaboração Própria.


28

Nesse cenário, seria implausível supor que a minoritária Diope po-


deria influenciar o direcionamento mais geral de uma ANS dominada
pelo grupo sanitarista. De fato, as principais evidências do período
apontam para uma gestão que colocou a expansão e o aperfeiçoamento

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da regulação assistencial no centro da agenda regulatória. De forma par-
ticular, o diretor-presidente, Fausto dos Santos, trouxe com força as
ideias de promoção da saúde e prevenção de riscos e doenças, caras ao
sistema público.
O objetivo central dessa regulação assistencial, afastando-se do foco
econômico-financeiro da gestão anterior, era

incorporar, às práticas assistenciais adotadas pelas operadoras,


um modelo de promoção e prevenção que se afastasse do viés
economicista, baseado em eventos/sinistros e na produção de
procedimentos. Também aqui foi pensada uma aproximação com os
princípios de universalidade, equidade e integralidade definidos na
esfera do sistema público (MATOS, 2011, p. 219). D
A
O carro-chefe desse processo foi o Programa de Qualificação da H
Saúde Suplementar (RN no 139), que tinha como eixo central indu- E
zir a qualificação das operadoras, fomentando a transformação do mo- G
E
delo assistencial e a gestão de um modelo de atenção integral à saúde. M
Outras ações relevantes foram a RN no 94, que impulsiona as empresas O
a adotarem os conceitos de promoção da saúde e prevenção de doen- N
ças para seus beneficiários, e a RN no 167, que ampliou a cobertura I
A
para consultas. Outra deliberação importante foi a regulamentação
da portabilidade de carências. Com vistas a coibir o processo de falsa S
A
coletivização, a ANS ainda regulamentou as administradoras de bene- N
fícios, que já atuavam no mercado e cresciam de forma desregulada I
T
(ANS, 2018). A
Em resumo, é possível asseverar que as duas gestões sanitaristas vin- R
I
culadas preponderantemente ao PT tiveram como marca e norte a regu- S
lação assistencial. Na primeira gestão, Fausto implementou uma agenda T
A
mais ambiciosa, que visava alterar o paradigma de assistência à saúde.
A
Ao tentar induzir novas práticas às empresas, encontrou forte resistên-
cia do mercado. Considerado tecnicamente competente e politicamente
habilidoso, o diretor-presidente foi capaz de liderar a pauta assistencial, 29

fazendo o enfrentamento e as mediações necessárias com o mercado


dentro e fora da agência.

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Período 2010-2012: inflexão liberal?
A quarta gestão na ANS, coincidente com a transição entre os go-
vernos Lula e Dilma Rousseff, marca uma profunda inflexão na confi-
guração política da agência. O grupo sanitarista ligado ao PT, que havia
predominado anteriormente, torna-se minoritário. Por outro lado, in-
divíduos de origens diversas chegam à ANS, conformando uma dire-
toria de perfil heterogêneo e mais liberal, conforme retratado na figura
abaixo.

Figura 3: Rede entre diretoria colegiada da ANS, políticos


A e ministro da Saúde (2010-2012)
José Gomes Temporão
N Alexandre Padilha Saraiva Felipe
O Dilma Rousseff
Lula
V
Fausto Figueira
A Diope Diretor-Presidente / Dipro
Arthur Chioro
Sergio Cabral
C Humberto Costa

I Sérgio Côrtes
Ê
Luiz Fernando Pezão Guido Mantega
N
C Dides
Deputado Luiz Sérgio
I
Difis
A

D Legenda: Políticos Ministro da Saúde Diretores ANS.


A
Fonte: Elaboração Própria.
P
O
L O PT perde bastante poder na agência, mantendo apenas uma di-
Í retoria sob seu controle, com a recondução de Sales3 à Difis. A Dipro,
T
I juntamente com a presidência, e a Dides saem de seu comando. A prin-
C cipal mudança na agência se dá justamente na presidência, que sempre
A
havia sido ocupada por homens de confiança (e filiados) do partido
. do presidente da República. O novo diretor-presidente nomeado foi
Mauricio Ceschin, um empresário sem ligação partidária, o que inclu-
30

3
Embora tenhamos situado Eduardo Sales, da Difis, no grupo sanitarista, é
interessante observar que Luiz Sérgio (PT-RJ), o mentor de sua indicação, cujo
nome está historicamente associado ao movimento metalúrgico, recebeu R$
30 mil da operadora de planos de saúde Aliança para sua campanha a deputado
federal em 2010 (TSE, 2010).

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sive explica sua única relação política nas redes se dar com Lula, que o
indicou. Ceschin, cuja trajetória está intimamente associada às empre-
sas de planos de saúde, inclusive ocupando a presidência da Qualicorp
no momento de sua indicação, é o primeiro diretor-presidente da ANS
oriundo do mercado. Ceschin havia trabalhado também no Hospital
Sírio-Libanês, que reúne um grupo de médicos influentes junto ao
ex-presidente Lula e a diversos políticos. Assim, suas conexões vão
além das operadoras– um dos articuladores de sua indicação, aliás, foi
Roberto Kalil Filho, médico de Lula nesse mesmo hospital e ex-calouro
de Ceschin na universidade (entrevista ao autor).
O padrão de comando na Diope não foi muito alterado, mesmo
com a saída de Cardoso, que concluíra seu segundo mandato. Leandro
Reis Tavares, que havia sido diretor adjunto de Cardoso e também ti- D
nha passagem pela Amil, assumiu essa diretoria. Havíamos identificado A
que a intermediação entre a Amil e a ANS já havia sido conduzida por
H
Renan Calheiros, do PMDB, no período anterior4. Desta feita, quem E
operacionalizou essa indicação, renovando os vínculos entre partido e G
empresa, foi o PMDB do Rio de Janeiro, via governador Sérgio Cabral, E
conforme se vê na rede. O governador Cabral recebeu R$ 100 mil da M

Amil em sua campanha à reeleição de 2010 (TSE, 2018)5. O


N
Esse episódio, com a consolidação do vínculo de diversas alas do I
PMDB com a Amil para influenciar a ANS, é revelador de que o par- A
tido começa a se afirmar mais definitivamente no jogo político da agên- S
cia, o que reflete as transações políticas mais amplas levadas a cabo para A
a formação da coalizão governista. É na transição entre os governos N
I
Lula e Dilma Rousseff que o PMDB assume papel de maior destaque T
A
R
I
4
Não foi possível rastrear doações da Amil ao senador Renan Calheiros (PMDB- S
T
AL) nas eleições de 2010 ao Senado Federal. Detectamos, porém, que seu filho,
A
Renan Calheiros Filho (PMDB-AL), foi o candidato a governador no Brasil que
mais recebeu recursos da Amil em 2014 – R$ 725 mil (TSE, 2018). A
5
O nome de Tavares também contou com o apoio e a gestão do ex-ministro da
Fazenda, Antonio Palocci, junto ao presidente Lula. À época, Palocci, que seria
coordenador da campanha de Dilma Rousseff em 2010, prestava consultoria 31

à Amil. Reforça-se, assim, a vastidão do apoio governamental que a Amil


consegue angariar.
Para informações sobre a consultoria de Palocci: <http://www1.folha.uol.
com.br/fsp/mercado/79951-conversas-diretas-destravaram-impasse.shtml>.
Acesso em 10/12/2016.

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na coalizão, inclusive com a indicação do vice-presidente da República,
Michel Temer.
Essas três indicações ocorreram ainda no governo Lula. Em 2011,
já sob a presidência de Dilma e na gestão do novo ministro, Alexandre
Padilha (PT), Bruno Sobral, gestor federal de carreira, assumiu a Dides
com o apoio do ministro da Fazenda, Guido Mantega – daí sua conexão
com o ministro6. Destaque-se que a Diges ficou sem diretor até 2012
– daí apenas aparecem 4 diretorias na figura. A ilustração abaixo traz o
quadro de diretores do período.

Quadro 3: Perfil diretoria colegiada ANS – 2010-2012


A
Nome Posição/Cargo Governo Partido Instituição anterior
N
Mauricio Ceschin Diretor-presidente / Dipro Dilma 1 Qualicorp
O
Eduardo Sales Diretor Difis Dilma 1 Advocacia-Geral da União
V
Bruno Sobral de
A Diretor Dides Dilma 1 DEM Ministério da Fazenda
Carvalho
Leandro Reis Tavares Diretor Diope Dilma 1 Amil
C
I Fonte: Elaboração Própria.
Ê
N
C No cenário de uma diretoria colegiada reduzida, observa-se que
I
A apenas o diretor da Difis, Sales, representava a coalizão sanitarista an-
terior. Não à toa, ele mesmo afirmou que passou a ser corrente minori-
D
A
tária na agência (entrevista ao autor). À Diope, que costuma encarnar
uma visão mais empresarial, foi agregada a Dipro, diretoria mais im-
P
portante da agência, que, pela primeira vez, passou a ser comandada
O
L por um representante empresarial. A incógnita maior, para compreen-
Í der o sentido da nova composição na agência, estaria, portanto, na
T
I Dides, agora encabeçada por um funcionário público federal. As in-
C formações apontam para mais um diretor de perfil liberal. Engenheiro
A
com mestrado em economia, com atuação no Ministério da Fazenda,
.
que costuma ter uma posição de maior defesa do mercado no âmbito
do governo, Sobral defendia uma regulação mais parcimoniosa e algu-
32
mas pautas mais liberais, como a livre precificação no setor (entrevista

6
Nelson Barbosa, secretário-executivo do Ministério da Fazenda, e Antonio
Henrique Silveira, secretário da SEAE, tiveram papel central nessa escolha
(entrevista ao autor).

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ao autor). Outro fato que reforça seu caráter liberal é sua filiação ao
Democratas (DEM), partido de cunho liberal e de oposição ao go-
verno7. A Dides juntava-se, assim, à Dipro e à Diope, conformando,
pela primeira vez, uma tríade mais liberal, e isolando a Difis dentro da
agência.
Observa-se, assim, uma profunda reconfiguração política, que
redistribuiu o poder na ANS, favorecendo uma visão mais liberal na
saúde em detrimento dos grupos sanitaristas. Resta avaliar, entretanto,
se a mudança na correlação de forças implicou, de fato, uma alteração
no direcionamento geral da ANS, com medidas que revertessem a ten-
dência de proteção ao consumidor via regulação assistencial.
A análise do conjunto da obra desse período, ancorada na observa-
ção das resoluções aprovadas e no diálogo com atores dos dois lados da D
disputa, aponta, em que pesem algumas divergências, para um aprofun- A

damento da regulação assistencial. De fato, alguns entrevistados chega- H


ram a caracterizar esse período como o de maior regulação de assistência E
à saúde na história da ANS. G
E
Destacamos as principais ações regulatórias dessa gestão. Uma delas M
é o Programa de Incentivo à Qualificação de Prestadores de Serviços na O
Saúde Suplementar (Qualiss), (RN no 267), por meio do qual a ANS N
fixa parâmetros de qualificação dos prestadores. A ANS também im- I
A
plementou o pool de risco, que é o agrupamento de contratos de até 30
vidas para fins de determinação do reajuste anual, com o objetivo de S
A
minimizar a vulnerabilidade dos beneficiários dessa modalidade (ANS,
N
2018). I
T
A principal medida da gestão na área assistencial, e aquela de maior A
impacto para o mercado, foi a determinação dos prazos máximos de R
atendimento (RN no 259). Com essa norma, as operadoras devem ga- I
S
rantir o atendimento dentro de certos parâmetros temporais. O não T
cumprimento desses prazos pode gerar sanções, sendo a mais rigorosa A
a suspensão da comercialização de novos planos. Em julho de 2012, a A
ANS suspendeu a comercialização de 268 planos de saúde de 37 ope-
radoras (ANS, 2018). O anúncio dos planos suspensos é a medida de
33
maior repercussão midiática da agência.

7
Nas entrevistas, ficou claro que nenhum dos atores políticos ligados ao PT no
setor, como ministros e dirigentes da agência, tinha conhecimento desse fato.

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Para além de sua conspicuidade, é possível afirmar que a medida
consubstanciou o segundo momento de enfrentamento ao mercado,
após a primeira gestão de Fausto, visto que o impacto para as empresas
foi grande. Um representante empresarial afirmou que os custos dessa
resolução não foram recuperados até então pelas indústrias (entrevista
ao autor, em 2015). Um ex-dirigente da agência que trabalha em con-
sultoria do setor disse que

a questão do tempo de atendimento é uma coisa que na prática, eu


estou vendo aqui, que funcionou, ou seja, as operadoras estão muito
preocupadas em manter tempos de atendimentos básicos. Então
A correm atrás disso para não ter [...]. O medo é muito grande, com
razão, né, de ter uma suspensão de comercialização, etc. (entrevista
N ao autor).
O
V
Para além das pautas assistenciais, destaque-se que a agência tinha
A
muita dificuldade em garantir que as operadoras fizessem o devido
C ressarcimento ao SUS. Isso começa a ser equacionado no período, de
I modo que mais de R$ 152 milhões foram repassados ao Ministério da
Ê
N
Saúde no biênio 2011-2012, o que representou aproximadamente 65%
C a mais de todo o valor arrecadado pela ANS desde sua criação (ANS,
I
A
2018). Conforme resume um funcionário da agência, ao falar da gestão
Ceschin, “foi ele que bota o ressarcimento ao SUS de volta nos trilhos”
D
(entrevista ao autor).
A
Evidentemente, há divergência, especialmente entre os sanitaristas,
P
O
sobre o que teria sido, preponderantemente, a agenda de Ceschin no
L período. Sendo esse período um momento crucial de nossa análise, vale
Í
T
trazer a lume alguns dos argumentos levantados.
I Um primeiro ponto é que a vinda de Ceschin teria como meta
C
A organizar e expandir as administradoras de benefícios, modalidade
. empresarial de onde ele era egresso. No entanto, as resoluções que re-
gulamentaram essa modalidade foram aprovadas ainda na gestão do
34 sanitarista Fausto. Além disso, alguns sanitaristas reconhecem que a re-
gulamentação ao menos garantiu maior proteção aos beneficiários (en-
trevista ao autor).
A outra questão mais estrutural destacada seria a concentração de
mercado ocorrida no período, particularmente a entrada do capital

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estrangeiro, como no caso da autorização dada pela ANS para a compra
da Amil pela UnitedHealth em 2012. Segundo relatos, os processos de
aquisição no setor eram combatidos na ANS por favorecer a prática
oligopolista. No entanto, na gestão Ceschin, essa atitude teria mudado,
sendo o principal exemplo a compra da Amil, a maior da história do
setor (entrevista ao autor).
Realmente, as notícias têm mostrado que as aquisições no setor têm
se intensificado recentemente, especialmente com a entrada de fundos
estrangeiros. A NotreDame Intermédica foi comprada pelo fundo Bain
Capital em 2014, enquanto houve relatos, em 2016, de negociações
para que os fundos Carlyle e GIC, que têm participação na Rede D’Or,
façam uma oferta pela administradora de benefícios Qualicorp8. Por
D
outro lado, diversas Unimeds, inclusive as maiores, têm falido e deixado
A
o mercado.
H
Se é verdade que a tendência concentradora, com a financeirização
E
da saúde suplementar, tem se intensificado, também é certo que esse G
processo vem ocorrendo desde a regulamentação do setor, que trouxe E
M
consigo um enxugamento do mercado. A própria Amil vem adquirindo
O
diversas empresas desde 2002 pelo menos. Dentre elas, destaca-se a mi- N
lionária compra da Medial, ainda em 2009. A Bradesco Saúde passou I
por processo semelhante, na medida em que a empresa comprou, entre A

2002 e 2010, 23 empresas9. Além disso, outras empresas, como a pró- S


A
pria Qualicorp, já tinham participação de capital estrangeiro antes da
N
transação da Amil10. I
T
Evidentemente, a compra da Amil chamou a atenção por sua mag-
A
nitude. Além disso, a autorização da ANS foi realizada em apenas 15 R
dias e no final do mandato de Ceschin e Tavares. Mesmo reconhecendo I
S
T
A
8
<http://fusoesaquisicoes.blogspot.com.br/2016/07/fundos-carlyle-gic-e-cvc- A
partners.html> e <http://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/inicio-
de-namoro-entre-rede-dor-e-qualicorp.html>. Acesso em 15/12/2016.
9
<http://www.sinamge.com.br/index.php/2014-06-06-02-11-03/acordos- 35
coletivos/acordos-e-diss%C3%ADdios-2016-2017?task=download&id=16>.
Acesso em 15/12/2016.
10
<http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,fundo-carlyle-dono-da-cvc-
compra-empresa-de-planos-de-saude-qualicorp-imp-,583478>. Acesso em
15/12/2016.

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o impacto dessa decisão, não se pode afirmar que se tratou de medida
inédita, assim como não se tem informação de nenhuma regra que te-
nha sido alterada pela gestão Ceschin que pudesse favorecer, dali em
diante, esse tipo de transformação estrutural. Ainda sobre o caso da
Amil, a autorização da transação foi aprovada pelos cinco diretores da
agência, incluindo Sales, da Difis11.
Quem, de fato, mudou as regras mais gerais do setor, abrin-
do-o para o mercado estrangeiro, foi a presidente Dilma, ao sancionar a
Lei no 13.097, que autoriza investimentos externos, inclusive controle,
na saúde, como em hospitais e clínicas. A emenda que incluiu esse
ponto numa medida provisória foi do deputado federal Manoel Junior
A
(PMDB-PB), que recebeu recursos da Bradesco Saúde na campanha
N eleitoral de 2014 (TSE, 2018). Ressalte-se que o governo manteve a
O
V
emenda, a despeito de parecer da Advocacia-Geral da União recomen-
A dando o veto parcial ao artigo por considerá-lo inconstitucional.
Por fim, há o caso da regulamentação dos artigos 30 e 31 da Lei
C dos Planos de Saúde, que trata dos direitos de aposentados e demitidos.
I
Ê Segundo relatos, a RN no 279 representou um retrocesso, pois permitiu
N que essas duas categorias fossem alocadas em contratos específicos, sepa-
C
I
rados da massa geral de trabalhadores da empresa, tornando os reajustes
A maiores. Este, sim, parece ser um caso concreto de norma do período
D que debilitou a proteção dos beneficiários. Foi com esse entendimento
A que Sales votou contrariamente à medida, divergindo em relação aos
P outros três diretores.
O Apesar não termos identificado, ao longo da gestão Ceschin, evi-
L
Í dências robustas de ações ou normas que pudessem ter alterado o curso
T anterior da agência, decidimos, com vistas a emprestar maior rigor à
I
C investigação, proceder a uma análise típica do fenômeno da porta gira-
A tória (revolving door).
.
A porta giratória diz respeito à migração de funcionários entre os
setores público e privado. Tal fenômeno gera o risco de que o comporta-
36
mento desses atores seja determinado pela perspectiva de transição entre

11
A essa altura, um quinto diretor havia sido nomeado na agência. Trata-se de
André Longo, médico ligado ao PT indicado pelo ministro Alexandre Padilha.
Assim, dois diretores ligados ao PT aprovaram a medida.

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esses dois polos. Assim, um representante do empresariado pode, uma
vez exercendo a função governamental, dirigir suas ações para beneficiar
o setor privado, ao qual ele possivelmente retornará. Nas palavras de
Gormley (1979, p. 666), “The revolving door hypothesis, in effect, sta-
tes that such an exchange of employees influences the voting behavior
of regulatory commission”.
Gormley (1979) analisou os votos divergentes de dois anos na
agência norte-americana Federal Communications Commission (FCC)
para identificar se o padrão de votos dos dois diretores com passagem
pelo setor privado destoava do resto da diretoria. Adotamos a mesma
metodologia, observando o padrão de votos na ANS durante a gestão
Ceschin. É a maneira mais direta de testar o efeito da porta girató-
D
ria com a mudança na composição da diretoria colegiada. Em outras
A
palavras, pessoas oriundas do mercado ou de posição liberal tende-
H
riam a votar conjuntamente e em oposição ao grupo sanitarista. Neste
E
caso, estamos interessados em identificar se Sales, da Difis, votava G
consistentemente em oposição aos outros três diretores, de perfil mais E

liberal. M
O
Para a verificação do padrão de votação da diretoria da ANS, con- N
sultamos o rol completo de resoluções normativas no próprio site da I
A
agência. Para cada resolução, identificamos a data da reunião em que foi
aprovada e checamos as respectivas atas para conferir os diretores pre- S
A
sentes e o voto de cada um. Excluindo da população analisada as reso- N
luções atinentes ao regimento interno, construímos uma base de dados I
T
com 211 resoluções com impacto regulatório entre 2004 e 2014.
A
A análise dos dados vem ao encontro de nossas suposições. Não R
I
foi possível realizar um teste do agrupamento dos votos, pois, das 68 S
resoluções normativas aprovadas durante a gestão Ceschin, em apenas T
A
uma houve divergência – justamente na já mencionada votação sobre a
regulamentação dos direitos de demitidos e aposentados, quando Sales A

foi voto divergente. Assim, Sales, que era o único diretor vinculado ao
grupo sanitarista do PT e afirmara, em entrevista, que havia se tornado a 37

corrente minoritária na agência, votou consistente e convergentemente


com os outros diretores nas demais ocasiões. Essa votação em bloco re-
vela uma unidade na atuação dessa gestão, o que reforça os indícios de
que não houve inflexão de viés liberal na ANS no período.

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Sem dúvida, houve, no período 2010-2012, uma substantiva mu-
dança no perfil do alto escalão da ANS, com o predomínio de forças
mais liberais e ligadas ao mercado. Essa recomposição, no entanto, não
parece ter provocado uma alteração no curso mais geral da agência. As
resoluções aprovadas não indicam uma flexibilização nas regras ou uma
regulação mais branda. Ao contrário, nesse período são intensificadas
algumas regulações assistenciais que beneficiam os consumidores, im-
pondo custos às empresas.
A despeito de divergências, boa parte dos entrevistados, inclusive de
viés sanitarista, corrobora essa visão. Um ex-dirigente sanitarista, após
reconhecer que o mercado foi “hegemônico” no período, afirma que
A “na época do Mauricio Ceschin [...] saiu essa regra, por exemplo, do
N tempo de atendimento, que eles [empresários] têm um verdadeiro pa-
O vor”. Outra entrevistada, ligada aos sanitaristas petistas, vai na mesma
V linha ao tratar de Ceschin: “Eu tenho impressão que [...] ele fez um
A
mandato totalmente consumerista” (entrevista ao autor). Concluímos,
assim, que a gestão Ceschin representou mais uma continuidade do
C
I processo político-regulatório anterior do que uma inflexão liberal
Ê no âmbito da ANS. As diferenças, assim, são mais de ritmo do que
N
C
de direção.
I
A
Período 2013-2014: uma gestão de transição
D
A O último período analisado engloba apenas os anos de 2013 e 2014,
P pois André Longo, que liderou a ANS após a saída de Ceschin, já estava
O na agência e só pôde exercer a presidência por mais dois anos. Longo
L
Í teria a seu lado Sobral e Tavares, que teve seu mandato renovado. Sales
T também deixa a agência. Como foi um período de alta rotatividade na
I
C diretoria, as ilustrações do período mostram apenas três diretores.
A
Em termos de composição política, esse período marca uma rela-
.
tiva continuidade com a gestão anterior. Por um lado, a permanência de
Sobral e de Tavares numa diretoria colegiada composta por apenas três
38
diretores, revela que as forças liberais e empresariais permaneciam majo-
ritárias na agência. Essa distribuição de poder, no entanto, deve ser mati-
zada e contrabalançada pela nomeação de Longo à presidência da ANS.
Longo, que havia militado com o ministro da Saúde, Alexandre Padilha,
no movimento médico, representava o retorno do PT ao comando da

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agência. Frise-se, no entanto, que a indicação de Longo representou mais
um aceno à categoria médica, em cujo sindicato de Pernambuco fez car-
reira, do que um retorno dos sanitaristas. De todo modo, ele poderia
funcionar como um contrapeso às inclinações mais liberais dos outros
dois dirigentes.

Figura 4: Rede entre diretoria colegiada da ANS,


políticos e ministro da Saúde (2013-2014)
Luiz Marinho
Humberto Costa
Arthur Chioro
Fausto Figueira

Dilma Roussef Alexandre Padilha D


Lula A

Diretor-presidente / Dipro H
Diope
E
Eunício Oliveira G
Dides E
Sergio Cabral M
O
Guido Mantega
N
Antonio Henrique Silveira I
A
Legenda: Políticos Ministro da Saúde Diretores ANS.
Fonte: Elaboração Própria. S
A
N
I
Quadro 4: Perfil diretoria colegiada ANS – 2013-2014
T
Nome Posição/Cargo Governo Partido Instituição anterior A
André Longo Diretor-presidente / Dipro Dilma 1 Sindicato dos Médicos/PE R
I
Leandro Reis Tavares Diretor Diope Dilma 1 Amil
S
Bruno Sobral de Carvalho Diretor Dides Dilma 1 DEM Ministério da Fazenda T
Fonte: Elaboração Própria. A

Por outro lado, outros elementos desse período apontam para um


fortalecimento do campo empresarial e do PMDB, que, no caso, fun- 39

cionam como dois lados da mesma moeda. Além da indicação na Diope,


o PMDB foi responsável pela nomeação de Elano Figueiredo como di-
retor da Diges ainda em 2013. Figueiredo era vinculado à Hapvida,
maior operadora da região Nordeste, com sede no Ceará. Não à toa, sua

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indicação deveu-se ao senador cearense pelo PMDB, Eunício Oliveira.
O nome de Figueiredo não aparece nas redes, pois ele renunciou com
menos de dois meses no cargo, após a Comissão de Ética Pública da
Presidência da República recomendar sua demissão por haver omitido
do currículo apresentado no Senado sua atuação em empresas do setor.
Assim, não fosse o crasso erro de Figueiredo, a agência teria tido em seus
quadros mais um nome oriundo do mercado, replicando, em alguma
medida, a distribuição de poder na gestão anterior.
Um último ponto que reforça as informações do perfil de um di-
retor diz respeito a outra confusão quando da indicação de um nome
à diretoria da ANS. Ainda em 2014, Dilma indicou o nome de Sobral
A
para recondução à diretoria da agência. No entanto, menos de duas
N semanas depois, retirou a indicação, pois ele teria apoiado tecnicamente
O
Eduardo Cunha (PMDB/RJ) na redação da justificativa de uma medida
V
A provisória que perdoava dívidas de operadoras (entrevista ao autor).
Embora o jogo continuasse a pender para o lado liberal, a própria
C inconstância no alto escalão da ANS no período não dava condições
I
Ê para qualquer tipo de redirecionamento. Além disso, a presidência da
N agência havia mudado de mãos. Por outro lado, o novo diretor-presi-
C
I
dente tampouco conseguiu criar uma agenda factível capaz de aprofun-
A dar a regulação assistencial existente. A análise do relatório de gestão
D parece confirmar essa impressão, pois boa parte das ações elencadas
A referia-se ao aperfeiçoamento de iniciativas anteriores. Assim, essa ges-
P
tão caracterizou-se mais como um período de transição, sem grandes
O mudanças e mesmo sem uma linha clara de atuação, conforme sintetiza
L o presidente de uma operadora:
Í
T
I
[...] um período mais de transição, né? Em que acho que se tentou
C
talvez dar conta de muitos projetos ao mesmo tempo. Então, enfim,
A
acho que talvez não tenha nessa do André Longo na minha memória
.
nada que tenha marcado muito profundamente a gestão. Mas acho
que ela deu sequência ao que vinha sendo desenhado nas gestões
40
anteriores (entrevista ao autor).

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Fatores políticos, institucionais e setoriais determinantes
da influência na ANS
A alteração no pêndulo das distintas forças políticas da agência não
parece ter provocado mudanças bruscas na direção mais geral da regu-
lação da ANS. Nesse sentido, é importante explorar outros fatores, de
ordem política, institucional e relativa à especificidade do setor e do
objeto regulado, que ajudam a explicar a não inflexão liberal na agência.
Com isso, esperamos aportar contribuições teóricas sobre como insti-
tuições, politics e policies se inter-relacionam e impactam na configura-
ção de um setor de políticas públicas (COUTO; ARANTES, 2006).
A estabilidade na política pública é uma característica da regula-
ção na ANS. De fato, identificamos que, mesmo no período majo-
D
ritariamente sanitarista, os liberais acabaram pactuando em torno A
dessa agenda. A tabela abaixo é uma complementação da análise an-
terior que fizemos do padrão de votos na gestão Ceschin. Decidimos H
E
estender essa investigação para todas as gestões da ANS entre 2004 G
e 2014. E
M
O
Tabela 1: Padrão de votos nas Resoluções Normativas N
com impacto regulatório I
A
2004-2006 2007-2009 2010-2012 2013-2014 Total
S
Unanimidade 49 50 67 40 206
A
Divergente 4 0 1 0 5 N
Quem divergiu Maria Stella Gregori - Eduardo Sales - - I
T
Total 53 50 68 40 211 A
Fonte: Elaboração própria. R
I
S
T
A análise dos dados é bastante surpreendente, pois mostra que as
A
distintas perspectivas não se traduziram em votos díspares nas prin-
A
cipais regulações da agência. Ao contrário, a esmagadora maioria das
votações ocorreu por unanimidade. Curiosamente, a maior divergên-
cia verificada não se dá no contexto da oposição entre sanitaristas e 41

liberais, mas sim por parte da representante dos consumidores em re-


lação aos sanitaristas do PT. Mas mesmo assim a divergência é resi-
dual. Na segunda gestão (2004-2006), Gregori, oriunda do Procon/
SP, divergiu de seus colegas em 7,5% das decisões. Depois disso, entre

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2007 e 2014, o único voto divergente foi o já mencionado de Sales.
Os liberais alocados na Diope jamais votaram em oposição aos sani-
taristas, nem quando eram majoritários nem quando eram minoritá-
rios. Em realidade, é possível afirmar que o caso desviante nas votações
na ANS não diz respeito a grupos políticos, mas à própria pessoa de
Gregori.
A análise do padrão de votos relativiza o fenômeno da porta gira-
tória, ao menos do ponto de vista de seus efeitos em termos de posicio-
namento dissonante dos indivíduos liberais ou oriundos do mercado
perante as principais decisões da agência. Cabe explicarmos, assim,
quais fatores contribuíram para a não inflexão liberal na agência.
A
O primeiro elemento, que diz respeito a uma faceta da especifi-
N cidade do setor, é a heterogeneidade do mercado. Em que pese haver
O
V
interesses comuns que podem favorecer o empresariado como um todo,
A a variação de formatos institucionais das operadoras12 envolve também
interesses distintos, a depender do nicho explorado e do próprio modo
C de atuação no mercado. Conforme exemplifica um informante, o setor é
I
Ê composto por “um conjunto de empresas que não tem uma linha única.
N E assim, o fim do reajuste não é uma unanimidade no setor. Até porque
C beneficiaria muito mais uma Amil do que, por exemplo, o Bradesco. E
I
A certamente não beneficiaria a Qualicorp” (entrevista ao autor).
D Um funcionário da ANS reafirma essa característica da saúde
A suplementar:
P
Agora, o que é interessante, é muito interessante, isso é realmente
O
L uma coisa bastante peculiar no setor é que, quando você fala de
Í prestadores, você fala assim: Vou negociar determinado aspecto
T regulatório com os prestadores, estou pensando em fazer isso e
I
C
tal. Você nunca encontra um nível de consenso muito forte entre
A eles, seja operadora, seja prestador. Talvez os beneficiários, eles
ainda tenham um conjunto de posições assim mais homogêneas
.
(entrevista ao autor).

42

12
A título de exemplo, a Amil é uma medicina de grupo, a Bradesco Saúde é
uma seguradora, as Unimeds são cooperativas médicas e a Qualicorp é uma
administradora de benefícios.

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Verifica-se, assim, um elemento a reforçar o caráter caleidoscópico
dos interesses presentes no setor, concorrendo para dificultar o consenso
no mercado e a possibilidade de uma ação mais concertada no âmbito
da ANS. Pensando na agência, observamos que a heterogeneidade é
grande. Houve diretores ligados à Amil na Diope, um diretor-presi-
dente oriundo do mercado vinculado a uma administradora de benefí-
cio e um diretor mais liberal oriundo do próprio governo.
Um ex-diretor da ANS simula o raciocínio de um mandatário da
agência diante da possibilidade de implementar uma agenda de corte
liberal, mas benéfica a apenas uma fração do mercado:

Por que eu vou me desgastar com uma coisa que eu vou desagradar
todo o status quo político, eu vou desagradar o meu servidor, eu vou D
desagradar os sanitaristas, eu vou desagradar os consumeristas, né, A
eu vou desagradar o presidente da República e o ministro? E do outro
lado eu vou agradar um dos atores ou dois dos atores? Você fala: pô, H
eu não vou entrar nessa (entrevista ao autor). E
G
Outro fator extremamente forte, de cunho institucional, a blo- E
M
quear iniciativas mais liberalizantes na ANS é sua burocracia sanitarista.
O
Embora tardiamente, a agência logrou consolidar seu corpo profissional N
ao longo do tempo. Os concursos públicos realizados, oferecendo altos I
salários e exigindo uma grande expertise, forjaram um quadro técnico al- A

tamente qualificado e fomentaram o esprit de corps na ANS. Conforme S


explicou uma funcionária da agência, A
N
I
Ali as pessoas vestem a camisa mesmo. Porque, primeiro, querem
T
garantir o seu emprego, tá? Garantir uma boa ocupação, um A
conforto ali dentro. E depois porque existe a crença de que a agência R
desempenha uma importante função na sociedade [...]. O salário é I
bom, eu tenho boas condições de trabalho aqui, eu sou reconhecida S
T
na sociedade pelo que eu faço, porque o meu trabalho é importante
A
(entrevista ao autor).
A
A crescente institucionalização da ANS pode ser vista abaixo com
a consolidação dos funcionários da agência conectados à elite do setor,
43
bem como com o aumento contínuo da proporção de concursados, que,
aliás, passaram a ocupar cargos cada vez mais importantes – a ponto de
alcançar postos de diretoria a partir de 2014.

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Tabela 2: Dados sobre funcionários da ANS nas redes da elite do setor
2000-2003 2004-2006 2007-2009 2010-2012 2013-2014
Nº de funcionário da ANS 15 39 45 40 29
Proporção na rede 13% 30% 33% 28% 20%
Nº de concursados 0 7 14 14 13
Proporção de concursados 0% 18% 31% 35% 45%

Fonte: Elaboração Própria.

Uma burocracia forte tem maior capacidade de negociação e barga-


nha, reduzindo o espectro de ações possíveis levadas a cabo pelos diri-
gentes máximos de uma instituição. Cabe inquirir apenas para que lado
A penderá a burocracia – na ANS, o direcionamento foi para o campo
N sanitarista, conforme atestam entrevistados dos dois campos da disputa.
O Com os primeiros concursos públicos em 2005 e 2007, a ANS
V trocou a totalidade de seu quadro técnico, que hoje acumula mais de
A
dez anos de experiência. Como a agência era dominada no período por
C
sanitaristas, a formação dos novos servidores seguiu essa linha. Como
I reconheceu um alto funcionário desse grupo, “O processo de forma-
Ê ção tinha muito SUS, relação público-privado, fizemos uma certa cate-
N
C
quese, né, nesse processo” (entrevista ao autor). Esse momento fundante
I é particularmente relevante, pois permite que a burocracia seja moldada
A mais facilmente, a despeito de outros fatores. Wilson (1989, p. 96) re-
D flete de forma certeira sobre esse ponto:
A

P But sometimes an organization is endowed with a sense of


O mission despite ambiguous goals, personal predispositions, group
L pressures, and situational imperatives. This usually occurs during
Í the formative experience of the organization, an experience shaped
T
and interpreted by a founder who imposes his or her will on the first
I
C generation of operators in a way that profoundly affects succeeding
A generations.
.
Essa característica da institucionalidade da ANS também foi confir-
44 mada pelo grupo mais liberal. Um representante dessa ala afirmou que
a seleção na agência priorizou o conhecimento técnico sanitarista em
detrimento de disciplinas que poderiam tornar a regulação mais “equi-
librada”. Ele ressaltou que a Diope conseguiu atrair pessoas com maior
“racionalidade econômica”, tornando-a menos sanitarista (entrevista ao
autor).

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Ambos os entrevistados identificam as consequências desse processo
para o jogo político interno da agência. Conforme aponta o sanitarista:

O fato de você ter trocado 100% dos servidores entre 2005 e 2007
gerou uma, digamos, uma estabilidade, uma estabilização que é
difícil de romper, entendeu? Para ir para lá e fazer isso [introduzir
agenda liberalizante], o cara tem que ser bom, conseguir enfrentar.
Primeiro, precisa ter uma agenda e, segundo, precisa ter capacidade
de enfrentamento para poder reverter ou superar as dificuldades
colocadas pelos próprios funcionários da casa (entrevista ao autor).

Ao menos dois ex-diretores de viés liberal reconheceram a dificul-


dade de fazer avançar questões mais liberalizantes na ANS. Um deles
explanou esse fato, narrando que D
A
Tudo que você faz que não se coaduna com uma visão consumerista
H
e sanitarista vai ter uma resistência muito grande do servidor interno
E
que vai ver aquilo como uma sacanagem. Você está ali fazendo G
sacanagem porque você foi indicado por não sei quem. [...] Existe E
uma visão institucional de protecionismo” (entrevista ao autor). M
O
Um acontecimento mais recente e inédito na agência ajuda-nos a N
atestar o peso desse fator institucional. A diretoria colegiada era com- I
A
posta, até o fim de 2016, por duas sanitaristas que estão na agência
desde o início, dois representantes do mercado e uma quinta servidora S
A
concursada, mas que havia sido apoiada pelo senador Eunício Oliveira
N
(PMDB-CE). Havia dúvidas, assim, para que lado penderia a ANS. I
A incerteza foi sanada durante a 445a reunião da diretoria colegiada, T
A
ocorrida em 01/06/201613. Com a renúncia do diretor da Diope ligado R
à Amil, Simone Freire, servidora ligada ao senador peemedebista, com- I
S
pôs com as outras duas diretoras sanitaristas, alterando a geopolítica
T
da agência. Contra o voto isolado do diretor-presidente, José Carlos A
Abrahão14, as três diretoras o destituíram da diretoria mais poderosa, A
a Dipro, designando-o para a fraca Diges. Destaque-se ainda que, em

45
13
<https://www.youtube.com/watch?v=GyYtSNf7Eik>. Acesso em 20/12/2016.
14
A nomeação de Abrahão foi o movimento mais radical pró-empresariado na ANS,
pois ele foi presidente da CNS, entidade representativa dos estabelecimentos e
prestadores de serviços de saúde privados, entre 2003 e 2014. Foi a CNS que
ajuizou uma ADIN no STF para questionar a lei do setor.

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sua justificativa, a diretora Martha Oliveira trouxe à baila sua condição
de servidora da agência e argumentou que o diretor-presidente ocu-
par a Diges é uma velha demanda dos funcionários. Não resta dúvida,
portanto, que a burocracia sanitarista da ANS, especialmente ao ocu-
par os postos mais altos da agência, serve como contrapeso a iniciativas
liberais.
Outros dois elementos relevantes, também de ordem institucional,
são o mecanismo de positive feedback e o caráter microrregulatório da
agência. O primeiro ponto está ligado à noção de path dependence, ou
seja, a ideia de que políticas públicas, uma vez implementadas, condi-
cionam os processos políticos e a própria trajetória da política pública.
A Assim, uma política iniciada em certa época tomará determinado rumo,
N sendo difícil alterá-la posteriormente, na medida em que os benefícios
O do arranjo inicial crescem na comparação com as alternativas possíveis
V (Pierson, 2004).
A
É importante retroceder até 1998 para compreender esse meca-
C nismo. Diversas medidas de proteção ao consumidor introduzidas pela
I Lei dos Planos de Saúde estão consolidadas e são defendidas por diversos
Ê
N grupos. Nesse sentido, torna-se cada vez mais difícil e custoso, politica-
C mente, tomar medidas que flexibilizem essas garantias. Um ex-diretor
I
A
de viés liberal afirmou que, embora considere disfuncional a manuten-
ção do controle de reajustes nos planos individuais, seria muito difícil
D
retroagir nessa questão, agora que se tornou uma proteção ao consumi-
A
dor (entrevista ao autor).
P
O
Em relação à microrregulação, pontua-se que a lei trouxe impor-
L tantes mudanças, mas não dotou a ANS de capacidade regulatória para
Í fazer alterações significativas no setor. De acordo com um ex-diretor,
T
I ao não se definir a saúde privada como uma concessão, como o petró-
C
leo, por exemplo, a ANS não tem capacidade de definir normas ma-
A
croeconômicas que, de fato, orientem a atuação das empresas. Assim,
.
fica-se restrito à microrregulação de viés econômico. Por outro lado,
46
essa mesma lei já pormenorizou as principais proteções ao consumidor.
Assim, questões centrais que os grupos liberais gostariam de ver modi-
ficadas, como liberação de reajuste e segmentação na oferta de planos,
requereriam alteração legal e, portanto, estão fora da alçada da agência.
Não à toa, frequentemente se noticia a discussão dessas questões na
Casa Civil ou no Congresso Nacional.

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Por fim, vale analisar o papel da política para além das indicações
políticas, levando-se em conta o clima político, a mídia e a trajetória
profissional. O clima político no governo não favorecia mudanças de
cunho mais liberal. Como a ANS segue uma toada incremental, tal-
vez apenas um choque externo, vindo do Executivo ou do Legislativo,
pudesse fazer a agência mudar suas políticas. E, apesar dos conflitos
internos, era improvável que a coalizão governamental liderada pelo PT
desde 2003 provocasse a ANS nesse sentido. Tanto é que apenas com
a troca do governo Dilma, em 2016, forjou-se um movimento, capi-
taneado pelo novo ministro da Saúde, Ricardo Barros (PP/PR), para
induzir a agência a flexibilizar algumas regras de cobertura.
A mídia também parece confluir com o clima político, como apon-
tam diversos entrevistados, ao citar matérias críticas de O Globo15 ou D
A
artigos de professores, como Ligia Bahia e Mario Scheffer. Um ex-dire-
tor de viés mais liberal resume bem esse ponto: H
E
G
Assim, eu acho que é sempre mais fácil, do ponto de vista de discutir E
com a mídia, de discutir com os políticos, você fazer uma política M
pró-consumerista do que fazer uma política de liberalização. [...] Eu O
não acho que tenha tido uma inflexão. [...] Eu acho que não tinha N
clima político talvez [...]. Eu acho que não tinha, quem entrou, no I
caso do Mauricio, sofreu na entrada, muita porrada, né? Tomou A
muita porrada dos sanitaristas, quase que uma porrada preventiva
S
pro cara não fazer nada de diferente (entrevista ao autor). A
N
Essa questão assinalada pelo entrevistado sobre o ex-diretor Mauricio I
T
Ceschin merece maior desenvolvimento. Diversos atores apontaram
A
para esse fato contraintuitivo de a origem no mercado poder ser um R
fardo na perspectiva de quem apoia medidas liberais. Nesse sentido, as I
S
indicações políticas teriam, sim, um peso, mas contrário ao esperado. T
Conforme relatou um alto dirigente sanitarista, A

A
na verdade, assim, né, eu sempre, já conversei isso com vários
diretores de empresas, essa coisa de você colocar um operador
do mercado diretamente é uma bobagem, né, porque você gera 47

15
Por estar localizado na mesma cidade que a ANS, o Rio de Janeiro, o jornal
O Globo faz um acompanhamento mais sistemático da política do setor,
tornando-se o veículo mais influente.

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suspeição sobre todos os atos do indivíduo e não é por ali que ele
consegue. Tanto que na época do Mauricio Ceschin [...] saiu essa
regra, por exemplo, do tempo de atendimento, que eles têm um
verdadeiro pavor (entrevista ao autor).

A burocracia sanitarista da ANS vem a reforçar esse mecanismo


da trajetória profissional, o que é notado por outra servidora com pas-
sagem pela agência, que compartilha a mesma opinião sobre Ceschin:
“Eu tenho impressão que para não ficar sob suspeição, ele fez um man-
dato totalmente consumerista. Totalmente. Senão ele não se sustentava
lá dentro, entendeu?” (entrevista ao autor).

A
Considerações finais
N
O Buscamos contribuir com a literatura sobre política, interesses e bu-
V rocracia. Empiricamente, fizemos um amplo esforço qualitativo para
A
revelar o modus operandi que cerca as indicações políticas numa agência
C
reguladora no país. Do ponto de vista da literatura de agências regula-
I doras e em contraste com a matriz teórica da nova economia institu-
Ê
cional, demonstramos, a partir do jogo político por trás das nomeações
N
C
na ANS, que o desenho institucional das agências reguladoras não lhes
I garante autonomia. As agências, assim como outros órgãos governa-
A
mentais, estão inseridas e sofrem influência das diversas teias de relações
D que envolvem políticos, burocratas e empresários.
A
Mas a principal contribuição diz respeito aos fatores que explicam
P a influência ou o resultado das políticas regulatórias levadas a cabo pela
O
L
ANS. Ao reconstituir as disputas políticas na história da agência, vi-
Í sando aferir se o empresariado é beneficiado em detrimento dos con-
T
I sumidores conforme ocorre a transição de um período sanitarista para
C um de corte mais liberal, observamos, ao contrário das expectativas, que
A
a ANS não alterou seu rumo. Antes, seguiu e até aprofundou a toada
.
incremental de regulação assistencial que marca sua trajetória.
48 A interessante constatação de que a correlação de forças políticas,
expressa na ocupação dos cargos de direção da ANS, não é capaz de
explicar a não inflexão liberal, ou seja, o resultado da política, reco-
necta-nos com a discussão precedente e aponta para as contribuições do
trabalho. Identificamos que a perspectiva agente-principal deveria ser
expandida, pois seu foco nos mecanismos de controle não dá conta da

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complexidade do jogo político-burocrático. De fato, a principal forma
de controle das agências, que são as nomeações políticas, não explica a
contento o resultado regulatório. É nesse sentido que outros fatores de-
vem ser mobilizados. Quem percebeu isso acuradamente foi Moe (1987,
p. 477):

None of this is intended to suggest that Congress actually has no


influence over the bureaucracy. Congress is surely important in this
respect. But so are presidents, the courts, interest groups – and, not
least, the agencies themselves. What we need is a broadly-based
institutional theory that sheds light on all this.

Sem pretender conceber uma nova abordagem teórica, este trabalho


procurou levar em conta fatores institucionais e atinentes à configura- D
A
ção do setor, como o positive feedback, o caráter micro regulatório do
arcabouço legal, o formato institucional heterogêneo das operadoras e, H
principalmente, a autonomia burocrática. Ao serem integrados à aná- E
G
lise, esses fatores possibilitaram-nos compreender como a ANS passou E
por uma transição liberal sem que a agência, de fato, mudasse o rumo M
da regulação nesse sentido. Acreditamos, portanto, que futuras análises O
sobre a relação entre burocracia e política no âmbito do Estado brasi- N
I
leiro devam atentar para a relevância de fatores institucionais e setoriais A
para a conformação mais ampla da influência e da produção de políticas
S
públicas e de regulação estatal. A
É importante apontar que, embora não tenhamos identificado um N
I
processo de captura na ANS, a permeabilidade entre agência e mercado T
é crescente. Isso se reflete não apenas na ocupação de postos de diretoria, A
mas em outros dados não apresentados por restrições de espaço, como R
I
o incremento dos vínculos do empresariado com os diretores e fun- S
cionários e a intensificação do fenômeno da porta giratória. Ademais, T
A
pressões externas vindas do Ministério da Saúde têm se avolumado para
A
que a agência flexibilize suas regulações.
Paralelamente, deve-se atentar ao Judiciário, que tem tido papel
decisivo no setor. Entre 2007 e 2013, o número de acórdãos sobre pla- 49

nos aumentou 3.379% apenas no TJ-SP. Esse protagonismo advém da


própria especificidade da saúde suplementar, que é vista, a depender
da posição ocupada pelo observador, ora como mercadoria, ora como
direito social. O Judiciário, invariavelmente, interpreta o setor segundo

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a lógica constitucional de direitos e ignora o arcabouço regulatório defi-
nido por lei e pela própria ANS, dando recorrentes ganhos de causa ao
consumidor contra as operadoras.
Frise-se, por fim, que, independentemente da regulação da ANS,
as principais operadoras, como Amil, Bradesco Saúde e Qualicorp,
têm um poder desproporcional e vêm auferindo crescentes benefícios.
Apenas para mencionar algumas medidas, destacamos, mais recente-
mente, a Lei no 12.873/2013, que concedeu benefícios estimados em
R$ 4 bilhões por meio da redução na base de cálculo do PIS/COFINS,
e a já citada lei que permitiu a participação do capital estrangeiro na
assistência à saúde. Historicamente, o setor ainda é favorecido por re-
A núncias fiscais, como abatimento de despesas no IR e isenções fiscais a
N entidades filantrópicas, cujo valor pode ter ultrapassado R$ 25 bilhões
O em 2013 (Ocké-Reis; Gama, 2016). Não à toa, embora venha perdendo
V beneficiários desde 2015, o faturamento segue crescente (ANS, 2018).
A
Conclui-se, dessa maneira, que, se por um lado não houve desvio de
C curso na microrregulação praticada pela ANS, em que pesem os espaços
I de influência angariados pelo empresariado, por outro, as conexões e o
Ê
N financiamento realizados pelas grandes empresas parecem ter-lhes asse-
C gurado condições de crescimento, especialmente por meio de subsídios
I
A
e da permissão ampliada de fusões e aquisições via mercado externo. A
custos marginalmente impostos ao setor regulado pela agência, corres-
D
pondeu a possibilidade de uma forte expansão propiciada pelo Executivo
A
central e pelo Poder Legislativo. Assim, se os fatores institucionais são
P
predominantes na explicação do papel da ANS, o jogo político externo
O
L à agência é determinante para se compreender a configuração mais am-
Í pla da regulação na saúde suplementar, em particular as oportunidades
T
I abertas à atuação empresarial. Na esfera política mais ampla, o jogo é
C claramente mais desigual e favorável ao setor privado. Nesse sentido,
A
resta saber se a influência empresarial conseguirá se estender, igualmente,
.
à ANS e ao Judiciário.
50

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Bruno Boti Bernardi

Doutor (2015) e Mestre (2009) em Ciência


Política pela Universidade de São Paulo (USP).
Bacharel em Relações Internacionais pela
mesma universidade (2006). Professor Adjunto
de Relações Internacionais e do Mestrado em
Fronteiras e Direitos Humanos da Universidade
Federal da Grande Dourados (UFGD).

No doutorado analisei o impacto das normas


internacionais do sistema interamericano de
direitos humanos no Brasil, México, Colômbia e
Peru frente a casos de graves abusos de direitos
humanos oriundos de períodos autoritários ou
de situações de conflitos armados internos.
Fruto dessa pesquisa, o meu capítulo neste livro
sobre a sentença do caso Gomes Lund procura entender como atores não estatais, com
destaque para coletivos de vítimas de violações e organizações não governamentais
de direitos humanos, podem mobilizar os mecanismos internacionais de direitos
humanos para impulsionar mudanças na agenda nacional de políticas, litígios contra o
Estado no plano doméstico e novos ciclos de mobilização social.

Ainda na intersecção entre os estudos sócio-legais, Ciência Política e Relações


Internacionais, minhas pesquisas atuais buscam analisar, em contextos históricos
específicos, e também a partir da prática concreta dos atores, quais as condições
para que os direitos humanos tenham maior ou menor conexão com lutas sociais e
processos de mudanças político-institucionais.

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“GANHEI NA LOTERIA! MAS E O PRÊMIO?”:
A MOBILIZAÇÃO SÓCIO-LEGAL DO DIREITO
INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
NO CASO DA GUERRILHA DO ARAGUAIA1

Bruno Boti Bernardi

Introdução
Durante a ditadura militar brasileira, milhares de graves violações
de direitos humanos foram perpetradas por agentes do Estado, confi-
gurando um padrão sistemático de abusos. Na área limítrofe entre os
Estados do Pará, Tocantins e Maranhão, entre 1972 e 1975, ao longo
de três investidas militares contra a guerrilha do Araguaia, o regime mi-
litar foi responsável pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento
forçado de ao menos setenta pessoas, entre camponeses e militantes do
Partido Comunista do Brasil (PCdoB).
Em 1995, duas décadas após o fim da guerrilha, e em resposta à falta
de resultados de uma ação interna na justiça brasileira iniciada em 1982
que buscava elucidar o incidente, familiares das vítimas, agrupados na
Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos (CFMDP)
e no Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNM-RJ), en-
viaram o caso para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH) com a ajuda do então escritório conjunto do CEJIL (Center for

1
Artigo publicado originalmente na Revista Carta Internacional, Belo Horizonte,
v. 12, n. 3, 2017, pp. 130-152, a quem o autor agradece pela permissão para
republicação neste livro. Pesquisa realizada com ajuda financeira da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) (processo 2011/50059-
6) e do programa Capes-Proex do Departamento de Ciência Política da USP. O
autor agradece aos pareceristas anônimos da Carta Internacional e às pessoas
entrevistadas durante a pesquisa, com destaque para os familiares de mortos
e desaparecidos políticos no Araguaia.

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Justice and International Law) e Human Rights Watch/Americas do Rio
de Janeiro. Quinze anos depois, em 2010, a Corte Interamericana de
Direitos Humanos (CoIDH) condenou o Brasil no caso Gomes Lund
(guerrilha do Araguaia), invalidando a Lei de Anistia 6.683 de 1979
(COIDH, 2010). Para a CoIDH, a lei garante a impunidade dos agen-
tes estatais envolvidos em graves violações de direitos humanos e, por
conta disso, não deve ser aplicada, uma vez que desrespeita a obrigação
de investigar, processar e punir decorrente da Convenção Americana de
Direitos Humanos, aderida pelo Brasil em 19922.
Em abril de 2010, sete meses antes da emissão dessa sentença, e já
tendo em vista o provável conteúdo da decisão da CoIDH, o Supremo
A
Tribunal Federal (STF) decidiu preventivamente em favor da constitu-
N cionalidade da Lei de Anistia no julgamento da arguição de descumpri-
O mento de preceito fundamental (ADPF) 153. O objetivo era neutralizar
V
A
a eventual condenação e salvaguardar a controversa interpretação ju-
dicial hegemônica segundo a qual os crimes comuns praticados pelos
C agentes do Estado teriam sido anistiados por se tratarem de crimes co-
I nexos aos crimes políticos previstos pela legislação.
Ê
N Entretanto, apesar dessa e de outras seguidas derrotas nos tribu-
C nais nacionais, a condenação do Brasil impulsionou uma alteração na
I
A

D 2
No tocante à hierarquia das normas internacionais de direitos humanos dentro
A
do ordenamento jurídico brasileiro, desde a incorporação do parágrafo 3o ao
P artigo 5o da Constituição Federal por meio da Emenda Constitucional (EC) n.
O 45/2004, os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que
L forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por
Í três quintos dos votos dos respectivos membros, terão status constitucional.
T
Já os tratados posteriores à EC 45/2004 que não sejam aprovados por maioria
I
C
qualificada, isto é, por três quintos dos votos, em dois turnos, pela Câmara
A dos Deputados e Senado, receberão apenas status infraconstitucional, de
legislação ordinária. Em 2008, o Supremo Tribunal Federal decidiu em favor
.
da tese da supralegalidade para os tratados de direitos humanos incorporados
ao direito brasileiro antes da EC 45/2004, como a Convenção Americana de
56 Direitos Humanos. Nesses casos, o status dos tratados situa-se acima de todas
as leis ordinárias do país, mas abaixo da Constituição (cf. Ramanzini, 2014). Por
sua vez, no que diz respeito à relação do Brasil com o sistema interamericano
de direitos humanos, os pronunciamentos da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos têm caráter de recomendações, enquanto os julgamentos
da Corte Interamericana de Direitos Humanos constituem sentenças de
natureza vinculante.

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postura da cúpula do Ministério Público Federal (MPF) em favor da
posição defendida por um grupo minoritário de procuradores mais
progressistas e abertos ao direito internacional dos direitos humanos, “
os quais ajuizaram 27 ações penais sobre violações da ditadura até o G
A
início de 2017 (BRASIL, 2017). Assim, os esforços em favor da perse-
N
cução criminal individual seguem em curso, ancorados na sentença da
H
CoIDH, a mais importante ferramenta jurídico-legal disponível para E
confrontar a decisão do STF na ADPF 153. I

De modo geral, porém, no que tange à implementação e cumpri- N


mento global dos pontos resolutivos da sentença, o Brasil pouco avan- A
çou. Na resolução de supervisão de cumprimento da sentença de 2014,
L
a CoIDH faz uma avaliação ainda válida: excetuando medidas indeni- O
zatórias e a criação da Comissão Nacional da Verdade, a situação é de T
ausência de resultados na responsabilização penal dos perpetradores das E

violações; na localização das vítimas desaparecidas; na publicação dos R


I
arquivos militares sobre a guerrilha e na implantação de programa per- A
manente e obrigatório de direitos humanos para todos os membros das !
Forças Armadas (COIDH, 2014, pp. 41-42).
M
Frente a esse panorama, tendo como base as perspectivas de usuá- A
rios do sistema interamericano de direitos humanos (SIDH) no caso S

Gomes Lund, o objetivo deste trabalho é discutir as potencialidades e E


eventuais limites da mobilização sócio-legal do direito internacional dos
direitos humanos. A partir da análise de entrevistas qualitativas semies- O

truturadas realizadas com familiares de mortos e desaparecidos políticos P


na guerrilha do Araguaia3, argumenta-se que, embora o cumprimento R
do Estado com a sentença seja baixo em termos de decisões judiciais e Ê

mudanças de políticas públicas, o litígio produziu experiência empo- M


I
deradora no plano ideacional-simbólico, impactando a agenda política O
nacional e fortalecendo tanto a mobilização social quanto o potencial ?

3
Para estabelecer a lista dos parentes das vítimas mais ativos em relação à
promoção do caso no SIDH, procedeu-se ao cruzamento de referências e nomes 57
a partir do contato com familiares de São Paulo e diferentes advogadas do CEJIL
que litigaram o caso, o que produziu uma relação de pessoas a entrevistar,
posteriormente checada com familiares do Rio de Janeiro. No total, sete
pessoas da CFMDP e do GTNM-RJ foram entrevistadas consensualmente em
2014, pessoalmente ou via Skype. A relação completa das entrevistas encontra-
se no apêndice.

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de contestação jurídico-legal nos tribunais nacionais. Em outras pala-
vras, ainda que a implementação da decisão pelo Estado seja escassa, a
sentença produziu impactos significativos.
A fim de avaliar tal proposição, faz-se referência, na primeira seção
do texto, à literatura sobre a mobilização do direito. Destacam-se tanto
as contribuições focadas na dimensão nacional das disputas jurídico-
-legais dos movimentos sociais (MCCANN, 1994; 1998; 2006; 2010)
quanto os trabalhos sobre o transnacionalismo legal (KAY, 2011) e
as consequências domésticas dos compromissos internacionais de di-
reitos humanos (SIMMONS, 2009). Em seguida, outras duas seções
do texto analisam, respectivamente, as potencialidades e entraves ge-
A
rados pela mobilização sócio-legal transnacional no caso Gomes Lund.
N Por fim, nos comentários finais, apresenta-se um balanço do caso da
O guerrilha do Araguaia, salientando a necessidade de que a literatura
V
se atente mais para efeitos potencialmente limitadores da mobilização
A
do direito internacional para a prática política de atores e movimentos
C
sociais.
I
Ê
N A mobilização sócio-legal do direito internacional dos
C
I
direitos humanos como recurso de interação política,
A jurídica e social
D A dimensão ideacional e simbólica: enquadramentos
A
interpretativos e consciência de direitos
P
O Durante o processo de formação organizacional, estabelecimento
L da agenda e construção dos movimentos, ativistas sociais e grupos
Í
T
marginalizados podem capitalizar as percepções, associadas às normas
I legais, de que são portadores de direitos, para iniciar e nutrir a mobili-
C
A
zação política, o que fomenta a criação de uma consciência de direitos
.
(MCCANN, 1998, p. 83; 2006, pp. 25-6). Segundo McCann, os ati-
vistas podem usar as normas para nomear, desafiar, explicar e enquadrar
58
interpretativamente (frame) os problemas e injustiças sociais existentes;
para definir as aspirações e objetivos coletivos do grupo; e para construir
uma identidade comum entre os membros do movimento (ibidem).
Desse modo, normas e mecanismos legais fornecem um enqua-
dramento interpretativo para as demandas dos movimentos, permi-
tindo-lhes articular uma histórica causal mais ampla sobre as relações

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sociais existentes, que sinaliza os culpados pelos problemas bem como
as melhores vias para solucioná-los (idem, 1998, p. 84).
De modo similar, Simmons (2009) argumenta que os tratados in- “
G
ternacionais de direitos humanos e suas normas influenciam positiva-
A
mente a probabilidade de que ativistas se mobilizem para reivindicar os
N
direitos contidos nos acordos. Do ponto de vista ideacional, os tratados H
disseminam novas informações e ideias persuasivas a potenciais deman- E
dantes, fazendo não só com que eles se imaginem como portadores de I

direitos, mas também os encorajando a valorizar o conteúdo substan- N


tivo das normas, de modo a afetar a forma como indivíduos e grupos A
concebem sua identidade e definem seus interesses (SIMMONS, 2009,
L
pp. 139-40). Assim, os padrões legais internacionais sugerem aos indiví- O
duos novas maneiras possíveis de entender a sua relação com o Estado, T
despertando a consciência dos direitos e fornecendo enquadramentos E
alternativos por meio dos quais grupos e setores oprimidos podem ad- R
I
quirir um novo sentido de identidade política e legitimidade (ibidem, A
p. 141). !

Por fim, Kay (2011) também salienta que as normas internacio- M


nais podem fazer mais do que permitir e tornar possível a formulação A
de reivindicações de direitos pelos ativistas, uma vez que elas também S
teriam impacto sobre o processo de formação de identidades coletivas E
e interesses transnacionais, afetando, por conseguinte, a forma como
os ativistas se veem em relação aos Estados e outros atores. Segundo O

a autora, a mobilização do direito “pode ajudar a catalisar movimen- P


tos, recrutar membros, promover consciência de direitos e fomentar a R
solidariedade entre ativistas do movimento” (KAY, 2011, p. 421), fa- Ê

cilitando assim a construção de interesses comuns e identidades coleti- M


I
vas coesas, elementos cruciais para o desenvolvimento dos movimentos
O
sociais. ?

A dimensão político-estratégica: potencial de surgimento e


impacto da ação coletiva 59

Uma segunda maneira por meio da qual as práticas legais podem


contribuir para a emergência e posterior desenvolvimento dos movi-
mentos sociais se dá por meio da reconstrução da estrutura de oportu-
nidades políticas dentro da qual tais atores estão inseridos (MCCANN,

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1998; 2006)4. A mobilização do direito e a advocacia legal de causas
expõem vulnerabilidades das autoridades estatais e concedem saliência
e legitimidade à reivindicação de direitos e de justiça dos ativistas, o
que aumenta as chances de sucesso das suas estratégias de ação e pressão
sobre o Estado. De acordo com McCann (1998), a transformação aqui
envolve menos o esclarecimento de novos valores e entendimentos ou a
revelação de injustiças e mais um reconhecimento de que aumentaram
as chances de desafiar essas injustiças (MCCANN, 1998, p. 85).
De maneira correlata, Kay (2011) argumenta que normas e meca-
nismos legais favoráveis podem servir como importantes sinais aos mo-
vimentos sociais, encorajando-os não só a mobilizar o direito e táticas
A de litígio, mas também a utilizar outras estratégias que testem e tensio-
N nem os limites das fronteiras legais e das estruturas de oportunidades
O políticas estabelecidas. Assim, a autora afirma que, além de poder criar
V arenas jurídico-adjudicatórias internacionais que permitem o engaja-
A
mento de ativistas de diversos países uns com os outros, “leis internacio-
nais que definem e reconhecem direitos transnacionais podem facilitar a
C
I mobilização ao permitir que os ativistas façam reivindicações de direitos
Ê e ao legitimar o interesse coletivo dos ativistas de proteger seus direitos”
N
(KAY, 2011, p. 424).
C
I Nesse sentido, quando um tribunal ou mesmo um órgão semiju-
A
dicial atuam – casos respectivamente da Corte e Comissão Interameri-
D canas –, eles podem
A

P aumentar a relevância da questão na agenda pública; privilegiar


O algumas partes que tenham demonstrado interesse na questão;
L criar novas oportunidades para essas partes se mobilizarem em
Í
torno da causa; e fornecer recursos simbólicos para esforços de
T
I mobilização em diversos campos. (MCCANN, 2010, p. 186)
C
A Ademais, a facilitação da mobilização coletiva decorrente desses
. efeitos pode ainda incitar novos litígios e estimular outros tipos de
ações e iniciativas políticas que não apenas aquelas restritas ao âmbito
60 jurídico-legal, como táticas de lobby e campanhas midiáticas (ibidem).

4
De acordo com Sikkink (2005, p. 155), estruturas domésticas de oportunidades
políticas referem-se a “quão abertas ou fechadas (...) as instituições domésticas
estão perante a participação e pressões de redes e movimentos sociais”.

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Assim, à medida que os ativistas utilizam essas novas oportunidades,
eles adquirem maior confiança e sofisticação na sua capacidade de mo-
bilizar normas e convenções legais para apontar problemas, indicar res- “
ponsáveis e defender suas causas. Dessa maneira, gera-se um novo senso G

de eficácia: pessoas que antes se consideravam desamparadas passam a A


N
acreditar que têm capacidade para alterar sua sorte (MCCANN, 1998,
H
p. 85).
E
A esse respeito, Simmons (2009) também ressalta que, para além da I

dimensão dos valores e das ideias, os tratados e normas internacionais N


influenciam ainda o componente mais estratégico do valor esperado da A
mobilização, afetando os recursos e estrutura de oportunidades políticas
L
dos movimentos sociais. Segundo a autora, um tratado produz vários O
efeitos que aumentam as chances de mobilização bem-sucedida. Em T
primeiro lugar, ele compromete de antemão o governo a ser mais recep- E
tivo a demandas formuladas em termos dos direitos inscritos no acordo. R
I
Isso porque, depois da ratificação, fica mais difícil para o governo negar A
a importância da promoção dos direitos sem incorrer em acusações de !
inconsistência entre seus compromissos e suas práticas (SIMMONS,
M
2009, pp. 144-5).
A
Em segundo lugar, tratados de direitos humanos fornecem recursos S
intangíveis aos defensores de direitos, imbuindo suas queixas de legitimi-
E
dade, já que eles sinalizam o acordo existente no plano interestatal sobre
as melhores práticas disponíveis em termos de direitos. Dessa maneira, O

eles podem se converter em: pontos de referência, a partir dos quais P


grupos e indivíduos se asseguram de que suas exigências são razoáveis R
e legítimas; pontos focais em torno dos quais os demandantes podem Ê
coordenar e priorizar seus esforços; e modelos de legislação doméstica, M
os quais podem ser utilizados por ONGs e movimentos sociais (ibidem, I
O
p. 146-7).
?

Finalmente, a ratificação de um tratado e a emissão de uma decisão
internacional de direitos humanos aumentam o conjunto de estratégias
possíveis das quais um movimento social pode se valer para alcançar 61
seus objetivos, incluindo formas de ação parcialmente institucionali-
zadas. Abre-se a oportunidade para utilizar leis, políticas e outras ala-
vancas institucionais oficiais, exercendo uma espécie de resistência legal
dentro dos marcos dos compromissos reconhecidos pelo Estado, resis-
tência essa que não necessariamente se restringe apenas aos tribunais,

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como no caso dos litígios, e que pode, ademais, explorar as divisões
dentro do Estado entre órgãos e burocracias mais ou menos inclinados
à promoção dos direitos humanos (ibidem, pp. 147-8).
Além disso, Simmons (2009) aponta ainda um mecanismo adi-
cional de ampliação da estrutura de oportunidades políticas, cujo im-
pacto principal é sentido na agenda nacional de prioridades de políticas
das elites político-institucionais, apesar de se fazer refletir também nas
perspectivas de mobilização coletiva dos atores sociais, ao ampliar suas
possibilidades discursivas. Normas internacionais de direitos humanos
introduzem questões, conteúdos e enquadramentos normativos exóge-
nos aos canais tradicionais de produção legislativa e de formulação de
A
políticas de um país, alterando potencialmente os termos dos debates
N realizados até então (ibidem, pp. 127-9; 149). Direitos e temas de po-
O líticas estranhos, negligenciados ou não prioritários nas agendas nacio-
V
A
nais, mas que foram negociados internacionalmente, são incorporados
ao circuito político-institucional e passam a afetar o conjunto de op-
C ções legítimas de políticas dos governos, excluindo certas possibilidades
I antes existentes e recolocando as reformas pró-direitos em uma posi-
Ê
N ção mais alta na agenda nacional (ibidem, p. 128). Isso pode, por um
C lado, legitimar e ampliar os frames dos ativistas e, por outro, fomentar
I
A
e facilitar a mobilização coletiva de atores sociais demandantes nessas
matérias.
D
A Como resultado, mudanças legislativas e desenhos de políticas
orientados para a questão dos direitos humanos, que anteriormente
P
O
eram inexistentes ou impensáveis, podem ser impulsionados pela ne-
L cessidade de levar em consideração a ratificação de um tratado ou uma
Í
T
decisão internacional condenatória. Cresce a probabilidade desse tipo
I de resposta porque o silêncio diante de um direito – que se tornou
C
saliente por meio de negociações internacionais e que foi reconhecido
A
.
formalmente pelo Estado – pode ser facilmente interpretado como uma
postura de oposição ao tratado ou ao órgão internacional, o que pode
62
comprometer a legitimidade e reputação do regime doméstico, retra-
tado a partir de então como um violador de obrigações internacionais
que estaria de fora do in-group da comunidade de nações democrático-
-liberais respeitadoras dos direitos humanos.

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A dimensão instrumental das táticas legais e de litígio:
ferramentas institucionalizadas de pressão nos tribunais e na
implementação de políticas “
G
No plano da atuação societal, além de afetarem interesses, identida- A
des coletivas e enquadramentos normativos, contribuindo ainda para a N
ampliação da estrutura de oportunidades políticas que favorece a emer- H
gência e reverberação da ação coletiva, normas, convenções e decisões E
I
legais também são recursos instrumentais usados por atores e movimen-
tos sociais para a consecução de finalidades específicas e resultados prá- N
ticos tangíveis. A esse respeito, McCann (2010) afirma que “O Direito A
(...) é uma linguagem, um conjunto de lógicas, valores e entendimentos L
que as pessoas conhecem, esperam, aspiram e se sentem portadoras. E o O
Direito também é um conhecimento instrumental sobre como agir para T
alcançar esses fins” (MCCANN, 2010, p. 189). E
R
McCann (2006) assinala que o litígio e a advocacia legal oferecem I
aos ativistas sociais uma fonte de alavancagem institucional, simbólica A
e tática, contra seus oponentes e contra atores recalcitrantes ao processo !

de cumprimento e aplicação de suas reivindicações de direitos. Nesses M


casos, o uso dos mecanismos legais ocorre para atrair e “forçar a atenção A
para as demandas do movimento e para compelir pelo menos algumas S
concessões de políticas (...) de funcionários estatais ou outros atores po- E
derosos” (MCCANN, 1998, p. 92). Desse modo, os ativistas utilizam
táticas legais e o recurso ao litígio como uma estratégia de pressão, num O

esforço de gerar ação responsiva do Estado. P


A alavancagem legal importa, ademais, durante a aplicação de po- R

líticas, quando os ativistas buscam fazer com que a aceitação formal Ê


M
de novos direitos e normas se traduza de fato em mudanças de prá-
I
ticas substantivas, pressionando o Estado a levar em conta as medi- O
das preconizadas pelo processo jurídico-legal decorrente do litígio ao ?

longo de processo de tomada de decisões e implementação de políti-
cas. Nesse sentido, “táticas legais – e em especial litígio de fato ou a
sua ameaça – podem ajudar os ativistas do movimento a ganhar voz, 63
posição e influência no processo de reforma e implementação de polí-
ticas” (MCCANN, 2006, p. 32). Isso porque os movimentos utilizam
tais ferramentas para obter acesso institucional formal às instâncias do
Estado, na expectativa de que sua pressão e vigilância possam contri-
buir, entre outros objetivos, para formalizar e padronizar os processos

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de formulação e implementação de políticas em acordo com as normas
que embasam suas demandas de direitos, opondo-se, portanto, dessa
forma, a modos discricionários e insulares de tomada de decisão (ibi-
dem, p. 33).
Kay (2011), por sua vez, argumenta também que leis e mecanismos
adjudicatórios favoráveis abrem uma janela de oportunidade para que os
ativistas invoquem proteções legais e reparações às suas queixas. Como
consequência, eles podem se transformar em importantes sinais para os
movimentos sociais, encorajando-os não só a mobilizar o direito e a uti-
lizar estratégias de litígio, mas também a usar outras estratégias para im-
pulsionar seus objetivos e aumentar as chances de sucesso de suas ações
A e táticas de mobilização. Segundo a autora, “Litígio bem-sucedido pode
N fortalecer os movimentos ao aumentar seu moral, enfraquecer a oposi-
O ção e conceder legitimidade às reivindicações de direitos” (KAY, 2011,
V
p. 422), concedendo aos ativistas ferramentas de pressão mais institu-
A
cionalizadas frente aos seus alvos, o que aumenta as chances de obten-
C
ção de mudanças de políticas e justifica o tempo e recursos gastos pelo
I movimento com as dispendiosas estratégias de mobilização do direito.
Ê
N Por fim, Simmons também reconhece a importância da dimensão
C instrumental das táticas legais ao frisar que o regime e as normas inter-
I
A
nacionais de direitos humanos oferecem um espaço e recursos para que
atores e grupos domésticos litiguem contra o seu próprio Estado no
D
plano local, tendo por fundamento os direitos reconhecidos nos trata-
A
dos (SIMMONS, 2009, pp. 129-35; 150). As obrigações legais interna-
P
cionais contraídas podem converter-se, desse modo, em um importante
O
L
componente do direito doméstico, i.e., podem transformar-se em obri-
Í gações legais executáveis no plano interno, a partir das quais demandas
T
I de atores sociais e decisões judiciais podem se basear, o que oferece,
C portanto, por um lado, novas ferramentas de litígio para indivíduos e
A
grupos nos tribunais locais, e, por outro, novos recursos jurídico-legais
.
para que atores judiciais progressistas interessados na aplicação do di-
reito internacional possam fortalecer sua posição institucional e supe-
64
rar as resistências encontradas ao avanço das suas agendas pró direitos
humanos.
Todavia, o litígio é uma possível estratégia política aplicável não só a
casos emblemáticos e representativos ou à construção de uma jurispru-
dência nacional pró-direitos humanos. Seus resultados judiciais podem

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também reverberar na revisão de regras e leis, além de dar visibilidade
às ações e às causas antes invisibilizadas de ONGs e movimentos sociais
(ibidem, p. 132). Ademais, o litígio contribui ainda para reenquadrar “
demandas políticas que, a princípio, são específicas e particulares den- G

tro do marco mais universalista e legitimador oferecido pela linguagem A


N
dos direitos humanos, potencialmente alterando como as questões são
H
concebidas, expressadas e discutidas (ibidem, p. 134).
E
I

O balanço do caso da guerrilha do Araguaia N


A
Reconhecimento da vitória
L
Dentro do grupo de familiares mais ativos no acompanhamento O
do caso Gomes Lund, o balanço sobre o litígio no SIDH reflete, ao T
E
mesmo tempo, tanto o reconhecimento dos efeitos e da importância
R
da sentença condenatória da CoIDH como avaliações críticas sobre as I
limitações dessa vitória, apontando assim para as potencialidades e en- A
traves das decisões do SIDH, de modo geral. Apesar do grande valor !

atribuído a essa conquista, do papel que ela passa a ocupar como eixo M
central de reivindicação desse grupo e do seu claro impacto, não só para A
a agenda de demandas dos familiares, mas também para o sentimento S
de empoderamento pessoal desses militantes, prevalece a frustração com
E
a falta de resultados da condenação internacional, que, aliás, reforça
o histórico de atuação política dessa agrupação, já acostumada com a O

irresponsividade do Estado frente aos temas da verdade e justiça5. A P


respeito dessa ambivalência perante o SIDH, de maneira emblemática, R
Laura Petit da Silva afirma que “a gente tem a sentença, tipo assim, ga- Ê
nhou, mas não levou, porque até agora, sabe, você [diz] ‘ah, ganhei na M
loteria! Mas e o prêmio?’” (Laura Petit da Silva, 2014). I
O
De início, no que se refere às consequências e impactos positivos ?
da sentença condenatória da CoIDH para o movimento de familia- ”

res de mortos e desaparecidos políticos da ditadura militar, a decisão


65

5
Apesar do pagamento de reparações, o Estado se nega a revelar os arquivos
e informações sobre as campanhas militares contra a guerrilha do Araguaia.
Os familiares das vítimas ainda buscam os restos mortais dos mortos e
desaparecidos políticos e nenhum agente estatal responsável pelos crimes
cometidos contra a humanidade foi processado e punido penalmente.

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é responsável por efeitos político-estratégicos, simbólico-subjetivos e
tático-instrumentais, os quais fortalecem o grupo, suas reivindicações
e seus membros. Em primeiro lugar, do ponto de vista das implica-
ções macropolíticas, a decisão impulsiona respostas internas de ato-
res como MPF, contrário à agenda da persecução penal individual até
2011, agregando novas fontes de apoio político e oferecendo novos
recursos jurídico-legais a serem utilizados em litígios domésticos nos
tribunais nacionais brasileiros em casos de processos criminais contra
agentes estatais da ditadura militar. Dessa forma, tal como esperado pe-
las perspectivas sócio-legais sobre a mobilização do direito, não apenas
a agenda nacional de políticas e as decisões legais domésticas são afeta-
A das, mas também cresce a reverberação e chance de sucesso das deman-
N
das dos familiares. Frente à obrigação expressa de investigar, processar
O e punir do SIDH, uma minoria de procuradores federais progressistas
V do MPF tem encontrado na sentença Gomes Lund ferramentas que os
A
legitimaram a reabrir o debate sobre a responsabilização penal, até então
aparentemente interditado de maneira absoluta pela decisão do STF na
C
I ADPF 153.
Ê
N
Além disso, em segundo lugar, ainda do ponto de vista dos efei-
C tos político-estratégicos, a sentença da CoIDH faz também com que a
I agenda do grupo de familiares converta-se em determinação obrigatória
A
de um tribunal internacional reconhecido pelo Estado, afastando as crí-
D ticas de que se trataria apenas de um conjunto de reivindicações particu-
A
lares, privadas e sectárias sobre militantes desaparecidos de classe média.
P Assim, por um lado, a sentença contribui para reconstruir e expandir a
O
L
estrutura de oportunidades políticas dentro da qual os familiares estão
Í inseridos, aumentando a relevância da questão no circuito político-ins-
T
I
titucional doméstico e imbuindo suas queixas de legitimidade e visibili-
C dade. Ao mesmo tempo, a sentença se converte simultaneamente não só
A em um ponto focal em torno do qual os familiares podem catapultar o
. alcance e impacto das suas reivindicações, mas também em um modelo
claro, objetivo e indisputável que reúne as práticas e políticas a serem
66
cumpridas pelo Estado, transformando-se, assim, em uma ferramenta
altamente institucionalizada de pressão e resistência que ajuda a manter
e fomentar a mobilização social em torno da causa.
Por outro lado, a decisão fornece ainda, em terceiro lugar, um novo
enquadramento interpretativo para as demandas dos familiares. Abre-se

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a oportunidade de articular, por meio da mobilização do direito inter-
nacional, um retrato completo da política sistemática de violações da
ditadura, assinalando suas causas e sinalizando claramente as responsa- “
bilidades do Estado e os caminhos a serem seguidos em termos de ver- G
A
dade, justiça e medidas de não repetição, o que abala profundamente o
N
enquadramento jurídico prevalecente no Brasil sobre os efeitos e alcan-
H
ces da Lei de Anistia. Isso reposiciona o caso específico da guerrilha do E
Araguaia dentro de uma narrativa mais abrangente que condena, para I
além desse episódio, todas as violações de direitos humanos perpetradas N
pela ditadura, assinalando os abusos cometidos contra o conjunto da A
sociedade brasileira naquele período. Consequentemente, lança-se luz
L
sobre a negligenciada agenda da justiça e se afasta a estigmatização his-
O
tórica sofrida pelos familiares e vítimas, tradicionalmente representados T
como comunistas antipatrióticos. Logo, constrangem-se as possibilida- E
des discursivas do Estado, com especial atenção para a reiterada noção R
I
da anistia eivada de impunidade como pacto fundacional da redemo-
A
cratização e da retomada do Estado de Direito. !

Na avaliação de Amélia Teles e Togo Meirelles, a sentença da Corte M


constitui uma grande vitória de enorme significação política, responsá- A
vel pelo embasamento da atuação mais recente do MPF frente aos cri- S
mes do regime militar, impulsionando, dessa maneira, novas e inéditas
E
respostas de atores internos. As tipificações, argumentos e categorias
legais presentes na sentença, combinados com a pressão social do movi- O

mento de familiares, formariam, assim, nas suas leituras, a base que tem P
impulsionado as respostas domésticas de vários procuradores (Maria R
Amélia de Almeida Teles, 24 set. 2014; Togo Meirelles, 2014). Ê
M
Ademais, ainda no tocante às consequências macropolíticas, a con-
I
denação serve ainda de ferramenta política a outros movimentos sociais O
que podem se valer não só dos dispositivos da sentença, mas também do ?

exemplo e experiência acumulada dos familiares de mortos e desapareci-
dos políticos frente ao SIDH para confrontar as muitas arbitrariedades
do Estado que ainda persistem impunemente. Na opinião de Criméia 67
Schmidt de Almeida, a vitória no SIDH contribui para

as pessoas perceberem que elas têm direitos, não é? Então você


pega, por exemplo, as mães de maio de 2006 [mães e familiares de
centenas de jovens desaparecidos de maneira forçada e executados

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extrajudicialmente pela Polícia Militar do Estado de São Paulo
em maio de 2006, em retaliação a ataques de uma organização
criminosa, o Primeiro Comando da Capital], elas não levaram tanto
tempo quanto a gente. Certo? Elas já encontraram um caminhozinho
andado. Já encontraram, está certo, alguém que disse, “olha, por ali
dá. Já trilharam aquele caminho”. (Criméia Alice Schmidt de Almeida,
23 set. 2014)

Além disso, por mais que a sentença não seja cumprida, tanto o
silêncio sobre o passado quanto o discurso oficial de que o Estado já
tomou todas as medidas possíveis no tocante à justiça de transição fo-
ram irremediavelmente abalados. Novamente segundo Criméia, põe-se
A fim em definitivo à mitologia do acordo fundador da Nova República,
supostamente celebrado por meio da Lei de Anistia, e “essa sentença
N
O
vai pra história do Brasil. Então nós não vamos ter uma história tão
V bonitinha como se costuma contar a história, né? Nós não vamos ter lei
A áurea aqui, coisinhas do gênero” (Criméia Alice Schmidt de Almeida,
23 set. 2014). De igual maneira, as demandas dos familiares ganham a
C
I chancela da CoIDH e adquirem uma nova dimensão política e jurídica,
Ê impulsionando novas estratégias de resistência institucional. Nas pala-
N
vras de Elizabeth Silveira, “Não sou eu mais que estou falando, agora
C
I quem está falando é a justiça internacional. O Brasil não é signatário,
A não assinou?” (Elizabeth Silveira, 2014).
D Por sua vez, finalmente no que tange ao impacto da decisão da pers-
A
pectiva mais subjetiva e simbólica das vítimas, é consensual entre os fa-
P miliares o sentimento de empoderamento pessoal e político e a sensação
O
de finalmente poder afastar os estigmas, preconceitos e ter os seus direitos
L
Í reconhecidos, demonstrando assim a justeza da luta política empreen-
T
I
dida há mais de quatro décadas. A sentença fortalece as reivindicações
C históricas do movimento e contribui para a construção social, política
A e simbólica dos familiares enquanto portadores legítimos de direitos
.
que merecem reconhecimento público oficial. Para Amélia Teles, como
resultado desse processo, “você cresce, você se sente orgulhosa, você é
68
protagonista de uma história” (Maria Amélia de Almeida Teles, 24 set.
2014).
Para Lorena Moroni, a condenação proporciona um alívio, ao pro-
var que os familiares sempre estiveram certos e que os militares viola-
dores de direitos humanos nunca defenderam a pátria (Lorena Moroni,

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2014). Ainda a esse respeito, Laura Petit oferece o relato mais bem-
-acabado de como o julgamento na CoIDH, por si só, representa uma
forma de reparação moral e de reconhecimento: “
G
A
Quando eu fui lá, eu pude contar toda minha história, foi assim, “pela
N
primeira vez estou podendo falar e ser considerada uma cidadã que
teve os seus direitos violados”, que meus irmãos só não eram vítimas, H

eu também fui considerada uma vítima, porque eu tive a minha E


I
família dizimada (...) Aqui no Brasil não me sentia uma cidadã. Lá eu
me senti uma cidadã do mundo. (Laura Petit da Silva, 2014) N
A
Assim, em suma, os familiares reconhecem a importância da conde-
nação e a implementação da sentença passa a ocupar um papel central L
O
dentro das suas estratégias de atuação. Ao acolher todas as demandas
T
históricas dos familiares, a decisão da CoIDH se transforma em um va- E
lioso instrumento de luta, cujo cumprimento permite não só sustentar R
e fortalecer a mobilização dos familiares dos guerrilheiros do Araguaia, I
A
mas também de outras vítimas do regime militar, já que a abrangência !
das suas determinações, referidas a todas as graves violações de direitos
humanos da ditadura, abre considerável espaço para construir alianças M

com outros grupos afetados (Criméia Alice Schmidt de Almeida, 12 set. A


S
2014), expandindo a estrutura de oportunidades políticas e a coalizão
de atores pró-cumprimento. Dessa forma, a luta travada pelos parentes E
das vítimas da guerrilha do Araguaia repercute sobre todos os outros ca-
O
sos da ditadura, permitindo inclusive que o MPF, com base na sentença,
tente reverter, na nova ADPF 3206, ainda em tramitação, a interpreta- P
ção firmada na ADPF 153. R
Ê
Nesse sentido, o impacto da sentença é tão relevante que até mesmo M
as palavras de ordem das militantes passam a fazer menção expressa I
à decisão da CoIDH e à necessidade imperiosa de seu cumprimento, O
revelando assim a centralidade adquirida por esse diploma legal como ?

um dos novos eixos norteadores do movimento de familiares. Como
resultado dessa conquista, Victoria Grabois relata ter passado por um
69

6
Apresentada ao STF pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), em maio
de 2014, a ADPF 320 gira em torno da sentença condenatória da CoIDH e do
descumprimento da Convenção Americana de Direitos Humanos pelo Brasil,
requerendo que a Lei de Anistia deixe de ser utilizada como uma barreira face
aos esforços de persecução penal.

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processo de aprendizado e reavaliação a respeito das potencialidades da
mobilização do direito. Se antes a via jurídico-legal era vista com des-
confianças, após a condenação ela passou a compreender a possibilidade
de explorar e aproveitar todas as pequenas brechas e interstícios exis-
tentes dentro dessa estrutura de sustentação do Estado burguês. A esse
respeito, a militante frisa que

apesar que a OEA é um órgão do imperialismo e que sempre serviu


ao capital, hoje em dia eu acho que a gente tem que usar todos os
meios que a gente precisa. Naquela época [em 1995] eu não tinha
essa visão (...) Então eu era contra isso [enviar o caso para a CIDH],
porque eu era [radical]. Agora, depois que eles deram a sentença
A favorável, aí eu achei que tudo que foi feito foi correto, que a minha
N posição era uma posição sectária (...) o Direito foi feito para você
O consolidar o Estado burguês, o Estado capitalista. E tem brechas, né?
V Você sempre encontra uma brechinha no Direito. (Victoria Grabois,
A 2014)

C
I Frustração com os obstáculos e a falta de resultados
Ê
N Já no que tange às críticas dirigidas às limitações do SIDH, os fami-
C liares se queixam da legalização e judicialização excessivas do sistema7,
I
A
as quais se constituem em barreiras para a sua ativação, demandando
assim a necessidade de intermediação e tradução por parte de uma or-
D
ganização não governamental (ONG) de direitos humanos especiali-
A
zada e com uma equipe de advogados altamente treinada. Ao considerar
P a trajetória do caso Gomes Lund, é consensual entre os familiares a
O
L
importância do trabalho do CEJIL e a avaliação de que seu papel foi
Í imprescindível para o andamento e conclusão bem-sucedida do litígio.
T
I A impossibilidade de realizar um acompanhamento sistemático do
C
caso, a falta de treinamento jurídico e de recursos para arcar com as des-
A
pesas de deslocamento para as sessões da CIDH e CoIDH, bem como
.

70
7
O processo crescente de judicialização e legalização do SIDH nas últimas duas
décadas se refere sobretudo às práticas e procedimentos da CIDH, que tem
progressivamente tratado as denúncias e queixas recebidas como um processo
judicial cada vez mais exigente em termos de apresentação de evidências
e argumentos jurídico-legais, “moldados no domínio de advogados que se
especializam em litígio” (DULITZKY, 2011, p. 143).

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o desconhecimento a respeito das regras informais de funcionamento
do SIDH, são frequentemente apontados pelos familiares como fatores
que dificultam o acesso ao mecanismo regional de direitos humanos, “
tornando necessária a parceria com uma ONG litigante especializada e G
A
com um perfil especificamente voltado para a ativação do SIDH. Assim,
N
Laura Petit afirma que “o CEJIL, ele está equipado, ele tem as ferramen-
H
tas, tem o conhecimento do funcionamento do sistema interamericano, E
e ele foi quem possibilitou essa via de acesso também” (Laura Petit da I
Silva, 2014). N
Refletindo mais detidamente sobre a questão dos custos e da ne- A
cessidade de um conhecimento jurídico altamente especializado, capaz L
de compreender todos os intrincados caminhos de processamento dos O
casos, Elizabeth Silveira afirma que T
E
R
como que a gente ia [acompanhar]? Porque é custoso, é caro (...)
I
não é qualquer advogado, é um advogado que tenha esse perfil (...) A
Tem também a sua política interna que você tem que estar lá dentro !
pra saber, entender, movimentar, quem você vai falar, quem você
procura, quem é o juiz que é assim, quem é o secretário (...) Se agora M
eu peço um relatório, se agora eu peço uma audiência, se eu não A
peço. (Elizabeth Silveira, 2014) S

E
Por sua vez, para Amélia Teles, para além da questão dos altos cus-
tos e da falta de preparo, o problema é antes a necessidade de interme- O
diação e tradução frente aos códigos e questões jurídicas manejados pelo
P
SIDH, os quais constituem uma barreira intransponível para os fami- R
liares. Frente aos meandros legais, burocráticos e linguísticos do SIDH, Ê
torna-se indispensável a presença de um intérprete, como o CEJIL, a M
fim de que os trâmites e exigências para o andamento do caso sejam I
O
inteligíveis para os familiares. Para a militante,
?

[Sem o CEJIL] Não é possível, porque você tem que acompanhar


aquilo todo dia. É igual a justiça. Ela é tão ruim, que se você não tiver
um profissional intermediário, ela não funciona. Você não entende o 71

que eles estão falando, eles estão em Washington, estão lá na Costa


Rica, você não tem condição. Não tem nem saúde, porque tem horas
que eles te perguntam coisas que pra você, na sua compreensão
simples da coisa, você já respondeu desde o primeiro dia. (Maria
Amélia de Almeida Teles, 29 ago. 2014)

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De forma mais geral, a necessidade de tradução e acompanhamento
pelo CEJIL reflete também outras limitações e aspectos criticáveis do
sistema interamericano, os quais ajudam a compor o quadro de am-
bivalência dos familiares frente ao resultado do litígio. A despeito do
reconhecimento do efeito de empoderamento pessoal e das dinâmicas
político-jurídicas desatadas pela sentença, são comuns as críticas sobre a
demora injustificável, dificuldade de acesso, altos custos, desgaste com
as exigências burocrático-processuais e falta de meios para obrigar o
Estado a cumprir as sentenças da CoIDH.
Sobre a demora do sistema interamericano, não só no que se refere
ao trâmite do caso da guerrilha do Araguaia, mas também no que diz
A respeito à sua ausência e negligência durante a ditadura militar, Criméia
N considera que o SIDH é um instrumento útil de pressão, mas pouco
O ágil, tendo sido incapaz de garantir a defesa dos direitos humanos justa-
V mente quando, no auge do regime militar, mais se havia necessitado da
A
atuação da CIDH. Desse modo, “se a gente entrou [com o caso] porque
o Brasil não tinha vontade de fazer justiça, a Comissão [Interamericana]
C
I também não teve tanto empenho” (Criméia Alice Schmidt de Almeida,
Ê 12 set. 2014)8. Como resultado,
N
C
I [o sistema interamericano] é uma ferramenta difícil de ser usada
A (...) Ah, por todo esse processo. Você tem que fazer uma ação aqui.
É cheia de teretetê, né? Não é uma ferramenta ágil. Porque eu acho
D
que a questão dos direitos humanos, você tem que defender no
A
momento que ele está sendo desrespeitado. Se for defender direitos
P humanos de defunto há mais de quarenta anos atrás, é pouco.
O (Criméia Alice Schmidt de Almeida, 23 set. 2014)
L
Í
T No que tange à dificuldade de acesso e aos altos custos decorren-
I tes da tramitação do caso, Criméia considera que “É difícil recorrer,
C
A
porque envolve [deslocamento]. Só por correspondência você não re-
.
solve. Então envolve a ida física a esses lugares, isso é dispendioso, não
é fácil. (...) Então eu acho que por isso não se recorre mais” (Criméia
72
Alice Schmidt de Almeida, 23 set. 2014). A respeito da inexistência de
mecanismos efetivos que forcem o Estado a implementar a sentença,

8
A petição foi apresentada em 1995 e somente em 2008, depois de ter admitido
o caso em 2001, é que a CIDH emitiu um relatório de mérito e logo em seguida
enviou o caso para a CoIDH.

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Elizabeth Silveira reconhece, quase que de maneira resignada, que “a
Corte [Interamericana] (...) não tem poder de (...) sanção. Não existe
nenhuma sanção para o país. Se ele [o país] não fizer, vai ficar feio [para “
o país]. Mas tipo, não fez. ‘Ah, ficou feio’. Dou de ombro” (Elizabeth G

Silveira, 2014). A
N
Em meio a esse cenário, no qual não se pode compelir o Estado a
H
cumprir a decisão, à CoIDH não resta alternativa senão aguardar que E
as autoridades brasileiras honrem suas obrigações internacionais. Para I
Criméia, isso equivale ao ato pelo qual Pôncio Pilatos lavou suas mãos
N
frente à crucificação de Jesus Cristo, uma vez que A

estão investindo na morte dos réus, porque aí não precisa julgar (...) L
O
tanto a Corte aguarda, como o Estado brasileiro aguarda (...) dá uma
T
de Pilatos (...) Porque senão seriam mais (...) enfáticos, e [haveria]
E
mais coisa nos relatórios de cumprimento. (Criméia Alice Schmidt de
R
Almeida, 23 set. 2014)
I
A
Por seu turno, para Amélia Teles, num processo já demasiadamente !
lento, longo e complexo, permeado por altos custos e incertezas quanto
M
ao seu resultado final, o SIDH aloca uma carga desumana de exigências
A
provatórias, burocráticas e processuais para as vítimas, as quais são ex- S
postas a um desgaste desnecessário que deveria ser, em sua opinião, de
E
responsabilidade dos operadores da CIDH e da CoIDH e não daqueles
que já sofreram violações de direitos humanos e se encontram muitas O
vezes em situação de vulnerabilidade. Nas suas palavras,
P
R
[O que] eles exigem das entidades, das pessoas é desumano. Eu acho
Ê
desumano. Exigir aquelas perguntas e respostas [...] Eles podiam
M
mandar um especialista vir [fazer] um resumo, relatório”. (Maria
I
Amélia de Almeida Teles, 24 set. 2014) O
?

Por fim, alguns familiares queixam-se de que, para serem ouvidos
pelo SIDH e em outros espaços institucionais, domésticos e internacio-
nais, tiveram de moderar o teor de suas críticas e adotar uma nova iden- 73
tidade de ativistas de direitos humanos, em detrimento da sua postura
de militância política mais contestatória. Face ao predomínio crescente
dos direitos humanos tanto sobre outras narrativas rivais de dissenso
quanto sobre projetos e visões alternativos que buscam obter legiti-
midade política (BEITZ, 2009; HAFNER-BURTON; RON, 2009,

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p. 393), a adoção desse discurso se converteu em pré-requisito para que
os familiares fossem ouvidos e pudessem vislumbrar alguma chance,
ainda que mínima, de impacto na agenda pública, o que exerce, desse
modo, um papel de constrangimento sobre a atuação e perfil das ativi-
dades desses grupos.
A esse respeito, Victoria Grabois, presidente do GTNM-RJ, fami-
liar de três desaparecidos da guerrilha do Araguaia e detentora de uma
formação política comunista, demonstra em seu relato dificuldade para
“digerir essa linguagem dos direitos humanos” (Victoria Grabois, 2014)
que, na sua avaliação, teria sido imposta aos familiares como decorrên-
cia da sua própria luta política e do cálculo de que, para ter alguma in-
A fluência, era preciso incorporar essa narrativa específica em detrimento
N de outras plataformas políticas. Nas suas palavras,
O
V eu acho muito engraçado quando eu sou apresentada como uma
A defensora dos direitos humanos. Às vezes eu tenho vontade de rir
(...) porque nos empurraram pra isso (...) isso [ser caracterizada
C como defensora dos direitos humanos] é contra, totalmente, os
I
meus princípios. Mas essa luta me levou a [...] ser “defensora dos
Ê
direitos humanos” (...) A gente é recebida porque a gente é “defensor
N
C dos direitos humanos”. O grupo Tortura Nunca Mais é “defensor dos
I direitos humanos”. (Victoria Grabois, 2014)
A

D
Essas críticas e considerações revelam assim um efeito potencial-
A mente perverso não só do SIDH, mas de todo o regime internacional
de direitos humanos. Para que suas causas e demandas ganhem visibili-
P
O dade e legitimidade, vítimas e grupos vulneráveis precisam incorporar
L a linguagem, as categorias jurídico-legais e as normas e práticas institu-
Í
T
cionais de registro das violações e de produção de informações oriundas
I do regime internacional de direitos humanos, aceitas como “neutras”,
C
críveis, verificáveis e reproduzíveis pelas organizações intergovernamen-
A
tais, grandes ONGs internacionais, audiências externas e organismos
.
doadores. Por conseguinte, como resultado desses constrangimentos,
são abandonadas as narrativas de dissenso mais totalizantes, radicais e
74
contestatórias do passado, em favor de um marco mais liberal e minima-
lista atrelado à lógica de mudanças incrementais. Para que possam con-
quistar audiências domésticas e internacionais, movimentos políticos
antes calcados em um tipo de ação política mais transformadora, con-
testatória, de resistência e de ruptura deslocam-se consequentemente

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para um lugar normatizado, marcado pelo ativismo profissional desa-
paixonado e de forte adesão ao universo jurídico-legal dos escritórios
de advocacia. Mudanças substantivas e radicais das estruturas sociais “
não são o alvo prioritário dos direitos humanos, e embora seja clara a G

necessidade de instrumentalizar essa abordagem como uma ferramenta A


N
política, muitos familiares não se contentam apenas com essa lingua-
H
gem, uma vez que se trata de “muito pouco para quem queria muito”
E
(Elizabeth Silveira, 2014). I

N
Comentários Finais A

A mobilização dos recursos jurídico-legais da sentença da CoIDH L


O
no caso Gomes Lund como ferramenta política contestatória gerou
T
um ponto focal em torno do qual familiares, CEJIL e MPF continuam E
a pressionar o Estado a despeito dos enormes obstáculos contrários à R
consecução da agenda de justiça de transição no Brasil. A despeito de I
todas as críticas realizadas pelos familiares dos mortos e desaparecidos A
!
políticos na guerrilha do Araguaia, as quais apontam para importantes
limitações e problemas da atuação do SIDH, é inegável que a sentença M
condenatória da CoIDH se constitui em um dos poucos caminhos ainda A
abertos no Brasil para que inúmeras vítimas das atrocidades dos crimes S

de lesa-humanidade possam confrontar o Estado e lutar em favor de E


verdade, justiça, reparações e medidas de não repetição, instrumentali-
zando assim a normatividade internacional para empoderar e fortalecer O

suas reivindicações de direitos diante de um contexto nacional cujas P


barreiras legais e políticas têm impedido qualquer forma de avanço das R
suas demandas. Ê

Desse modo, de acordo com as perspectivas dos familiares mais en- M


I
volvidos com o processo de litígio, e tal como teorizado pela literatura O
sócio-legal, os efeitos positivos da atuação do SIDH – empoderamento ?

pessoal e político das vítimas; reconstrução e expansão da estrutura de
oportunidades políticas dentro da qual os familiares das vítimas estão
inseridos; criação de novos recursos de litígio contra o Estado; oferta
75
de novos enquadramentos interpretativos para as queixas dos fami-
liares; e canalização da sentença da CoIDH como ferramenta política
para outros movimentos sociais – superam em muito os seus efeitos
negativos ou aspectos criticáveis, tais como a legalização e judicializa-
ção excessivas, necessidade de intermediação e tradução por meio de

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ONGs especializadas, moderação do teor das demandas das vítimas,
demora injustificável, dificuldade de acesso, altos custos, imposição de
exigências burocrático-processuais às vítimas e falta de mecanismos de
enforcement.
Ainda assim, vale ressaltar esses efeitos potencialmente limitadores
da mobilização do direito sobre a prática política de atores e movimen-
tos sociais. Embora eles não tenham superado os ganhos simbólico-
-ideacionais, político-estratégicos e tático-legais no caso específico da
mobilização legal referente ao caso da guerrilha do Araguaia, não ne-
cessariamente esse será o resultado em outros contextos de ativismo
sociopolítico, uma vez que o discurso normativo-jurídico pode impor
A constrangimentos e gerar embaraços à linguagem e às estratégias con-
testatórias desses sujeitos políticos. Tal aspecto não tem recebido de-
N
O
vida atenção nos trabalhos mais recentes sobre ativismo transnacional
V e impacto doméstico de normas internacionais de direitos humanos e
A merece análise mais cuidadosa.
Em outras palavras, a mobilização sócio-legal do direito interna-
C
I
cional dos direitos humanos abre espaço para trazer à tona e legitimar
Ê interesses e reivindicações de grupos marginalizados, contribuindo para
N o processo de constituição desses atores políticos. Porém, os limites ine-
C
I
rentes à linguagem incremental dos direitos humanos e à sua dimensão
A burocrático-legal – marcada pelo alto custo de entrada, complexidade
D
e lenta temporalidade de cumprimento de ritos procedimentais – cho-
A cam-se com a urgência da dor e da perda, com o clamor de justiça e com
a radicalidade das demandas das vítimas. As tensões entre essas duas
P
O
almas da mobilização do direito, ora de voz pública9 e fomentadora
L da ação coletiva, ora de limitadora do ativismo político, não podem
Í ser ignoradas. Elas se apresentarão empiricamente, em casos específi-
T
I cos, de maneiras diferentes, a depender de distintos circuitos possíveis
C de intermediação político-legal que conectam atores e movimentos so-
A
ciais ao regime internacional de direitos humanos por meio de ONGs
.
ou outros grupos. Falta-nos clareza sobre a topografia desses circuitos
que podem fazer o pêndulo se orientar para uma mobilização sócio-
76
-legal mais tecnocrático-legalista ou transformadora e contestatória,

9
Para uma discussão relativa ao conceito de voz pública, aplicado à atuação
do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, consultar
Hernandez, 2015.

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o que exige uma agenda de pesquisa aprofundada para desvendar tais
tensões.

G
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A
. SIMMONS, Beth A. Mobilizing for Human Rights: International Law in
Domestic Politics. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2009.
78

Apêndice – Entrevistas realizadas

ALMEIDA, Criméia Alice Schmidt de. Entrevistas: Criméia Alice Schmidt


de Almeida. Ex-guerrilheira, familiar de desaparecidos políticos na guerrilha

Rogério - A nova ciencia politica.indd 78 07/05/2021 10:39:47


do Araguaia e militante da CFMDP. Entrevistas concedidas a Bruno Boti
Bernardi em São Paulo, em 12 de setembro de 2014 e 23 de setembro de
2014. “
G
SILVEIRA, Elizabeth. Entrevista: Elizabeth Silveira. Militante do GTNM-RJ A

e irmã de desaparecido político na guerrilha do Araguaia. Entrevista concedida N


H
a Bruno Boti Bernardi no Rio de Janeiro, em 21 de outubro de 2014.
E
I
SILVA, Laura Petit da. Entrevista: Laura Petit da Silva. Familiar de
desaparecidos políticos na guerrilha do Araguaia. Entrevista concedida a N

Bruno Boti Bernardi em São Paulo, em 30 de outubro de 2014. A

L
MORONI, Lorena. Entrevista: Lorena Moroni. Familiar de desaparecida O
política na guerrilha do Araguaia. Entrevista concedida a Bruno Boti Bernardi T
no Rio de Janeiro, em 23 de outubro de 2014. E
R
TELES, Maria Amélia de Almeida. Entrevistas: Maria Amélia de Almeida I
A
Teles. Ex-presa política e militante da CFMDP. Entrevistas concedidas a !
Bruno Boti Bernardi em São Paulo, em 29 de agosto de 2014 e 24 de setembro
M
de 2014.
A
S
MEIRELLES, Togo. Entrevista: Togo Meirelles. Ex-vice-presidente do
GTNM-RJ. Entrevista concedida a Bruno Boti Bernardi via Skype em 26 de E

setembro de 2014.
O

GRABOIS, Victoria. Entrevista: Victoria Grabois. Presidente do GTNM- P


RJ e familiar de desaparecidos políticos na guerrilha do Araguaia. Entrevista R
concedida a Bruno Boti Bernardi no Rio de Janeiro, em 23 de outubro de Ê
M
2014.
I
O
?

79

Rogério - A nova ciencia politica.indd 79 07/05/2021 10:39:47


Ricardo Ceneviva

Professor Adjunto de Ciência Política do Instituto de


Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Antes de
integrar o corpo docente do IESP, fui pesquisador
de pós-doutorado do Centro de Estudos da
Metrópole (bolsista CEPID/FAPESP) no CEBRAP
(Centro Brasileiro de Análise e Planejamento),
institui-ção da qual sou pesquisador associado.
Graduado em Comunicação Social (1998) e em
Ciências Sociais (2002) pela Universidade de São
Paulo (USP); com mestrado em Administração
Pública e Governo (2006) na Fundação Getúlio
Vargas (FGV/SP) na área de Economia e Política do
Setor Público. Doutorado em Ciência Política (2012) na Universidade de São Paulo (DCP/
USP). Entre 2009 e 2011, fui pesquisador visitante do departamento de Ciência Política
da universidade de Stanford nos Estados Unidos. Minhas principais áreas de pesquisa
são Instituições Políticas Brasileiras, Políticas Públicas e Métodos Quantitativos
Aplicados em Ciências Sociais.

O capítulo na presente coletânea, intitulado “O Nível de Governo Importa para


a Qualidade das Políticas Públicas?”, que trata da municipalização da educação
fundamental no Brasil, é derivado da tese de doutorado. No capítulo, avalia-se o
impacto do processo de descentralização do ensino fundamental sobre o desempenho
dos alunos medido pela proficiência em matemática e língua portuguesa. Essa pesquisa
teve desdobramentos importantes nas pesquisas do autor sobre o papel dos governos
locais na provisão de políticas públicas e serviços sociais. Os resultados apresentados
indicam que há várias razões para se descentralizar a prestação de políticas públicas,
particularmente aquelas de interesse local, como a educação. Mas, a melhoria do
desempenho depende mais de fatores contextuais, como a perfil socioeconômico
dos alunos e suas famílias, e de características das escolas e do corpo docente do que
exclusivamente do nível de governo responsável pela política.

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O NÍVEL DE GOVERNO IMPORTA PARA
A QUALIDADE DA POLÍTICA PÚBLICA?
ALGUMAS LIÇÕES DA MUNICIPALIZAÇÃO DA
EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL NO BRASIL

Ricardo Ceneviva

A municipalização da educação fundamental pode ser apontada


como uma das principais medidas governamentais implementadas no
Brasil no campo da educação básica nas últimas décadas. A municipali-
zação do ensino é vista como uma possível solução para tornar o sistema
educacional mais responsivo às demandas da sociedade, melhorar a ges-
tão escolar e, principalmente, como um mecanismo capaz de promover
a participação de familiares e da comunidade no ensino público. Seu
objetivo é não apenas aumentar o número de vagas disponíveis, mas,
sobretudo melhorar a baixa qualidade do sistema educacional público
no país.
Ao longo das últimas décadas, as escolas municipais foram
responsáveis pela incorporação de aproximadamente 15,5 milhões de
alunos, absorvendo tanto matrículas novas (cerca de 9 milhões) como
parte significativa das matrículas estaduais (aproximadamente 6,5
milhões). Ou seja, a municipalização das matrículas dá-se tanto por
meio da incorporação de novos alunos, como também por meio da
transferência de matrículas das escolas públicas estaduais para as escolas
públicas municipais.
Há, entretanto, vozes importantes que defendem a federalização da
educação básica no Brasil. Um dos principais, mas não o único, defensor
dessa proposta é o Senador e ex-ministro da educação do governo Lula,
Cristovam Buarque, que defende que o Governo Federal assuma grada-
tivamente o controle das escolas de educação básica. Recentemente, por
ocasião das discussões do Plano Nacional de Educação no Congresso
Nacional, propostas para a criação pela União de um “Sistema Nacional
de Educação” vieram ganhando destaque.

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Para os críticos da municipalização, esta tende a contribuir para o
fortalecimento das elites políticas locais e de suas práticas clientelísticas.
Ademais, segundo a versão crítica, os governos municipais no Brasil ca-
recem dos recursos financeiros, técnicos e humanos necessários para um
provimento eficiente das demandas locais. Os detratores da municipa-
lização enfatizam que a ausência de coordenação entre os sistemas edu-
cacionais de estados e municípios no Brasil teria gerado uma miríade
de propostas pedagógicas e políticas educacionais, não apenas díspares
entre si, mas em alguns casos, mesmo contraditórias.
No caso da educação básica, a participação dos diferentes níveis
de governo na prestação dos serviços de ensino público é objeto de in-
A
tenso debate, seja entre decisores políticos, seja entre pesquisadores e
N acadêmicos. Mas, afinal o nível de governo importa para a qualidade da
O política educacional? A Ciência Política tem longa tradição de debates
V
e controvérsias a respeito do nível ótimo de governo que deve ser res-
A
ponsável pelas decisões e pela prestação da política pública aos cidadãos.
C Neste debate, quem faz é tão importante quanto o que deve ser feito pelo
I Estado.
Ê
N Este capítulo pretende explorar este tema tão antigo para a Ciência
C Política – qual seja, o da relevância do nível de governo para a qualidade
I
A
das políticas públicas – tomando como objeto empírico de análise os
efeitos da descentralização da educação fundamental no Brasil dos úl-
D
A
timos 25 anos. O trabalho investiga se o nível de governo responsável
pela prestação da política pública importa para a qualidade dos serviços
P
públicos oferecidos à população. Nesse sentido, a antiga pergunta – ní-
O
L veis de governo importam? – é aplicada ao contexto contemporâneo.
Í Dadas as características da descentralização no Brasil, o trabalho exa-
T
I mina o efeito da expansão das matrículas e dos gastos municipais em
C educação na qualidade e na equidade dos serviços de educação ofereci-
A
dos à população. Para tal, investiga o efeito da municipalização do en-
.
sino fundamental no desempenho dos estudantes em língua portuguesa
e matemática.
82
As seções remanescentes deste capítulo estão organizadas da se-
guinte maneira: A próxima seção traz uma resenha dos trabalhos pro-
duzidos nos últimos anos que abordam a relação entre descentralização
e educação. A terceira seção descreve brevemente o processo de mu-
nicipalização da educação no Brasil. A seção seguinte apresenta dados

Rogério - A nova ciencia politica.indd 82 07/05/2021 10:39:47


utilizados no trabalho, discute a metodologia empregada na análise em-
pírica. A quinta seção traz os principais resultados da análise empírica.
Finalmente, a última seção conclui com um breve exame dos resultados
empíricos, à luz dos objetivos expostos acima.

O que diz a literatura sobre descentralização da


educação no Brasil?
Podem-se identificar três grupos de trabalhos e pesquisas acerca da
descentralização na produção recente em Ciência Política e disciplinas
afins: (a) uma vasta quantidade de trabalhos teóricos e estudos de caso
voltados para a compreensão de seus efeitos e, portanto, posicionando-
-se contra ou a favor da descentralização; (b) um número pouco menor
de trabalhos que procuram explicar suas causas e; finalmente, (c) um
terceiro grupo – ainda pouco expressivo numericamente – de análises
empíricas que buscam mensurar diferentes graus, padrões e efeitos de O
descentralização.
No primeiro grupo, há uma profusão de trabalhos teóricos e estu- N
Í
dos de casos1. Essa literatura, embora muito rica em estudos específicos, V
é bastante limitada no exame sistemático dos efeitos da descentra- E
lização. Esses estudos, em geral, posicionam-se contra ou a favor da L
descentralização. D
Os defensores da descentralização argumentam que a transferência E
de gastos e de poder de decisão para as esferas subnacionais pode tornar
G
os governos mais responsivos às preferências dos cidadãos “adequando
O
o provimento dos serviços públicos a grupos menores e mais homo- V
gêneos” (Waliis et al. 1998). Essa argumentação, que possui diferen- E
tes formulações2 baseia-se nos trabalhos seminais de Charles Tiebout R
(1956) e Wallace Oates (1972) para quem a descentralização fiscal – e a N
consequente competição entre os governos locais – aparece como uma O
A

1
A esse respeito ver, entre outros, Gil e Arelano (2004); Araújo (2005); Oliveira
(1999); Pinto (2000).
83
2
Essas formulações vão desde a “competição predatória” de Paul Peterson (1995)
até o “federalismo protetor do mercado” de Bary Weingast (1995), passando
pelas análises de James Buchanan (1995) dentro da tradição teórica da public
choice.

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forma de mimetizar o mercado de bens privados para regular a oferta e
a demanda de bens públicos3.
Para os críticos da descentralização, por outro lado, esta tende a con-
tribuir para o fortalecimento das elites políticas locais e de suas práticas
clientelísticas. Ademais, segundo a versão crítica, os governos locais ca-
recem dos recursos financeiros, técnicos e humanos necessários para um
provimento eficiente das demandas locais4 Essa crítica, quando direcio-
nada especificamente ao caso da educação brasileira, enfatiza – além dos
fatores apontados acima – que a ausência de coordenação entre os sis-
temas educacionais de estados e municípios no Brasil teria gerado uma
miríade de propostas pedagógicas e políticas educacionais, não apenas
A
díspares entre si, mas em alguns casos, mesmo contraditórias.
N
O segundo grupo de análises, que busca compreender as origens
O
V
e causas da descentralização, representa seguramente a maior, mais di-
A versa e consolidada parcela da literatura em Ciência Política que trata
da descentralização. Em geral, essa literatura explica a descentralização
C como uma função de: (i) incentivos eleitorais ou, (ii) de características
I
Ê do sistema partidário. Riker (1964), por exemplo, argumenta que o
N grau de descentralização das federações depende, fundamentalmente, da
C
I
estrutura de seus partidos políticos. Ou seja, segundo Riker, a descen-
A tralização dos sistemas federativos está diretamente relacionada ao grau
D
de descentralização do sistema partidário. Assim, se a descentralização
A dos Estados federativos está associada à estrutura do sistema partidário,
P
os processos de centralização e descentralização poderiam ser explicados
O em função das variações na estrutura dos sistemas partidários e dos par-
L tidos políticos. Mudanças nos partidos e nos sistemas partidários seriam
Í
T seguidas de alterações no grau de centralização ou descentralização das
I federações.
C
A
.
3
Entre os principais entusiastas da descentralização que se apoiam nos
84
argumentos de mais eficiência e democracia nas políticas públicas ver, entre
outros: Borja (1987), Borja et al (1989), Bennet (1990), Olowu et al. (2004),
Putnam (1994), UNDP (1993), World Bank (1994). Para uma crítica dessa linha
argumentativa ver Arretche (1996).
4
Para trabalhos com um enfoque mais crítico aos efeitos da descentralização
ver: Murillo (1999), Kraemer (1997), Crook e Sverrisson (1999), Prud’homme
(1995), Samoff (1990) e Tanzi (1996), entre outros.

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Ainda dentro dessa tradição de análise das causas e origens da des-
centralização; porém, mais especificamente relacionado aos objetivos
do presente trabalho, cabe destacar o estudo de Sandra Gomes (2008).
Gomes (2008) analisa o processo recente de municipalização da educa-
ção fundamental no Brasil. A autora contesta a interpretação dominante
de que as mudanças nas regras de financiamento da educação trazidas
pelo FUNDEF seriam um fator suficiente para explicar a municipaliza-
ção da educação fundamental no Brasil. Essa interpretação, prevalente
na literatura econômica brasileira, decorre de associação automática
entre a implementação do FUNDEF e um aumento significativo da
municipalização do ensino fundamental no Brasil. A municipalização,
segundo Gomes, só pode ser explicada por um conjunto mais amplo de
fatores que incluem outras regras federais e estaduais. Tais como, a situa-
ção das contas públicas no momento da implementação do FUNDEF,
o patamar inicial das matrículas, o partido político de governadores e
prefeitos e outras variáveis de contexto local, como disponibilidade or- O
çamentária e aspectos demográficos.
N
Em suma, a produção acadêmica na área de Ciência Política que Í
procura investigar as causas, as características e os efeitos da descentrali- V
E
zação tende a destacar o protagonismo do sistema eleitoral, dos partidos
L
políticos e do sistema partidário, mas parecem negligenciar as conse-
quências – e os resultados – da política de descentralização. E, mais D

importante, esses trabalhos sobre a descentralização explicam quase ex- E

clusivamente o nível de descentralização fiscal – medido como parcela G


dos gastos executados e receitas coletadas pelos governos subnacionais. O
Não há de fato muitos trabalhos devotados à análise da descentralização V
dos serviços públicos, tais como saúde, educação, assistência social de E
R
uma perspectiva da Ciência Política5, apesar do peso dessas áreas na
N
composição dos gastos públicos.
O
Finalmente, nota-se na literatura um terceiro grupo de análises, A

predominantemente econômicas, que buscam examinar os resultados


da descentralização em termos de seus impactos para a qualidade e
eficiência da provisão dos serviços públicos. Na literatura econômica
85

5
Além dos já mencionados trabalhos de Arretche (2000) e Falleti (2005), outra
exceção digna de nota é: Ward e Rodrigues (1999).

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há tradições específicas em diferentes áreas que abordam o problema
da provisão descentralizada de serviços públicos. De tal sorte que, por
exemplo, a economia da saúde, a economia da educação e a economia
urbana produziram importantes trabalhos que tratam dessa questão. O
presente trabalho põe em evidência apenas os estudos que examinaram
a descentralização em educação.
Nesse grupo de estudos encontram-se, sobretudo, trabalhos em-
píricos que – por meio de técnicas econométricas – procuram avaliar
o impacto de fatores variados no desempenho dos estudantes. Assim,
estes estudos buscam, sistematicamente, mensurar o efeito de fatores
como, por exemplo, recursos familiares, recursos escolares, custos de
A
oportunidade da educação, e o sistema educacional ao qual a escola
N se vincula (particular, público estadual ou público municipal) sobre o
O desempenho dos estudantes ou das escolas.
V
A Como já observado, se por um lado os trabalhos teóricos ofere-
cem respostas ambíguas (e mesmo contraditórias) quanto aos efeitos da
C descentralização na provisão da educação pelo setor público; por outro
I lado, as evidências empíricas reunidas até o momento tampouco são
Ê
N conclusivas. Segundo uma revisão de Faguet e Sánchez (1968) de 24
C artigos que apareceram na publicação “World Development” sobre des-
I
centralização, governos locais e responsabilização (i.e. accountability)
A
desde 1997, 11 posicionaram-se favoravelmente aos resultados atin-
D gidos pelos programas de descentralização e 13 reportaram resultados
A
negativos.
P
O trabalho de Faguet e Sanchez é firmemente favorável aos re-
O
L sultados do processo de descentralização da educação na Bolívia e na
Í Colômbia. As evidências empíricas levantadas nesse estudo parecem
T
I indicar que a descentralização alterou os padrões dos investimentos pú-
C blicos nesses dois países tornando-os mais responsivos às demandas das
A
classes populares. Recursos que antes eram majoritariamente destinados
.
a infraestrutura e indústria local passaram a se concentrar em áreas so-
ciais, tais como: educação, saúde e saneamento básico.
86
Burki, Perry e Dillinger (1999), em sua análise da descentralização
da educação para um grupo de países da América Latina, sugerem que
a transferência da responsabilidade pela provisão de educação primária
para os governos locais parece não ter sido suficiente para que os resul-
tados (positivos) esperados fossem atingidos. Segundo argumentam, a

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transferência de autoridade e atribuições deve ser feita diretamente às
unidades escolares e aos conselhos de pais e mestres para que as conse-
quências positivas da descentralização surtam efeito. A simples transfe-
rência da execução dos gastos para os governos locais e regionais, como
nos casos de Colômbia e México, raramente viabiliza por si só a me-
lhoria dos resultados escolares. Em contraste, esforços para transferir a
gestão do ensino diretamente aos conselhos comunitários ou às unida-
des escolares como se deu em alguns casos analisados pelos autores, em
países tão diversos como a Nicarágua, El Salvador, e Minas Gerais no
Brasil, parecem apresentar resultados mais positivos.
O estudo de Filmer e Eskeland (2002) sobre a Argentina, onde a
transferência deu-se do governo central para os governos das provín-
cias, vale-se de um modelo econométrico de função de produção para
examinar o impacto de programas de autonomia escolar e de políticas
de incentivo da participação de pais de alunos na gestão das escolas em
testes de aprendizado dos estudantes. Sua análise utiliza dados em corte O
temporal de testes de aprendizado em matemática e espanhol e um ín-
N
dice de autonomia escolar e participação dos pais. A construção desse Í
índice é feita por meio de vinte e oito variáveis que buscam mensurar V
o grau de autonomia escolar com base nas decisões acerca de gestão E
L
de pessoal, organização do ensino e o grau de participação dos pais de
alunos nessas mesmas decisões. Seus resultados são ambíguos. Apontam D
que a autonomia escolar e a participação dos pais estão positivamente E

relacionadas com o aprendizado em matemática, porém não com es- G


panhol. Ademais, esses resultados apresentam maior significância esta- O
tística para as escolas situadas nos bairros mais pobres e para os alunos V
oriundos dos segmentos menos favorecidos economicamente. E
R
Entretanto, a maior deficiência do estudo de Filmer e Eskeland pa-
N
rece ser um possível viés em seus resultados devido à endogeneidade O
entre autonomia, participação e variáveis não observadas. Apesar da ri- A
queza de seu banco de dados – que contém mais de vinte e quatro mil
(24.000) observações para os testes de aprendizado dos estudantes de 6ª
e 7ª séries –, a ausência de informações mais precisas sobre autonomia
escolar e participação dos pais forçou os autores a se valerem de variá- 87

veis instrumentais fracas. Por exemplo, eles descartam algumas variáveis


explicativas importantes de seu modelo de função de produção e as
incluem como simples instrumentos (Filmer e Eskland, 2002: 20). Seus

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resultados, no entanto, são relevantes, pois indicam que os benefícios
esperados da descentralização (do nível central para os governos locais
ou regionais) podem ser potencializados se esta é capaz de criar incen-
tivos à autonomia escolar e à participação dos pais de alunos na gestão
das escolas.
No Brasil, há uma vasta literatura empírica6 sobre as relações exis-
tentes entre desempenho educacional de jovens e crianças e aspectos
familiares como instrução dos pais e nível de renda da família; aspec-
tos escolares como formação dos professores e infraestrutura física das
escolas e aspectos comunitários como renda média da localidade ou o
número de escolas no município. Dentre os estudos empíricos, o tra-
A balho seminal de Ricardo Paes de Barros e colaboradores (2001) é, se-
N guramente, um dos mais importantes. Valendo-se de dados da Pesquisa
O Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) e da Pesquisa de Padrões
V de Vida (PPV), os autores indicam que, mesmo em se controlando por
A
fatores como: recursos familiares, recursos escolares, custos de oportu-
C
nidade da educação, e o sistema educacional ao qual a escola se vincula
I (particular, público estadual ou público municipal), a escolaridade do
Ê indivíduo (isto é, o número de séries completadas) é mais diretamente
N
C
afetada pela escolaridade dos pais e pela renda per capita da família. Os
I recursos da comunidade (mensurados por meio da escolaridade média
A
e da renda média dos moradores da localidade) e os recursos das escolas
D (mensurados pelo número de escolas e pelo tempo médio do trajeto até
A

P
6
O Os trabalhos empíricos em economia da educação produzidos no Brasil
L são, usualmente, classificados de acordo com a temática desenvolvida. De
Í sorte que, há um primeiro grupo de estudos que trata da mobilidade social e
T
econômica em termos educacionais, a esse respeito, ver por exemplo: Barros
I
C
e Lam, (1993); Ferreira e Veloso, (2003); Marteleto, (2004). Uma segunda
A linha de pesquisa que aborda a relação de desigualdade de oportunidades e
desigualdade de renda, trabalhos exemplares nessa linha são: Bourguignon et
.
al. (2003); Menezes-Filho (2001), entre outros. Já a terceira vertente investiga a
relação entre trabalho infantil, pobreza e escolaridade, nessa linha de pesquisa,
88 pode-se destacar os trabalhos de Emerson e Souza (2003, 2007 e 2011); Kassouf
(2001); Barros et al.(1995); e Fernandes e Menezes-Filho (2000), entre os
mais relevantes. No presente trabalho, não se faz uma resenha exaustiva
dessa literatura. Ao contrário, optou-se tão-somente por destacar aqueles
trabalhos (independentemente da abordagem adotada) que dialogam direta
ou indiretamente com a questão da descentralização, mais especificamente,
ou com a gestão escolar, mais amplamente.

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a escola) apresentam um impacto positivo, porém estatisticamente não
significante. O nível de instrução dos professores apresenta um resul-
tado ambíguo. Mostra-se positivo para as escolas de ensino fundamen-
tal e negativo para as escolas de ensino médio (Barros et al., 2001).
O estudo de Albernaz, Ferreira e Franco (2002) traz algumas im-
portantes contribuições nesse campo. Além dos fatores analisados por
Barros (2001), os autores incluem, com base em informações do SAEB
de 1999, outras variáveis sobre as escolas, como a qualidade da infraes-
trutura física e dados sobre formação e experiência dos professores. A es-
timação proposta por Albernaz sugere que cerca de 80% da variância de
desempenho médio entre as escolas deve-se a diferenças na composição
socioeconômica de seus alunos, refletindo um importante efeito de es-
tratificação socioeconômica das escolas. Segundo, controlado esse efeito
de estratificação, o desempenho dos alunos está significativamente rela-
cionado com diferenças na qualidade e na quantidade de insumos esco-
lares. Ao contrário de resultados encontrados em estudos realizados em O
vários outros países, tanto a qualidade dos professores como a qualidade
da infraestrutura física das escolas afetam o rendimento de forma signi- N
Í
ficativa7. Ademais, mesmo controlando por todos esses fatores, alunos
V
de escolas particulares têm um desempenho médio significativamente E
superior a de seus pares nas escolas públicas municipais ou estaduais. L

Apesar do impacto muito elevado dos recursos familiares, os fa- D


tores relacionados a escola e a comunidade também apresentam um E
efeito não desprezível no resultado educacional do indivíduo. O estudo
G
de Riani e Rios-Neto (2008) traz evidências empíricas eloquentes que
O
demonstram até que ponto os fatores do perfil escolar do município
V
podem minimizar a importância do ambiente familiar. Os resultados E
R
N
7
A relevância das variáveis escolares tem sido uma característica polêmica, mas O
persistente, da literatura internacional sobre os fatores determinantes dos A
resultados educacionais. De acordo com a Tabela 3.23.1, p. 303 do Relatório
Coleman (1966), menos de 2 por cento da variância total do desempenho dos
alunos (brancos e negros) são atribuídos a características escolares, enquanto
menos de 4 por cento são atribuídos a características dos professores. Em
uma revisão mais recente dos estudos empíricos, Hanushek (1989) apresenta 89
um resumo das estimativas dos coeficientes dos gastos escolares sobre o
desempenho dos alunos em 187 trabalhos da literatura internacional, chegando
à conclusão de que a única variável cuja relevância para o aprendizado dos
alunos parece ser realmente robusta é a experiência do professor.

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do trabalho de Riani indicam que aspectos relacionados à rede escolar
dos municípios, principalmente, os de qualidade dos recursos humanos
(tais como, instrução e experiência dos professores) e a infraestrutura
dos serviços educacionais aumentam a probabilidade média do aluno
frequentar a escola na idade correta.
Todos esses trabalhos contribuíram para uma melhor compreensão
do impacto de fatores associados aos recursos das famílias, das escolas e
das comunidades nos resultados educacionais dos indivíduos no Brasil.
Entretanto, as variáveis relacionadas às redes escolares ou ao nível de
governo são empregadas nesses estudos tão-somente como variáveis de
controle. Particularmente, as variáveis associadas à gestão dos sistemas
A educacionais e à governança das escolas são raramente tratadas como
N aspectos centrais da análise desses estudos8. Nesse sentido, os traba-
O lhos de D’Atri (2007), Madeira (2007), Leme e colaboradores (2009)
V e Orellano e colaboradores (2010) trazem contribuições relevantes ao
A
examinar diretamente o impacto da descentralização das escolas nos re-
sultados do ensino público no Brasil.
C
I O estudo de D’Atri (2007) utiliza dados do Censo Escolar do
Ê
MEC/INEP para avaliar o impacto da municipalização das escolas nas
N
C taxas de matrícula, taxas de abandono e na distorção idade-série dos
I alunos. Controlando por características das escolas e dos alunos, D’Atri
A
compara os dados do Censo Escolar de 1998 e 2004. Seus principais
D resultados indicam que as escolas municipais apresentam desempenho
A pior do que as escolas estaduais para as variáveis acima mencionadas.
P Mais importante, o estudo de D’Atri aponta que os resultados inferiores
O das escolas municipais devem ser atribuídos mais diretamente à rápida
L
Í
expansão dos sistemas municipais de ensino do que à transferência de
T controle de escolas dos estados para os municípios.
I
C A análise de Madeira (2007) restringe-se às escolas do estado de São
A Paulo, que vem conduzindo um considerável esforço de municipalização
. das matrículas. Madeira procura mensurar o impacto da transferência

90
8
O acumulo de evidências empíricas de que as escolas estão longe de verter mais
recursos em melhores resultados educacionais (e.g. Hanushek, 1995 e 1994),
levou a um interesse crescente de questões relacionadas à gestão dos sistemas
de ensino e à governança das escolas. Dentro desse contexto a questão da
descentralização da educação tem merecido um lugar de destaque na agenda
de pesquisadores e decisores políticos.

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de controle do ensino fundamental sobre as taxas de matrícula, taxas de
abandono e distorção idade-série. Além disso, busca avaliar o impacto
da municipalização sobre a utilização de alguns insumos escolares, tais
como: número de horas em sala de aula, tamanho das turmas, e utili-
zação de equipamentos e infraestrutura física das escolas. Para tanto,
serve-se dos dados do Censo Escolar de 1996 a 2003. Seus resultados
apontam que, se por um lado, verifica-se um impacto positivo na
utilização dos insumos escolares (horas-aula, tamanho das turmas, etc.).
Por outro lado, verifica-se um impacto negativo nas taxas de matrícula,
taxas de abandono e distorção idade-série. Vale lembrar que seus resul-
tados confirmam o trabalho de D’Atri (2007).
A investigação de Orellano e colaboradores (2010) também se vale
de dados do Censo Escolar do MEC/INEP para estimar os efeitos do
aumento das matrículas e dos gastos municipais em educação funda-
mental sobre três indicadores de rendimento do fluxo escolar, as taxas de
aprovação, abandono escolar e a distorção idade-série. A principal con- O
tribuição desse estudo é incorporar tanto aspectos relativos à autonomia
N
municipal de arrecadação e de gastos, quanto aqueles relacionados à Í
gestão municipal das escolas, o que possibilita aos autores examinar o V
efeito independente tanto da municipalização das matrículas como da E
L
descentralização fiscal sobre os produtos educacionais dos municípios.
A despeito de algumas limitações empíricas não desprezíveis, o estudo D
apresenta uma forte associação positiva entre descentralização fiscal e E

desempenho em educação, resultado este que não se repete para o nível G


de municipalização das matrículas. Ou seja, segundo Orellano, quando O
maior o nível de descentralização fiscal mais altas as taxas de matrícula V
e menores as taxas de abandono escolar. Porém, quando se considera o E
nível de municipalização das matrículas como medida de descentraliza- R
N
ção essa associação positiva desaparece.
O
As contribuições de D’Atri (2007), Madeira (2007) e Orellano e A
colaboradores (2010) são, sem dúvida, muito importantes; contudo,
apresentam algumas limitações. A principal delas refere-se ao uso ex-
clusivo de indicadores de rendimento dos sistemas de ensino, tais como
taxas de matrículas, aprovação ou abandono escolar, abdicando da uti- 91

lização de indicadores de desempenho dos alunos. O emprego exclu-


sivo de variáveis como taxa de matrícula, taxa de abandono ou mesmo
a taxa de defasagem idade-série como indicadores educacionais pode

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conduzir a distorções; pois, essas variáveis são afetadas por fatores que
não se relacionam diretamente com a gestão da escola, com a família ou
mesmo com a comunidade. Essas variáveis são, na verdade, suscetíveis a
fatores exógenos (e não observáveis) tais como programas de progressão
continuada (isto é, aprovação automática) ou mesmo à rápida expansão
do ensino fundamental experimentada pelo Brasil ao longo dos últi-
mos 20 anos. Outra limitação, particularmente dos estudos de D’Atri
e Orellano, diz respeito ao nível de agregação. Ao servir-se tão-somente
de dados para os municípios, esses estudos deixam de controlar os efei-
tos fixos das escolas, o que pode enviesar suas análises.
O estudo de Orellano e colaboradores (2010), em particular, parece
A
sofrer de um problema de endogeneidade entre o indicador de descen-
N tralização fiscal proposto pelos autores e os indicadores educacionais
O examinados, o que pode ter enviesado as estimativas. Orellano vale-se
V
A
da razão entre as transferências do FUNDEF recebidas pelos municí-
pios e os gastos totais dos municípios em educação como medida de
C descentralização fiscal. Contudo, essas medidas parecem ser endógenas,
I mesmo com o controle dos efeitos específicos dos municípios usado pe-
Ê
N
los autores. É razoável supor, por exemplo, que os prefeitos elevem seus
C gastos em educação, afetando o comportamento da razão FUNDEF/
I gastos, quando confrontados com maus resultados educacionais em
A
seus municípios. Como se assume que essa medida de descentralização
D fiscal é exógena aos resultados educacionais, as estimativas apresentadas
A
pelos autores podem estar sendo enviesadas por esse problema de endo-
P geneidade dos regressores.
O
L Ademais, há um problema conceitual no trabalho de Orellano e co-
Í
T
laboradores. Os autores tratam como equivalentes as transferências do
I FUNDEF recebidas pelos municípios e a dependência de transferências
C
do governo central. As transferências do FUNDEF para os municípios
A
não estão vinculadas a geração de receitas fiscais próprias dos municí-
.
pios. Mas, depende exclusivamente do número de matrículas no ensino
fundamental em escolas públicas das redes municipais. Pois, a transfe-
92
rência dá-se em função de um valor fixo por aluno matriculado na rede
pública. Ainda, as transferências do FUNDEF não são compostas por
recursos do governo central. Mas, sim, por recursos dos próprios esta-
dos e municípios. Salvo um complemento federal, caso as transferên-
cias do FUNDEF não atinjam o piso nacional de gasto por aluno. Há,

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portanto, no estudo de Orellano e colaboradores uma confusão entre
transferências do FUNDEF e dependência do governo central.
O estudo de Leme, Paredes e Souza (2009) procura estimar o efeito
da municipalização na proficiência dos alunos. Para tanto, serve-se do
número de escolas que passaram da gestão estadual para a gestão muni-
cipal como medida de descentralização e das avaliações em matemática
e em língua portuguesa no MEC/INEP como medida de desempenho
educacional. Segundo Leme e colaboradores, a municipalização das es-
colas parece não ter tido nenhum efeito (positivo ou negativo) rele-
vante no desempenho dos alunos de 4ª série do ensino fundamental.
A ausência de efeito notável da municipalização no trabalho de Leme,
Paredes e Souza parece decorrer tanto da amostra muito restrita com
que trabalham os autores9, como também e, principalmente, pode ser
que as variáveis de controle dos alunos e de suas famílias e o modelo
de efeitos específicos das escolas empregados pelos autores ainda não
apresentem a acuidade necessária para se captar o efeito independente O
da municipalização das escolas sobre a proficiência dos alunos, como,
aliás, admitem os próprios autores do trabalho. N
Í
Em suma, embora a produção acadêmica esteja em franco processo V
de expansão e de acumulo de evidências, a revisão dos trabalhos pro- E
duzidos acerca da descentralização e do provimento de serviços públi- L

cos (particularmente, da provisão pública de educação fundamental no D


Brasil) sugere não apenas falta de consenso a respeito de seus efeitos E
como também parece indicar que as evidências empíricas reunidas até o
G
presente momento são inconclusivas.
O
O presente trabalho pretende contribuir com essa literatura investi- V
gando, inicialmente, se o nível de governo (e, consequentemente, a rede E
escolar) importa para o desempenho dos alunos. Em segundo lugar, a R
estratégia empírica proposta pelo trabalho permite contornar algumas N

das limitações apontadas nos trabalhos anteriores, como se discutirá O


A
mais adiante na seção na qual são apresentados os dados e métodos de
pesquisa utilizados.

93

9
Leme, Paredes e Souza (2010) identificam apenas 122 escolas que migraram do
controle estadual para o controle municipal e que aparecem pelo menos duas
vezes nas avaliações do MEC/INEP entre os anos de 1999 e 2005.

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A Descentralização da educação no Brasil
Em 1991, havia aproximadamente 29 milhões de estudantes matri-
culados no ensino fundamental no Brasil. Ao longo da década de 1990,
testemunha-se uma grande expansão dessas matrículas. Em 1999, as
matrículas no ensino fundamental atingem 36 milhões. A partir de en-
tão, verifica-se um pequeno, porém constante, declínio no número total
de matrículas no ensino fundamental no Brasil. Em 2010, havia apro-
ximadamente 31 milhões de matriculados. O decréscimo observado
decorre da acomodação do sistema educacional, em especial na modali-
dade regular10 do ensino fundamental, a dois fatores principais. De um
lado, nota-se que essa etapa de ensino apresenta histórico de retenção
A
e, consequentemente, altos índices de distorção idade-série. Segundo o
N MEC, essa distorção vem sendo paulatinamente corrigida no período
O mais recente, para o qual se verifica uma melhoria do fluxo escolar das
V
A
coortes (MEC/INEP, 2010).
Essa melhoria no fluxo escolar aponta para uma tendência de aco-
C modação do número de matrículas do ensino fundamental ao patamar
I
Ê
equivalente ao da população na faixa etária de 6 a 14 anos, que segundo
N a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/IBGE 2009)
C corresponde a 30.229.090 crianças. De acordo com o Censo Escolar de
I
A
2010, o número de alunos matriculados no ensino fundamental regular
ainda é cerca de 3% superior à população na faixa etária adequada a esta
D
A
etapa de ensino. Entretanto, vale observar que este percentual é signi-
ficativamente menor do que os 20% observados no final da década de
P
1990, levando-se em conta que, naquela época, a população em idade
O
L
escolar era dos 7 a 14 anos de idade, para um ensino fundamental de 8
Í anos (MEC/INEP, 2010).
T
I Por outro lado, a redução na taxa de fecundidade e a consequente
C redução do ritmo de crescimento da população brasileira registrada nos
A
últimos anos (PNAD/IBGE 2009), também pode ser apontada como
.
um fator que tem contribuído para o decréscimo do número de alunos
matriculados no ensino fundamental no Brasil.
94

10
A modalidade regular do ensino fundamental não lava em conta a Educação
para Jovens e Adultos (EJA), como também as classes especiais e escolas
exclusivas para crianças portadoras de necessidades especiais.

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A figura 1 apresenta os números de alunos matriculados no ensino
fundamental no Brasil entre os anos 1991 e 2010 por dependência ad-
ministrativa em relação ao total de matriculados.

40
Números de matrículas (em milhões)
30
20
10
0

1990 1995 2000 2005 2010


ANO O
Total Estaduais
Municipais Privadas N
Í
Fonte: Censo Escolar, INEP/MEC V
E
L

Verifica-se que a grande maioria dos alunos está matriculada nas es- D
E
colas públicas, estaduais ou municipais. O número de matrículas na rede
privada de educação fundamental conserva-se praticamente invariável G
em torno de pouco mais de três milhões. A partir dos números apresen- O
tados na figura 1, pode-se concluir que a grande expansão do número V
de alunos matriculados no ensino fundamental deve-se, quase que ex- E
R
clusivamente, à ampliação da rede pública de ensino. Particularmente,
N
à expansão do número de matriculados em escolas públicas municipais.
O
Em 1991, havia cerca de 25 milhões de alunos matriculados em esco- A
las públicas estaduais e municipais. No final da década de 1990, esse
número ultrapassa os 32 milhões de matriculados. Em 2010, devido à
queda no número de matriculados no ensino fundamental, esse valor se
reduz para pouco mais de 27 milhões de alunos. 95

Dentro da rede pública de ensino, verifica-se um expressivo cresci-


mento do número de matrículas nas escolas municipais. Em 1991, ha-
via aproximadamente, 16, 7 milhões de alunos matriculados nas escolas

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estaduais e 8,7 milhões em escolas municipais. Em 2010, os municípios
passam a atender aproximadamente 17 milhões de alunos. Os restantes
10 milhões de matriculados na rede pública encontram-se em escolas
mantidas pelos estados. Conclui-se, portanto, que ao longo das décadas
de 1990 e 2010, as escolas municipais foram responsáveis pela incor-
poração de aproximadamente 15,5 milhões de alunos. Na medida em
que as redes municipais cresceram, absorvendo tanto matrículas novas
(cerca de nove milhões) como parte significativa das matrículas esta-
duais (aproximadamente 6,5 milhões).
Em suma, o processo que se denomina aqui municipalização das
matrículas dá-se tanto por meio da incorporação de novos alunos, como
A também por meio da transferência de matrículas das escolas públicas
N estaduais para as escolas públicas municipais.
O Nota-se ainda que, a municipalização das matrículas no ensino fun-
V damental não ocorre paulatinamente ao longo das décadas analisadas
A
mas, pelo contrário, ele se intensifica a partir de 1996 e parece se esta-
bilizar novamente em 2006.
C
I
Ê
N
C
I
60

A
% de participação das matrículas
50

D
A
40

P
30

O
L
20

Í
T
10

I
C
A 1990 1995 2000 2005 2010
. ANO
Estaduais _____ Municipais
Privadas
96
Fonte: Censo Escolar, INEP/MEC

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Como pode se inferir a partir da figura 2, em 1996, apenas 37%
dos alunos matriculados no ensino fundamental público no país fre-
quentavam escolas municipais. O restante, 63%, frequentava escolas
das redes estaduais de ensino. Dez anos depois, em 2006, tal cenário
havia se invertido totalmente. Os municípios passaram a atender apro-
ximadamente 60% dos alunos matriculados no ensino público no país.
Ademais, cabe ressaltar que a participação da rede privada de ensino
no total de matrículas do ensino fundamental permaneceu estável por
volta dos 10% ao longo de todo o período compreendido entre os anos
1991 e 2010.

Metodologia
A pergunta básica que o presente capítulo pretende responder é: o
nível de governo importa para a qualidade da educação pública? No caso
específico da análise da municipalização da educação fundamental no
O
Brasil, essa pergunta pode ser reformulada da seguinte maneira: O nível
de governo importa para a qualidade da política educacional oferecida N
à população? Como já comentado na introdução, a descentralização Í
V
pode ser apontada como uma das principais políticas governamentais
E
para o ensino fundamental implementadas no Brasil nos últimos anos. L
Entretanto, existe ainda muita controvérsia a respeito dos efeitos da mu-
nicipalização sobre a qualidade do ensino público oferecido no Brasil. D
E
Para responder essa pergunta, a estratégia empírica adotada no pre-
sente estudo consiste em examinar o diferencial de desempenho entre as G
redes públicas de ensino. Mais importante, busca-se examinar o efeito O
da municipalização das matrículas e gastos em educação sobre o desem- V
penho escolar dos alunos das redes públicas municipais e estaduais. E
R
Esta escolha deriva do pressuposto de que os efeitos da municipali-
N
zação podem se fazer sentir de forma diversa sobre os alunos, as escolas O
e os municípios. Por conseguinte, a pergunta inicial acerca do efeito da A
municipalização sobre a qualidade da educação é desdobrada em per-
guntas específicas acerca do efeito da municipalização sobre os alunos,
tais como: existe alguma diferença na proficiência dos alunos de esco-
las públicas municipais e escolas públicas estaduais? Qual a magnitude 97
dessa diferença? Essa diferença pode ser atribuída a disparidades nos
recursos familiares do alunado, ou deve-se a disparidades nos insumos
escolares?

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Idealmente, para se responder a tais perguntas poder-se-ia comparar
os mesmos alunos e escolas em duas situações distintas: primeiramente,
sob a gestão estadual e, posteriormente, sob a gestão municipal, man-
tendo-se tudo o mais constante. Isto é, num desenho “experimental” de
pesquisa buscar-se-ia comparar a situação dos mesmos alunos, escolas e
municípios antes e depois da descentralização, mantendo-se constantes
ao longo do tempo todas as demais variáveis que podem afetar os re-
sultados educacionais. Nesse exercício hipotético, poder-se-ia simples-
mente comparar a situação pré-tratamento – antes da descentralização
– com a situação pós-tratamento – depois da descentralização – para se
verificar como se comportariam os alunos, as escolas e os indicadores
A educacionais dos municípios sob o controle municipal e sob o controle
estadual. Como foi observado por Leme, Paredes e Souza (2009), a
N
O
diferença entre essas duas situações é o que se denomina de efeito da
V municipalização.
A
Evidentemente, esse é tão somente um exercício hipotético. Na prá-
tica, não se pode observar essas duas situações ao mesmo tempo. Isto
C
I é, na realidade não se pode comparar ao mesmo tempo uma situação
Ê observada, como, por exemplo, o desempenho acadêmico dos alunos
N
C
numa escola sob controle municipal, com seu contrafactual, o desempe-
I nho dos mesmos alunos na (mesma) escola sob controle estadual.
A
Portanto, um dos desafios não triviais do presente estudo, como,
D aliás, de todas as pesquisas de avaliação de impacto de políticas públicas
A
(educacionais ou não) é, na ausência de dados experimentais, ser capaz
P de construir esse contrafactual a partir de dados observados de diferen-
O
tes alunos e escolas ao longo do tempo.
L
Í As bases de dados longitudinais do SAEB e do Censo Escolar,
T
I afortunadamente, possibilitam a construção de um “contrafactual es-
C tatístico», que seguramente não assevera a existência de relações causais
A
fortes como aquelas erigidas por meio do emprego de dados experimen-
.
tais; mas, por certo, é capaz de fornecer evidências sólidas acerca da pre-
valência e da magnitude do efeito da municipalização, seja por meio do
98
emprego de variáveis de controle para as características observáveis dos
alunos e das escolas, seja por meio do controle dos efeitos específicos das
variáveis não observadas das escolas ou dos municípios.
Vale observar, no entanto, que o presente estudo não se encontra
totalmente desprovido de problemas decorrentes da utilização de dados

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observados como subsídio empírico para o estabelecimento de proposi-
ções e inferências causais. Como se comentará adiante, é razoável admi-
tir que há características não observáveis dos alunos ou das escolas que
também influenciam o aprendizado e, por conseguinte, os resultados
educacionais e que podem estar correlacionadas com a descentralização
cujo efeito se pretende captar.
A seguir são detalhados os procedimentos metodológicos do nosso
exercício econométrico de estimação do efeito da municipalização das
matrículas e dos gastos educacionais sobre o desempenho acadêmico
dos alunos nos testes padronizados de português e matemática.
Uma primeira pergunta diz respeito à diferença na proficiência dos
alunos matriculados nas redes públicas estaduais e municipais. Há, de
fato, um diferencial de desempenho entre os alunos das redes estaduais
e municipais? Secundariamente, também se procura investigar se a di-
ferença de desempenho entre alunos de escolas públicas estaduais e es-
colas públicas municipais pode ser atribuída a diferenças nos recursos O

familiares, ou a diferenças nos insumos escolares, ou ainda a diferenças


N
em outras características observáveis dos professores, diretores e turmas. Í
A estratégia empírica utilizada nesta análise consiste em tirar pro- V
E
veito dos dados em painel, isto é das bases de dados longitudinais do
L
SAEB, Prova Brasil e Censo Escolar disponibilizadas pelo INEP (or-
gão de pesquisa do Ministério da Educação), que permitem o controle D

dos efeitos específicos não observáveis das escolas. Pretende-se com esse E

exercício simplesmente observar se há, de fato, uma diferença estatisti- G


camente significante na proficiência em língua portuguesa e matemática O
dos alunos de 4ª série matriculados em escolas das redes estaduais e mu- V
nicipais. Está consolidado na literatura sobre o tema (Glewe e Kremer, E
R
2006 e Hanushek, 1995) que as características socioeconômicas dos
N
alunos estão altamente correlacionadas com o desempenho acadêmico.
O
Portanto, estas características, juntamente com outras características A
observáveis dos professores, dos diretores, das turmas e da escola são
incluídas nas análises estatísticas como variáveis de controle.
As técnicas de análise de dados em painel de Mínimos Quadrados
Ordinários agrupados (MQA), Efeitos Fixos (EF) e Efeitos Aleatórios 99

(EA) foram empregadas neste exercício para se estimar a equação 1


abaixo, que modela o desempenho dos alunos de 4ª série do ensino
fundamental nas provas de Matemática e Língua Portuguesa do SAEB:

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Equação 1:
Y ijr
t
= α0 + β1EST ijt + β2Aijr
t
+ β3P ijr
t
+ β4Dijr
t
+ β5T ijr
t
+ β6E ijr
t
+ θi + ϵ ikr
t

Onde:
• Y ijr
t
é a proficiência do aluno i, na escola j, da rede r, no tempo t;
• α0 é uma constante;
• EST tij é uma variável do tipo dummy que indica se a escola j, do
aluno i, no tempo t está sob controle do estado;
• Aijr t
é o vetor de características do aluno i, na escola j, da rede r,
no tempo t;
A
• P ijrt
é o vetor de características do professor do aluno i, na escola
N j, da rede r, no tempo t;
O
• Dijr t
é o vetor de características do diretor do aluno i, na escola j,
V
A
da rede r, no tempo t;
• T ijrt
é o vetor de características da turma do aluno i, na escola j,
C da rede r, no tempo t;
I
Ê • E ijrt
é o vetor de características de infraestrutura da escola do
N aluno i, na escola j, da rede r, no tempo t
C
I • θi é o efeito específico não observado da escola;
A
• ϵikr
t
é o termo de erro aleatório.
D
A
O parâmetro de interesse aqui é dado por “Beta1” o qual indica a
P
O
diferença de desempenho acadêmico entre os alunos matriculados nas
L escolas estaduais e municipais. O vetor de parâmetros de controles betan
Í reporta as relações condicionais dos insumos escolares sobre o desempe-
T
I nho dos alunos. A equação 1 é a função de produção da educação, tal
C como conhecida na literatura (Hanushek, 1996).
A
Após se verificar se existe mesmo diferença entre as proficiências
.
médias de estudantes das redes públicas estaduais e municipais, busca-
-se então examinar se essa diferença de desempenho pode ser atribuída
100
a disparidades nos fatores que podem afetar o rendimento acadêmico
dos alunos. Isto é, procura-se investigar se a diferença de rendimento
escolar se deve a um problema de seleção dos alunos entre as redes ou,
pelo contrário, deve-se a desigualdades nos insumos escolares das redes
públicas estaduais e municipais.

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Para tanto, se ajustou um modelo de regressão probabilística, dado
pela equação 2, que busca captar a correlação entre os atributos ob-
serváveis dos alunos, do ambiente familiar, das escolas, dos professores
e diretores e a probabilidade de estarem vinculados às redes públicas
municipais.

Equação 2:
MUNIjt = α0 + β1A ijr
t
+ β2P ijr
t
+ β3D ijr
t
+ β4T ijr
t
+ β6E ijr
t
+ UFj + tt + ϵ ikr
t

Onde:
• MUNIjt é uma variável do tipo dummy que identifica se a es-
cola j está sob o controle do município no tempo t
• α0 é uma constante
• A ijrt
é o vetor de características do aluno i, na escola j, da rede r,
no tempo t
O
• P ijrt
é o vetor de características do professor do aluno i, na escola
j, da rede r, no tempo t N

• D ijr t
é o vetor de características do diretor do aluno i, na escola j, Í
V
da rede r, no tempo t E
• E ijrt
é o vetor de características de infraestrutura da escola do L
aluno i, na escola j, da rede r, no tempo t
D
• UFj é um conjunto de variáveis do tipo dummy indicador da E
UF
• tt é um conjunto de variáveis do tipo dummy indicador do ano G
O
• ϵ ikr
t
é um termo de erro aleatório V
E

Resultados R
N
Nessa seção são apresentados e discutidos os principais resultados O
da presente investigação. Vale lembrar que a pergunta básica que se pre- A

tende responder nesse trabalho, especificamente, é se há de fato dife-


renças nas proficiências médias nos exames do SAEB entre os alunos de
escolas públicas municipais e os alunos das escolas públicas estaduais. Se
há mesmo diferença, qual sua magnitude? Quais os fatores ligados aos 101

insumos escolares, ou às características familiares dos alunos, ou ainda


fatores ambientais que estão relacionados a essa diferença de desempe-
nho entre as escolas municipais e estaduais das redes públicas.

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Para tanto, ajustou-se o modelo estatístico. Esse modelo, de função
de produção em educação, traz como variável dependente a proficiên-
cia do aluno i, na escola j, da rede r, no tempo t, dada pelo termo Y ijrt .
A principal variável de interesse aqui é a rede escolar, dada por
ESTijr t, é uma variável do tipo binária, isto é, que assume os valores 0
ou 1, e indica se a escola j, do aluno i, no ano t está vinculada as redes
estaduais de ensino público.

Tabela 1: Resultados da estimação por MQA usando dados de alunos,


painel de escolas (1997-2005), Português 4a. série
(1) (2) (3) (4) (5)
Modelo 1 Modelo 2 Modelo 3 Modelo 4 Modelo 5
A
Estaduais 5.333*** 4.269*** 2.650*** 2.567** 1.442
(0.857) (0.809) (0.686) (0.909) (0.998)
N
Mãe (1-4 EF) 1.212* 0.804 1.753** 1.592*
O (0.474) (0.469) (0.634) (0.706)
V Mãe (5-8 EF) 4.589*** 1.609*** 1.449* 1.393
A (0.492) (0.477) (0.669) (0.739)
Mãe (EM) 13.28*** 7.935*** 8.702*** 8.324***
(0.651) (0.615) (0.789) (0.877)
Mãe (Superior) 14.32*** 7.306*** 4.818*** 4.497***
C
(0.808) (0.711) (0.880) (0.987)
I
Mãe (não sabe) 4.967*** 1.865*** -0.619 -0.317
Ê (0.441) (0.423) (0.527) (0.601)
N 10 anos 5.782*** 2.068 1.118
C (0.748) (1.076) (1.156)
I 11 anos -5.752*** -9.014*** -9.134***
(0.823) (1.153) (1.257)
A
12 anos ou mais -13.18*** -18.56*** -18.09***
(0.810) (1.177) (1.292)
D Homens -8.566*** -9.523*** -9.546***
A (0.320) (0.472) (0.530)
Pardo -1.200** -1.121 -1.156
P (0.429) (0.580) (0.632)
O Negro -11.69*** -11.59*** -12.69***
(0.563) (0.794) (0.867)
L Amarelo ou Indígena -2.455*** -3.350*** -3.322**
Í (0.678) (0.993) (1.079)
T Possui computador 5.074*** 6.937*** 6.442***
I (0.920) (1.124) (1.269)
C Mora com o pai e a mãe -0.0764 -1.831*** -2.162***
A (0.340) (0.475) (0.542)
Trabalha (ou) fora de casa -14.51*** -14.76*** -14.19***
. (0.481) (0.706) (0.785)
Escola rural -4.746** -3.941*
(1.556) (1.552)
102 Constante 159.3*** 155.3*** 172.9*** 171.6*** 163.7***
(0.568) (0.608) (0.954) (1.915) (2.892)
N 76443 71393 62194 29802 23838
R2 0.004 0.021 0.112 0.143 0.147
Erros padrão robustos entre parênteses
Fonte: Cálculos próprios a partir de dados do SAEB/INEP
* p <0.05, ** p <0.01, *** p <0.001

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Tabela 2: Resultados da estimação por MQA usando dados de alunos,
painel de escolas (1997-2005), Português 4a. série (Continuação)
(1) (2) (3) (4) (5)
Modelo 1 Modelo 2 Modelo 3 Modelo 4 Modelo 5
Estaduais 5.333*** 4.269*** 2.650*** 2.567** 1.442
(0857) (0.809) (0.686) (0.909) (0.998)
Quadra de esportes 0.332 -0.941
(0.957) (1.051)
Laborátorio de ciências 3.575* 3.282*
(1.387) (1.536)
Laboratório de informática 2.123 1.825
(1.213) (1.346)
Biblioteca 3.882*** 2.790**
(0.880) (0.952)
Livros didáticos 0.0558 0.00229
(0.847) (0.939)
Merenda 2.302 2.391
(1.205) (1.242)
Transporte 3.635*** 3.250***
(0.886) (0.958)
Curso Superior 4.373***
(1.248)
Capacitação 0.846
(1.868)
Experiência (5-10 anos) 0.159
O
(1.073)
Experiência (+ 10 anos) 3.848**
(1.465) N
Concursado ou eleito 3.249**
Í
(0.999)
Projeto pedagógico (Sec.) 1.182 V
(1.630) E
Projeto pedagógico (Dir e Prof.) 4.678*** L
(1.274)
Rotatividade 0.0759
(2.378) D
Absenteísmo 1.496 E
(1.804)
Constante 159.3*** 155.3*** 172.9*** 171.6*** 163.7***
G
(0.568) (0.608) (0.954) (1.915) (2.892)
O
N 76443 71393 62194 29802 23838
R2 0.004 0.021 0.112 0.143 0.147 V
Erros padrão robustos entre parênteses E
Fonte: Cálculos próprios a partir de dados do SAEB/INEP R
* p <0.05, ** p <0.01,*** p <0.001
N
O
As tabelas 1 e 2 apresentam os resultados da estimação por MQO A
agrupados para os alunos da 4ª série do ensino fundamental para a prova
de língua portuguesa do SAEB11, para o painel de escolas (1997-2005).

103
11
Nesta seção do capítulo, para se preservar a clareza na exposição dos resultados
serão apresentados apenas os resultados das estimações para os exames de
língua portuguesa. Os resultados para os exames de matemática, que em geral
não desviam dos resultados de língua portuguesa, estão disponíveis mediante

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O modelo 1 da tabela 1 indica que há uma diferença média positiva de
5,30 pontos (na escala SAEB) em favor dos alunos das escolas estaduais.
Essa diferença corresponde aproximadamente a um desempenho médio
dos alunos das escolas estaduais de 3 pontos percentuais acima, se com-
parados aos alunos das escolas municipais (a categoria omitida nesse
modelo). Esse resultado, que corresponde ao teste t de comparação de
médias, é estatisticamente significante ao nível de 1 por cento.
Contudo, como já comentado, a literatura tem demonstrado que
há uma série de fatores ligados aos recursos familiares e insumos esco-
lares, entre outros, que podem afetar significativamente o aprendizado
dos alunos. Assim, pode-se objetar que essa diferença, apesar de signi-
A ficativa, pode estar ligada a fatores externos à sala de aula, tal como a
N educação dos pais. De fato, o modelo 2 da tabela 1 indica que, quando
O se controla o efeito da rede escolar pela educação da mãe, a diferença de
V desempenho entre estudantes das redes estaduais e municipais decresce
A
cerca de 1 ponto (na escala SAEB), não obstante permaneça positiva e
estatisticamente significante ao nível de 1 por cento.
C
I Os resultados dos modelos apresentados nas colunas (3) e (4) das
Ê
tabelas 1 e 212 reforçam essa constatação. A medida que se acrescentam
N
C novas variáveis na especificação dos modelos de regressão, a diferença
I entre o desempenho acadêmico de alunos das escolas públicas estaduais
A
e municipais vai perdendo força. Ou seja, à medida que são inseridos
D nos modelos outros fatores que podem explicar o desempenho escolar,
A a variável de interesse – a rede escolar – vai paulatinamente perdendo
P sua força explicativa para a diferença de desempenho entre alunos das
O escolas públicas estaduais e municipais nos exames do SAEB.
L
Í A coluna 3 da tabela 1 apresenta os resultados para a especificação
T que, além da rede escolar e da educação da mãe, inclui também as demais
I
C características do aluno (gênero, idade e cor) e de sua família. Nota-se
A que, em se controlando pelas características dos alunos e do ambiente
. familiar, a diferença de desempenho entre alunos das redes estaduais e

104

solicitação ao autor. No caso de eventuais discrepâncias entre os resultados


estas são aqui destacadas.
12
Vale notar que a tabela 2 é apenas uma continuação da tabela 1, que foi cortada
tão somente para se manter a clareza e a inteligibilidade na apresentação dos
resultados.

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municipais decresce para menos da metade da diferença estimada pelo
modelo 1, embora ainda continue estatisticamente significante a 1 por
cento. A coluna (4) da tabela 1 exibe os resultados para o modelo 4,
que inclui além das características do aluno e do ambiente familiar, os
recursos das escolas. Nota-se, então, que a diferença de desempenho nos
exames do SAEB não apenas se torna praticamente nula, como também
passa a ser significante a um nível de apenas 10 por cento. No mo-
delo 5, que inclui além das variáveis do aluno, do ambiente escolar e das
características observáveis da escola, também as variáveis a respeito do
diretor escolar, o efeito da rede escolar desaparece por completo, tanto
sua magnitude se aproxima de zero (0,29), como também deixa de ser
estatisticamente significante.
O que explica os resultados reportados nas tabelas 1 e 2? Em suma,
os resultados mostram que há uma diferença significativa da ordem de
3 por cento entre o desempenho acadêmico em língua portuguesa13
dos estudantes da 4ª série do ensino fundamental de escolas públicas O
estaduais e públicas municipais, em favor da rede pública estadual.
Quando, além da rede escolar na qual o aluno está vinculado, são uti- N
Í
lizadas características dos alunos (cor, gênero e idade), do ambiente fa-
V
miliar (educação da mãe e outras características socioeconômicas) e da E
infraestrutura das escolas (presença de biblioteca, quadra de esportes, L
laboratório de ciências, entre outros) para se explicar a proficiência nos
D
exames do SAEB, o efeito independente da rede escolar perde relevân-
E
cia, tanto em termos de magnitude como de significância estatística.
Ou seja, a relação positiva entre o pertencimento à rede pública estadual G

e a proficiência média em língua portuguesa dos alunos de 4ª série di- O


V
minui à medida que características dos estudantes, da família e da escola
E
são utilizadas como controles. Em suma, a relação condicional positiva R
entre proficiência média nos exames do SAEB e a matrícula em escolas N
das redes públicas estaduais é mediada pelo efeito das características O
dos alunos (incluindo seu ambiente familiar) e pelo efeito dos insumos A

escolares.

13
A diferença no exame de matemática é de exatamente 5,108; o que corresponde 105
a aproximadamente um desvio de 3 por cento nas proficiências médias dos
alunos das escolas públicas municipais e públicas estaduais. Como no caso
do exame de língua portuguesa essa diferença é favorável às escolas das redes
estaduais.

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Logo, parece haver evidências empíricas de que disparidades nas
características dos alunos, ambiente familiar e infraestrutura das escolas
poderiam explicar a diferença de desempenho acadêmico nos exames do
SAEB entre alunos das redes públicas estaduais e públicas municipais.
Entretanto, para se evitar conclusões precipitadas deve-se investigar se o
modelo de estimação por MQO agrupados é o mais adequado para se
obter estimadores não enviesados e consistentes. Pois, seria lógico argu-
mentar que há características não observáveis das escolas que podem es-
tar correlacionadas com o desempenho de seus alunos; portanto, nesse
caso, o método mais adequado de estimação, que produz estimadores
consistentes seria o método de Efeitos Fixos14.
A A tabela 3 apresenta os resultados da estimação por Efeitos Fixos
N para o painel de escolas (1997-2005) com os resultados do exame de
O língua portuguesa da 4ª série do ensino fundamental. Como seria ra-
V zoável supor, a estimação pelo método de Efeitos Fixos (EF) tampouco
A
gera resultados muito diferentes daqueles apresentados nas tabelas 1 e
2. Nota-se, entretanto, que já para o Modelo 6, no qual se utiliza exa-
C
I tamente a mesma especificação empregada no Modelo 1, a regressão da
Ê proficiência na rede escolar, não se encontra uma diferença estatistica-
N
mente significante. Isso era esperado, uma vez que o termo Θi, que re-
C
I presenta o efeito específico não observado da escola – o que inclui todas
A as características escolares e características médias dos alunos da escola
D que são invariantes no tempo –, absorve o efeito de todas as variáveis
A omitidas do modelo. Ou seja, na estimação pelo método de EF, o termo
P de efeito específico das escolas dá conta de toda a heterogeneidade das
O variáveis omitidas do modelo.
L
Í
Vale apontar que os coeficientes estimados para a variável, que in-
T dica que as escolas estão subordinadas às redes estaduais, permanecem
I
C
positivos e com uma magnitude de aproximadamente de 5 (pontos na
A escala SAEB) para todas as especificações estimadas por EF; contudo,
. para nenhuma dessas especificações o coeficiente estimado exibe signifi-
cância estatística aos níveis de 1, 5 ou 10 por cento.
106

14
Outro pressuposto necessário para que o método de estimação por Efeitos
Fixos produza estimadores não enviesados é que as variáveis das escolas
afetem a proficiência média de seus alunos, enquanto a proficiência média dos
seus alunos não afetem as características das escolas.

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Tabela 3: Resultados de estimação por EF,
painel de escolas (1997-2005)Português, 4a. série
(1) (2) (3)
Modelo 6 Modelo 7 Modelo 8
Estaduais 4.616 5.707 4.756
(5.617) (5.659) (5.822)
Mãe (1-4 EF) 0.197 -0.753
(2.562) (2.429)
Mãe (5-8 EF) -1.170 -2.445
(2.890) (2.727)
Mãe (EM) 13.81*** 8.552*
(3.633) (3.655)
Mâe (Superior) 12.79** 11.23**
(3.955) (3.931)
Mãe não sabe 4.113** 2.049
(1.265) (1.217)
10 anos 9.885**
(3.172)
11 anos -0.476
(3.398)
12 anos ou mais 0.912
(3.149)
Homens -10.26***
(2.124)
Pardo 4.413*
(1.824) O
Negro -10.32***
(2.811)
N
Amarelo ou indígena 6.608
(3.577) Í
Possui computador -11.88** V
(3.724)
E
Mora com o pai e a mãe 6.547***
(1.931) L
Trabalha fora -7.942***
(1.868) D
Constante 157.2*** 153.1*** 154.4***
(2.569) (3.112) (4.701)
E
N 5347 5346 5334
R2within 0.0002 0.017 0.073 G
R2Between 0.0269 0.110 0.195 O
R2Overall 0.0154 0.075 0.149
Erros padrão robustos entre parênteses V
Fonte: Cálculos próprios a partir de dados do SAEB/INEP E
* p <0.05, ** p <0.01, *** p <0.001
R
N
Os modelos 7 e 8 da tabela 3 pouco acrescentam para a com-
O
preensão da diferença de desempenho dos alunos das redes públicas A
estaduais e municipais. Contudo, os resultados desses modelos não são
contra intuitivos e, ainda, vão ao encontro do que tem sido reportado
na literatura, que se vale das bases de dados do SAEB ou do Censo
Escolar15, a respeito dos fatores condicionantes do aprendizado nas 107

15
A esse respeito ver, entre outros, Franco e Menezes-Filho, 2009, Felício e
Fernandes, 2006 e Menezes-Filho, 2007.

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escolas brasileiras. O que, por conseguinte, confere mais credibilidade
aos resultados estimados no presente trabalho.
Estabelecido que existe realmente uma diferença de cerca de 3%
entre as proficiências médias de estudantes das redes públicas estaduais
e municipais e, mais importante, que esta diferença não é independente
das características dos alunos e dos insumos escolares, pode-se, então,
avançar em direção ao objetivo secundário desse capítulo; qual seja, in-
vestigar se a diferença de desempenho dos alunos das redes públicas
estaduais e públicas municipais pode ser atribuída a disparidades em
características dos alunos, de suas famílias, ou ainda, a disparidades nos
insumos escolares. Mais especificamente, busca-se investigar se dife-
A rença na proficiência média das redes públicas de ensino pode ser expli-
N
cada pelas disparidades em características dos alunos e de suas famílias
O ou, alternativamente, pode ser atribuída a desigualdades nos insumos
V escolares das redes de ensino.
A
Para tanto, ajustou-se um modelo de regressão probabilística dado
pela equação 2. Onde, a variável resposta, MUNIjt, é uma variável do
C
I tipo dummy, isto é, uma variável binária, que identifica as escolas muni-
Ê cipais e as variáveis explicativas são as características dos alunos (modelo
N 9), do ambiente familiar (modelo 10), das escolas (modelo 11), dos
C
I diretores (modelo 12) e, finalmente, dos professores (modelo 13). O
A exame dos fatores condicionantes de estar matriculado em escolas das
D
redes públicas municipais é capaz de apontar a correlação condicional
A entre a lista de atributos analisados e a probabilidade de estar “vincu-
lado” às redes municipais. Procura-se, assim, identificar os atributos
P
O
dos alunos, das famílias, das escolas, dos professores e dos diretores que
L compõem o perfil das escolas das redes municipais, quando comparadas
Í às escolas das redes públicas estaduais (categoria omitida para esses mo-
T
I delos). As tabelas 4, 5 e 616 apresentam os resultados dessas estimações
C via regressão probabilística.
A
.

108

16
As tabelas 5 e 6 são apenas a continuação dos resultados reportados na tabela
4. Aqui, mais uma vez, as tabelas foram cortadas apenas para se preservar a
clareza e a inteligibilidade na exposição dos resultados.

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Tabela 4: Resultados de estimação por EF, painel de escolas (1997-2005)
Português, 4a. série
(1) (2) (3) (4) (5) (6)
Modelo 9 Modelo 10 Modelo 11 Modelo 12 Modelo 13 dy/dx
10 anos 0.0377 0.0451* 0.0695** 0.0825* 0.0874* 0.035
(0.0196) (0.0207) (0.0269) (0.0335) (0.0344)
11 anos 0.133*** 0.117*** 0.145*** 0.152*** 0.154*** 0.061
(0.0220) (0.0231) (0.0305) (0.0377) (0.0391)
12 anos ou + 0.195*** 0.162*** 0.137*** 0.120** 0.125** 0.049
(0.0251) (0.0255) (0.0343) (0.0422) (0.0440)
Homens -0.0174* -0.0201** -0.00634 -0.00499 -0.00634 -0.002
(0.00728) (0.00771) (0.0101) (0.0131) (0.0137)
Pardo 0.00899 0.00915 0.0210 0.00765 0.00771 0.003
(0.0123) (0.0127) (0.0166) (0.0217) (0.0225)
Negro 0.0379* 0.0329* 0.0482* 0.0690* 0.0623* 0.024
(0.0158) (0.0164) (0.0212) (0.0269) (0.0277)
Amarelo ou indígena 0.00697 0.0158 0.0579* 0.0477 0.0544 0.021
(0.0192) (0.0201) (0.0262) (0.0342) (0.0360)
Mãe (1-4 EF) 0.0483*** 0.0378* 0.0181 0.0142 0.005
(0.0129) (0.0165) (0.0203) (0.0212)
Mãe (5-8 EF) -0.0800*** -0.0605*** -0.0800*** -0.0948*** -0.049
(0.0142) (0.0177) (0.0225) (0.0235)
Mãe (EM) -0.145*** -0.141*** -0.121*** -0.126*** -0.002
(0.0174) (0.0207) (0.0259) (0.0274)
Mãe Superior -0.163*** -0.145*** -0.132*** -0.125*** -0.049
(0.0216) (0.0243) (0.0288) (0.0298) O
Mãe (não sabe) -0.0453*** -0.0171 -0.0103 -0.00650 -0.002
(0.0117) (0.0140) (0.0175) (0.0183)
N
Tem computador -0.124*** -0.132*** -0.0933** -0.0873* -0.034
(0.0243) (0.0284) (0.0354) (0.0369) Í
Mora c/pai e a mãe 0.0613*** 0.0432*** 0.0446** 0.0426* 0.016 V
(0.0101) (0.0128) (0.0159) (0.0166) E
Trabalha fora 0.136*** 0.0671** 0.0514* 0.0432 0.017
(0.0161) (0.0209) (0.0233) (0.0243) L
Controles p/UF sim sim sim sim sim
Controles p/ano sim sim sim sim sim D
N 118558 105192 61876 38885 35527 E
Erros padrão robustos entre parênteses
Fonte: Cálculos próprios a partir de dados do SAEB/INEP
G
* p <0.05, ** p <0.01, *** p <0.001
O
Os resultados do modelo 9, apresentados na coluna (1) da V
E
tabela 4, parecem confirmar a hipótese de que pode haver, de fato, dis-
R
paridades na composição do alunato entre as redes públicas estaduais e
N
municipais. Quando consideradas apenas as características dos alunos,
O
as escolas municipais parecem receber mais alunos negros, se compa- A
radas às escolas estaduais17. O coeficiente estimado é positivo e signifi-

17
Para ser mais rigoroso, o que a estimação via regressão probabilística informa 109
é que, se o aluno i matrículado na 4a série do ensino fundamental, declarou-
se negro, ele tem maiores chances, mantidas todas as demais variáveis
constantes, de estar matrículado numa escola das redes públicas municipais
do que numa escola das redes públicas estaduais. Feito esse esclarecimento,

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cante a 10 por cento para todas as especificações apresentadas na tabela
4, o que assevera consistência e solidez ao achado. Quanto às demais ca-
tegorias de cor, não parece haver disparidades adicionais na composição
racial declarada pelos alunos entre as duas redes. Vale ressaltar, ainda,
que no cômputo geral das categorias de cor, as escolas municipais pare-
cem receber menos alunos que se declaram brancos (categoria omitida).

Tabela 5: Correlação condicional entre os atributos e a probabilidade


de estar matriculado na rede municipal (continuação da tabela 1,
característica da escola e do diretor)
(1) (2) (3) (4) (5) (6)
Modelo 9 Modelo 10 Modelo 11 Modelo 12 Modelo 13 dy/dx
A Escola Rural 0.133 -0.0390 -0.0946 0.038
(0.0732) (0.0985) (0.104)
Quadra de esportes 0.0499 0.194** 0.214** 0.084
N (0.0546) (0.0683) (0.0711)
O Lab. de ciências -0.383*** -0.435*** -0.404*** -0.158
(0.0781) (0.0949) (0.0981)
V Lab. de Infromática 0.131 0.120 0.134 0.053
A (0.0695) (0.0823) (0.0852)
Biblioteca -0.165** -0.0151* -0.161* -0.064
(0.0544) (0.0682) (0.0710)
Merenda 0.340*** 0.286*** 0.272** 0.107
C (0.0686) (0.0822) (0.0857)
I Transporte 0.175** 0.177** 0.184** 0.073
Ê (0.0533) (0.0629) (0.0651)
Curso Superior -0.233** -0.234* -0.092
N (0.0877) (0.0924)
C Capacitação 0.350*** 0.408*** 0.046
I (0.0941) (0.0981)
Experiência (5-10 anos) -0.106 -0.128 -0.050
A
(0.0665) (0.0695)
Experiência (+ 10 anos) -0.255** -0.264* -0.104
D (0.0985) (0.103)
A Eleição -0.385*** -0.385*** -0.152
(0.0679) (0.0706)
Projeto pedagógico (Sec.) 0.0568 0.0665 0.026
P (0.113) (0.119)
O Projeto pedagógico (Dir. e prof.) -0.237**' -0.212* -0.083
(0.0885) (0.0923)
L Rotatividade -0.00193 -0.00619 0.002
Í (0.125) (0.131)
T Faltas -0.117 -0.107 0.042
I (0.126) (0.129)
C Controles p/UF sim sim sim sim sim
Controles p/ano sim sim sim sim sim
A N 118558 105192 61876 38885 35527
. Erros padrão robustos entre parênteses
Fonte: Cálculos próprios a partir de dados do SAEB/INEP
* p <0.05, ** p <0.01, *** p <0.001
110

vale observar que na presente seção, por meras questões estilísticas, afirmar-
se-á, por exemplo que a prevalência de alunos negros é maior (tudo o mais
constante) nas escolas das redes públicas municipais, se comparadas às escolas
das redes públicas estaduais. Admite-se que essa interpretação não é a mais
rigorosa. Entretanto, por aproximação, tal interpretação não é equivocada.

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Quando se analisa a idade dos alunos, percebem-se maiores desvios
na composição do alunato entre as duas redes. Os coeficientes estima-
dos para as categorias “11 anos” e “12 anos ou mais” são positivos e
estatisticamente significantes ao nível de 1 por cento, indicando que, de
fato, a probabilidade de que alunos acima da idade escolar recomendada
para a série estejam matriculados em escolas das redes públicas muni-
cipais é maior, do que as chances de que estejam em escolas das redes
públicas estaduais.
Os resultados do modelo 10, apresentados na coluna (2) da tabela
4, reafirmam esse indício de que pode estar ocorrendo um processo de
seleção do alunato entre as redes públicas estaduais e municipais. Esse
modelo inclui, além das características do aluno, o conjunto de variáveis
acerca do ambiente familiar dos estudantes.
Quando se examinam os coeficientes estimados para o nível de es-
colaridade da mãe, nota-se claramente que as chances das escolas mu-
nicipais recebem alunos cujas mães, em média, têm menor nível de O

escolaridade são consideravelmente maiores, quando comparadas às


N
escolas estaduais. Ademais, a probabilidade de as escolas estaduais re- Í
ceberem alunos cujas mães têm maior nível de escolaridade também é V
significativamente maior. Haja vista que os coeficientes estimados para E
L
as categorias que representam níveis mais elevados de escolaridade, tais
como: ensino médio e curso superior, mostram menor prevalência em D
escolas das redes públicas municipais, resultados que são robustos às E

diferentes especificações e estatisticamente significantes ao nível de 1 G


por cento. Já para os níveis mais baixos de escolaridade, tal como, en- O
sino fundamental incompleto (estudou até a 4ª série), essa situação se V
inverte, sendo mais frequente nas escolas públicas municipais, embora E

esses resultados não se mostrem tão fortes entre as diferentes especifica- R


N
ções. Os coeficientes se mantêm sempre positivos, mas são estatistica-
O
mente significantes apenas para os modelos 10 e 11, aos níveis de 1 e 10 A
por cento, respectivamente. Enfim, esses achados corroboram a ideia de
que famílias com maior nível escolaridade tendem, em média, a matri-
cular seus filhos em escolas das redes públicas estaduais mais frequen-
temente; e famílias com menores níveis de escolaridade tendem, em 111
média, a matricular seus filhos em escolas das redes públicas municipais.
As demais características do ambiente familiar, para as quais se tem
informação, também indicam que pode haver de fato uma espécie de

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estratificação social entre as redes públicas de ensino. Famílias que pos-
suem computador em casa têm menos probabilidade de matricular seus
filhos em escolas das redes públicas municipais. E a prevalência do tra-
balho fora de casa em idade escolar é um indicador de que as chances do
aluno estar matriculado nas escolas das redes municipais é maior. Esses
resultados são estatisticamente significantes entre os diferentes modelos
apresentados na tabela 4. Por outro lado, alunos que vivem com o pai e
com a mãe tendem, em média, estar matriculados com mais frequência
em escolas que integram as redes públicas municipais.
Em resumo, os resultados apresentados na tabela 4 acerca das ca-
racterísticas dos alunos e do ambiente familiar corroboram a hipótese
A
de que parece haver alguma estratificação social entre as redes públicas
N de ensino. A prevalência de alunos fora da idade recomendada para a
O série na qual estão matriculados é maior nas escolas municipais. Alunos
V
que se declaram negros apresentam, em média, maiores chances de es-
A
tarem matriculados em escolas das redes públicas municipais. Outras
C características do ambiente familiar também apontam para existência
I desse processo de estratificação entre as redes. Particularmente, quando
Ê
N
se examina o comportamento das variáveis que procuram captar o ní-
C vel de escolaridade da mãe dos alunos, verifica-se que as categorias que
I indicam níveis mais elevados de escolaridade (ensino médio e curso
A
superior) diminuem significativamente a chance dos alunos oriundos
D dessas famílias de estarem matriculados em escolas das redes públicas
A
municipais. Ademais, a presença de computadores em casa aumenta
P chances de que os alunos estejam matriculados em escolas estaduais.
O
O trabalho fora de casa em idade escolar, por outro lado, tende elevar
L
Í a probabilidade dos alunos estarem matriculados em escolas das redes
T públicas municipais.
I
C O modelo 11, apresentado na coluna (3) das tabelas 4 e 5, inclui
A
além de características dos alunos e do ambiente familiar, as caracterís-
.
ticas de infraestrutura das escolas. Nota-se que, no geral, não há grandes
disparidades na oferta de equipamentos de ensino entre as escolas das
112
redes públicas municipais e públicas estaduais.
Se, por um lado, a presença de quadra de esportes indica que as
chances da escola estar vinculada às redes municipais é maior; em se
tratando da presença de laboratório de ciências nas escolas a situação se
inverte. Os coeficientes estimados para a variável Quadra de esportes são

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positivos e estatisticamente significantes para duas das três estimações.
Quando se analisa os coeficientes estimados para o item Laboratório de
ciências os coeficientes são sempre negativos e significantes em todas as
estimações ao nível de 1 por cento, o que pode ser interpretado como
um indicador de que as escolas equipadas com laboratórios de ciências
têm menor probabilidade de estarem subordinadas às redes municipais.
Não há evidências empíricas de disparidades na oferta de laborató-
rios de informática entre as redes municipais e estaduais. Com relação
à presença de bibliotecas, percebe-se que a situação das redes públicas
estaduais é mais positiva. As escolas que possuem bibliotecas têm mais
chances de estarem integradas às redes estaduais do que às municipais
(o coeficiente estimado para essa variável é negativo e significante para
todas as especificações estimadas). Quando se examina a oferta de me-
renda e transporte público, a situação é amplamente favorável às escolas
das redes públicas municipais. Percebe-se que para os itens Merenda e
Transporte, os coeficientes estimados são positivos e significantes para O
todas as especificações estimadas.
N
O modelo 12, apresentado na coluna (4) das tabelas 4 e 5, traz Í
além de todas as variáveis já comentadas, as características observáveis V
dos diretores das escolas. No que tange ao conjunto de variáveis dos di- E
retores, as evidências empíricas parecem ratificar a hipótese que há um L

pequeno, porém consistente, desvio positivo em favor das escolas que D


integram as redes públicas estaduais. E

A prevalência de diretores com curso superior é maior nas escolas G


das redes estaduais. Os coeficientes estimados para essa variável são ne- O
gativos e estatisticamente significantes para as estimações apresentadas V
na tabela 5. Com relação ao item Capacitação, nota-se que a situação é E

favorável às escolas das redes municipais. Ou seja, os diretores que par- R


N
ticiparam de cursos de capacitação nos últimos dois anos têm maiores
O
chances de estarem dirigindo escolas das redes municipais do que esco- A
las das redes estaduais.
Contudo, quando se analisa o conjunto de variáveis que diz res-
peito à experiência na função de direção, percebe-se que os diretores das
escolas estaduais tendem a ter, em média, mais experiência do que os 113
diretores de escolas municipais. Para o item que indica de 5 a 10 anos de
experiência na função os coeficientes são negativos, porém não signifi-
cantes. Para o item que indica mais de 10 anos de experiência na função

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os coeficientes estimados são também negativos, mas significantes para
as duas especificações testadas. No conjunto, então, percebe-se que os
diretores com menos experiência no cargo tendem, em média, a dirigir
escolas das redes municipais com mais frequência do que escolas das
redes estaduais. Com relação ao processo com que foram conduzidos à
direção da escola, nota-se que enquanto nas escolas estaduais é preva-
lente o emprego de eleições ou concursos (representados sob a categoria
Eleição), nas escolas municipais ainda prevalece a indicação política (ca-
tegoria omitida). Os estimadores para esta variável são negativos e sig-
nificantes, ao nível de 1 por cento, para ambas especificações testadas.
Quando se examina como foi elaborado o projeto pedagógico da
A escola, a disparidade entre as redes públicas municipais e estaduais
N também se faz presente. Se não há evidências empíricas que indiquem
O diferenças relevantes para a categoria Projeto pedagógico (Sec.), o qual in-
V
dica que a escola adotou o projeto pedagógico elaborado pela Secretaria
A
(Municipal ou Estadual) de Educação, sem modificações adicionais.
C
Para a categoria que tem mais impacto sobre o aprendizado dos alu-
I nos18, Projeto Pedagógico (Dir. e prof.), que é a elaboração de um projeto
Ê
N
pedagógico pela direção da escola com a participação dos professores, as
C chances de que esse projeto pedagógico tenha sido elaborado em uma
I escola estadual é notavelmente maior do que tenha sido feito dessa ma-
A
neira em uma escola municipal. Os coeficientes para essa variável são
D negativos e significantes para ambas as especificações apresentadas na
A
tabela 5. Finalmente, cabe notar que não há evidências empíricas da
P ocorrência de disparidades relevantes entre as redes públicas municipais
O
e estaduais para as variáveis Faltas e Rotatividade, que indicam proble-
L
Í mas com o absenteísmo de professores ou de alta rotatividade entre eles,
T
I
respectivamente.
C O modelo 13, apresentado na coluna (4) da tabela 6, traz a especi-
A
ficação mais completa com todas as variáveis dos alunos, do ambiente
.
familiar, da escola, dos diretores e dos professores. Quando se examina
o comportamento das variáveis observáveis dos professores, percebe-se
114
que não há praticamente disparidades entre as escolas das redes pú-
blicas estaduais e municipais para esse conjunto de características. No

18
Ver a esse respeito a tabelas 1 e 2, além dos já citados trabalhos de Franco e
Menezes-Filho (2009), Felício e Fernandes (2006) e Menezes-Filho (2007).

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entanto, cabe destacar que a prevalência de professores com curso su-
perior é mais frequente em escolas das redes municipais (o coeficiente
estimado para a variável Curso superior é positivo e estatisticamente sig-
nificante ao nível de 5 por cento). Por outro lado, quando se analisa
o conjunto de variáveis que procuram captar a experiência do profes-
sor e sua permanência numa mesma escola, nota-se que a disparidade,
embora pequena, tende a favorecer as escolas das redes estaduais. Por
exemplo, as chances de que um professor com mais de 10 anos de expe-
riência seja docente de uma escola estadual é consideravelmente maior
do que de uma escola municipal (o coeficiente estimado para a variável
Experiência + de 10 anos é negativo e significante a 10 por cento). Assim
também ocorre com a variável, + de 5 anos na escola, cujo estimador é
negativo e significante, indicando que os professores que permanecem
por mais de 5 anos numa mesma escola tendem, em média, a ser mais
frequentes nas escolas das redes públicas estaduais. Para as demais variá-
veis, referentes à forma de contratação de professores e a faixa etária dos O
docentes não há evidências empíricas de disparidades entre as redes de
ensino municipais e estaduais. N
Í
Ademais, cabe acrescentar que a coluna (5) das tabelas 4, 5 e 6 traz V
os efeitos marginais das variáveis explicativas do modelo 13, isto é, da E
L
especificação que inclui todas as variáveis dos alunos, do ambiente fa-
miliar, da escola, do diretor e dos professores. O efeito marginal pode D
ser entendido como o acréscimo na probabilidade de que o aluno esteja E

matriculado em uma escola municipal, dada a presença daquela caracte- G


rística específica e mantidas todas as demais variáveis constantes. Assim, O
por exemplo, o efeito marginal da variável 12 anos é igual a 0.035. Esse V
efeito pode ser interpretado como um acréscimo de 0.035 por cento nas E
chances de que um aluno com 12 anos ou mais esteja matriculado numa R
N
escola da rede municipal, tudo o mais constante.
O
Em suma, os modelos estatísticos apresentados nas tabelas 4, 5, 6, A
fornecem fortes evidências empíricas que sugerem que a diferença de
desempenho acadêmico nos exames do SAEB, verificada anteriormente,
parece estar mais associada a um processo de estratificação social do
alunato entre as redes públicas de ensino fundamental do que a dispari- 115

dades nos insumos escolares ou nas condições de oferta de ensino entre


as redes municipais e estaduais. Primeiramente, nota-se que as maiores
disparidades entre as redes se dão justamente quanto às características

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dos alunos e do ambiente familiar. Mais especificamente, as dispari-
dades estão mormente relacionadas à idade dos alunos e à educação
da mãe. Alunos acima da idade recomendada para a série têm maiores
chances de estar matriculados em escolas municipais. Como também,
alunos cujas mães têm o ensino médio ou o curso superior completo
têm, em média, mais chances de estar matriculados em escolas das re-
des públicas estaduais. Outras características socioeconômicas, como,
a presença de computador em casa e a prevalência de trabalho fora de
casa em idade escolar, também corroboram a hipótese da estratificação
social. Enquanto a primeira característica pode ser interpretada como
um indicador de maiores probabilidades de frequentar escolas das redes
A estaduais, a do trabalho fora de casa aumenta as chances do aluno de
N
frequentar escolas das redes municipais.
O Em segundo lugar, pode-se observar que há também algumas dis-
V
paridades nos insumos escolares: escolas equipadas com bibliotecas e
A
laboratórios de ciências tendem, em média, a integrar as redes estaduais
C com mais frequência; os diretores com curso superior, mais experiência
I na função ou que assumiram o cargo de direção da escola por meio de
Ê
N
processos meritocráticos, tais como seleção ou eleições, têm maior pro-
C babilidade de estarem dirigindo escolas estaduais do que municipais.
I Há, por outro lado, alguns itens nos quais as escolas municipais são
A
mais bem servidas, tais como: merenda e transporte escolar, professores
D com curso superior e escolas equipadas com quadras de esportes. Esses
A
itens têm, em média, maiores chances de estarem presentes em escolas
P municipais do que em escolas dirigidas pelos estados.
O
L A estratificação social do alunato e as discrepâncias nos insumos es-
Í colares, provavelmente, se complementam e interagem na prática coti-
T
I diana das escolas públicas de ensino fundamental. Entretanto, do ponto
C de vista estritamente analítico, quando se examina as disparidades men-
A
cionadas nos parágrafos precedentes à luz dos trabalhos que investiga-
.
ram os aspectos condicionantes do aprendizado nas escolas brasileiras19,
pode-se concluir que a diferença nas proficiências médias entre os alu-
116
nos das redes estaduais e municipais está mais associada ao processo
de estratificação social do alunato entre as redes de ensino público. A

19
Ver a esse respeito, entre outros, os já citados: Franco e Menezes-Filho (2009),
Felício e Fernandes (2006) e Menezes-Filho (2007); além da tabela 1 acima.

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literatura tem demonstrado que o fator único mais relevante para se ex-
plicar o rendimento acadêmico dos estudantes é o nível educacional dos
pais, particularmente a escolaridade da mãe (Glewwe & Kremer 2006).
Ademais, como se pode verificar nas tabelas 1 e 3, o atraso escolar têm
um acentuado efeito negativo sobre a proficiência média dos alunos.
No entanto, é de fundamental importância observar que, não obs-
tante se possa estabelecer, à luz das evidências empíricas, que a diferença
na proficiência média nos exames do SAEB entre as redes municipais e
estaduais está mais associada à estratificação social do alunato nas redes
do que a disparidades nos insumos escolares, não se pode afirmar com
a mesma certeza a direção do processo de causalidade entre esses dois
fenômenos sociais. Pois, se por um lado, é razoável supor que a diferença
no desempenho acadêmico entre as redes é decorrente da estratificação
do alunato, por outro lado, é lógico afirmar que a estratificação social
do alunato é causada pelo diferencial de desempenho escolar entre as
redes públicas municipais e estaduais. Assim, por exemplo, é verossímil O
supor que pais mais educados procurem escolas com melhor reputação
N
para seus filhos. Como seria, igualmente, coerente especular que pais
Í
mais educados troquem seus filhos de escola em decorrência de más V
avaliações em exames padronizados do MEC, tais como: o ENEN, o E
SAEB ou o IDEB. L

D
E
Considerações Finais
G
Primeiramente, vale relembrar a pergunta básica que motivou esta O
pesquisa: O nível de governo importa para a qualidade da política? Mais V
especificamente, para o caso da descentralização da educação funda- E
mental no Brasil, que foi tomado como objeto da análise empírica deste R

trabalho, a pergunta formulada foi: o nível de governo importa para a N


O
qualidade da política de educação oferecida à população? A
As evidências empíricas reunidas por este trabalho mostram que o
nível de governo não importa para o desempenho acadêmico dos alunos
da rede pública. No entanto, o fato de não se encontrar um efeito po-
sitivo da municipalização não implica que a descentralização em si não 117

seja positiva. O que os resultados sugerem é que a expansão das matrí-


culas nas redes municipais, seja por meio da criação de novas vagas em
escolas municipais, seja pela transferência de escolas dos estados para os

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municípios, não teve até o presente momento impacto positivo sobre
a proficiência dos alunos ou sobre as taxas de rendimento de fluxo das
redes.
Os resultados reunidos pelo trabalho mostram que há uma dife-
rença, de aproximadamente três pontos percentuais, no desempenho
dos alunos das redes públicas municipais e estaduais. Esse diferencial
de desempenho, em favor das redes estaduais, pode ser atribuído prin-
cipalmente a um processo de estratificação social que se deu entre as
redes públicas de ensino. Nota-se que houve um efeito composição que
afetou negativamente o desempenho das escolas municipais. Uma vez
controladas as diferenças de cor, gênero, idade e do ambiente familiar
A
dos alunos, a diferença de desempenho escolar entre as redes municipais
N e estaduais se mostra estatisticamente negligenciável.
O
V Enfim, há várias razões para se descentralizar a prestação de políti-
A cas públicas, particularmente aquelas de interesse local, como a educa-
ção. Mas a melhoria do desempenho não pode ser uma delas.
C
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Oxford University Press. New York, NY. Í
V
E
L

D
E

G
O
V
E
R
N
O
A

123

Rogério - A nova ciencia politica.indd 123 07/05/2021 10:39:51


Davi Cordeiro Moreira

Doutor em Ciência Política pela USP (2016),


vencedor do Prêmio CAPES de Teses 2017 na área
de Ciência Política e Relações Internacionais.
Mestre em Ciência Política pela USP (2011)
e Bacharel em Ciências Sociais pela PUC-SP
(2007).

Dedico-me à análise de conteúdo. No mestrado,


inovei ao aplicar metodologia de análise
constitucional à legislação infraconstitucional.
Como resultado, desvendei a contribuição do
legislativo federal na elaboração de leis que
concedem benefícios tributários, revelando o
papel ativo desse Poder na promoção da agenda
da coalizão governista. O artigo que condensa
os principais resultados foi contemplado na primeira edição do prêmio de melhores
trabalhos do Seminário Discente promovido pelo DCP-USP em 2012.

Posteriormente, investi na minha formação em métodos quantitativos e programação.


No doutorado, apliquei com sucesso o que havia de mais avançado em análise de
conteúdo e big data. Tal empreendimento me permitiu contribuir com a transparência
da política brasileira através do Projeto Retórica Parlamentar (2013). No âmbito da
ciência política em si, demonstrei que a atividade parlamentar no interior da Câmara
dos Deputados não se resume ao processo decisório e à relação governo-oposição. De
forma global, o principal mérito da tese é a abertura de uma nova agenda de pesquisa
na Ciência Política, a agenda text as data, que hoje é inspiração para o Projeto txt4cs. É
no âmbito dessa nova agenda de pesquisa que o capítulo dessa coletânea se insere.

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NÃO TOMARÁS SEU NOME EM VÃO.
O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA EM
DISCURSOS DO PT E DO PSDB

Davi Cordeiro Moreira

Introdução
Não há dúvidas de que o Programa Bolsa Família (PBF), criado em
2003 no governo Lula (Partido dos Trabalhadores – PT), é um divisor
de águas na política brasileira1. Um fato recente, ilustrativo da impor-
tância do PBF, foi a mudança de posicionamento do atual Presidente da
República, Jair Bolsonaro (Partido Social Liberal – PSL), a seu respeito.
Cumprindo uma promessa de campanha, Bolsonaro anunciou em abril
de 2019 a criação do décimo-terceiro repasse às famílias beneficiadas
pelo Bolsa Família2. Essa concessão contrasta com a opinião que ti-
nha sobre o programa quando era Deputado Federal. Em agosto de
2010, filiado ao Partido Progressista (PP/RJ), o então parlamentar cri-
ticava o PBF em seus discursos, destacando negativamente seu caráter
eleitoreiro:

Sr. Presidente, há eleições pela frente, vou disputar meu 6º


mandato e confesso que o que tenho hoje em dia de bagagem é
bem diferente do que tinha naquele tempo em que nunca havia
disputado eleições. Mas, infelizmente, estou um tanto quanto

1
O Programa Bolsa Família (PBF) foi criado no Governo do Presidente Luiz
Inácio Lula da Silva pela Medida Provisória 132, de 20 de outubro de 2003, e
posteriormente convertido em lei (Lei Federal n. 10.836 de 9 de janeiro de 2004).
2
Com base nos valores repassados às famílias em abril de 2019, o 13º repasse
deve representar uma injeção de mais de 2,6 bilhões de reais na economia,
beneficiando mais de 14,1 milhões de famílias. A título de comparação, em
valores nominais, representa 63% dos 4,1 bilhões empenhados pelo Ministérios
da Educação em março de 2019. Fonte: Portal da Transparência: <http://www.
portaltransparencia.gov.br/>. Acesso em: 20 de abril de 2019.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 125 07/05/2021 10:39:52


voltado para a decepção. Só quem disputa um cargo qualquer sabe
o que é conseguir um voto. Gostaria que a maioria da população
brasileira tivesse um mínimo de conhecimento, um mínimo de
discernimento para poder escolher A, B ou C, sem ser com o seu
estômago. Se hoje em dia eu der 10 reais para alguém e for acusado
de que esses 10 reais serviram para compra de voto, eu serei
cassado. Agora, o Governo Federal – o anterior também fazia isto,
em parte, mas este agora faz mais – dá para 12 milhões de famílias
em torno de 500 reais por mês, a título de Bolsa-Família definitivo,
e sai na frente com 30 milhões de votos. Realmente, disputar
eleições num cenário desses é desanimador. É compra de votos
mesmo! (...)3.

A Diante do discurso proferido e a recente decisão do governo, veri-


N fica-se uma guinada no posicionamento político de Jair Bolsonaro em
O relação ao PBF: de crítico ao programa passou a apoiá-lo. Essa cons-
V tatação permite enunciar a seguinte questão: teria a consolidação do
A
PBF induzido as principais forças políticas do país a uma convergência
programática a seu respeito?
C
I A pesquisa aqui apresentada é um passo exploratório em direção à
Ê
N resposta da pergunta formulada. Da criação do PBF até hoje, o país pas-
C sou por quatro eleições presidenciais (2006, 2010, 2014 e 2018). Nas
I
A
três primeiras, PT e PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira)
entraram como principais candidatos à vitória, saindo o PT vencedor.
D
A Somente no pleito de 2018, diante de uma eleição atípica – ocor-
rida após o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, do PT, marcada
P
O
pela prisão de Lula no ano da eleição, a impugnação de sua candida-
L tura, consequências advindas da operação Lava-Jato que destituiu Aécio
Í
T
Neves como potencial candidato pelo PSDB e o atentado contra o can-
I didato Jair Bolsonaro, candidato em ascensão na disputa –, o país teve
C
uma reviravolta no quadro das eleições presidenciais que vinha sendo
A
monopolizado por PT e PSDB. Nessa disputa eleitoral, o candidato Jair
.
Bolsonaro (PSL) foi para o segundo turno e venceu as eleições contra o
126
candidato Fernando Haddad (PT).

3
Discurso presente na página da Câmara dos Deputados (www.camara.leg.br),
sem revisão do orador.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 126 07/05/2021 10:39:52


Em todos os pleitos o PBF foi debatido. Recebeu críticas por ter
caráter assistencialista e eleitoreiro4, apoio pelo seu impacto na redução
da desigualdade e da pobreza5 e avaliações sobre a necessidade de seu
aprimoramento6.
Tamanha relevância não passou desapercebida pela Ciência Política.
Foram identificadas evidências sistemáticas sobre o retorno eleitoral do
PBF e de sua avaliação positiva diante da opinião pública. Contudo,
pouco se investigou sobre o posicionamento dos representantes e auto- N
ridades eleitas a seu respeito. É com o objetivo de explorar essa lacuna Ã
que este capítulo se desenvolve. O

Através de falas proferidas por deputados federais em plenário, T


busca-se verificar a dinâmica de posicionamento em torno do PBF O
por parte das principais forças políticas do país até as eleições de 2018. M
Seguindo a teoria downsiana de convergência programática entre parti- A
dos que disputam cargos eletivos (DOWNS, 1957a), mas flexibilizando R
Á
seus pressupostos para o caso aqui explorado7, é plausível ter a expecta-
S
tiva de que a consolidação do PBF tenha resultado numa convergência
de posicionamento a seu respeito por parte da elite política nacional. S
E
Para verificar o modo como os representantes eleitos passaram a se U
referir ao PBF desde sua criação, são analisados 783 discursos profe-
ridos pelos deputados federais nos momentos regimentais de livre ex- N

posição de ideias na tribuna da Câmara dos Deputados (CD) no ano O


M
de sua criação (2003) e nos anos de eleições nacionais subsequentes
E

E
4
Ver Editorial do PSDB publicado em 13 de setembro de 2004: <http://www. M
psdb.org.br/acompanhe/noticias/bolsa-esmola-editorial/>. Acesso em:
28 de abril de 2019. V
5
Bolsa Família reduz índices de pobreza e é referência internacional <http:// Ã
mds.gov.br/area-de-imprensa/noticias/2015/outubro/bolsa-familia-reduz- O
A
indices-de-pobreza-e-e-referencia-internacional>. Acesso em: 28 de abril de
2019.
6
PSDB propõe tornar Bolsa Família ‘política de Estado’: <http://g1.globo.com/ 127
politica/noticia/2013/10/psdb-propoe-tornar-bolsa-familia-permanente.
html>. Acesso em: 28 de abril de 2019.
7
(GROFMAN, 2004), apresenta de forma primorosa os 15 pressupostos da
teoria downsiana para a ocorrência da esperada convergência programática e
destaca que basta o não atendimento a um dos pressupostos para que a teoria
perca sua validade.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 127 07/05/2021 10:39:52


(2006, 2010, 2014 e 2018). Em especial, sem desconsiderar a caracte-
rística multipartidária do sistema político brasileiro, interessa comparar
as principais forças partidárias na disputa eleitoral pela presidência da
República até 2018 – PT e PSDB – e verificar quão distinto é o con-
teúdo dos discursos de seus deputados quando fazem referência ao PBF.
As seções estão organizadas do seguinte modo. Na próxima seção,
com ênfase sobre o PBF, apresento a importância do componente pro-
gramático nas eleições nacionais e, especialmente, na teoria da competi-
ção eleitoral. Em seguida, apresento os dados e a metodologia utilizada.
Na seção seguinte, são apresentados os resultados de como PT e PSDB
se diferenciam em discursos que abordam o PBF. Por fim, apresento
A breves considerações.
N
O
V Competição eleitoral e o componente programático nos
A discursos

C As teorias sobre competição eleitoral destacam o aspecto progra-


I mático como variável importante na estratégia adotada por partidos e
Ê
N
candidatos em sua busca por votos (ADAMS, 2005; DOWNS, 1957a;
C ROBERTSON, 1976). De um lado, as plataformas podem enfa-
I tizar temas e políticas sobre os quais partidos e candidatos possuem
A
bom desempenho para se destacar quando comparados a seus rivais
D (ROBERTSON, 1976). De outro, com o objetivo de se aproximar das
A
preferências do eleitor mediano, as plataformas tenderiam a convergir
P (DOWNS, 1957a)8.
O
L As duas estratégias acima apresentadas não são excludentes, partidos
Í
T
e representantes podem convergir em relação a temas sensíveis ao elei-
I torado, mas não precisam perder a chance de se destacar dando maior
C
ênfase a temas e áreas programáticas nas quais seriam bem avaliados
A
.
(SIO; WEBER, 2014). Diante do caso do PBF, sendo este considerado
um tema sensível no cenário político nacional a expectativa é de conver-
128
gência e alinhamento político a seu respeito. Em outras palavras, espera-
-se que a menção ao programa seja realizada no bojo de um vocabulário

8
Além de Downs (1957a), para mais detalhes sobre a teoria da convergência de
Downs, ver Grofman (2004).

Rogério - A nova ciencia politica.indd 128 07/05/2021 10:39:52


que não seja muito diferente quando comparadas as principais legendas
partidárias.
Dada a magnitude do PBF e da sua direta conexão com a disputa
político-eleitoral do país, a ciência política logo tratou de analisar se a
implementação da política pública implicaria em efeito eleitoral po-
sitivo, beneficiando o candidato do partido incumbente, no caso os
candidatos do PT. A esse respeito a principal conclusão é que sim, a
abrangência do PBF nos municípios brasileiros apresenta retorno N
eleitoral ao candidato do partido incumbente (MAGALHÃES et al., Ã
2015;LICIO et al., 2009; CORRÊA, 2015; ZUCCO, 2013; ZUCCO O

JR., 2015). Além disso, pesquisas9 também se dedicaram a verificar qual T


a avaliação da opinião pública sobre o PBF, indicando que a política O
pública é bem avaliada perante a população (CASTRO et al., 2009). Se, M
de um lado, há sistemática evidência a respeito do retorno eleitoral do A
PBF e o programa possui avaliação positiva diante da opinião pública, R
de outro, a ciência política pouco investigou o posicionamento dos re- Á
S
presentantes e autoridades eleitas a seu respeito. Ademais, nada se sabe
quanto à dinâmica desse posicionamento ao longo dos anos. S
E
Mesmo apresentando distintas composições programáticas10, repre- U
sentantes eleitos não deixaram de destacar o PBF desde sua criação.
Como pode ser visto na Figura 1, o PBF esteve anualmente presente nos N

discursos proferidos pelos deputados federais na CD. O


M
E

E
M

V
Ã
O
A

9
Em consulta ao CESOP (Centro de Estudos de Opinião Pública), institutos
de pesquisa (Datafolha, IBOPE, Vox Populi, etc.) se dedicaram à coleta dessa 129
informação em diferentes ondas de pesquisa de opinião. Porém, o trabalho de
Castro et al. (2009) foi o único trabalho publicado encontrado que possui como
foco a avaliação do PBF na população brasileira. Fonte: <https://www.cesop.
unicamp.br/por/banco_de_dados>. Acesso em: 18 de julho de 2019.
10
A análise do quão distintas são as plataformas é comumente abordada pela
teoria da saliência (MADEIRA et al., 2017; ROBERTSON, 1976; SALLES, 2019).

Rogério - A nova ciencia politica.indd 129 07/05/2021 10:39:52


Figura 1: Porcentagem de discursos com citação do PBF por ano
3,0

2,0
%

1,0

A 0,0
03

04

05

06

07

08

09

10

11

12

13

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16

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18
N

20

20
20
20

20
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20

20
20
20
20

20
20

20

20

20

O
V Em todo período de 236.600 discursos, 3.683 citaram o PBF.
A Fonte: Elaboração própria – Câmara dos Deputados.

C
I
Figura 2: Porcentagem de votos válidos obtidos por PT e PSDB no
Ê
N
resultado eleitoral
C 70,0
I
A 60,0

50,0
D
A 40,0
%

P 30,0
O
20,0
L
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C
94

98

02

06

14
1

20

A
20
19

19

20

20

.
PT PSDB

Nos anos de 1994 e 1998 as eleições foram definidas no primeiro turno. Destaque
130
cinza para o período diretamente vinculado à pesquisa aqui desenvolvida.
Fonte: Elaboração própria – Tribunal Superior Eleitoral.

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Se a citação do PBF nos discursos proferidos na CD mostra sua
presença ao longo dos anos e foram identificadas sistemáticas evidências
sobre o efeito eleitoral do programa, fica em questão qual o posiciona-
mento adotado pelas legendas partidárias a seu respeito. Consideradas
as principais forças políticas do país por serem favoritas nas eleições
presidenciais de 1994 a 2014 (Figura 2), a criação e consolidação do
PBF abre a oportunidade de se analisar de forma exploratória uma pos-
sível convergência de posicionamento do PT e do PSDB em relação ao
N
programa (DOWNS, 1957a, 1957b; GROFMAN, 2004).
Ã
O
O componente programático nos discursos
T
A atividade parlamentar no âmbito da CD vai além da votação O

e apresentação de projetos de lei (MOREIRA, 2016). O Deputado M

Federal possui tempo, espaço, recursos e infraestrutura dedicados à co- A


R
municação política que não se restringem aos projetos em pauta, ga-
Á
rantindo à atividade parlamentar a oportunidade de não se submeter à
S
agenda legislativa.
S
Em seu artigo 74, o Regimento Interno da Câmara dos Deputados
E
(RICD) prevê sete possibilidades regimentais de fala para o parla- U
mentar11. Essa previsão de fala ocorre em oito momentos institucio-
nais distintos12. Cada um com regras próprias para a manifestação N
O
dos Deputados Federais, mas é no Pequeno Expediente, no Grande
M
Expediente e nas Breves Comunicações que os parlamentares gozam da
E
previsão regimental para tratar de assuntos diversos à pauta, com liber-
dade de inscrição, e podem discursar de forma livre na tribuna desde E
que dentro do tempo permitido e das regras estabelecidas13. É pelo M

V
Ã
11
São elas: (i) apresentar proposição; (ii) fazer comunicação ou versar assuntos O
A
diversos, à hora do expediente ou das Comunicações Parlamentares; (iii)
tratar de proposição em discussão; (iv) levantar questão de ordem; (v) fazer
reclamação; (vi) encaminhar a votação; e, a juízo do Presidente da Casa, para
131
(vii) contestar acusação pessoal à própria conduta, feita durante a discussão, ou
para contradizer o que lhe for indevidamente atribuído como opinião pessoal
12
São eles: (i) Abertura; (ii) Breves Comunicações; (iii) Comissão Geral; (iv)
Comunicações Parlamentares; (v) Grande Expediente; (vi) Homenagem; (vii)
Ordem do Dia e (viii) Pequeno Expediente
13
Para mais detalhes, ver Moreira (2016).

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fato de a fala parlamentar ter a possibilidade de se concretizar em am-
biente de independência em relação ao processo decisório e distante dos
constrangimentos partidários que este trabalho se dedica à análise dos
discursos proferidos no Pequeno Expediente (PE), Grande Expediente
(GE) e Breves Comunicações (BC) que fizeram menção ao PBF.
De acordo com os dados disponibilizados pela CD14, considerando
os três momentos institucionais de fala selecionados para esta pesquisa
(PE, GE e BC), 236.600 discursos foram realizados pelos Deputados
Federais entre 20 de outubro de 2003 (data da edição da medida provi-
sória que cria o PBF) e 01 de fevereiro de 2019. Desses, 3.683 (2%) in-
vocaram o PBF através dos termos “bolsa familia” ou “bolsa-familia”15.
A
Se, de um lado, 2% dos discursos proferidos parece pouco, de outro,
N
em média, o PBF foi mencionado a cada dois dias após a edição da MP
O
V que o criou. A Figura 3 mostra que 80% dos discursos que citam o PBF
A ocorreram num intervalo de, no máximo, um dia quando analisados
em ordem cronológica. Aqui é importante lembrar que a Constituição
C Federal estabelece que o período legislativo vai de 2 de fevereiro a 17 de
I
Ê julho e de 1 de agosto a 22 de dezembro. Fora desse período, no recesso
N parlamentar, o Congresso Nacional se reúne apenas por convocação ex-
C
I
traordinária. Logo, surpreende a presença quase cotidiana da menção ao
A PBF nos discursos proferidos na CD.
D
A

P
O
L
Í
T
I
C
A
.

14
132
Os dados utilizados pela pesquisa foram coletados no Portal de Dados Abertos
da Câmara dos Deputados e se vale da organização e classificação realizada
pela equipe técnica da Casa. Os dados estão disponíveis em: <https://www2.
camara.leg.br/transparencia/dados-abertos/dados-abertos-legislativo>.
Acesso em: 28 de abril de 2019.
15
Seleção feita após a remoção dos acentos e transformação de todas as palavras
em letras minúsculas.

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Figura 3: Porcentagem de discursos por intervalo em dias
60,0

50,0

40,0

30,0
%

20,0

10,0 N
Ã
0
O
0

10

15
15
3

8
2

12

13

14
6

11
1

de
a
T

im
ac
O
Dias de Intervalo
M
Fonte: Elaboração própria – Câmara dos Deputados.
A
R
Tamanha presença se deve basicamente às legendas do PT e do Á
PSDB. Do total de 3.683 discursos do período, 1.794 (50%) discursos S

que mencionam o PBF foram realizados por deputados federais eleitos S


pelo PT16. Por sua vez, os deputados federais eleitos pelo PSDB citaram E
o PBF em 314 (9%) discursos no período. Agrupando os dados por ano, U

temos que do total de discursos proferidos pelos eleitos por cada legenda
N
(PT ou PSDB) o ano de 2006 se destaca com a maior presença de dis- O
cursos que citam o PBF, correspondendo a 4,8% dos discursos proferi- M
dos por deputados eleitos pelo PT e 2,7% no caso do PSDB (Figura 4). E
De um lado, a preponderância dessas legendas na menção do PBF
E
em seus discursos pode ser dedicada especialmente ao fato delas se-
M
rem as principais agremiações partidárias nas disputas à presidência da
República até 2018 (Figura 2). De outro, é conveniente ressaltar que V
nesses pleitos houve também uma competição acirrada pela conquista Ã
de cadeiras na Câmara dos Deputados (Figura 5). O
A
Na próxima seção apresento como é comparado o conteúdo pro-
nunciado pelos Deputados Federais brasileiros nos discursos que ci-
tam o PBF. Ainda em fase exploratória, não é propósito dessa pesquisa 133

16
Nesse trabalho considera-se como legenda de um Deputado Federal a sigla do
partido pelo qual foi eleito. Caso algum Deputado Federal tenha trocado de
sigla, essa informação não é considerada.

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explicar em termos causais o comportamento dos parlamentares brasi-
leiros em relação ao PBF, mas objetiva-se compreender padrões gerais
de uma complexa dinâmica da atividade política.

Figura 4: Porcentagem de discursos do PT e do PSDB


com citação do PBF por ano

5,0



4,0





3,0 ▶



%

--


- -


A
--

2,0
--
--- -
-
-- - - -
--- - - - --- --- ---
-

-- ---

--
N
-
- -- --


-
1,0

--
O ---
V 0,0
A
03

04

05

06

07

08

09

10

11

12

13

14

15

16

17

18
20

20
20
20

20
20

20

20
20
20
20

20
20

20

20

20

C
PT - - - - PSDB

I
Ê
Fonte: Elaboração própria – Câmara dos Deputados.
N
C
I
A

D Figura 5: Porcentagem de cadeiras conquistadas pelo


A PT e o PSDB a cada pleito

P 20,0
O
L
15,0
Í
T
I
10,0
C
A
. 5,0

134 0,0
4
94

98

02

06

1
1

20
20
19

19

20

20

PT PSDB

Fonte: Elaboração própria – Câmara dos Deputados.

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Discursos e a estimação de pontos ideais
A grande maioria dos trabalhos de estimação de pontos ideais utiliza
a votação nominal para identificar os padrões de posicionamento dos
atores políticos (CLINTON; JACKMAN; RIVERS, 2004; POOLE;
ROSENTHAL, 1991). Porém, no caso do PBF não se verifica uma se-
quência de votações que permita a estimação de pontos ideais ao longo
do período sob análise, muito menos a captura da dinâmica de posi-
cionamento partidário a seu respeito. Ademais, já é conhecido que o N
processo decisório que ocorre no âmbito do Congresso Nacional é go- Ã
O
vernado pela relação governo-oposição (LIMONGI; FIGUEIREDO,
1998), sob forte influência dos líderes partidários sobre o processo, con- T
dição que poderia desvirtuar os propósitos desse trabalho. O

Se, diante do processo decisório, os deputados federais estão su- M


A
bordinados à orientação de suas lideranças, a previsão de momentos
R
institucionais de livre pronunciamento dos deputados federais lhes ga-
Á
rante relativa autonomia e liberdade de exposição de ideias e agendas S
(MOREIRA, 2016). Desse modo, com foco sobre o PT e o PSDB,
S
para explorar a tese de que a consolidação do PBF reorientou o posi-
E
cionamento das principais forças políticas do país a seu respeito, faz-se U
necessária a identificação do posicionamento relativo dos discursos com
base no conteúdo proferido pelos membros dessas duas legendas. N
O
É através das palavras contidas nos discursos que citam o PBF que
M
será estimado o ponto ideal de cada legenda partidária cujos deputados E
federais fizeram ao menos um discurso citando-o, entre seu lançamento
em 2003 e o fim da 55ª legislatura em 01 de fevereiro de 2019. Para E

tanto, seguindo o exemplo de outros trabalhos como Proksch e Slapin M

(2010), será feito uso de um modelo de aprendizagem computacio- V


nal não supervisionado17, conhecido como WordFish (PROKSCH; Ã
SLAPIN, 2010)18. O
A

135

17
Para conhecer um leque de modelos de aprendizagem computacional para
análise de conteúdo veja: (GRIMMER; STEWART, 2013; IZUMI; MOREIRA, 2018)
18
O Wordfish pode ser implementado com o uso da linguagem R e o pacote
Quanteda. Ele também está disponível em: <http://www.wordfish.org>.
Acesso em: 2 de maio de 2019.

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Como outros modelos de aprendizagem não supervisionada, o
WordFish se vale da frequência relativa de palavras contidas nos dis-
cursos para estimar variáveis latentes que representem a posição do
documento, de seu autor ou, no caso desse trabalho, de seu partido,
a depender de como os dados são processados. O WordFish modela a
geração de palavras em um documento como um processo de Poisson,
a partir do qual pode ser estimada uma variável latente representando
a posição do documento. A distribuição tem apenas um parâmetro que
precisa ser estimado, λ, que é sua média e variância. Sua forma funcio-
nal é a seguinte19:

A ContagemPalavrasij ~ Poisson(lij)
lij = exp(αi +ψj +βj * ωi)
N
O
V onde α representa o conjunto de efeitos fixos de cada partido, ψ o con-
A junto de efeitos fixos das palavras (no caso desse trabalho, dos stems), β
é uma estimativa de peso específico de uma palavra na captura de sua
C
I
importância na discriminação da posição e ω é a estimativa de posição
Ê do i. Os efeitos fixos por palavras capturam o fato de que algumas pala-
N
vras são usadas com muito mais frequência do que outras por todos os
C
I partidos. E os efeitos fixos por partido controlam pela possibilidade de
A
alguns terem mais discursos do que outros.
D Como apontam Proksch e Slapin (2010), para estimar os parâme-
A
tros o Wordfish usa um algoritmo de maximização de expectativa (EM),
P alternando entre a estimativa de parâmetros específicos das palavras
O
mantendo fixos os parâmetros específicos dos partidos e a estimativa
L
Í de parâmetros específicos dos partidos mantendo fixos os parâmetros
T específicos das palavras. O processo é repetido até que um critério de
I
C convergência seja atingido. As posições resultantes estão localizadas em
A uma dimensão que é arbitrariamente definida com média 0 e desvio
. padrão igual a 1 para identificar a função de verossimilhança.
Diante dos propósitos da pesquisa, a vantagem do método esco-
136
lhido perante outros disponíveis – e.g. WordScores (LAVER; BENOIT;
GARRY, 2003) – é que o Wordfish não requer uma amostra de
treinamento ou prévia identificação de posicionamento dos partidos.

19
Para mais detalhes, ver Proksch e Slapin (2010)

Rogério - A nova ciencia politica.indd 136 07/05/2021 10:39:53


A título de exemplo, o Wordfish foi aplicado a discursos parlamen-
tares para estimação de posicionamento pró e anti-União Europeia
no Parlamento Europeu (PROKSCH; SLAPIN, 2010) e às posições
quanto austeridade fiscal em discursos que debateram o orçamento ir-
landês (HERZOG; BENOIT, 2015).
Logo, a dimensão na qual são localizados os pontos ideais estimados
não possui significado substantivo previamente definido. Sendo a ma-
téria-prima da estimação as palavras (stems) contidas nos discursos que N
citam o PBF, os pontos ideais estimados resultam do quão distintos são Ã
os discursos de acordo com o vocabulário empregado. Em linha com os O
trabalhos aqui apresentados, a diferença das estimativas obtidas através
T
do conteúdo expresso é utilizada neste capítulo enquanto proxy de con-
O
vergência ou divergência programática.
M
A
R
Organização e Processamento dos dados
Á
Organização dos dados S

Lauderdale e Herzog (2016) apontam para o fato de que con- S


textos diferentes fazem com que uma mesma palavra tenha distintas E
U
conotações a respeito de um tema, podendo essa ser usada para re-
presentar posições diferentes de acordo com o debate, autor, ou pe- N
ríodo analisado. Nesse sentido, as pesquisas em ciência política que O
aplicam a análise automatizada de conteúdo para estimação de pon- M
tos ideais têm usado duas abordagens ao tentar capturá-los a partir de E
discursos.
E
De um lado, as pesquisas têm se limitado à análise de discursos M
de um único tópico (HERZOG; BENOIT, 2015; LAVER; BENOIT,
2002; SCHWARZ; TRABER; BENOIT, 2017), mantendo constante a V
Ã
variação temática do acervo para então capturar os posicionamentos dos
O
autores. De outro, com o objetivo de garantir que a variação temática A
não influencie na estimação dos pontos ideais, pesquisadores têm com-
binado os discursos pronunciados sob a autoria de parlamentares ou
137

Rogério - A nova ciencia politica.indd 137 07/05/2021 10:39:53


de seus partidos (GIANNETTI; LAVER, 2005; PROKSCH; SLAPIN,
2010)20.
Uma vez que a pesquisa aqui proposta abrange praticamente 15
anos de existência do PBF e sua matéria-prima (os discursos livremente
proferidos no plenário da CD) é fruto da composição legislativa par-
cialmente estabelecida após 4 pleitos (2002, 2006, 2010 e 2014)21, para
diminuir o efeito da variação temporal sobre a frequência de palavras
utilizadas nos discursos proferidos optou-se por aplicar um modelo para
o conjunto de discursos agregados por legenda partidária no ano de
criação do PBF (2003) e a cada ano com eleições federais (2006, 2010,
2014, 2018), totalizando, portanto, 5 estimações de pontos ideais (ver
A
Figura 6). Assim, a cada modelo variou-se o número de partidos, dis-
N cursos e palavras pronunciadas (Tabela 1).
O
V
A
Processamento dos dados
C Dada a riqueza e complexidade da linguagem, para que a estimação
I
Ê
automatizada de pontos ideais com base no conteúdo dos discursos seja
N eficaz, uma redução abrupta na dimensionalidade do acervo é realizada
C antes da aplicação dos modelos computacionais. Logo, com o Wordfish
I
A não é diferente, para seu uso é necessário desenvolver uma Document-
Term-Matrix (DTM)22, na qual cada linha representa um discurso, ora-
D
A
dor ou partido, as colunas representam as palavras, termos ou stems e
cada elemento da matriz apresenta a sua frequência.
P
O Nessa pesquisa, portanto, para cada um dos anos no quais o Wordfish
L foi aplicado, o conteúdo de cada um dos discursos passou pelo seguinte
Í
T processo para redução de sua dimensionalidade23:
I
C Primeiro, foram removidos números, pontuação e acentos. Em
A seguida, todas as palavras foram colocadas em letra minúscula. Em
.

20
Uma terceira alternativa que combina as duas estratégias é o uso do Wordshoal
138 (LAUDERDALE; HERZOG, 2016).
21
A expressão “parcialmente” é utilizada aqui, pois, no caso brasileiro, o número
de cadeiras por partido pode variar ao longo da legislatura.
22
Também conhecida pela literatura como Document-Feature-Matrix (DFM).
23
O processamento dos dados foi realizado através da linguagem R, o pacote tm
e o desenvolvimento de funções próprias.

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terceiro lugar, dado que todos os discursos selecionados continham os
termos “bolsa familia” ou “bolsa-familia”, estes foram removidos. Esta
opção foi feita para que, por exemplo, a palavra “família” que nomeia
a política pública não fosse confundida pelo modelo com a palavra “fa-
mília” utilizada isoladamente no conteúdo dos discursos para se referir
às famílias brasileiras. Em quarto, foram removidas stop-words (artigos,
preposições, pronomes de tratamento, etc.), bem como termos selecio-
nados. Em quinto lugar, todas as palavras restantes foram transforma-
N
das em stems24. Em sexto, foi elaborada uma DTM com Discursos stems. Ã
Em sétimo lugar, foram removidos da DTM os stems que não apreciam O
em ao menos 10% dos discursos do corpus (coleção de documentos) do
T
respectivo ano. Por fim, para cada ano, as linhas dos discursos foram
O
combinadas com a soma das frequências dos stems restantes de acordo
M
com a legenda partidária pela qual os deputados que proferiram discur-
A
sos e citaram o PBF foram eleitos. R
Ao final, portanto, para cada ano analisado obteve-se uma DTM Á
na qual cada linha representa uma legenda partidária e cada coluna um S

stem, Partidos stem. O resultado dessa operação pode ser verificado na S


Tabela 1. E
U

Tabela 1: Dados descritivos do acervo após o processamento do N


conteúdo dos discursos nos anos selecionados O

2003 2006 2010 2014 2018 M


# Partidos 10 13 14 14 16 E
# Deputados 49 119 89 91 49
E
# Discursos 64 258 165 218 78
M
# Stems 756 819 850 881 658

Fonte: Elaboração Própria. V


Ã
O
A

139

24
O stem é uma representação simplificada da palavra que visa manter apenas
os caracteres mais próximos de sua raiz e assim evitar a variação do termo em
gênero, número e grau.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 139 07/05/2021 10:39:53


É com a matéria-prima descrita pela Tabela 1 que o modelo Wordfish
foi estimado para cada ano sob análise25. Os principais resultados são
apresentados na seção seguinte.

Resultados
No dia seguinte ao lançamento do PBF, o Deputado Federal
Antonio Carlos Mendes Thame (PSDB/SP) fez o seguinte pronuncia-
mento na tribuna da Câmara dos Deputados (CD):

Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, o Financial Times publicou


A hoje uma reportagem sobre o lançamento do Programa Bolsa-
Família pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Segundo o
N
respeitado diário financeiro britânico, a determinação do Governo
O
de combinar a ortodoxia econômica com políticas sociais
V
A progressistas despertou esperanças em toda a América Latina por
um novo modelo econômico mais igualitário. No entanto, até agora
só houve frustração. O principal programa social do Governo, o
C
I Fome Zero, frustrou as esperanças e foi pobremente organizado.
Ê “Agora”, observa o jornal, “o Presidente Lula está determinado a
N mostrar que os obstáculos iniciais foram superados.” Em vista disso,
C
surgem 3 observações. Primeiro, a de que o Poder Executivo não
I
A seguiu a recomendação de Zilda Arns, feita em janeiro deste ano,
no sentido de não criar nada novo, mas melhorar o muito que já
D
tinha sido feito e aumentar os recursos para os inúmeros programas
A
sociais em curso, iniciados no Governo anterior. A vaidade foi maior.
P Preferiram acabar com todos esses programas e iniciar um novo, o
O Bolsa-Família. Gastou-se uma fortuna em marketing no Programa
L Fome Zero. Alguns dizem até que esse programa em termos de
Í
T combate a fome é zero, mas em termos de marketing é 100. E
I agora vão gastar outra fortuna em marketing no Programa Bolsa-
C Família. Para o Fome Zero contrataram a UNESCO, passando um
A
atestado de incompetência para todos os técnicos brasileiros da
. área social. Para o Programa Bolsa-Família vão também contratar
a UNESCO, ou a OMC, ou a FAO? Que órgão será contratado no
140 exterior? Esqueceram-se de colocar no Orçamento de 2004 recursos
para o Bolsa-Família. O Ministro do Planejamento afirmou que não

25
O modelo Wordfish foi aplicado através da linguagem R e o uso do pacote
Quanteda

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há recursos; levou uma bronca do Presidente da República e então
retratou-se, dizendo que os recursos vão aparecer. Por último,
a justificativa dada para retirar recursos da saúde e transferi-los
para o Fome Zero foi a de que “matar a fome faz bem à saúde”. Ora,
construir casas com saneamento básico para quem mora em favelas
também é bom para a saúde. Gerar empregos também é bom para
a saúde. Assim sendo, devemos retirar recursos dessa área para criar
empregos e estabelecer políticas setoriais? Devemos retirar recursos
da saúde para destiná-los à habitação? Estamos assistindo um
N
assalto aos recursos do setor de saúde, num verdadeiro descalabro.
Ã
Não poderíamos imaginar que este Governo, em lugar de aumentar
O
generosa, sustentada e permanentemente os recursos para a área
social, criando estruturas que ano a ano se solidifiquem e atendam T
melhor à população, fizesse o contrário: o desmonte da saúde do O
País. O PT faz mal à saúde.26.
M
A
Cumprindo seu papel na oposição, o referido deputado atacou o
R
programa e o governo que o criou, destacando feitos do governo de Á
Fernando Henrique Cardoso (PSDB). No entanto, naquele momento S
ainda era cedo para qualquer conclusão a respeito do impacto do PBF
S
sobre a sociedade brasileira e, especialmente, quais seriam seus efeitos E
político-eleitorais. De lá para cá, o país teve quatro eleições presidenciais U
(2006, 2010, 2014 e 2018). Nos três primeiros pleitos, PT e PSDB
entraram como principais candidatos à vitória, saindo o PT vencedor N

nas disputas de 2006, 2010 e 2014. Logo, se faz conveniente inves- O

tigar se PT e PSDB mantêm ao longo dos anos posicionamentos re- M


E
lativamente distintos ao abordar o programa nos discursos proferidos
na CD. E

Ao estimar anualmente os pontos ideais de todas as legendas par- M

tidárias cujos deputados federais fizeram ao menos um discurso que V


citou o PBF conforme apresentado na seção anterior (Figura 6), pode-se Ã
calcular a distância relativa Dist entre os pontos ideais de PT e PSDB. O
Assim, é possível verificar o quão distintos são seus pronunciamen- A

tos que mencionaram o programa. Em outras palavras, é possível afe-


rir se em relação à menção do PBF as duas legendas convergiram ou 141
divergiram.

26
Discurso presente na página da Câmara dos Deputados (www.camara.leg.br),
sem revisão do orador.

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Figura 6: Pontos ideais dos partidos em discursos que citam o
PBF para os anos selecionados
2003 2006
PPS PSD
PPB
PTB
PCdoB
PSDB PSDB
PPB PPS
PDT
PL/PRONA/PR
PTB
PFL/DEM PFL/DEM
PT PL/PRONA/PR
PSB PSB
PT
PSD
PMDB/MDB
PMDB PSL
2010 2014
PHS PCdoB
PL/PRONA/PR PTB
PFL/DEM PT
A
PMDB/MDB PV
PDT PL/PRONA/PR
N PCdoB PDT
PT PSB
O PSDB PSOL
PTB PSDB
V PPS
PAN
A PTC PP
PSB PRB
PPS PMDB/MDB
PP PFL/DEM
C -2 0 2
I 2018
SD
Ê PT
PSC
N PMDB/MDB
PCdoB
C PRB
I PSDB
PSOL
A PPS
PDT
PTB
D PL/PRONA/PR
A PSD
PSB
PFL/DEM
PP
P
-2 0 2
O
L
Destaques para os pontos ideais de PT e PSDB.
Í
T Fonte: Elaboração própria – Câmara dos Deputados.
I
C
A Sendo θi o ponto ideal estimado para uma determinada legenda
. partidária i, e a amplitude da dimensão na qual são anualmente posi-
cionados os pontos ideais, dada por amplitude, a distância relativa, Dist,
142 entre PT e PSDB é calculada a partir da seguinte equação:
LLPT – ULPSDB
se θPSDB < θPT
Dist = amplitude
LLPSDB – UL PT
caso contrário
amplitude

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onde LLi representa o valor do limite inferior do intervalo de confiança
e ULi o valor do limite superior do intervalo de confiança estimado
de θi ao nível de 95%. Quando LLi – ULi < 0, Dist foi truncado no
zero para demonstrar que não há diferença significativa entre os pontos
ideais de PT e PSDB num determinado ano dada à sobreposição dos
intervalos de confiança. Logo, 0 ≤ Dist ≤ 1.
Pela Figura 7, verifica-se a distância relativa, Dist, dos limites dos
intervalos de confiança estimados para os pontos ideais de PT e PSDB N
a cada ano de eleição presidencial. Ã
O

Figura 7: Distância relativa dos pontos ideais do PT e do PSBD T


em discursos que citam o PBF por ano selecionado O
M
1.00
A
R
Á
0.75 S

S
E
0.50
U

N
0.25
O
M
E
0.00
2003 2006 2010 2014 2018 E
Fonte: Elaboração própria. M

V
Além da já identificada divergência no ano de lançamento do PBF, Ã

diversas conclusões podem ser tiradas da Figura 7. No ano do pleito O


A
imediatamente posterior ao seu lançamento (2006), a divergência das
legendas em relação aos discursos que o citam aumenta. Do lado do
143
PSDB, o PBF é enquadrado como eleitoreiro e em discursos de crítica
ao governo que se encerra, como no caso do pronunciamento realizado
pelo deputado federal Sebastião Madeira (PSDB/MA), que no dia 22
de maio de 2006 apontou problemas e desvios do governo:

Rogério - A nova ciencia politica.indd 143 07/05/2021 10:39:53


(...) Sr. Presidente, o Governo se segura única e exclusivamente
no Programa Bolsa Família e aparentemente ajuda os pobres. Na
verdade, prejudica-os porque põe em risco o presente e o futuro
do País. O Governo descumpriu todos os seus compromissos; o
Governo está eivado de corrupção. Aliás, o próprio Procurador-Geral
da República listou o nome de 40 pessoas do Governo atoladas até o
pescoço na prática de corrupção. Todas as semanas, pelo menos uma
das revistas nacionais – Veja, ISTOÉ ou Época – divulga denúncias de
corrupção no Governo Lula. O que se espera de um país administrado
por governo em que a corrupção está em seu seio; por governo
incompetente que provoca a quebra da agricultura, que não tem
capacidade para melhorar as estradas, mesmo tendo recursos para
fazê-lo? A atual administração tenta se manter e pretende se reeleger
A com base no grande Programa Bolsa Família. Qualquer Presidente do
Brasil ou futuro Governo terá de mantê-lo. Mas ele não é suficiente,
N
porque o País precisa crescer, gerar oportunidades aos jovens que
O
vão ingressar no mercado de trabalho, bem como perspectivas para
V
A as futuras gerações. Isso não ocorre no Governo Lula. Nele, o que
se observa é corrupção, incompetência, incapacidade, equívocos e
frouxidão na política externa.(...)27.
C
I
Ê Do lado do PT, com vistas ao pleito que se aproximava, o então de-
N putado federal Tarcísio Zimmermann (PT/RS), tratava de citar o PBF
C ao destacar aspectos positivos do governo, conforme feito em 16 de
I
A março de 2006:
D
A (...) Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, registra hoje a imprensa
mais uma pesquisa em que o Presidente Lula mantém larga margem
P de vantagem à frente dos principais adversários na próxima disputa
O presidencial. A pesquisa revela a avaliação comparativa que o
L
Í
povo brasileiro vem fazendo dos recentes Governos. Apesar das
T contradições que enfrenta o Governo do Presidente Lula e dos erros
I cometidos por parcela do Partido dos Trabalhadores, evidencia-se
C
no resultado geral que o Governo do Presidente Lula, em várias
A
dimensões, é muito superior aos anteriores, principalmente no
. que diz respeito à distribuição de renda, pois o número de muito
pobres no Brasil hoje é menor. (...) Quando as pesquisas registram
144 que o povo brasileiro compreendeu que a gestão do Presidente
Lula efetivamente significou um avanço em relação aos governos

27
Discurso presente na página da Câmara dos Deputados (www.camara.leg.br),
sem revisão do orador.

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anteriores, devemos saudar o esforço do Governo. Devemos também
afirmar que um eventual segundo Governo Lula certamente será
realizado em condições muito superiores às do Governo atual.
Isso porque atingimos um bom grau de estabilidade econômica,
conseguimos capacidade de desenvolvimento e conquistamos
soberania nacional e capacidade de executar políticas públicas
sociais. Registro ainda a importância do Programa Bolsa Família no
atendimento a milhões de famílias que, por situações históricas, se
encontram excluídas do processo de participação na renda nacional.
Enfim, este Governo atingiu capacidade muito superior de atuar em N
todas as áreas da política social e da política de desenvolvimento. Por Ã
isso acredito que um segundo Governo do Presidente Lula será mais O
promissor do que o primeiro, em que teve de arrumar a Casa e iniciar
processo que julgamos – e assim o povo brasileiro também o julga T

– extremamente positivo para a Nação e para o desenvolvimento O

que desejamos, com equidade, distribuição de renda e justiça social. M


Muito obrigado, Sr. Presidente.28. A
R
Os exemplos expostos até o momento ilustram como o PBF foi Á
enunciado em contextos distintos de conteúdo político proferido. Ainda S

em seus primeiros anos de vida, sem evidências sistemáticas sobre seu S


efeito social e político-eleitoral, as principais legendas em disputa pelo E
executivo federal comparadas em conjunto com as demais, diferencia- U

vam-se em relação ao conteúdo proferido ao citar o PBF.


N
Resgatando a teoria downsiana e o ponto principal deste trabalho, O
uma esperada convergência de PT e PSDB a respeito do PBF pode ser M
verificada nos anos de 2010 e 2014, segundo e terceiros pleitos presi- E
denciais após a criação do PBF, contrapondo-se aos discursos dos anos
E
de 2003, 2006 e 2018.
M
Em 2010, foi estimada a sobreposição dos intervalos de confiança
dos pontos ideais de PT e PSDB, resultando em Dist = 0. Neste ano de V
Ã
segunda eleição presidencial após a criação do PBF, fica claro que a po-
O
sição do PSDB é mais próxima da posição do PT por mencionar o PBF A
em contexto positivo. Com a economia em crescimento29 e a aprovação
145

28
Discurso presente na página da Câmara dos Deputados (www.camara.leg.br),
sem revisão do orador.
29
Segundo o IBGE, em 2010 o PIB cresceu 7,5%.

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do governo Lula chegando a 80%30, a menção ao programa esteve atre-
lada mais a uma disputa de créditos políticos sobre seu sucesso e do
contexto promissor pelo qual passava o país do que a uma crítica a seu
respeito ou ao próprio governo. Enquanto, de um lado, o deputado
federal Eduardo Valverde (PT/RO) em discurso proferido em 23 de
fevereiro de 2010 destacava o PBF no bojo de conquistas do governo
petista:

(...) Avançamos muito. Mesmo com a crise internacional, o Brasil


mostrou maturidade ao administrar a economia sem deixar de
dar atenção às famílias mais pobres. O PAC tem levado sobretudo
às Regiões Norte e Nordeste saneamento básico e infraestrutura.
A
Nunca antes essas regiões foram tão beneficiadas como no Governo
N do Presidente Lula. A criação do número de vagas de emprego
O também foi excelente. Foram criados mais de 12 milhões de postos
V de emprego com carteira assinada. Tenho que exaltar também a
A atenção dada pelo Governo Federal à educação. (...)31.

C De outro, a deputada federal Rita Camata (PSDB/ES), em dis-


I
Ê
curso proferido no dia 26 de abril de 2010 na tribuna da Câmara dos
N Deputados (CD), destacava o quão importante fora para o governo
C Lula a manutenção de políticas tucanas herdadas do governo FHC:
I
A
(...) Foi a estabilidade econômica que possibilitou tanto a capacidade
D
de investimento em programas sociais de largo alcance, como o Bolsa
A
Família, como ainda agregar ganho real ao salário mínimo. É justo
P afirmar, com veemência, que o principal mérito do atual Governo
O foi justamente a opção pela manutenção da política econômica
L rejeitada à época por seus correligionários, mas que hoje a adotam
Í
T e a seguem como se não tivesse existido uma conjuntura anterior
I a seu Governo. E não apenas na política econômica: os programas
C de transferência de renda, conduzidos e implementados por Ruth
A Cardoso, dão a medida de quando realmente foram iniciados e por
. quem foram concebidos. As iniciativas desenvolvidas pelo programa
Comunidade Solidária, como Alfabetização Solidária, Bolsa Escola,
146

30
Fonte: Datafolha. <http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/
avaliacaodegoverno/presidente/lula/indice-1.shtml>. Acesso em: 16 de julho de
2019.
31
Discurso presente na página da Câmara dos Deputados (www.camara.leg.br),
sem revisão do orador.

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Bolsa Alimentação, constituem, indiscutivelmente, os embriões do
Bolsa Família. (...)32.

A despeito do fato de a deputada Rita Camata (PSDB/ES) destacar


o PBF enquanto resultado de iniciativas dos governos do PSDB, o con-
junto de palavras e termos utilizado ao invocar o programa é similar aos
que foram utilizados pelos deputados do PT em seus discursos. Como
pode ser verificado na Figura 6, neste ano de 2010 o PP foi o partido
que mais se distanciou dos demais com o protagonismo do então depu- N
tado Jair Bolsonaro (PP/RJ), vide discurso apresentado na introdução Ã
desse capítulo. O

Por sua vez, em 2014 a distância relativa estimada entre PT e PSDB T


não foi nula, mas foi menos de 30% da verificada em 2006. Cabe aqui O
lembrar, conforme mostra a Figura 2 que a eleição de 2014 foi a mais M
acirrada do período, na qual a diferença entre a candidata eleita Dilma A
Vana Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB) foi de 3,28% dos votos R

válidos33. Á
S
Por fim, em 2018, a distância relativa do conteúdo dos discursos
proferidos pelos deputados federais de PT e PSDB que citam o PBF S
E
volta a crescer, ultrapassando a distância estimada em 2006. Como
U
já destacado nesse trabalho, o período que antecede o pleito de 2018
é bastante turbulento na política nacional. O segundo mandato da N
Presidenta Dilma Rousseff (PT) não chegou a seu final com seu impea- O
chment em 2016, e, em 7 de abril de 2018, após se entregar à Polícia M
Federal no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC em São Bernardo do E
Campo, na Grande São Paulo, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da E
Silva, pré-candidato do PT, é preso. M
Como poderia ser esperado, os discursos proferidos pelos deputa-
V
dos federais do PT no ano de 2018 destacam fortemente esses dois
Ã
eventos mesmo quando citam o PBF. O deputado federal Bohn Gass O
(PT/RS) em discurso realizado no dia 18 de abril de 2018, por exem- A
plo, critica o governo de Michel Temer (MDB) e as medidas tomadas
em seu governo: 147

32
Discurso presente na página da Câmara dos Deputados (www.camara.leg.br),
sem revisão do orador.
33
Fonte: Tribunal Superior Eleitoral.

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(...) Os golpistas falam como Temer: ’Temos que manter isto’.
Não se trata apenas do pagamento de Joesley Batista para
calar Eduardo Cunha na cadeia. Michel Temer disse: ’Temos que
manter isto’. Quando ele diz ’temos que manter isto’, significa
vender a PETROBRAS, entregar o pré-sal, não registrar o salário
mínimo acima da inflação, acabar com o Bolsa Família e com o
Farmácia Popular. Por causa da reforma trabalhista, não há mais
carteiras assinadas. Carteira assinada vai virar peça de museu!
Hoje o que se tem é contrato informal. Quem gosta disso? Os
patrões, os Deputados que votaram no golpe, os Deputados que
votaram na reforma trabalhista. Os patrões lhes pagam e os
aplaudem.(...)34.

A Do outro lado, os deputados federais do PSDB enfatizaram a crise


N
econômica enquanto responsabilidade dos governos petistas. O depu-
O tado federal Rocha (PSDB/AC) destacou em fala proferida em 10 de
V abril de 2018, por exemplo, a possibilidade de falta de recursos para o
A
financiamento de programas, entre eles o PBF:
C
I Sr. Presidente, no momento em que o País vive, talvez, a maior crise
Ê econômica da sua história, ontem o povo brasileiro acompanhou
N atordoado a notícia de mais um calote junto ao BNDES. Estou me
C referindo ao calote de 1 bilhão de reais, recursos destinados pelo
I
Governos dos PT à Venezuela. No momento em que se cobram
A
explicações sobre tudo, no momento em que o País é passado a
D limpo, os Parlamentares do Partido dos Trabalhadores deveriam
A vir a público para justificar o volume de dinheiro que foi destinado
à Venezuela, a Cuba e a outros países aliados. Mais do que isso,
P
O
justificar-se, porque esse dinheiro, quase 1 bilhão de reais, vai fazer
L falta na educação, na saúde, no Bolsa Família e na infraestrutura do
Í nosso País. lamentável que o BNDES tenha sido usado para financiar
T governos amigos! O nosso povo, infelizmente, vai pagar essa conta.
I
C Sr. Presidente, solicito a divulgação no programa A Voz do Brasil e
A nos meios de comunicação desta Casa. Obrigado.(...)35.
.
Resgatando a pergunta de pesquisa que mobiliza este capítulo, te-
148
ria a consolidação do PBF induzido as principais forças políticas do

34
Discurso presente na página da Câmara dos Deputados (www.camara.leg.br),
sem revisão do orador.
35
Discurso presente na página da Câmara dos Deputados (www.camara.leg.br),
sem revisão do orador.

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país a uma convergência programática a seu respeito? Pela dinâmica
identificada na Figura 7, após um aumento da distância relativa Dist
do conteúdo dos discursos proferidos pelos deputados federais de PT
e PSDB que citaram o PBF entre os anos de 2003 e 2006, verifica-se
de forma substantiva uma convergência no conteúdo dos discursos que
mencionaram o PBF nos anos de 2010 e 2014. Tendência de conver-
gência que deixa de ser verificada em 2018, diante do crítico cenário
político nacional.
N
Tais evidências, ainda exploratórias, tornam plausível inferir que Ã
em condições políticas estáveis – sem impeachment, sem prisão de O
pré-candidato à presidência no ano eleitoral, sem Lava-Jato ou qual-
T
quer outro evento de grande relevância que pudesse abalar a competição
O
político-eleitoral –, mantendo-se PT e PSDB como principais legendas
M
na disputa pelo poder executivo federal, a convergência diagnosticada
A
se manteria. No entanto, diante da realidade, com a ascensão de Jair R
Bolsonaro (PSL) à Presidência da República em 2018 e a conquista da Á
segunda maior bancada da CD pelo seu partido, convém avaliar se a S
solidez do PBF será capaz de reaproximar programaticamente as princi-
S
pais forças políticas do país. E
U

Breves considerações finais N


O
De forma ainda exploratória, este capítulo analisa se a consolida-
M
ção de uma política pública foi capaz de reorientar a dinâmica política
E
nacional a seu respeito. Inspirado pela teoria downsiana da competição
eleitoral, a expectativa era de que adversários políticos que visam maxi- E
mizar apoio eleitoral não apresentassem divergências programáticas ao M

abordar tema sensível ao eleitorado (DOWNS, 1957a).


V
Assumindo o PBF como caso exemplar para o teste da teoria, dadas Ã
as evidências sistemáticas sobre o seu retorno eleitoral e de sua avaliação O
A
positiva diante da opinião pública, com o objetivo de se investigar o
posicionamento dos representantes e autoridades eleitas, a seguinte per-
gunta foi postulada: teria a consolidação do PBF induzido as principais 149

forças políticas do país a uma convergência programática a seu respeito?


Para verificar o modo como os representantes eleitos passaram a se
referir ao PBF desde sua criação, foram analisados 783 discursos pro-
feridos pelos deputados federais nos momentos regimentais de livre

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exposição de ideias na tribuna da Câmara dos Deputados (CD) no ano
de sua criação (2003) e nos anos de eleições nacionais subsequentes
(2006, 2010, 2014 e 2018). Sem desconsiderar a característica mul-
tipartidária do sistema político brasileiro, foram comparados os con-
teúdos dos discursos proferidos pelos deputados federais das principais
forças partidárias na disputa eleitoral pela presidência da República até
2018 – PT e PSDB – em conjunto com todas as demais legendas cujos
representantes fizeram referência ao PBF em suas falas.
Como principal resultado, identificou-se a dinâmica de convergên-
cia das duas principais legendas do país (PT e PSDB) em relação ao
conteúdo político no qual mencionam o PBF no segundo e terceiro
A pleitos (2010 e 2014) após sua criação. A divergência no ano de sua
N criação (2003) e no pleito eleitoral imediatamente posterior (2006)
O não se sustentou após a consolidação do programa (2010 e 2014) e
V a manutenção da disputa política entre PT e PSDB sem a ocorrên-
A
cia de eventos que comprometessem drasticamente a competição
eleitoral.
C
I A tendência de convergência não se manteve diante de um cenário
Ê
N
político conturbado. Em 2018, o país ainda se encontrava diante dos
C reflexos do impeachment, que literalmente destituiu o PT do poder, dos
I efeitos da operação Lava-Jato, que reduziu drasticamente a força elei-
A
toral do PSDB e prendeu o pré-candidato petista. Nesse contexto, a
D menção ao PBF foi realizada pelos deputados federais de PT e PSDB
A em agendas de conteúdo político bastante distintas.
P Diante do cenário político nacional que emerge com a ascensão da
O extrema direita, a dinâmica programática das principais forças políticas
L
Í do país se torna uma incógnita. O PBF manterá seu apoio? O impacto
T político do maior programa de transferência de renda do país é uma
I
C instigante agenda de pesquisa.
A
.
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PARTE II: INSTITUIÇÕES
REPRESENTATIVAS

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Sérgio Eduardo Ferraz

Doutor (2012) em Ciência Política pela Universidade


de São Paulo (USP). Mestre (1999) em Ciência
Política pela Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE). Graduado em Economia (1985) e em Direito
(2003), também pela UFPE. Recebi o Prêmio Capes
de Teses, edição 2013, na área de Ciência Política e
Relações Internacionais, pelo trabalho “O Império
Revisitado: Instabilidade Ministerial, Câmara dos
Deputados e Poder Moderador (1840-1889)”, onde
estudo a política imperial do Segundo Reinado e
proponho uma nova interpretação para a dinâmica
de funcionamento do “parlamentarismo” da época.
É disso que trata o capítulo com o qual colaboro
nessa coletânea. Nele mostro que características
centrais do processo político no Império – como a ascensão e a queda dos gabinetes
que respondiam pela direção central do Estado – só se tornam inteligíveis quando se
introduzem na análise outros fatores, como a capacidade dos ministérios de garantir
sustentação no Legislativo, para além da vontade da Coroa e do seu entorno imediato,
variáveis até então priorizadas pela historiografia e pelas ciências sociais.

Meus interesses atuais de pesquisa ainda envolvem a política do Segundo Reinado,


sobre a qual pretendo publicar em breve outros artigos, mas incorporam também
incursões pela política brasileira mais recente (2011 em diante) e pelas transformações
contemporâneas do capitalismo, nas três ultimas décadas, e suas implicações para a
política democrática.

Trabalho na Secretaria da Fazenda de Pernambuco e, na qualidade de professor


convidado ou visitante, tenho dado aulas em várias instituições, mais recentemente,
na pós-graduação em Política da Universidade Católica de Pernambuco, UNICAP,
onde montei e ministrei as disciplinas de Teoria Política Clássica e Política Brasileira
Contemporânea em 2019.

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A DINÂMICA POLÍTICA DO IMPÉRIO:
INSTABILIDADE, GABINETES E CÂMARA DOS
DEPUTADOS (1840-1889)

Sérgio Eduardo Ferraz

I. Introdução1
É terreno inexplorado para a ciência política o longo período de
existência do Estado brasileiro que antecede à fundação da República.
São raros os esforços na disciplina para investigar a dinâmica política
e institucional dos quase 70 anos em que vigorou o Império. Mas um
diagnóstico sobre o período se cristalizou. Oriundo da história, e logo
migrando para as ciências sociais, um entendimento sobre o Império
– e, em especial, sobre o seu Segundo Reinado (1840-1889) – alcança,
até hoje, o status de um saber consolidado e é objeto de forte consenso.
Nessa perspectiva, a dinâmica política de funcionamento imperial
se caracterizou pela centralidade do Poder Moderador. Titularizado pela
Coroa, esse Poder foi, nessa interpretação, o árbitro inconteste daquele
arranjo institucional e o ator-chave cujos movimentos e decisões expli-
cam o processo político da época.
Assessorado pelo Senado vitalício e pelo Conselho de Estado, o
imperador, entronizado no cargo ainda adolescente, aos poucos teria
conquistado as rédeas do arranjo imperial, exercendo controle com-
pleto sobre o sistema político, por forças das prerrogativas institucionais
que a Carta de 1824 lhe garantiu, no contexto de um aparato estatal

1
Este capítulo foi publicado originalmente na Revista de Sociologia e Política (vol.25,
n.62, pp.63-91, 2017). Agradeço aos editores a autorização para publicá-lo nesse
volume, e aos comentários e sugestões valiosas dos pareceristas anônimos
da Revista. Beneficiei-me da interlocução sempre fértil, sobre os temas aqui
tratados, com Fernando Limongi e Paolo Ricci e sou grato também a Miriam
Dolhnikoff, Jairo Nicolau e Gabriela Nunes Ferreira. Os erros, insuficiências e
inconsistências, naturalmente, são de minha inteira responsabilidade.

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fortemente centralizado a partir da década de 1840. A contraface do
protagonismo da Coroa foi o consenso sobre o caráter meramente for-
mal das instituições representativas no regime imperial, sendo secunda-
rizadas as funções exercidas pela Câmara dos Deputados.
Esse capítulo contesta essa visão e propõe entendimento alternativo
dessa fase da história política brasileira. Sem negar a importância do
Moderador, reúnem-se aqui elementos para indicar que características
centrais do processo político no Império – como a ascensão e a queda
dos gabinetes que respondiam pela direção central do Estado – só se
tornam inteligíveis quando se introduzem na análise outros fatores, para
além da vontade da Coroa e do seu entorno imediato. Com base em
A pesquisa que acompanha todos os episódios de substituição de governos
no Segundo Reinado, demonstra-se aqui que a rotação dos ministérios
N
O
entre 1840 e 1889 foi o resultado no mais das vezes da interação entre
V o Executivo e o Legislativo. Ao contrário do que afirma o consenso
A convencional sobre o assunto, a sustentação dos gabinetes, durante todo
o período, dependeu menos da aquiescência da Coroa do que da capa-
C cidade dos titulares do Executivo de assegurarem maiorias na Câmara
I
Ê dos Deputados.
N Quando se analisa, episódio por episódio, os eventos de substi-
C
I tuição de ministérios no “parlamentarismo” imperial, descobre-se,
A não sem surpresa, que o fator mais frequente associado às trocas de
D
governo vem a ser a perda de sustentação legislativa. Mesmo quando
A estão em jogo alternâncias partidárias – ou seja, quando um gabinete
conservador é convocado para suceder um liberal ou vice-versa –,
P
O vale a regra de que por trás da mudança, na grande maioria dos epi-
L sódios, está a perda de controle do plenário da Câmara por parte dos
Í
T
incumbentes.
I Este capítulo, portanto, revisita a política imperial no Brasil a partir
C
A
do exame sistemático dos fatores que condicionaram a sobrevivência
.
dos ministérios. Ao fazê-lo, o texto conduz a alterações substantivas no
próprio modo de entender a política no Segundo Reinado, sendo essa a
156
sua contribuição central 2.

2
A exposição detalhada do argumento desenvolvido neste capítulo está em “O
Império Revisitado: Instabilidade Ministerial, Câmara dos Deputados e Poder
Moderador (1840-1889)”, tese de doutorado defendida no Departamento de
Ciência Política (DCP) da Universidade de São Paulo (USP) em abril de 2012.

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Mais especificamente, o trabalho propõe novas hipóteses explica-
tivas sobre dois eixos de questões: a instabilidade governamental no
Segundo Reinado (1840-1889) e a natureza das relações entre o gabi-
nete e a Câmara dos Deputados (CD) no período.
Quanto à instabilidade ministerial, constata-se que naquele inter-
valo revezaram-se, à frente do Executivo, 37 gabinetes, com perma-
nência média no poder de pouco mais de um ano para cada uma das A

formações governamentais. Buscam-se os motivos dessa rotatividade de D


governos. Para isso, estuda-se cada um dos casos de afastamento, escla- I
recendo-se as razões de retirada das composições ministeriais. N
Â
Em contraste com a tradição, que enfatiza o papel da Coroa no
M
controle do processo político e a responsabiliza pela instabilidade go- I
vernamental do Segundo Reinado, os resultados desta investigação evi- C
denciam que conflitos, efetivos ou potenciais, entre o Executivo e o A

Legislativo, em especial a CD, foram o motivo mais frequente associado P


à queda de gabinetes, respondendo por mais da metade dos episódios O
de retirada. L
Í
O recorrente conflito, entre a CD e os gabinetes, é a matéria do T
segundo eixo do capítulo, o qual explora as relações entre gabinetes mi- I
C
nisteriais e Legislativo. Buscam-se as razões da continuada tensão entre
A
os dois poderes.
Aprofunda-se o exame das relações entre Executivo e CD no Império D
O
em uma perspectiva neoinstitucionalista – pouco explorada no estudo
da política imperial no Brasil. Parte-se da noção de que as relações entre I
Executivo e Legislativo, ou o desempenho dos governos, em termos de M

sua estabilidade e capacidade de efetivar suas políticas, dependem de P


É
três variáveis: o formato do sistema de governo, a legislação eleitoral e a
R
forma de organização interna dos trabalhos legislativos3. I
Considera-se que, no Segundo Reinado, as 3 variáveis-chave para O
.
o desempenho do governo atuaram como vetores “centrífugos”, contri-
buindo para a instabilidade. Isso se dava porque o sistema de governo
157

3
Da literatura neoinstitucionalista, ver Mayhew (1974), Fiorina (1989), Cain,
Ferejohn e Fiorina (1987), Krehbiel (1991), Cox e McCubbins (1993), Shugart
e Carey (1992) e Limongi (2002;2003). Para discussão do institucionalismo
enquanto método, Diermeier e Krehbiel (2003).

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implicava dependência dupla do gabinete, frente à Coroa e às maiorias
legislativas. Por sua vez, as regras do trabalho legislativo exigiam do ga-
binete, para a aprovação de proposições, a reiterada arregimentação de
maiorias, ausentes “atalhos” centralizadores. E, finalmente, por força de
que, dos 49 anos estudados, em 28 o sistema eleitoral, sempre majoritá-
rio, obedeceu a regras “distritais” (Primeira e Segunda Lei dos Círculos
e Lei Saraiva), contra apenas 21 em que se regeu pelo sistema de listas
(Decreto de 1824, Instruções de 1842, Lei de 1846 e Lei do Terço)4.
Das 3 variáveis assinaladas, o sistema de governo e a organiza-
ção interna legislativa da Câmara foram, entre 1840 e 1889, grosso
modo, invariantes5, tendo-se, porém, alterado, com frequência, as
A
regras eleitorais, as quais transitaram de um sistema de listas (1840-
N 1856) para um regime “distritalizado”, adotado de 1856 até o final
O da monarquia, salvo o período (1876-1881) em que vigorou a “Lei
V
do Terço”.
A
A hipótese é que essa transição das listas para o “distrito” fornece
C chave importante para a compreensão das relações entre os gabinetes
I e a CD, estando na raiz do incremento do conflito entre Executivo e
Ê
N Legislativo, o principal dos fatores associados à instabilidade governa-
C mental do período.
I
A A troca das listas pelos “distritos”, da grande circunscrição delimi-
tada pela província para pequenas circunscrições determinadas por gru-
D
A
pos de municípios, desmontou uma das principais âncoras “centrípetas”
do sistema, com amplas repercussões na política imperial.
P
O
A mudança afetou a lógica da competição política e alterou as estru-
L turas de incentivos dos principais agentes políticos, com consequências
Í
T
para o funcionamento da CD e suas relações com o Executivo e para o
I próprio fenômeno da instabilidade no período.
C
A
. 4
O Segundo Reinado foi regido por 7 legislações eleitorais baseadas em regras
majoritárias. É útil dicotomizá-las em termos de sistemas de listas provinciais –
158
que tinham como circunscrição a província inteira – e sistemas “distritalizados”,
nos quais a circunscrição se restringiu ao distrito (de 1 ou 3 representantes),
formado por um grupo de municípios.
5
A Constituição do Império, de 1824, só sofreu uma emenda, na década de 1830
(Ato Adicional), e as regras do funcionamento da Câmara – cristalizadas nos
seus Regimentos Internos – permaneceram generosas quanto à distribuição
de direitos parlamentares durante o Segundo Reinado.

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A introdução das regras “distritais”, ao alterar a circunscrição onde
se dava a competição eleitoral, propiciou mais autonomia às bases do
sistema (eleitorado de 2º grau e chefias locais), hábeis a partir de então
a lançar candidatos competitivos nos pleitos ao Legislativo, abrindo-se
efetiva oportunidade para a eleição de representantes menos dependen-
tes das elites provinciais e nacionais, isto é, frente às direções partidárias,
o que dificultou, em um contexto de processo decisório legislativo rela- A
tivamente descentralizado, o controle da CD pelos gabinetes, intensi-
D
ficou as relações conflituosas entre Executivo e Legislativo, e conduziu
I
a impasses que, frequentemente, redundaram na retiradas de gabinetes N
por pressão parlamentar. Â
Várias evidências, diretas e indiretas, sustentam o argumento: M
I
– Convergência das fontes e da literatura em enfatizar as con- C
sequências da mudança de regime eleitoral, sem conectá-las, A
no entanto, ao fenômeno da instabilidade governamental do
P
Segundo Reinado; O
– O menor mandato médio dos gabinetes que governaram frente L
Í
a legislaturas “distritalizadas” quando comparado ao tempo de T
exercício dos ministérios que se relacionaram com CD escolhi- I
C
das pelas listas;
A
– A associação entre a queda de gabinetes por pressão do
D
Legislativo e a vigência de regras eleitorais “distritalizadas”;
O
– A diferença das relações entre gabinetes e Câmara na 9ª e 10ª
I
legislaturas, a primeira eleita por listas e a segunda sob a re-
M
gra dos círculos, verificando-se enfraquecimento, na passagem P
de uma para outra legislatura, da capacidade do Executivo de É
aprovar sua agenda. R
I
O
O capítulo está organizado da seguinte forma. Apresenta-se o ar- .
ranjo político-institucional do Segundo Reinado e a visão dominante
sobre o seu funcionamento (seção II). Desenvolve-se o argumento re- 159
ferente ao primeiro eixo de preocupações do texto (III). Examina-se a
questão da instabilidade de gabinetes e são propostos padrões explica-
tivos para as retiradas ministeriais, a partir de critérios que sublinham
a eventual atuação da Coroa e/ou do Legislativo. Feito isso, investi-
gam-se as 37 retiradas ministeriais que se processaram entre 1840 e

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1889, especificando suas razões políticas e enquadrando-as em um dos
padrões. Subsequentemente, são sumariados os resultados desse eixo
investigativo, mostrando suas novidades e diferenças em relação às po-
sições clássicas sobre o assunto (IV) A partir daí, volta-se o texto para o
seu segundo eixo temático, especificando e detalhando a hipótese que
busca explicar as razões dos sistemáticos confrontos entre gabinetes e
CD. Lastreando o argumento, são expostos, com maior minúcia, os
vários tipos de evidência, acima assinalados, que parecem sustentar a
explicação aqui ventilada (seções V a VII) Uma seção de conclusão fina-
liza o trabalho (VIII).

N
II. O Arranjo Institucional e sua Interpretação Clássica
O
Após três décadas de conflitos, o Império alcançou, por volta
V
A de 1850, relativa estabilidade, estruturando-se, no território da an-
tiga América Portuguesa, uma ordem política relativamente eficaz.
C Configurou-se um modelo institucional próximo à monarquia par-
I
Ê
lamentarista, assentado em um esquema bipartidário formado pelos
N Partidos Conservador e Liberal. O parlamentarismo, que não constava
C da Carta de 1824 nem do Ato Adicional (1834), foi se esboçando nos
I
A últimos anos da Regência e na década de 1840.
D O sistema compreendia legislativo bicameral (Senado vitalício e
A CD temporária), executivo monárquico, mas delegado a um gabinete
P liderado por um presidente de conselho, e um judiciário cujos membros
O eram indicados, em quase todos os níveis, por aquele gabinete. O voto,
L
Í exercido em um sistema de duplo grau (indireto), e a elegibilidade a car-
T
I
gos políticos dependia de critérios censitários. O sufrágio foi exercido
C regularmente, tendo sido eleitas, a partir de 1826, 21 legislaturas da CD
A
nos quase 70 anos do regime.
.
A participação política – em termos da dimensão relativa da po-
160 pulação apta a exercer, em algum grau, direitos políticos – alcançou
níveis expressivos pelos padrões da época. Do contingente populacional
total, livre e escravo, de qualquer idade e de ambos os sexos, 13% dos
brasileiros, em 1872, estavam qualificados para votar (Graham 1997,
p. 418). Esses números não destoavam dos existentes, no período, no

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cenário europeu e norte-americano (Carvalho 2002, p. 31; Lamounier
2005, pp. 77-85). A restrição ao sufrágio, no Brasil imperial, decorreu
da reforma eleitoral de 1881, que reduziu o direito do voto a menos
de 1% da população, colocando o país na contramão da tendência no
Ocidente à extensão de direitos.
A monarquia abrigou também um quarto poder, o moderador,
A
titularizado pelo imperador. Suas competências garantiam à Coroa
supremacia. A Constituição entregava ao moderador poderes para no- D
I
meação e demissão de ministros; a convocação extraordinária, prorro- N
gação e adiamento da Assembleia Geral, composta de Senado e CD; a Â
dissolução da CD; a suspensão de magistrados; o perdão de penas e a M
I
concessão de anistia. As prerrogativas incluíam o veto sobre as decisões C
do legislativo e a nomeação dos senadores, a partir de listas tríplices A
provinciais6.
P
Não causa surpresa que os estudiosos tenham enfatizado o papel do O
Imperador na dinâmica política do Segundo Reinado, considerado ator L
Í
central e fiador do processo político. Munido das prerrogativas assina-
T
ladas, o Trono teria controle sobre o sistema, mantendo sob suas rédeas I
os gabinetes e regulando as alternâncias partidárias entre conservadores C
A
e liberais 7.
Para Sérgio Buarque de Holanda, era Pedro II que escolhia os gabi- D

netes e as diretrizes de governo (1985, pp. 19-22). Iglésias sustenta que O

Pedro II reinou, governou e administrou (2004, p. 113). O outro lado I


dessa moeda teria sido o caráter formal, nunca efetivo, das instituições M
P
representativas parlamentares (Idem, pp. 113-4). Faoro concorda: o go-
É
verno pessoal do imperador era realidade reconhecida (2001, p. 413). R
Era dele a escolha do partido que subia ao poder e a responsabilidade I
O
pela entrega a este dos meios de fazer a maioria legislativa. As funções .
da CD eram secundárias quando comparadas à força de que gozavam as
instituições vitalícias, o Senado e o Conselho de Estado (Idem p. 396).
161

6
Ver artigos 101 e 62 a 68 da Constituição do Império <http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm>.
7
Entre as poucas exceções a essa visão figuram Pereira de Castro (2004) e
Dolhnikoff (2005).

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O parlamentarismo imperial funcionava às avessas por fluir de cima
para baixo, como já denunciara o conselheiro Nabuco (Nabuco 1949,
v. III, p. 110).
Brasilianistas como Needell e Barman convergem com a perspec-
tiva esboçada. Needell (2006, p. 6; 200; 2009, pp. 62-3) considera que
durante o Segundo Reinado amplia-se a ação de Pedro II. Na década
de 1860, a Coroa abandonara atitude de supervisão para evoluir rumo
à condução das políticas dos ministérios – com consequências para a
ordem social e para desenvolvimento das instituições representativas.
Barman salienta a centralidade do monarca e antecipa o seu protago-
nismo para a década de 1850: a essa altura o imperador já controlaria o
A
sistema político (1988, p. 238).
N
Limongi (2011, pp. 2-4) salientou a avaliação positiva dos espe-
O
V
cialistas a respeito do exercício do Moderador por Pedro II. O seu uso
A adequado teria sido a base sobre a qual se estruturou sistema político
estável, capaz de comportar a alternância pacífica de liberais e conserva-
C dores. Carvalho (2006, p. 406) sintetiza essa posição: “[Na ausência do
I
Ê Moderador], (...) ou o conflito seria extralegal ou seria suprimido atra-
N vés de arranjos de dominação como o que se desenvolveu na República
C Velha”.
I
A O esquema explicativo alcançou a sociologia e a ciência política,
D as quais se pautaram pelas interpretações da historiografia. Nos anos
A 1970, Fernando H. Cardoso, escrevendo sobre o início da República,
P assinalou que a questão-chave para o novo regime era definir quem fa-
O ria às vezes do Moderador (1985, p. 38). Renato Lessa, no limiar dos
L anos 1990, afirmou que a “Política dos Governadores”, pactuada na
Í
T República, significou “um equivalente funcional do Poder Moderador”
I
C
(1988, p. 111). Perspectiva semelhante aparece na contribuição de
A Backes sobre a Primeira República (2006, pp. 206-7). De modo mais
. explícito, Wanderley G. dos Santos sustenta que “era o Imperador,
em sua face absolutista de ‘moderador’, que fazia e desfazia gabinetes”
162 (2013, pp. 9-10).
O Moderador teria sido a peça central e o árbitro da dinâmica ins-
titucional do Império. Desaparecendo com a República, teria liberado
o sistema político para convergir em direção ao equilíbrio da “ordem
oligárquica”, necessariamente local e regional (Limongi 2011).

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III. Instabilidade dos Gabinetes, Padrões de Retirada e a
Análise dos Episódios
III. 1 Instabilidade
Para testar o esquema clássico, explora-se característica desse ar-
ranjo enfatizada pelos estudiosos: o contraste entre a estabilidade da mo-
narquia e a alta rotatividade dos seus gabinetes (Holanda 1985, p. 10; 68; A
Carvalho 2006, p. 210). Entre 1840 e 1889, revezam-se 37 gabinetes,
D
constatando-se permanência média no poder de pouco mais de um ano I
para cada ministério. N
Embora destacando diferentes aspectos, os estudos existentes, pro- Â
duzidos a partir de cânones distintos, convergem quanto ao protago- M
nismo da Coroa nas substituições ministeriais (Figueiredo 1898, pp. I
C
149-51; Vianna 1929, pp. 39-40; 96-7; Holanda 1985, pp. 9-10; 67-8; A
Holanda 2010, p. 177; Fausto 2006, p. 180; Carvalho 2006, pp. 400-4;
412). P
O
No entanto, não há evidência empírica robusta sobre a matéria.
L
Praticamente inexistem estudos que examinem cada uma das substitui- Í
ções ministeriais realizadas no período e avaliem suas razões do ponto T
I
de vista político, classificando-as de acordo com algum critério justificá-
C
vel, de modo a discernir padrões regulares. É essa lacuna que a primeira A
parte deste artigo busca suprir.
D
O
III. 2 Padrões
I
O critério adotado para examinar as substituições de governo no M
Segundo Reinado foi a presença ou ausência de intervenção, nesse P
processo, da Coroa e/ou da CD. Isso fornece a seguinte estrutura de É
possibilidades: R
I
Padrão 1. Interferência da Coroa, interferência da Câmara. O
Episódios em que as razões da substituição vinculam-se à perda pelo .

ministério de sustentação junto à Câmara e ao Trono.


Padrão 2. Interferência da Coroa, não Interferência da Câmara. 163
Mudanças em que a Coroa é central. Essas substituições são divididas
em 3 variantes, em função do tipo de interferência do Trono: arbitra-
gem em disputas intra-ministeriais (i); divergências com presidentes de
Conselho (ii); atuação na alteração de programas e/ou prioridades de
governo (iii).

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Padrão 3. Não Interferência da Coroa, interferência da Câmara.
Retiradas resultantes da perda de apoio, efetiva ou antecipada, dos in-
cumbentes junto à Câmara ou, excepcionalmente, perante o Senado.
Essas demissões se deflagram a partir de um dos seguintes fatos: derrota
do gabinete em questão de confiança (i); resultado de votações que ma-
nifestam a precariedade da base parlamentar, seja em relação a proposi-
ções consideradas prioritárias, seja em disputas de cargos de direção na
Mesa (ii); antecipação, quando o gabinete se retira por diagnosticar de
antemão sua inviabilidade (iii).
Padrão 4. Não Interferência da Coroa, não Interferência da Câmara.
Episódios em que a dissolução ocorre por decisão dos incumbentes.
A Abrange casos residuais de dissolução por falecimento do chefe do mi-
N nistério e por força do golpe republicano de 1889.
O Os padrões 3 e 4 registram razões para a mudança não vinculadas
V
ao Trono. Os padrões 1 e 2 estilizam situações de retirada imputáveis à
A
atuação da Coroa. A interferência exclusiva da Câmara é retratada no
C
padrão 3. A atuação exclusiva do Moderador é captada pelo padrão 2.
I
Ê
N III. 3 Análise dos Episódios de Substituições de Gabinetes
C
I Examinam-se agora os motivos políticos dos afastamentos de cada
A
um dos ministérios, seguindo-se ordem cronológica. Agrupam-se os ga-
D binetes em função de linhas de continuidade e descontinuidade8.
A

P
O III.3.1 O Início (1840-1848). Palacianos, “Regressistas” e Liberais: do 1º
L ao 8º Gabinete
Í
T Esse bloco inicial – que vai do ministério da “Maioridade”, em ju-
I
C lho de 1840, até o gabinete liberal de Paula Sousa, demissionário em
A setembro de 1848 – emerge em cenário fluido, onde as matrizes ins-
. titucionais e as identidades partidárias que se afirmarão no Segundo
Reinado estão em construção. Destaca-se a atuação do grupo palaciano,
164
presente na maior parte dos arranjos ministeriais, em aliança tanto com

8
Para uma lista completa dos gabinetes do Segundo Reinado, especificando
coloração partidária, chefe do ministério e o seu início e fim, consultar Ferraz
(2017:70).

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os “regressistas” como, noutras vezes, com os setores liberais. Dos 8 ga-
binetes, 4 serão afastados pela Coroa (1º, 3º, 4º e 6º), sendo a outra me-
tade substituída por pressão da Câmara (2º, 5º, 7º e 8º). Dos ministérios
que caem por interferência real, dois deles – o gabinete da “maioridade”
e o chefiado por Macaé entre 1844 e 1846 – são vítimas de disputas
entre seus integrantes, arbitradas por Pedro II (Anais da Câmara dos
Deputados ACD 24.05.1841, pp. 242-3; Pereira da Silva 2003, pp. A
65-70, 79-83, 96-7, 166; Tavares de Lyra 1979, p. 295; Barman 1988,
D
pp. 201-12; 1999, pp. 76-7; Needell 2006, pp. 83-95; Ferraz de Carvalho I
1933, p. 222). Os ministérios liderados por Honório Leão e por Alves N
Branco entregam seus postos após desentendimento entre seus chefes e Â

o Imperador (Barman 1988, p. 222; 1999, pp. 100-2; Needell 2006, M


I
pp. 105-7; Pereira de Castro 2004, pp. 591-2, 606; Costa Porto 1985, C
pp. 108-9). Os governos cujos desfechos se dão pela ação da Câmara A
sofrem censura (7º gabinete), são derrotados em matéria prioritária
P
(8º, Paula Souza) ou, perdendo o controle do plenário da Câmara, deci-
O
dem se antecipar a colisões mais sérias, optando pela dissolução ministerial L
– caso do 2º e do 5º gabinetes (ACD 01.01.1843, pp. 49-50, 26.05.1848, Í
T
p. 156, 19.05.1848, pp. 96-98; Iglésias 2004, pp. 19-20; Costa Porto
I
1985, pp. 109-11; Pinho 1930, p.139; Barman 1988, pp. 212-6, 220- C
1, 231; Needell 2006, pp. 102, 104-5, 115; Pereira da Silva 2003, A
pp. 111-31, 134-40; Pereira de Castro 2004, pp. 586-8).
D
O

III.3.2 A Volta dos “Saquaremas” (1848-1853): do 9º ao 11º Gabinete I


M
Após perder o poder quando da “Maioridade”, e, novamente, em P
1843, o “Regresso” retorna durante o quinquênio 1848-53. Trata-se É
de período em que – na esteira da repressão às revoltas liberais da dé- R
I
cada de 1840 e do fracasso desse agrupamento em sustentar governos
O
estáveis – afirma-se o governo partidário conservador, à frente o céle- .
bre triunvirato “saquarema”: Eusébio de Queiroz, Paulino de Sousa e
Rodrigues Torres. A mudança ministerial, em setembro de 1853, no 165
final do período, que entrega o poder a outro líder conservador, Paraná,
assinalaria, porém, o crepúsculo da dominância conservadora estrita
no Império. Com exceção do gabinete Itaboraí no final da década de
1860, não se voltará a presenciar gabinetes “saquaremas” ortodoxos
e, dentro do Partido Conservador, prevalecerão, como alternativa de

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poder, os políticos abertos ao diálogo com o Imperador. Das formações
desse período, duas (9ª e 11ª) são substituídas por redirecionamento
nas prioridades governamentais, o qual visava, respectivamente, uma
nova linha de política externa no Rio da Prata e um esforço de com-
posição de governos suprapartidários. Em ambos os casos o papel da
Coroa foi decisivo nas trocas de comando no Executivo (Iglésias 2004,
pp. 23-4; Nabuco 1949, v. 1, pp. 114-7, 160; Needell 2006, pp. 121-
3; Pereira da Silva 2003, p. 244; Ferraz de Carvalho 1933, p. 238). O
10º gabinete sucumbiu a pressões conjuntas da Câmara e do Trono,
incapaz de compatibilizar as exigências da Coroa – voltadas à limitação
do caráter partidário do governo – com as crescentes demandas de pa-
A tronagem do Partido Conservador na Câmara e nas províncias (Needell
N 2006, pp. 137-8; 161-3; Iglésias 2004, pp. 30-1; Pereira da Silva 2003,
O pp. 239-40).
V
A

III.3.3 Incorporação e Ruptura. A “Conciliação” (1853-1857): 12º e 13º


C
I Gabinetes
Ê
N O gabinete Paraná (12º) é um marco por romper – através da
C “Política da Conciliação” – com o domínio exclusivo dos conservadores
I
A sobre a máquina político-administrativa. Abrirá espaço para a incor-
D
poração, nos canais político-institucionais de representação e na admi-
A nistração pública, dos liberais, no ostracismo desde o fim da década de
P 1840.
O
As iniciativas da “Conciliação” influenciaram a evolução do
L
Í Império. A divisão do Partido Conservador, a partir desse período,
T
I entre moderados e “puritanos”, espelhando a adesão e a rejeição, res-
C pectivamente, à linha conciliatória, e a ulterior experiência da “Liga
A
Progressista”, nos anos 1860, são fenômenos que remontam às decisões
.
do gabinete Paraná.
166 Chefe de um dos mais fortes gabinetes do Segundo Reinado, Paraná
foi surpreendido pela morte, que o atingiu no exercício do poder,
quando figurava como o político mais influente do Império. O minis-
tério que o sucedeu governou sob a égide da provisoriedade, ultimando
providencias iniciadas por Paraná – em especial, a reforma eleitoral de

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1855. Em maio de 1857, concluída a execução da reforma eleitoral e
ciente da falta de suporte na legislatura que se inaugurava, o 13º mi-
nistério antecipou-se a dificuldades e entregou os postos (Iglésias 2004,
pp. 55, 77; Needell 2006, p. 194; Nabuco 1949, v. 1, pp. 401-5; Costa
Porto 1985, pp. 155, 162-3).

A
III.3.4 A Pós-Conciliação (1857-1861): do 14º ao 16º Gabinete
D
Integram um período “pós-conciliação”. Essa bandeira suscitou I
substantivo apelo no meio político-parlamentar, exercendo influência N
Â
na composição dos ministérios, sempre “mistos”. No entanto, não se
M
verifica a emergência de agendas consensuais ou capazes de carrear para
I
os governos apoio legislativo confiável. Eesse intervalo assiste – super- C
posta à “conciliação” e, em boa medida, corroendo-a – à cristalização A
de polarização de posições, no Legislativo e na sociedade, em torno de
P
medidas monetário-financeiras, em especial no que concerne à política O
bancária e de crédito. Essas divisões reacendem rivalidades e engendram L
novas oposições, preparando o terreno para reformulações no quadro Í
T
partidário a partir da década de 1860. I
Vítimas da polarização e de uma legislatura cindida ao meio (10ª), C
A
os 3 gabinetes desse período se retiram por incapazes de mobilizar maio-
ria no Legislativo, tendo o Trono atuado também na retirada do 14º D
gabinete (ACD maio/agosto 1858; Pereira da Silva 2003, pp. 261-74; O
Iglésias 2004, pp. 79-88, 100-1; Costa Porto 1985, pp. 168-76; Holanda
I
1985, pp. 22-3; 2010, pp. 62-5; Needell 2006, pp. 205, 210-4). M
P
É
III.3.5 De Caxias à “Liga” (1861-1868): Do 17º ao 23º Gabinete R
I
Caxias (17º), ascendente na inauguração da 11ª legislatura (1861- O
3), procurou reunificar o Partido Conservador, dividido desde a .

“Conciliação” e, subsequentemente, buscou governar com os ortodo-


xos, alheando-se das forças que sustentavam o entendimento interparti- 167
dário iniciado por Paraná. Essa guinada à direita não prosperou diante
de uma Câmara dividida. Após o afastamento de Caxias, inicia-se a
dominância – relativamente longa, mas nunca estável – dos gabinetes
“ligueiros”, compostos pela aliança entre os adversários do 17º gabinete:
os conservadores dissidentes, herdeiros de Paraná, e parcela dos liberais.

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Essa hegemonia da “Liga Progressista” se prolongará até julho de 1868,
quando a intervenção do Moderador trará de volta os conservadores
“puritanos”.
A instabilidade do período – 7 ministérios em 7 anos – se rela-
ciona à tensão entre governo e CD. 5 dos 7 gabinetes caem por falta de
sustentação parlamentar, perdendo o 20º gabinete também o apoio da
Coroa. No interior desse conjunto, sucedem-se episódios de censura ex-
pressa (17º e 18º gabinetes), derrotas em votações consideradas estraté-
gicas pelos incumbentes (20º e 21º), bem como avaliações antecipadas
de perda de controle do plenário (19º) (ACD 28.05.1862, pp. 100-3;
Apêndice ACD 28.05.1862, pp. 36-7; ACD, 8.05.1865: 17; Nabuco
A 1949, v. 2, pp. 92-3, 96-7, 147; Pereira da Silva 2003, pp. 288-9, 291-
N 2, 307, 326-8, 344; Holanda 2010, pp. 86-8; Needell 2006, pp. 215-
O 21, 395, nota 11; Ferraz de Carvalho 1933, pp. 253-4, 258-60; dos
V Santos 1930, p. 85; Costa Porto 1985, pp. 184, 187-9; Iglésias 2004,
A
pp. 118-21).
C
Somente um dos gabinetes desse intervalo – o 22º – se afasta vo-
I luntariamente (Nabuco 1949, v. 2, pp. 345-6, 383-4, 389-94; Pereira
Ê
da Silva 2003, pp. 345-6, 359-61; Javari 1962, p. 141; Iglésias 2004,
N
C
p.124). O último dos gabinetes da “Liga”, no entanto, o mais conhe-
I cido dentre os liderados por Zacarias de Góes (23º), é derrubado por
A
decisão da Coroa, na mais traumática inversão partidária do Segundo
D Reinado (Nabuco 1949, v. 3, pp. 91-104, 112-4; Pereira da Silva
A 2003, pp. 370-83; Ferraz de Carvalho 1933, pp. 264-9; Iglésias 2004,
P pp. 128-39; Holanda 1985, pp. 7-8, 105-8; 2010, pp. 145-52, 159-60;
O Needell 2006, pp. 244-8).
L
Í
T
I III.3.6 Política, Guerra e Reformas Sociais: o Gabinete Itaboraí: 24º
C
Gabinete (1868-1870)
A
. A necessidade de alinhar o comando militar e político do Império,
para acelerar o final do conflito com o Paraguai, motivou a entrega da
168 chefia ministerial ao visconde de Itaboraí. Essa inversão partidária, a
mais célebre do período, de responsabilidade do Moderador, encerrou o
domínio da “Liga”. Denunciado como “golpe de Estado”, por “progres-
sistas” e liberais, os apeados do poder na ocasião, esse episódio influen-
ciará a reorganização partidária da década de 1870.

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A volta dos “saquaremas” não seria duradoura. Vencida a guerra, a
prioridade às reformas do trabalho servil inviabilizou a continuidade dos
ortodoxos no poder. Para estes tal programa era inaceitável. A substitui-
ção de Itaboraí (24º gabinete) refletiu decisão da Coroa (Nabuco 1949,
v. 3, pp. 147-59, 21-55; Pereira da Silva 2003, pp. 409-15; Holanda
1985, pp. 113-5, 119-27; Needell 2006, pp. 254-66).
A

III.3.7 Pimenta Bueno, Rio Branco e Caxias, os Conservadores do D


Imperador (1870-1878): Do 25º ao 27º Gabinete I
N
O domínio conservador irá até 1878, adquirindo centralidade o Â
gabinete Rio Branco, o mais longo do Segundo Reinado, responsável M
por reformas importantes. O traço comum desses ministérios é seu ca- I
C
ráter não-“saquarema”. Seus chefes, embora conservadores, eram estra-
A
nhos à ala “puritana” do partido. Sua lealdade dirigia-se ao Imperador.
A batalha para aprovar a “Lei do Ventre Livre” dividirá, mais uma vez, P
o Partido Conservador – de modo análogo ao que ocorreu na década O
L
de 1850 durante o gabinete Paraná –, sedimentando posições rivais Í
que persistirão até o fim da monarquia. Os três gabinetes sairão por T
razões diversas: Pimenta Bueno (25º), convocado para aprovar as refor- I
C
mas no trabalho escravo, pedirá demissão por não controlar maioria no
A
Legislativo para transformar as propostas em lei (Nabuco 1949, v. 3,
pp. 161-8, 177-81; Ferraz de Carvalho 1933, pp. 280-1; Holanda 1985, D
pp. 127-32, 135-6; Needell 2006, pp. 266-71). Rio Branco, chefe do O

ministério mais longo e bem sucedido do Segundo Reinado (26º), re- I


nuncia por iniciativa própria (Pereira da Silva 2003, p. 447; Nabuco M
1949, v. 3, p. 309; Holanda 1985, pp. 172-3). O 27º gabinete, liderado P
por Caxias, encerra seu mandato por força da decisão de Pedro II de É
mudar o regime eleitoral, convocando os liberais para realizar a reforma. R
I
(Nabuco 1949: v. 3, pp. 396-407; v. 4, pp. 89-99; Pereira da Silva 2003, O
pp. 447-63; Ferraz de Carvalho 1933, pp. 286-90; Holanda 1985, .

pp. 173-89).
169

III.3.8 O “Segundo Quinquênio Liberal” (1878-1885): Do 28º ao 34º


Gabinete

Depois de uma década, voltam os liberais, em 1878, para introdu-


zir reforma eleitoral (“eleições diretas” e censitárias), a qual reduziu a

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participação popular. Aprovada essa alteração institucional, o foco mi-
gra para questões de equilíbrio do Tesouro e, em especial, para a temá-
tica social, reemergindo o tema da extinção do trabalho escravo. Essas
discussões transbordarão o mundo oficial e ganharão as ruas com a cam-
panha abolicionista nos anos 1880.
Aguda instabilidade caracteriza esse intervalo (1878-1885), reve-
zando-se, no Executivo, 7 formações, 6 das quais se retiram por falta
de sustentação no Parlamento. Somente o 29º gabinete se dissolve por
iniciativa própria. Dos governos do período que sucumbem à pressão
legislativa, 3 (30º, 31º e 33º gabinetes) são derrotados em moções de
confiança (ACD 30.06.1882, p. 129; ACD 14.05.1883, pp. 87-100;
A ACD 04.05.1885, pp. 11-12; Pereira da Silva 2003, pp. 506-8, 513-
4, 527-42; Figueiredo 1898, pp. 27, 32-4, 119, 149-50; dos Santos
N
O
1930, pp. 148-9). Outro gabinete – o 32º – mesmo tendo êxito em
V duas votações prioritárias, avalia – pela margem mínima dos resulta-
A dos – carecer de condições estáveis de governança (ACD 03.06.1884,
pp. 3; 5-7;9-11; Pereira da Silva 2003, pp. 526-7; Javari 1962, pp. 209,
C 373; Ferraz de Carvalho 1933, pp. 302-3). O ministério chefiado por
I
Ê Sinimbu (28º) e a segunda experiência de Saraiva à frente do Conselho
N (34º) são conduzidos à dissolução por anteciparem impotência frente
C à maioria conservadora no Senado, em um contexto onde projetos de
I
A lei prioritários necessitavam aprovação da casa vitalícia (Pereira da Silva
2003, pp. 461-76, 542-9; Ferraz de Carvalho 1933, pp. 289-92, 308-
D
A
10; Holanda 1985, pp. 189-238; Leite 1978, pp. 151-3; Figueiredo
1898, pp. 36-40; Carvalho 2006, p. 406; 2007, pp. 186-7).
P
O
L
Í
III.3.9 Cotegipe, João Alfredo e Ouro Preto: os Últimos Gabinetes
T (35º ao 37º)
I
C O movimento abolicionista – progressivamente vitorioso na socie-
A
dade – funciona como um dos principais condicionantes da evolução
.
dos derradeiros ministérios imperiais. A inversão partidária de 1885 –
que eleva Cotegipe à presidência do Conselho, trazendo de volta os
170
conservadores, após sete anos na oposição – ocorre para completar, no
Senado, de maioria conservadora, a tramitação de projeto do trabalho
servil.
Se a onda abolicionista – por vias oblíquas e paradoxais – cola-
bora para repor os velhos “ordeiros” no comando, é ela também,

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indiretamente, que provoca a inviabilização do gabinete Cotegipe,
substituído por João Alfredo, um político igualmente conservador, mas,
ao contrário do seu antecessor “emperrado”, comprometido com a abo-
lição imediata e sem indenização (Figueiredo 1898, pp. 42-4; Ferraz de
Carvalho 1933, pp. 312-3; Barman 1999, pp. 336-41). O final dessa
última gestão se vincula a denúncias de corrupção. Minadas suas bases
legislativas de apoio, o governo entregou os cargos, apesar da resistência A
da Coroa (Ferraz de Carvalho 1933, p. 316; Holanda 1985, p. 354;
D
Barman 1999, p. 349).
I
No crepúsculo da monarquia, a Coroa, impossibilitada de encon- N
trar sucessor para João Alfredo nas hostes conservadoras – divididas Â
entre frações que não se toleravam –, realiza inversão partidária, no- M

meando o gabinete liberal de Ouro Preto, o último do Império, deposto I


C
junto com o regime (Barman 1999, p. 350; Ferraz de Carvalho 1933, A
pp. 316-7; Buarque de Holanda 1985, pp. 354-5).
P
O
L
IV. Rotações Ministeriais e a Dinâmica do Império Í
T
O Quadro 1, abaixo, soma e distribui os episódios examinados por I
padrões de retirada, listando os gabinetes englobados em cada um dos C
tipos de afastamento. Os resultados são surpreendentes à luz das interpre- A

tações dominantes da dinâmica política do período.


D
O

Quadro 1: Gabinetes e razões de retirada I

N° de Gabinetes/Total M
Razões de Retirada Gabinetes P
de Gabinetes
É
Padrão 1 (Interferência da Coroa,
3/37 (8,1%) 10°, 14° e 20° R
Interferência da Câmara)
I
Padrão 2 (Interferência da Coroa, Não 1°, 3°, 4°, 6°, 9°, 11°, 23°, 24°, O
10/37 (27%)
Interferência da Câmara) 27° e 35° .

2°, 5°, 7°, 8°, 13°, 15°, 16°, 17°,


Padrão 3 (Não Interferência da Coroa,
19/37 (51,3%) 18°, 19°, 21°, 25°, 28°, 30°, 31°,
Interferência da Câmara) 171
32°, 33°, 34° e 36°
Padrão 4 (Não Interferência da Coroa,
5/37 (13,5%) 12°, 22°, 26°, 29° e 37°
Não Interferência da Câmara)

Fonte: Elaboração do autor.

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Das 37 ocorrências de demissão de governos, 19 (51,3%) estão
associadas ao padrão 3, resultando da interferência da CD. Em 10
oportunidades (27%), as substituições enquadram-se no padrão 2, re-
velando a responsabilidade da Coroa na mudança de governo. Em 5
episódios (13,5%), a rotação de gabinetes reflete decisão dos presiden-
tes de Conselho ou casos residuais (padrão 4). Por último, 3 alterações
(8,1%) são fruto de pressão conjunta do Trono e da CD (padrão 1).
Os dados autorizam conclusões que desafiam as perspectivas predo-
minantes entre os estudiosos quanto à interpretação da dinâmica polí-
tica do período.
As informações sistematizadas sugerem que a atuação do Trono, atra-
A
vés do Moderador, não explica a rotação de governos entre 1840 e 1889.
N Distintamente, o estudo mostra que conflitos, efetivos ou potenciais, entre
O
o Executivo e o Legislativo, em especial a CD (padrão 3), foram o motivo
V
A mais frequente para a queda de gabinetes no Império, respondendo por mais
da metade dos episódios (19 em 37).
C Somando esse primeiro conjunto de casos àqueles em que a Câmara
I
Ê e o Trono exerceram, conjuntamente, interferência fundamental para
N a demissão de ministérios (padrão 1), em cerca de 60% das retiradas
C
I
(22 em 37) há atuação decisiva do legislativo.
A Esses dados desmentem a suposição de irrelevância das instituições re-
D presentativas no sistema político do Segundo Reinado. É importante ob-
A servar que a Coroa, nos casos de conflito entre a Câmara e o gabinete,
P dispunha de poderes constitucionais para dissolver a casa temporária
O (art. 101, V, CI), arbitrando em favor dos incumbentes ministeriais.
L
Í
A pesquisa empreendida mostra que, sistematicamente, durante o
T Segundo Reinado, salvo três exceções9, o Imperador não se definiu por
I
C
esse caminho, o que testemunha o custo político substantivo de colidir
A com a CD e, consequentemente, o peso não trivial dessa representação
. no jogo político imperial.

172
9
De 18 legislaturas, 11 foram dissolvidas. A Coroa arbitrou a favor do 19º, 26º e
33º gabinetes, dissolvendo a 11ª, 14ª e 18ª legislaturas, as 3 exceções. Uma
dissolução se destinou a antecipar a reforma de 1881 (17ª). Sete aconteceram
em decorrência de alternância partidária, com o novo chefe do Conselho
obtendo da Coroa a dissolução da Câmara preexistente, adversa ao ministério
em ascensão.

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A avaliação clássica de que as substituições ministeriais decorreram
de intervenções da Coroa não dá conta do fenômeno examinado. A
ação direta do imperador, embora relevante, apareceu apenas em 10
dos 37 episódios de sucessão, isto é, em 27% do total de retiradas
(padrão 2).
Ainda que se incluam aqui as modificações de governo que se efe-
tuaram por intervenção conjunta do Trono e da Câmara (padrão 1; A
8,1%), alcança-se somente 35% do total de eventos de retirada, uma
D
proporção notavelmente inferior à aferida acima para a Câmara (60%) I
lançando-se mão do mesmo critério. N

Quanto às alternâncias partidárias – aspecto enfatizado na literatura Â


M
como a dimensão positiva do Moderador, que teria tornado possível a
I
regulação do conflito no período –, o estudo dos 9 episódios de inver- C
são no Segundo Reinado, listados no quadro 2 abaixo, mostra que em A
apenas três ocasiões essa mudança se deveu à iniciativa independente da
P
Coroa, agindo o trono, em todas as outras oportunidades, em resposta à pré-
O
via inviabilização da sustentação parlamentar do ministério demissionário. L
Í
T
Quadro 2: Alternâncias partidárias nos Gabinetes I
C
Substituição do gabinete com alternância Padrões da Retirada
A
3° (C) para 4° (L/Grupo Palaciano), em 02/02/44 2
8° (L) para 9° (C), em 29/09/48 3 D
13° (C/Conc) para 14° (L/Conc), em 04/05/57 3 O
14° (L/Conc) para 15° (C/Conc), em 12/12/58 1
I
17° (C) para ° (LP), em 24/05/62 3
M
23° (LP) para 24° (C), em 16/07/68 2
P
27° (C) para 28° (L), em 05/01/78 2
É
34° (L) para 35° (C), em 20/08/85 3
R
36° (C) para 37° (L), em 07/06/89 3 I
O
Abreviaturas: L (Liberal); C (Conservador); LP (Liga Progressista); Conc (Conciliação). .
Fonte: Elaboração do autor.

173
Não há possibilidade de compreender a dinâmica de substituição de
governos no “parlamentarismo” do Segundo Reinado – nem tampouco
as alternâncias partidárias então efetuadas – sem inserir na análise o pa-
pel do Legislativo, em particular da CD. Seja por constituir o “locus” de
enfrentamento e concertação das elites regionais, e delas com a Corte,

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seja pelas prerrogativas que dispunha sobre o orçamento público, ou
ainda por condensar institucionalmente toda uma estrutura de com-
promissos e reciprocidades que percorria de alto a baixo o Império10, o
fato é que a CD desempenhou papel mais relevante do que até hoje se
reconheceu. A investigação dos motivos subjacentes aos conflitos entre
governos e o Parlamento constitui o segundo eixo do artigo.

V. Relações Gabinete e Legislativo: Argumento e


Evidências
A partir daqui o trabalho se volta para o seu segundo eixo de preo-
A cupações: a investigação do padrão mais frequente associado à instabi-
N
lidade ministerial, as relações, marcadas por recorrentes conflitos, entre os
O gabinetes e a Câmara de Deputados.
V O argumento central é que a transição de sistemas eleitorais (das lis-
A
tas para o “distrito”), a partir da década de 1850, fornece chave impor-
tante para a compreensão da natureza das relações Executivo-Legislativo
C
I no Segundo Reinado, estando na raiz do incremento do conflito entre
Ê os dois poderes. A nova regra eleitoral viria se somar a características
N
institucionais “centrífugas” preexistentes do sistema de governo e do
C
I funcionamento interno da CD, acentuando a dimensão fragmentada
A do sistema político da época11.
D Preliminarmente ao detalhamento da hipótese e das evidências que
A a lastreiam, apresenta-se esboço da legislação eleitoral do Império.
P
O
L VI. As Regras Eleitorais no Império
Í
T Na vigência da ordem imperial, o voto, exercido em um sistema de
I
C
duplo grau, e a elegibilidade a cargos políticos dependiam de critérios
A
. 10
Uma discussão sobre as características da Câmara dos Deputados no Império,
bem como acerca de abordagens do tópico na literatura, pode ser encontrada
174
em Ferraz (2012: 212-28).
11
Havia dependência dupla do gabinete, frente à Coroa e maiorias, cabendo-lhe
manter a confiança junto às duas instâncias. As regras do trabalho legislativo
exigiam do gabinete, para aprovar medidas, a reiterada arregimentação de
maiorias, inexistindo “atalhos” centralizadores (prerrogativas legislativas
exclusivas do Executivo, centralização de direitos parlamentares na Mesa ou
em líderes, etc).

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censitários, nos termos dos artigos 45, IV e 90 a 95 da CI12. O sistema
de duplo grau dividia o corpo eleitoral em votantes e eleitores.
Os primeiros, os votantes, participantes das eleições primárias (ou
de 1º grau), escolhiam os segundos, os eleitores, os quais sufragavam,
no pleito de 2º grau, os candidatos a deputados gerais, senadores e de-
putados provinciais. Existiam exigências constitucionais crescentes de
renda para que alguém se habilitasse como votante (art. 92, V), eleitor A
(art. 94, I), bem como para que pudesse concorrer à Câmara (art. 94,
D
I) e ao Senado (45, IV). A Constituição adotava hipóteses adicionais de I
exclusão tanto para o exercício do voto, em ambos os graus (arts. 92 e N
94), como para a elegibilidade aos cargos representativos (art. 95, II e Â
III; art. 45, I a III). O artigo 97 da CI estabelecia que uma lei determi- M
naria “o modo prático das eleições”. Entre 1822 e 1889, sete diferentes I
C
normatizações, todas baseadas em fórmulas eleitorais majoritárias, orga-
A
nizaram os pleitos do Império.
A legislação promulgada entre 1822 e 1855 – Instruções de P

26.03.1824, de 04.05.1842 e Lei nº 387, de 19.08.1846 – instituiu um O


L
“majoritarismo provincial”. Vigorava sistema de lista completa, onde o Í
eleitor tinha tantas opções quantas as vagas existentes para a unidade T
provincial no Legislativo. Eram eleitos para a Câmara os candidatos I
C
mais sufragados na província. Esse regime eleitoral tinha caráter não
A
paroquialista. Por funcionarem os distritos provinciais como “grandes
Senados”, as lideranças mais salientes eram privilegiadas politicamente, D
uma vez que se exigia, para o êxito nesse tipo de pleito, cacife eleitoral O
territorialmente distribuído. I
O sistema de “chapas” foi substituído pela primeira Lei dos Círculos, M
de 1855 (Decreto nº 842, de 19.09.1855). De curta vida (só regulará P
uma eleição), baseava-se no sistema majoritário uninominal, numa in- É
R
flexão favorável aos interesses das lideranças periféricas ao centro do
I
sistema, em detrimento das elites nacionais e provinciais, em um es- O
forço de abrir espaço à representação das minorias (Needell 2006, pp. .

184-5; Carvalho 2006, p. 398). Segundo Nicolau, com o novo sistema,


“as províncias foram divididas em distritos eleitorais (chamados ‘cír- 175
culos eleitorais’), cada um deles elegendo um deputado. Os eleitores

12
Constituição do Império disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
Constituicao/Constituicao24.htm>.

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das diversas paróquias que compunham o distrito se reuniam (...) para
fazer sua escolha (eles agora votavam em um único nome). Um candi-
dato necessitava (...) maioria absoluta dos votos para ser eleito” (2012,
p. 35), havendo previsão de rodadas eleitorais sucessivas se não alcan-
çada a maioria requerida.
Em 1860, um compromisso entre saliência e liderança local é fi-
xado através da segunda Lei dos Círculos (Lei nº 1082, de 18.08.1860),
estipulando-se distritos de 3 deputados, sendo as circunscrições eleito-
rais ampliadas e considerando-se eleitos os 3 candidatos mais votados
(Nabuco 1949, v. 1, p. 216; Iglésias 2004, pp. 98-9; Carvalho 2006,
pp. 399-400; Nicolau 2012, p. 36). Recupera-se espaço para as elites
A partidárias sem que se retorne ao predomínio das listas.
N Em 1875 volta a chapa completa por província, mas com voto li-
O mitado, através da “Lei do Terço” (Lei nº 2675, de 20.10.1875), na
V
perspectiva de preservar espaços para as minorias (Carvalho 2006, pp.
A
399-400; Faoro 2001, p. 428). Essa legislação demarcou a única inter-
C
rupção, após 1855, da utilização de sistemas eleitorais “distritalizados”
I no Segundo Reinado.
Ê
N
A introdução das “eleições diretas”, no início da década de 1880,
C via Lei Saraiva, marcaria o retorno às fórmulas majoritárias uninomi-
I nais (“distritalizadas”), com maioria absoluta. Sob essa regra se elegeram
A
os parlamentares das últimas quatro legislaturas do Império.
D
A
O quadro 3, extraído de Nicolau (2012, p. 40), com alterações13,
sintetiza a evolução esboçada.
P
O
L
Í
T
I
C
A
.

176

13
A alteração está na terceira coluna da segunda linha do Quadro 5. Nicolau diz
que, no regime de 1855, a especificação da quantidade de nomes que o eleitor
(de 2º grau) poderia sufragar era feita para o segundo e o terceiro turno, quando
o eleitor votaria em um único nome. Na verdade, já no primeiro turno o eleitor
sufragaria só um candidato (art. 1º, §10º, do Decreto 842, de 19.09.1855).

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Quadro 3: Sistemas eleitorais e eleições para a Câmara
Início da Circunscrição Eleitoral Quantidade de Sistema Eleitoral
vigência (unidade na qual o eleitor nomes em que o
podia escolher os seus eleitor podia votar
deputados)
1824 Província Tantas quantas Maioria simples: os mais
fossem as cadeiras votados da província
da província eram eleitos.
A
na Câmara dos
Deputados
D
1855 Distrito de um Um nome Maioria Absoluta: se I
representante nenhum candidato N
obtivesse mais de 50% dos
Â
votos, era realizada
M
uma nova eleição entre
I
os quatro mais votados;
C
se nenhum obtivesse
A
maioria absoluta, era
realizado um novo pleito
P
com os dois mais votados.
O
1860 Distrito de três Três nomes Maioria simples: os três
L
representantes mais votados no distrito Í
eram eleitos. T
1875 Província Dois terços Maioria simples: os mais I
do número de votados da província C
representantes na eram eleitos. A
Câmara
1881 Distrito de um Um nome Maioria absoluta: se
D
representante nenhum candidato O
obtivesse mais de 50% dos
I
votos, era realizada uma
nova eleição entre os dois
M
mais votados. P
É
Fonte: O autor, a partir de Nicolau (2012, p.40).
R
I
O
.
VII. O Núcleo do Argumento: Listas, Círculos, Incentivos e
suas Consequências Políticas
177
Entre 1822 e 1855 vigorava a lista completa: o eleitor tinha tantas
opções quantas fossem as vagas na CD existentes por províncias. Eram
eleitos os candidatos que obtivessem, computados os sufrágios da pro-
víncia, o maior número de votos, até se preencher o número de vagas
reservado àquela unidade geográfica do Império.

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Desde cedo, na história eleitoral do país, essa lista de eleitos resultou
menos da agregação de preferências individuais dispersas, por cada colégio
eleitoral, do que da aquiescência do eleitorado a um rol previamente ela-
borado de nomes sancionados pelas elites políticas dominantes: esse rol era
a “chapa”.
Needell localiza já na década de 1830 essa prática e enfatiza o pro-
tagonismo das lideranças partidárias da Corte (Rio de Janeiro) na con-
fecção e negociação das chapas (2006, p. 176). Barman, examinando as
eleições para a CD na década de 1840, atesta a disseminação e a eficácia
do mecanismo, transformado em peça central na dinâmica eleitoral do
Império (1988, pp. 220, 223, 301, nota 20).
A
A elaboração de chapas – específicas para cada província e para cada
N
pleito, em função dos diversos interesses a serem concertados – não era
O
V
empreitada banal. Era substantiva a complexidade envolvida e a enge-
A nhosidade requerida na montagem da chapa “oficial”, produto de tra-
balhosas negociações envolvendo líderes locais e provinciais, presidentes
C de província e membros do gabinete14.
I
Ê O êxito dos nomes em uma lista dependia da adequada “calibra-
N
gem” da chapa, em termos de interesses e nomes privilegiados, apta a
C
I equilibrar as pretensões das influências da Corte e das elites provinciais,
A mas também hábil a garantir a mobilização dos chefes locais nas diver-
D sas regiões de uma província. Se o grau de influência das diversas elites
A era assimétrico na montagem das chapas, com o Rio e as províncias
P preponderando frente às lideranças paroquiais, por outro lado, não se
O estaria em face de um mecanismo que traduziria imposição de alto a
L
Í baixo15.
T
I
C
A
.

14
178
“Elaborar uma chapa não era (...) simples. (...) requeria engenhosidade e um
conhecimento considerável. (...) as chapas eram (...) o produto de manobras
complexas envolvendo os líderes políticos provinciais, o presidente e os
ministros e políticos no Rio. A chapa iria permanecer como o elemento chave
da nova organização da política” (Barman 1988, p. 301, nota 20).
15
Relato elucidativo sobre a montagem de uma “chapa” para a Câmara, no
contexto da política baiana, é oferecido por Pinho (1937, p. 238, nota 1).

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Fontes como Souza 16 e Pereira da Silva17, no entanto, ultrapassam
a constatação de uma simples “assimetria” e enfatizam que a regra das
“chapas” inferiorizava o eleitorado de 2º grau e as chefias locais frente às
elites centrais e provinciais.
À luz da pesquisa acadêmica e das fontes, o que fica realçada é a
inocuidade, ou o alto risco, no sistema de chapas, do ponto de vista
do eleitorado de 2º grau, de divergir da oferta de candidatos elaborada A

pelas direções. Aventurar outros nomes seria manobra fadada ao fra- D


casso, dada a relativa incapacidade dos chefes locais de articular apoios I
cruzados em uma circunscrição geográfica relativamente extensa (a pro- N
Â
víncia); negar o sufrágio aos nomes “oficiais” seria também um convite a
M
futuras represálias18. Enfraquecidos na barganha como decorrência dos
I
incentivos embutidos nas leis eleitorais, não restava às lideranças locais C
senão aquiescer à vontade das influências centrais. A

Como as listas já lhes chegavam prontas, por cálculos feitos na P


Corte e no centro das províncias, era mais racional, do ponto de vista O
dos eleitores de segundo grau, sancioná-las, emprestando-lhes seus vo- L
Í
tos, o que lhes daria cacife para futuros pleitos junto aos governantes. T
A alternativa, inferior, seria arriscar seus sufrágios em candidaturas iso- I
ladas, condenadas de antemão ao fracasso, pela impossibilidade de seus C
A
parcos votos alterarem o somatório provincial19.
D
O
16
Para Souza, o uso das listas eliminava a influência do eleitorado de cada
paróquia: “[No regime eleitoral prévio aos círculos, os eleitores de 2º grau] eram I
obrigados a votar nas chapas que os chefes, diretores centrais do partido, lhes M
remetiam, ou teriam de ver seus votos perdidos em candidaturas isoladas, P
destituídas de probabilidade de sucesso” (1979, p. 79). É
17
Dizia o deputado Pereira da Silva (RJ): “Há uma província que dá 8 deputados, R
os partidos e o governo escrevem nela 4 ou 5 nomes (...), e incluem 3 ou 4 I
nomes que ninguém conhece, 3 ou 4 afilhados felizes. A província vota, porque O
.
nenhum município tem coragem de negar o voto sabendo que a sua votação
não pode influir na eleição geral” (ACD 28.08.1855, p. 263).
18
Discutindo as listas, o deputado Mendes de Almeida mostra que estas, 179
pressupondo ampla coordenação viabilizadora de apoios cruzados em uma
circunscrição geográfica relativamente extensa, só podiam ser operadas
eficazmente pelos partidos e pela administração, central e provincial (ACD
30.08.1855, pp. 326-7).
19
Em 1855, o deputado Eduardo França fala em “chapas impostas”, modo usual
de fazer as eleições nas províncias, e pede reformas. Meses depois, afirma: “a

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Se, do ponto de vista dos eleitores e das chefias locais, a prática das
chapas representava redução de sua margem de manobra, para os polí-
ticos que aspiravam a um mandato a inclusão na “lista de designados”,
nos termos do deputado Eduardo França (ACD 25.08.1855, p. 229),
era passo crucial, sem o qual a entrada ou a permanência nas casas legis-
lativas do Império seria, praticamente, impossível.
A fim de alcançar tal propósito, manter boas relações com os encarre-
gados da preparação das chapas – as elites partidárias do Rio e dos centros
de cada província20 – era para um pretendente a mandato ou um político
já tarimbado uma meta de alta prioridade, a ser cultivada com máximo
empenho21.
A
Implicação importante, do ponto de vista do sistema político, dessa
N
dependência dos políticos profissionais – titulares de mandatos, e dos
O
V
aspirantes a essa condição – em face das direções partidárias era o con-
A trole destas últimas sobre as bancadas, o que associava, em última aná-
lise, o regime das chapas a um padrão de disciplina no comportamento
C legislativo.
I
Ê Eleger-se e reeleger-se era função, no regime das listas, menos da
N atenção às demandas específicas de uma constituency do que da manu-
C
I tenção de relações com as elites das agremiações. Cultivá-las, garantindo
A a renovação do mandato e a progressão na carreira – com acesso a postos
D disputados como presidências provinciais, posições em ministérios, ca-
A cife para realizar indicações e formar redes de clientela, etc –, dependia,
P entre outras coisas, de uma atuação consonante com as diretrizes das
O cúpulas partidárias e com os desígnios do gabinete.
L
Í
T
I
C atual lei de eleições [Lei nº 387, de 19.08.1846] não dá (...) garantia para uma
A escolha livre; o povo não pode mais sofrer imposições de listas de designados”
. (ACD 02.06.1855, pp. 40-2; 25.08.1855, p. 229).
20
Segundo Needell, um político típico do regime eleitoral pré-1855 tinha como
180
um dos seus propósitos centrais “buscar impressionar as lideranças da elite
partidária no Rio” (2006, p. 185).
21
“Nesse regime, a candidatura desamparada pelos chefes de partido não tinha
probabilidade de vingar. Dificilmente, um homem não filiado a um dos partidos,
(...), conseguia ser eleito. Organizadas as listas dos candidatos (...) pelos (...)
partidos, os eleitores não votavam em candidatos divergentes, pelo receio de
fazer triunfar os adversários com a dispersão dos votos” (Souza 1979, p. 80).

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O arranjo eleitoral pré-círculos configurava, assim, um sistema de
incentivos favorecedor do controle, a partir de cima, das representações,
do que decorria, como padrão mais frequente de comportamento par-
lamentar, a atuação disciplinada dos deputados frente às orientações
partidárias.
O regime dos “círculos” alterou essa situação. As novas regras eleitorais
modificaram a distribuição de poder entre elites centrais, provinciais A
e locais, com ganhos relativos para estas últimas, e transformaram as
D
condições para a entrada e permanência no mercado político-eleitoral. I
A razão desse turning-point foi o redimensionamento da circunscrição elei- N
toral, que deixou, a partir de 1855, de ser a província e passou a ser o Â

“círculo”, constituído por um grupo de municípios. M


I
A competição por vagas no legislativo deixou de acontecer na pro- C
víncia como um todo e migrou para espaço territorial restrito. Tal ino- A
vação privou as elites centrais e provinciais das mencionadas vantagens de
P
seu poder de coordenação, vitais numa eleição em que se coletavam votos
O
por toda a província. A nova dimensão espacial mais limitada do “distrito” L
viabilizou a entrada, no mercado político-eleitoral, de lideranças locais, ou Í
T
de seus protegidos, potencialmente hábeis, a partir das mudanças em foco, a
I
amealhar votos suficientes à conquista de cadeiras na CD. C
É útil recordar que a legislação da época não exigia registro pré- A

vio de candidaturas nem determinava controle das direções partidárias D


sobre esse processo. No que tange à autoridade sobre a determinação O
do rol de candidatos, a força das elites centrais e provinciais dependia,
I
essencialmente, do tamanho da circunscrição estipulado em lei. Ao di-
M
minuir esse tamanho – inicialmente, de forma mais radical, em 1855
P
(círculo de 1 representante), posteriormente, de modo mais moderado É
(distritos de 3 representantes), a partir de 1860 –, as reformas mexeram R
na característica institucional das regras eleitorais que embasava a supre- I
O
macia das direções partidárias frente às lideranças locais. .
Com isso, modificaram-se também os incentivos balizadores da
atuação dos deputados e/ou dos aspirantes a essa condição. Se, à época
181
das “chapas”, o aval das direções era condição essencial para a entrada
e a permanência na política partidária profissional, após 1855 passou
a ser decisivo o prestígio eleitoral junto a uma constituency específica (o
círculo por onde concorria o parlamentar ou seus desafiantes). Levar rea-
lizações para o grupo de municípios de seu “distrito” veio a constituir,

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a partir das reformas, o eixo de atuação de um parlamentar típico, o
que aumentava a demanda parlamentar por patronagem junto ao gabi-
nete e condicionava o comportamento do deputado na Câmara à sua
avaliação quanto ao grau de atendimento, pelos incumbentes, de suas
reivindicações.
Em síntese, o arranjo dos círculos engendrou incentivos que condicio-
nava a disciplina parlamentar, frente às diretrizes do Executivo, à percepção,
pelos próprios deputados, do grau de atendimento, por parte do ministério,
às suas demandas por obras, serviços e patronagem junto às respectivas ba-
ses eleitorais. Essa nova realidade introduziu uma dimensão de incerteza
quanto à capacidade dos governos de controlar o plenário da Câmara.
A Dado o grau de fragmentação das demandas parlamentares (associado, em
N certa medida, ao próprio desenho legal das constituencies), a ausência de
O mecanismos partidários internos de coordenação e a estrutura descentrali-
V
zada dos trabalhos legislativos, a hipótese desta pesquisa associa o sistema
A
eleitoral dos “círculos” a um enfraquecimento na disciplina parlamentar na
C Câmara e, por conseguinte, a um incremento na dificuldade dos gabinetes
I
Ê
de angariar apoio legislativo estável.
N Assim, o fim das “chapas” transformou a lógica da competição e
C
I
redesenhou os incentivos com as quais se defrontavam os agentes políti-
A cos, mudando o funcionamento interno da CD e as suas relações com o
D Executivo. Tais alterações nas relações entre esses poderes estiveram na
A base do fenômeno da instabilidade governamental que marca o período.
P A introdução das regras “distritais”, ao redefinir a circunscrição da
O disputa, propiciou maior autonomia às bases do sistema (eleitorado de
L
Í 2º grau e chefias locais), capazes agora de apresentar candidatos com-
T petitivos ao Legislativo, o que favoreceu a eleição de representantes me-
I
C nos dependentes das elites provinciais e nacionais. Isso dificultou, em
A um contexto de processo decisório legislativo relativamente descentra-
. lizado, o controle da CD pelos gabinetes, intensificou as relações con-
flituosas entre os poderes Executivo e Legislativo, e conduziu a impasses
182 que, frequentemente, redundaram na retiradas de gabinetes por pressão
parlamentar.
A seguir, apresentam-se quatro grupos de evidências, diretas e indire-
tas, que corroboram a hipótese apresentada.

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VII.1 Fontes, literatura e a mudança de regime eleitoral
É notável nas fontes, nos trabalhos ensaísticos e na literatura acadê-
mica a convergência sobre os efeitos da transição das listas para os “distri-
tos”, em termos de alterações nos incentivos do jogo político-partidário.
A fragilização da disciplina e da coesão partidária, como resultado
dos círculos, e a antecipação desses efeitos por políticos da época, antes
A
mesmo da entrada em vigor das medidas, são anotados por Nabuco
(1949, v. 1, p. 216) e Pereira da Silva (2003, p. 254). 15 anos após a D
I
aprovação da primeira Lei dos Círculos, Belisário confirmava aquelas
N
previsões, salientando o enfraquecimento e a fragmentação dos partidos Â
em decorrência das alterações na legislação eleitoral a partir da década M
de 1850 (1979, p. 80). I
C
Comentando a transição, Iglesias (2004, pp. 68-9) e Costa Porto
A
(1985, p. 158) oferecem uma visão do que estava em jogo e dos perfis
políticos diversos associados a cada um dos arranjos eleitorais, um em P

declínio, outro em ascensão. O capital político para o êxito nos pleitos O


L
passava a ser o prestígio nas localidades e não mais as boas graças junto Í
aos ministros e aos presidentes de província. A imposição de nomes T
pelas cúpulas cedia lugar a uma competição entre lideranças locais. Os I
C
efeitos “centrífugos” dos círculos – favorecendo as lideranças periféricas,
A
enfraquecendo a mediação dos chefes provinciais/nacionais e abrindo
fissuras na centralização do império – são destacados também por D
Faoro (2001, pp. 425-6), Carvalho (2006, pp. 398-9) e Needell (2006, O

p. 185). I
Os Anais da Câmara revelam as avaliações feitas das consequências M
P
da “distritalização” por políticos que seriam afetados pelas mudanças.
É
Destacam-se aqui pronunciamentos de 2 parlamentares, pouco antes R
da vigência dos círculos. I
O
O primeiro deles é Benevenuto Taques. Favorável à reforma, ele .
compara círculos e listas: “[com o projeto] as influências locais terão
mais livres a intervenção que lhes cabe na eleição, sem que sejam do-
183
minadas pelas imposições das capitais e do governo. (...) o governo não
pode impor aos distritos eleitorais candidatos estranhos a sua afeição”.
Taques previa que o projeto traria maior independência à Câmara por-
que incrementaria a autonomia dos representantes e das influências
provinciais. (ACD, 29.08.1855, pp. 287-88).

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Martin Francisco contrasta os regimes das listas e dos “círculos” em
termos de um raciocínio que articula tamanho da circunscrição, grau
de risco e dimensão do incentivo à interferência oficial nos pleitos elei-
torais. É o comportamento do governo nas eleições, visto como variável
em função de incentivos decorrentes das regras legais, que está em foco
(ACD, 31.05.1856, pp. 107-115).
Diz Martin Francisco: “[em vista da aprovação da primeira Lei dos
Círculos, não tem mais] (...) o governo a necessidade de lutar para não
ser derrotado em uma província inteira, porque quando o círculo de
eleições era mais vasto, a derrota era para o governo de efeitos mais
A
funestos: quando o governo não podia contar com um triunfo certo,
lançava mão de todos os meios para não ser derrotado; agora porém
N
que esses círculos se circunscreveram, agora que se o pensamento do
O
V
governo não puder legalmente vencer em uma parte vencerá em outra,
A é de esperar que o voto seja mais sincero, porque o governo não tem
motivos de intervir diretamente na eleição para se poupar a vergonha
C de uma derrota em uma província inteira” (ACD 31.05.1856, p. 115).
I
Ê Os círculos poupavam o governo de defrontar-se com uma situação
N
próxima a um jogo em que o vencedor das eleições leva tudo (winner
C
I takes all), com apenas duas alternativas: a vitória ou a derrota completas.
A A nova lei, por tirar o governo do dilema de ganhar ou perder tudo,
D ensejava a eleição de representação mais diversificada e fiel aos interesses
A da sociedade.
P Aqui se encontram também pistas para se imaginar aspectos dos
O mecanismos geradores das chamadas câmaras unânimes. Em um con-
L
Í texto de informação escassa, a circunscrição do distrito ao círculo, em
T vez de abarcar a província inteira, acarretava diminuição da incerteza
I
C sobre o equilíbrio das forças em competição. Com a nova regra “dis-
A tritalizada”, esse cálculo passava a ser feito para cada círculo e não para
. toda província. Para o governo, as eleições deixavam de se assemelhar a
um único jogo, caracterizado por baixa informação e risco alto, o que
184 incentivava o uso da máquina. A nova realidade dos círculos – abran-
gentes de áreas equivalentes a alguns municípios (à época, freguesias)
circunvizinhos – introduzia uma dinâmica de vários jogos simultâ-
neos, com mais informação, o que permitia compatibilizar a con-
quista de resultados majoritários por uma facção com a representação

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efetiva da minoria (não por acaso, o objetivo de Paraná, idealizador da
reforma).
Em síntese, o que se antecipava, diante dos “círculos”, era a possibi-
lidade de representação oficial de correntes minoritárias ou oposicionis-
tas no parlamento, um fato não trivial na época.
Por fim, cabe assinalar a existência de extensa literatura (fontes, es-
A
tudos clássicos e historiografia) a respeito das características gerais das
legislaturas posteriores aos “Círculos”. Sua marca é significativamente D
a ênfase nas dificuldades encontradas pelos governos em suas relações I
com a CD 22. N
Â
M
VII.2 Mandato médio dos gabinetes e regra de formação das I
C
legislatura
A
Os gabinetes que governaram diante de legislaturas “distritalizadas”
P
ficaram, em média, menos tempo nas suas funções do que aqueles que O
se relacionaram com câmaras eleitas pelo regime de listas. O tempo mé- L
dio de permanência dos primeiros foi 16 % menor do que o tamanho do Í
T
mandato médio dos últimos. I
Dicotomizou-se o regime eleitoral vigente no Segundo Reinado em C
dois grandes blocos associados às “chapas” (Decretos de 1824 e 1842; A

Lei 387, de 1846 e “Lei do Terço”) e aos “distritos” (1ª e 2ª Lei dos D
Círculos e “Lei Saraiva”). O tempo de permanência média no poder dos O
ministérios que governaram diante de câmaras escolhidas por “chapas”
I
foi de 17,45 meses, contra 14,65 meses dos gabinetes que se relaciona-
M
ram com legislativos “distritalizados”.
P
É
R
VII.3 Associação entre a queda de gabinetes por pressão do I
Legislativo e a vigência de regras eleitorais “distritalizadas” O
.
No que concerne à associação entre regras eleitorais e razões de re-
tiradas de gabinetes, o Quadro 4 abaixo agrupa dicotomicamente os
185

22
Sobre o ponto, ver Buarque de Holanda (1985, pp. 22-3;37-8;147-51;171; 2010,
pp. 59-65; 94); Pereira da Silva (2003, pp. 265-75; 287-8; 510-50); Needell (2006,
pp. 200-2; 220-1); Carvalho (2006, pp. 405-10); Nabuco (1949, vol III, pp. 243-4);
Faoro (2001, p. 429).

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regimes eleitorais vigentes no Segundo Reinado, em termos de sistemas
de Listas (Listas Provinciais pré-1855 e Lei do Terço) e sistemas “distri-
tais” (Círculos de 1 e de 3 deputados, Lei Saraiva).
Constata-se a associação entre regras distritais e retiradas por pres-
são parlamentar (padrão 3). Nesse sentido, dos 19 episódios de substituição
ministerial por conflito com o Legislativo, ocorridos no período estudado,
14 (73%) ocorreram sob a égide de legislaturas eleitas a partir daquele tipo
de legislação eleitoral23.

Quadro 4: Razões de Retirada e Regra Eleitoral (Dicotomizando


sistemas de Lista e “Distritais”)
A
Sistemas de Lista – Sistemas “Distritais” (Círculos
Razões de Retirada
N Provincial e Terço de 1 e 3 deputados, Lei Saraiva)
O Padrão (3) – Não Interferência da
V 5 14
Coroa, Interferência da Câmara
A
Padrão (2) – Interferência da Coroa,
7 3
Não Interferência da Câmara
C
I Padrão (1) – Interferência da Coroa,
1 4
Ê Interferência da Câmara
N Padrão (4) – Não Interferência da
C 1 2
Coroa, Não Interferência da Câmara
I
A Fonte: Elaboração do autor.

D
A
VII.4 Diferença das relações entre gabinetes e Câmara na 9ª e
P 10ª legislaturas
O
L O acompanhamento dessas duas Câmaras – através do exame da
Í
T
discussão e votação dos orçamentos ministeriais em duas legislaturas su-
I cessivas, a primeira eleita por listas, a segunda por círculos 24 – revelou,
C
no que concerne à primeira das legislaturas (1853-6), um comporta-
A
mento disciplinado frente às prioridades governamentais. Em todas as
.
sessões anuais do intervalo assinalado, o ministério aprova a maior parte
186

23
Regras eleitorais “distritais” estiveram em vigor durante 58% do tempo do
intervalo estudado (1840-1889), enquanto que as listas ou “chapas” vigoraram
em 42% do tempo desse período.
24
As referências completas das fontes que lastreiam a discussão da tramitação
orçamentária estão disponíveis por requisição ao e-mail seferrazz@uol.com.br.

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de suas prioridades, sendo capaz, também de manter fora do projeto de
lei orçamentária dispositivos considerados inconvenientes.
Já no período 1857-60 verificam-se dificuldades dos gabinetes em
controlar o plenário, materializadas em derrotas sofridas pelos ministé-
rios em matéria orçamentária e na incapacidade, em 2 das 4 sessões da
legislatura (1858 e 1859), de levar a termo a própria tramitação da lei
de meios dentro do exercício, tendo o Executivo de contentar-se com A
prorrogações dos créditos vigentes.
D
Além disso, a partir da primeira sessão (1857) da 10ª legislatura, I
a quantidade de emendas e aditivos ao projeto de lei orçamentária foi, N

em média, quase 3 vezes maior do que no período anterior (1853-6), Â


M
gerando dificuldades de coordenação para o governo na sua relação com
I
os parlamentares25. C
Estimou-se um Índice de Desempenho Legislativo do Gabinete A
(IDLG), o qual mensura o grau de controle do plenário da Câmara
P
pelos gabinetes, gerando resultados consonantes com as previsões da O
hipótese do trabalho. L
Í
No contexto da tramitação orçamentária, que compreendia 2 ro-
T
dadas de discussões, escolheu-se estudar a etapa em que se discutiam I
e votavam os artigos aditivos (Aas). Ela se iniciava após a discussão e C
votação inicial das despesas por ministérios e das receitas orçamentárias. A

Os artigos aditivos (Aas) representavam uma oportunidade adicional de D


interferência no orçamento para o governo e as comissões orçamentárias e, O
sobremodo, para os parlamentares.
I
De modo efetivo, para uns e outros, os aditivos – por força de dis- M
positivos regimentais 26 – eram a última oportunidade para a livre cria- P
ção de despesas, incidentes em qualquer dos ministérios, com requisitos É
modestos em termos de quórum de apoio para as propostas27. Daí sua R
I
O
25
.
35,75 emendas foram apresentadas em média a cada tramitação orçamentária
anual durante a 9ª legislatura (1853-6). Esse número alcança 93,3 emendas
anuais para a 10ª legislatura (1857-60).
187
26
A referência legal aqui é o Regimento Interno da Câmara (RICD) em sua versão
publicada em 1857, a qual reunia os dispositivos vigentes no período de interesse
da pesquisa. No que concerne ao ponto abordado no texto, ver o art. 135, nota
43, da norma mencionada.
27
Na discussão final do orçamento, iniciada após o fim da tramitação dos aditivos,
não se admitiam emendas para novas despesas (art. 135, nota 43, RICD, 1857).

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atratividade, expressa no grande número de emendas oferecidas ao orça-
mento. Entre 1853 e 1860, 423 artigos aditivos foram propostos, uma
média de 60,4 Aas oferecidos por sessão anual da Câmara.
Para o governo, os Aas eram oportunidade para correções técnicas
ou para inserir medidas decididas após a confecção da peça orçamentá-
ria. Para os deputados, eram uma janela institucional para reforçar e/ou
alterar políticas públicas em andamento ou mesmo para criar novas, de
cunho geral ou setorial, que disputavam as prioridades dos ministérios.
Os aditivos propiciavam também terreno ideal para a proposição, por
parlamentares, de medidas particularistas, direcionadas à satisfação de
clientelas geograficamente determinadas, em geral coincidentes com as
A bases eleitorais dos proponentes.
N
A tramitação dos aditivos era um desafio ao gabinete, em termos de sua
O capacidade de coordenar o plenário da Câmara em torno de suas diretrizes.
V Tratava-se de, simultaneamente, garantir a aprovação de Aas de seu in-
A teresse e derrotar aditivos indesejáveis.
Entre 1853 e 1860, presidentes do Conselho e ministros reveza-
C
I ram-se, na tribuna da Câmara, com diversos parlamentares, expondo
Ê a posição do gabinete. A análise da tramitação dos Aas constitui processo
N privilegiado para mensurar o grau de controle do gabinete sobre o plenário.
C
I Organizou-se o conjunto dos aditivos propostos em três diferentes
A domínios, em função do apoio, da oposição ou da neutralidade demons-
D trada, de modo expresso ou implícito, pelos gabinetes.
A Domínio 1: artigos aditivos sustentados, de modo expresso ou im-
P plícito, pelo governo;
O
Domínio 2: aditivos para os quais não foi possível encontrar, de
L
Í modo expresso ou implícito, posicionamento do gabinete;
T abrange, igualmente, episódios de ambiguidade, quando não
I
C se diagnosticou o sentido preciso da recomendação governa-
A mental; inclui casos de “liberação”, quando o ministério en-
. trega a decisão ao plenário;
Domínio 3: aditivos para as quais houve manifestação contrária do
188
governo.

Além disso, o quórum de apoio para aditivos era de 5 deputados, muito inferior
ao quórum na discussão final: a terça parte da câmara, calculada em referência
ao quórum de votação, cerca de 20 deputados para a 9ª e a 10ª legislaturas.

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A utilização desse método permitiu mensurar, para cada sessão
anual examinada, taxas percentuais de aprovação de aditivos por di-
ferentes domínios, dando ensejo ao acompanhamento simultâneo do
grau de êxito dos gabinetes incumbentes tanto em aprovar emendas de
seu interesse como em rejeitar aquelas ajuizadas como indesejáveis. Em
princípio, portanto, o grau de controle do governo sobre as decisões
A
do plenário foi tanto maior quanto mais altas as taxas de aprovação
verificadas no domínio 1 (aditivos recomendados pelo ministério) e D
mais baixas as taxas de aprovação aferidas no domínio 3 (Aas rejeitados I
N
pelo gabinete). Â
Essas duas taxas de aprovação são, também, para efeito da análise M
desenvolvida, transformadas em um único número para cada sessão I
C
das legislaturas acompanhadas. Esse indicador vem a ser o Índice de A
Desempenho Legislativo do Gabinete (IDLG) 28. Sua função consiste
P
em sintetizar, em único número, a capacidade, demonstrada pelo go-
O
verno, de aprovar o que recomendava e de garantir a rejeição do que L
desaprovava. Nesse sentido, esse indicador varia de (+1) – hipótese em Í
T
que o gabinete vê endossadas em plenário a integralidade de suas prefe- I
rências, positivas e negativas – a (-1), quando ocorre o cenário simetri- C
camente inverso. A

Examinadas as sessões das duas legislaturas, verificam-se os resulta- D


dos compilados no quadro 5, os quais especificam os IDLGs por sessão O
e as suas médias por legislatura 29:
I
M
P
É
R
I
28 O
Para gerá-lo, relativamente a cada ano de interesse, dividem-se os valores .
das taxas de aprovação nos domínios 1 e 3, expressos em percentual, por 100
e subtraem-se os valores registrados no domínio 3 daqueles constantes do
domínio 1. 189
29
Em 1858 e 1859 os gabinetes não aprovaram novo orçamento, recorrendo a
prorrogações. A não votação dos aditivos obrigou a utilização, para o cálculo
do IDLG de 1858, de um proxy, baseado em votações de emendas a orçamentos
ministeriais em 2ª discussão. Para 1859, não foi possível a mesma estratégia,
pois inexistiu deliberação do plenário sobre orçamento. Por isso não há IDLG
para a sessão de 1859.

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Quadro 5: Índice de Desempenho Legislativo do Gabinete (IDLG) na 9ª
e 10ª Legislaturas, Sessões e Média Geral por Legislatura
Sessões IDLG
1853 9ª + 0,857
1854 9ª + 0.875

1855 9ª + 0,546

1856 9ª +1
1857 10ª + 0,430
1858 10ª + 0,338
1859 10ª -
1860 10ª + 0,790
Média 9ª Legislatura (1853-6) + 0,819
A
Média 10ª Legislatura (1857-60) + 0,519
N Fonte: O autor, a partir dos Anais da Câmara.
O
V
A As 9ª (1853-6) e 10ª legislaturas (1857-60) apresentaram compor-
tamentos diferentes, confirmando as expectativas da hipótese. A legis-
C latura “distritalizada” mostrou graus mais precários de sustentação aos
I
Ê ministérios em comparação com a Câmara escolhida sob as “chapas”..
N
C
I VIII. Conclusões
A
Em primeiro lugar, mostrou-se que a atuação do Trono não explica
D
A a rotação de governos entre 1840 e 1889. Conflitos, efetivos ou poten-
ciais, entre o Executivo e o Legislativo, em especial a Câmara, foram o
P
O motivo mais frequente para a queda de gabinetes no Império.
L Em segundo lugar, evidenciou-se que a mudança no regime eleito-
Í
T ral incrementou o conflito entre gabinete e Legislativo, dificultando o
I
C
controle do plenário da Câmara pelos governos.
A O tempo de exercício no poder dos diferentes gabinetes ficou mais
. curto e a sua sobrevivência mais difícil depois da troca de sistema elei-
toral. A capacidade de estabelecer relações cooperativas entre Executivo
190 e Legislativo diminuiu com as inovações institucionais introduzidas no
sistema eleitoral.
A instabilidade dos ministérios se mostra vinculada a uma de suas
principais (e até hoje desconsideradas) raízes. Não se tratou, portanto,
de efeito derivado das decisões de Pedro II. Nem tampouco da força de

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uma pequena elite reunida no Conselho de Estado e no Senado da qual
a Coroa seria representante.
Ainda que se conceda que os fatores acima tenham desempenhado
efetivo papel, a fragilidade dos governos se associou, primordialmente,
às relações de competição e conflito entre Executivo e Câmara dos
Deputados e esta última tensão foi em grande parte o efeito das regras
A
eleitorais originalmente introduzidas pelo marquês de Paraná na década
de 1850. Tudo isso reconfigura o peso relativo das variáveis responsá- D
I
veis por esse aspecto central do regime imperial – a trajetória instável N
dos seus gabinetes –, abrindo caminho para novas leituras do Segundo Â
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É
R
I
O
.

195

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Andréa Freitas

Graduada (2005) em Ciências Sociais pela


Universidade de São Paulo (USP), mestre (2009)
e Doutora (2013) em Ciência Política também
pela USP. Atualmente sou professora no
Departamento de Ciência Política da UNICAMP.
Coordeno o Núcleo de Instituições Políticas e
Eleições do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise
e Planejamento), e sou pesquisadora do Núcleo
de Estudos Comparados e Internacionais (NECI)
da USP e do Centro de Estudos de Opinião
Pública (CESOP) da UNICAMP.

Desde a pesquisa de iniciação científica (2002)


minha principal preocupação foi entender o
funcionamento do Legislativo brasileiro, o
comportamento dos legisladores e o efeito da formação de coalizões no processo
legislativo. Minha tese de doutorado demonstra que a formação de coalizões muda a
dinâmica da relação entre Executivo e Legislativo, diminuindo a distância entre os dois
Poderes.

O capítulo que integra esta coletânea se origina da tese de doutorado, a qual recebeu
menção honrosa no Prêmio Capes de Teses e no Prêmio Guillermo O’Donnell de melhor
tese em Ciência Política da América Latina da ALACIP (Asociación Latinoamericana de
Ciencia Política). Este capítulo ainda faz parte do livro “Presidencialismo da Coalizão”
(2016) publicado pela Fundação Konrad Adenauer.

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PRESIDENCIALISMO DA COALIZÃO:
PRESIDENTE, COALIZÃO E MAIORIA

Andréa Freitas

Introdução1
Em 2 de setembro de 1999, o então Presidente da República,
Fernando Henrique Cardoso, enviou ao Poder Legislativo Projeto de Lei
(PL) dispondo sobre a criação da Agência Nacional de Águas (ANA)2.
O projeto da criação da ANA inicia sua tramitação no Legislativo com
urgência constitucional3 e em menos de um ano é aprovado. Quando o
projeto volta à presidência para sanção, o Executivo o sanciona parcial-
mente. Junto com a publicação do texto dessa Lei no Diário Oficial da
União, seguiram-se os vetos da Presidência.
A criação de agências reguladoras foi certamente um dos pontos
destacados da agenda de FHC, que criou 9 das 10 agências reguladoras
em atividade no país. As negociações em torno da criação de cada uma
das agências, incluindo as relativas à ANA, foram intensas. Mas por
que, após uma intensa batalha para a sua aprovação, o Executivo vetaria,
ainda que parcialmente, uma Lei que ele mesmo enviou ao Congresso?
A visão tradicional acerca do funcionamento dos sistemas presi-
dencialistas supõe que separação de poderes implica no conflito entre
duas agendas políticas, a do Poder Executivo e a do Legislativo. Nesta

1
Este trabalho foi publicado originalmente no capítulo 4 do livro FREITAS, A.
Presidencialismo da coalizão. Rio de Janeiro: Editora Konrad Adenauer Stiftung,
2016. Disponível integralmente no link: <http://www.kas.de/brasilien/pt/
publications/46897>. Acesso em 05-04-2019.
2
Projeto de Lei nº 1617 de 1999, o projeto dispõe sobre a criação da Agência
Nacional de Águas (ANA) e suas atribuições. Foi transforma na Lei nº 9984 de
2000.
3
Urgência Constitucional é um dos poderes de agenda do presidente, que
pode ser solicitada unilateralmente pelo Executivo para os projetos de lei sua
inciativa em qualquer tempo, a frente falaremos mais sobre isso.

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abordagem, o veto presidencial é a indicação mais acabada do conflito
entre os poderes4. Mas o presidente no Brasil não veta apenas as propos-
tas do Legislativo: dos projetos transformados em lei cuja inciativa se
deveu ao presidente, 15% sofreram algum tipo de veto.
Por que o presidente vetaria estas matérias? Segundo a referida vi-
são que equipara separação a conflito entre Poderes, a resposta é óbvia.
O presidente está vetando “penduricalhos” 5, ou seja, as alterações fei-
tas pelos parlamentares sedentos em levar benefícios concentrados para
seus eleitores. Os penduricalhos são retirados e a agenda presidencial é
restaurada.
Esta, contudo, não pode ser a explicação para o PL citado acima.
A Primeiro, porque o Executivo não veta a totalidade das alterações do
N Legislativo. Essa medida recebeu 70 alterações em sua passagem pelo
O Legislativo6. O Executivo, tendo poder para vetar todas estas alterações,
V vetou apenas sete trechos.
A
Mais paradoxal do que o pequeno número de vetos é que, dos sete
C
trechos, um não foi alterado no Legislativo. Nem o trecho em si, tam-
I pouco algum outro trecho que o tornaria incoerente ou inconsistente.
Ê São vetos do presidente ao projeto que saiu originalmente do Executivo.
N
C
Nesse caso, definitivamente, o veto não é a expressão de um conflito
I entre os Poderes.
A
Pode-se argumentar que esse projeto é uma exceção. Mas, como
D veremos ao longo desse trabalho, não é. Não são poucas as vezes que
A
presidentes vetam suas próprias propostas. A chave para entender tal
P
O
L 4
Í Por isto mesmo é chamado de poder de agenda negativo ou reativo (SHUGART;
T CAREY, 1992).
I 5
“Penduricalhos”, ou “contrabando” são nomes normalmente utilizados pela
C
imprensa para se referir a matérias inseridas pelos legisladores em medidas
A
provisórias que não guardam relação com a proposta original do Executivo. Algo
. como as caudas orçamentárias da República Velha, onde os parlamentares,
aproveitando-se de que o presidente não podia vetar parte de um projeto,
198
inseriam no projeto orçamentário todo tipo de disposição, cientes de que
para o presidente o custo de vetar o orçamento era enorme; ou, ainda, como
os riders, emendas inseridas pelo Congresso norte americano em projetos do
Executivo, em geral de conteúdo controverso e não relacionado ao projeto do
Executivo, o qual, igualmente, não pode vetar parcialmente as propostas.
6
Na próxima seção apresento a metodologia que torna possível a contabilização
das alterações.

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comportamento é razoavelmente simples: quem submete a proposta é
o Poder Executivo e não o presidente. E o Executivo é um ator coletivo
e não individual. Assim, vetar a si mesmo não é um indício de “esqui-
zofrenia” do presidente. A contradição ou paradoxo são frutos da falsa
personificação, isto é, da identificação do Presidente com o Executivo.
Hoje é ponto pacífico que o Brasil é governável. O presidente
aprova a maioria das propostas que envia ao Legislativo (possui altas
taxas de sucesso) e a maioria das leis são oriundas de projetos inicia- P
dos pelo Executivo (possui altas taxas de dominância) (FIGUEIREDO; R
LIMONGI, 1999). As explicações para o sucesso e dominância têm E
como base os poderes do presidente – os poderes de agenda, o controle S
I
discricionário sobre cargos e sobre o orçamento (AMORIM NETO; D
COX; MCCUBBINS, 2003; PEREIRA; MUELLER, 2003). Ainda E
que, em geral, as pesquisas destaquem a importância do conjunto de N
poderes, a operacionalização tende a se concentrar na importância de C
uma única variável institucional deixando de lado outros componentes I
A
explicativos (CHAISTY; CHEESEMAN; POWER, 2012). Ao mesmo L
tempo, que se concentram excessivamente na figura do presidente e I
nos seus poderes, deixam de lado o Congresso, pois o foco recai nos S

meios utilizados pelo Executivo para anular os interesses particulares M

que guiariam a ação dos parlamentares. Se levada ao extremo, resul- O

taria dessa lógica que os poderes do presidente retirariam qualquer D


possibilidade de ação do Legislativo. Mesmo quando a explicação é A
partidária, ela tende a se concentrar em como a centralização do pro-
cesso legislativo nas mãos dos líderes partidários anularia os incenti- C
O
vos fragmentadores e personalistas do sistema eleitoral. E não leva em
A
consideração que a participação do Legislativo é essencial no processo L
de produção de leis. Destaquemos esse ponto, os líderes têm um pa- I
pel fundamental de coordenação do processo legislativo, mas coorde- Z
Ã
nar não implica na anulação das preferências dos outros atores nesse
O
processo. .
O presidencialismo de coalizão exige uma análise mais integrada
dos Poderes, ao mesmo tempo em que pede uma análise mais detalhada
199
do papel do Legislativo na manutenção da coalizão. Embora saibamos
que o Brasil é governável e o que a coalizão tem um papel importante
na manutenção da governabilidade, não há clareza sobre os mecanismos
que tornam possível manter unidos seus membros.

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No momento em que o presidente divide seu poder com os parti-
dos que compõem sua coalizão, ele firma um acordo que obscurece as
distinções entre os Poderes Executivo e o Legislativo. A formação de
uma coalizão diminui a distância entre Executivo e Legislativo porque
os partidos políticos representados no Executivo, isto é, aqueles que
recebem pastas ministeriais, também estão presentes no Legislativo. A
coalizão é, portanto, o modo pelo qual se obtém a coordenação entre os
Poderes, em que a separação formal entre os poderes é substituída por
sua articulação. (FIGUEIREDO; LIMONGI, 2009).
Este capítulo se insere neste debate, procurando compreender como
funcionam as coalizões que sustentam o Executivo no Brasil, com um
A olhar direcionado ao processo de produção de leis dentro do Congresso
N Nacional. Argumenta-se aqui que a formação de coalizões implica na
O divisão de poder e de responsabilidade sobre o conjunto de políticas,
V ou seja, implica que todos os partidos que compõem a coalizão têm um
A
papel a formulação e implementação de políticas.
C Pretendo, e esta é a principal contribuição positiva deste trabalho,
I através da análise do processo de produção das leis, identificar como
Ê
N
o acordo genérico entre os partidos ao formarem uma coalizão toma
C corpo e se expressa no momento em que políticas específicas são aprova-
I das. Como veremos, o acompanhamento dos projetos propostos origi-
A
nalmente pelo Poder Executivo permite identificar, de forma concreta,
D como a coalizão constrói o consenso necessário para aprovação da sua
A
agenda através das alterações realizadas pelo Legislativo. As alterações su-
P geridas ao longo da tramitação destas propostas, portanto, não precisam
O
ser vistas como representando uma agenda alternativa à do Presidente.
L
Í Na maioria dos casos, como veremos a frente, estas alterações partem de
T membros da própria coalizão e representam ajustes, correções e nego-
I
C ciações que expressam o funcionamento da coalizão.
A
Como afirmam Martin e Vanberg (2011), o grande desafio de go-
. vernos de coalizão é a necessidade de unir parceiros com preferências
divergentes em torno de uma única agenda política. E a deliberação no
200
interior do Legislativo é um momento privilegiado para expressão dessa
tensão e para a construção de consenso. Consenso que só é possível
por meio das alterações nos projetos. Ou seja, através da negociação e
das concessões dos diferentes membros da coalizão sobre os termos da
política.

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O objeto da análise se justifica no fato de que, embora haja uma
proliferação de trabalhos sobre a relação entre Executivo e Legislativo,
é nos mecanismos que possibilitam a formação e, principalmente, o
funcionamento das coalizões, que residem as maiores divergências entre
eles. Os estudos sobre a formação de coalizões em sistemas presidencia-
listas, não só os direcionados ao caso brasileiro, privilegiam a dimensão
estratégica da distribuição de pastas ministeriais, deixando de lado o
papel que os ministros têm na formulação e execução de políticas. A
P
distribuição de ministérios tende a ser vista como uma ferramenta à R
disposição do Presidente para maximizar apoio legislativo necessário à E
aprovação de sua agenda política. O ocupante da pasta ministerial é re- S
presentado como um mero guardião de benesses auferidas a seu partido I
D
com a entrada no governo, benesses essas medidas em cargos ou em
E
uma fatia do orçamento. N
Os partidos têm incentivos para se juntar à coalizão também para C
alcançar seus objetivos em termos de políticas substantivas (STRØM; I
A
MÜLLER, 1999). Em sistemas presidencialistas, especialmente onde o
L
presidente tem fortes poderes de agenda, estes incentivos devem ser tão I
fortes quanto em sistemas parlamentaristas, onde o processo é domi- S

nado pelo Executivo. Além disto, ministérios não são responsáveis ape- M

nas pela execução de um conjunto de políticas previamente formatadas. O

Eles também formulam novas políticas e definem o rumo da agenda D


presidencial. Para tanto, devem gozar de certa autonomia. Novamente, A
o acordo que possibilita a criação da coalizão implica também na divi-
são de responsabilidades sobre as políticas. C
O
Se isso é verdadeiro, quando os projetos chegam ao Legislativo eles
A
serão negociados pelos demais membros da coalizão. Ao longo da tra- L
mitação das matérias, portanto, políticas são conformadas pela coalizão. I
O Legislativo seria então uma das etapas da formatação de uma agenda Z
Ã
que deixa de ser do presidente, ou do ministro de determinado partido,
O
e passa a ser a agenda da maioria, formatada pela coalizão. .

Esse acordo não é simples, tampouco é completamente pacífico.


Os partidos que compõem a coalizão são os mesmos partidos que na 201
eleição seguinte poderão estar em lados opostos na disputa. Como lem-
bram Laver e Schofield (1998), o maior risco que um partido corre ao
entrar na coalizão é não ser capaz de se diferenciar dos demais partidos
na eleição seguinte. Assim, ainda que os partidos cooperem para forma-
tação de uma agenda única, não perdem de vista o caráter transitório

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dessa cooperação, desenvolvendo, para isso, uma dupla estratégia: ao
tempo que cooperam e tentam colher o máximo de crédito possível por
cada medida aprovada, também farão o possível para imputar os custos
aos outros partidos da coalizão.
O PL que trata da criação da ANA é excelente exemplo do com-
plexo processo de formatação de uma lei. O projeto inicia sua tramita-
ção com urgência constitucional7. Cerca de trinta dias depois, quando
vai à votação no plenário, com sua discussão já iniciada pelo Presidente
da Câmara dos Deputados, o Presidente da República manda uma
mensagem à Câmara dos Deputados que retira a urgência do projeto.
O portador da mensagem é o Deputado Arnaldo Madeira (PSDB/SP),
A na época líder do governo, que ao encaminhá-la à Presidência da Casa,
afirma:
N
O
V Sr. Presidente, encaminhei a V. Ex., em mãos mensagem do Sr.
A Presidente da República retirando a urgência constitucional desta
matéria, atendendo acordo que houve entre os Líderes, na reunião
C feita no gabinete de V. Exª ontem, em que o Deputado Miro Teixeira
I sugeriu que suspendêssemos a urgência constitucional e fixássemos
Ê
prazo para a votação desta matéria, para que a Oposição e os demais
N
Deputados pudessem examinar com mais cuidado esse projeto
C
I relativo à Agência Nacional de Águas [...] trazemos a mensagem
A do Sr. Presidente da República e simultaneamente requeremos
a votação da urgência por acordo no plenário, para que esta
D
matéria seja apreciada na próxima quarta-feira, quando a urgência
A
urgentíssima já terá sido votada. (DCD, 21/10/99, pp. 49992)
P
O Na sequência, o Presidente da Câmara dos Deputados – Deputado
L Michel Temer (PMDB/SP) – congratula o Deputado Arnaldo Madeira
Í
T
por seus esforços no sentido de “dar cumprimento à decisão do Colégio
I de Líderes” (idem) e adia a votação do projeto. Isto feito, dá-se mais
C
tempo às comissões e aos relatores para construir um projeto mais con-
A
sensual. Entre as alterações realizadas no projeto original, foram fun-
.
damentais para fechar o acordo aquelas que submetiam a agência a um
Conselho com a participação da sociedade civil.
202
Quando o projeto vai ao plenário, há consenso sobre o texto básico
entre quase todos os partidos, assim como sobre a rejeição dos destaques

7
Como veremos à frente, o presidente quase não faz uso desse tipo de urgência.
Entre 1988 e 2011, ela só foi solicitada para 3,6% dos projetos do Executivo.

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entre os partidos da coalizão. Sobre isso, o Deputado Arthur Virgílio
(PSDB/AM) se pronuncia:

Quando vejo este congraçamento, profundamente gratificante para


quem faz a luta por dentro do Congresso e percebe que este é um
daqueles momentos que afirmam a sabedoria de todo um coletivo,
devo dizer que ele corresponde à visão do Governo que represento
nesta Casa (DCD, 19/1/00, pp. 2282).
P
Assim, cada uma das alterações foi negociada no interior do R
Legislativo tendo sempre os líderes partidários como representantes de E
S
sua bancada. Uma vez formado o acordo, o projeto foi aprovado com
I
tranquilidade, em uma votação unânime entre os partidos da coalizão. D
Vai ao Senado e não sofre nenhuma alteração, apesar das tentativas da E
oposição (na época o PT) em promover alterações no projeto. Uma N
vez aprovado, é enviado à sanção. O Presidente veta sete trechos do C
I
projeto8, um que reduzia competências do Ministério do Meio A
Ambiente, outro que tratava da possibilidade da ANA atribuir a órgãos L
públicos ou a organizações sociais civis de interesse público a execu- I
S
ção de atividades de sua competência, outros quatro que tratavam do
M
período de impedimento para exercício profissional de ex-dirigente da
O
Agência Nacional de Águas e, finalmente, o trecho que constava no
projeto original, o § 3º do Art. 21 determinando que a programação or- D
çamentária e financeira da agência não sofreria limites nos seus valores A
para movimentação e empenho.
C
Nesse contexto o veto presidencial não pode ser reduzido a um con- O
flito entre os Poderes, tampouco cabe vê-lo como reflexo de um conflito A
entre agendas políticas distintas, onde se contraporiam, por um lado, L
I
um presidente com uma agenda nacional, e, de outro, os parlamentares Z
com seus interesses locais. Ele é, em verdade, reflexo da preocupação Ã
dos partidos com a formulação de políticas. Mais precisamente, é re- O
.
flexo do desafio posto pela formação de uma coalizão, qual seja: da ne-
cessidade de cooperar para mudar o status quo, tendo em mente que no
momento seguinte irão competir pelo crédito (ou se livrar dos custos) 203

dessas políticas junto ao eleitor.

8
A mensagem de veto pode ser vista em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/Mensagem_Veto/2000/Mv0966-00.htm>

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Olhar o processo que se dá no interior do Legislativo, antes de um
determinado projeto chegar ao plenário, pode ajudar a compreender
quais são os mecanismos que permitem ao presidente manter a coalizão
unida. Entender esses mecanismos é fundamental para que possamos
compreender de forma mais profunda o que diferencia o presidencia-
lismo do presidencialismo de coalizão.
O trabalho está dividido da seguinte forma: na seção seguinte faço
considerações sobre a metodologia adotada para avaliar as alterações do
Legislativo. Na terceira seção, avalio a participação dos partidos nesse
processo, mostro a importância do relator, bem como procuro argu-
mentar que o relator é o coordenador do processo de alteração, mas
A que essa prerrogativa é delegada pelos partidos políticos. Ainda mostro,
que o status em relação ao governo – coalizão ou oposição – é decisivo
N
O
na capacidade de alteração, como também é decisivo a condição da
V coalizão, se esta é majoritária ela controla todo o processo, sendo mi-
A noritária a oposição aumenta sua participação significativamente. Na
quarta, argumento que o processo legislativo é uma forma dos dife-
C rentes parceiros da coalizão se fiscalizarem. Na quinta seção, discuto
I
Ê os vetos presidenciais, mostro que assim como ser relator e membro da
N coalizão impactam na capacidade de alteração, também impactam nas
C chances de veto. Na sexta apresento breves considerações sobre os resul-
I
A tados encontrados no trabalho.
D
A Considerações metodológicas
P
Esse trabalho é dedicado a entender o papel do Legislativo, mais
O precisamente, da coalizão no processo de formatação de uma lei.
L Quando um projeto sai do Executivo e entra no Legislativo ele percorre
Í
T um longo caminho, onde a possibilidade de alteração do projeto inicial
I está aberta a todos os parlamentares. É nessas alterações que esse traba-
C
A
lho se concentrará. O objetivo central é identificar quem são os respon-
sáveis pelas alterações e como podemos interpretá-las no contexto do
.
presidencialismo de coalizão.
204
Para medir alteração9 fiz uso da metodologia desenvolvida por
Arantes e Couto (2009, 2010) para análise constitucional. Os autores
separaram o texto constitucional em dispositivos, que são:

9
Para uma discussão dos diferentes métodos de se medir alterações ver Freitas
(2016). No mesmo trabalho é possível encontrar uma explicação mais detalhada

Rogério - A nova ciencia politica.indd 204 07/05/2021 10:39:58


[...] a unidade básica que compõe o texto constitucional.
Examinamos artigos, parágrafos, incisos e alíneas que formam a
Constituição, decompondo-os e algumas vezes agrupando-os até
que seja possível circunscrever o elemento constitucional que está
sendo veiculado (ARANTES; COUTO, 2009, p. 48).

Recorri ao mesmo método, decompondo cada matéria apresen-


tada pelo Executivo em dispositivos e procurando identificar a menor
unidade legal possível que contenha elementos legais. O projeto assim P
destrinchado foi comparado ao projeto que saiu do Legislativo, decom- R
posto pelo mesmo método, rumo à sanção presidencial. Assim, foi pos- E
sível identificar uma a uma as alterações realizadas pelo Legislativo. S
I
Feito isso, foi preciso identificar o autor10 de cada uma das modifi- D
cações11, bem como as características do dispositivo que este autor mo- E
difica, como o tipo de dispositivo, sua abrangência, e se o seu conteúdo N
se relaciona ao conteúdo da matéria, entre outras. Para isso comparou- C
-se cada uma das modificações com todas as emendas e substitutivos12 I
A
apresentados ao projeto na Câmara dos Deputados, e repetindo-se o
L
processo no Senado Federal. I
Por último, comparou-se o projeto final que saiu do Congresso com S

os vetos presidenciais13. Com isso, o que se pretendeu foi mapear a par- M

ticipação de cada partido, de cada Casa Legislativa e de cada poder em O

cada uma das propostas do Executivo. Bem como foi possível identificar D
A

C
sobre como os dispositivos são analisados. O
10
Embora o trabalho tenha sido minucioso, quanto mais antigo o projeto maior A
é a dificuldade de identificar qual o autor da proposta. Em diversos casos, na L
Câmara e, especialmente no Senado, as emendas aparecem listadas, sem que se I
apresente a autoria delas. Esses casos são contabilizados como modificações, Z
mas não são analisados quando tratamos da autoria, eles representam 0,2% Ã
do total de casos analisados. O
11
.
As emendas de redação que visam apenas corrigir vícios no texto não foram
consideradas modificações.
12
Caso seja apresentado um substitutivo, compara-se o substitutivo com 205
o conteúdo das emendas, quando uma emenda de um parlamentar foi
incorporada ao substitutivo, esse dispositivo tem como autoria o parlamentar
e não o relator.
13
O trabalho minucioso de coleta dos dados não seria possível sem a ajuda de
Guilherme Pinheiro Guedes, Guilherme Zanelato Corrêa e Samir Luna de
Almeida, mas especialmente de Andréa Junqueira Machado.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 205 07/05/2021 10:39:58


os pontos exatos dos projetos onde existem divergências entre Executivo
e Legislativo.
O grau de detalhamento da metodologia exigiu que fosse feito um
recorte. Assim, meu universo de análise foram os projetos do Executivo
que sofreram algum tipo de veto14, parcial ou total. Essas são certa-
mente as matérias mais conflituosas ou as únicas onde o conflito entre
Executivo e Legislativo é explicito e mensurável, dessa forma é possível
avaliar não só se o Legislativo modifica os projetos, mas também enten-
der como o Executivo reage a essas modificações. Foram analisadas as
matérias com origem no Executivo que foram apresentadas e aprovadas
entre 01/01/1995 – início do governo Fernando Henrique Cardoso – e
A 31/12/2010 – final do governo Luís Inácio Lula da Silva. O recorte no
governo FHC e Lula têm dois motivos, um teórico e outro prático. O
N
primeiro é que FHC foi o primeiro presidente pós-constituinte a encer-
O
V
rar seu mandato, o que, por si só, já reflete um momento mais estável do
A sistema político brasileiro. Em razão disso, questões conjunturais afetam
menos o dia a dia da política, permitindo uma análise mais abrangente
C do funcionamento do sistema político. A razão prática está na especi-
I
Ê
ficidade dos dados coletados: nos projetos mais antigos, a Câmara e o
N Senado não disponibilizam a informação completa da tramitação, ou
C dos textos vinculados aos projetos, nem mesmo nos Diários das casas,
I o que dificulta enormemente, quando não inviabiliza, a identificação
A
de autoria das emendas. As espécies normativas que compõem a amos-
D tra são: MPVs (Medidas Provisórias) pós-Emenda Constitucional (EC)
A
32 de 2001, PLs (projetos de Lei Ordinária) e PLPs (projetos de Lei
P Complementar)15.
O
L
Í 14
Agradeço ao Patrick Silva pela ideia.
T
15
I As MPVs anteriores às modificações no rito de tramitação regulado pela EC 32
C não foram incluídas por dois motivos: o primeiro, a dificuldade de localizar a
A informação necessária nos documentos disponibilizados pelo Senado Federal,
.
os textos originais das medidas, bem como as alterações que o Presidente
faz a cada reedição muitas vezes sequer são encontrados, mas difícil ainda
é encontrar as emendas oferecidas a essas medidas. O segundo motivo
206 diz respeito à dificuldade imposta pelo próprio processo de tramitação das
matérias, uma vez que a possibilidade de reedição das medidas tornou muito
difícil identificar se o autor das modificações é o Presidente ou o Legislativo.
Isso porque, na época, o Presidente a cada reedição podia decidir modificar
o projeto originalmente enviado. PLNs (projetos de Lei Orçamentária)
também não foram analisados. PLNs regem o orçamento da União, tratam
de remanejamento de verbas, abertura de crédito extraordinário, do plano

Rogério - A nova ciencia politica.indd 206 07/05/2021 10:39:58


Com isso foi possível montar um banco de dados com cerca de
25.000 dispositivos, observando a origem de cada um deles, bem como
identificando aqueles que findo o processo legislativo foram efetiva-
mente incorporados ao texto legal. Como se observa na tabela abaixo,
o Legislativo contribui de maneira significativa para o conteúdo das
leis no Brasil – quase 40% do conteúdo legal tem origem nesse Poder.
Mesmo em um contexto onde os poderes decisórios são centralizados
na Presidência e nos líderes partidários (FREITAS, 2016a, 2016b).
P
R
Tabela 1: Contribuição Média do Executivo e do Legislativo à Lei E
S
Número de Taxa de Contribuição I
Tipo de Número de Dispositivos D
Dispositivos na Lei (Média Percentual por Lei)
Projeto
E
Executivo Legislativo Executivo Legislativo Executivo Legislativo
N
MPV 10451 5599 9399 4469 60,8 39,2
C
PL 5120 3275 3843 2219 71,3 28,7 I
A
PLP 1307 1855 456 994 33,5 66,5
L
Total 16878 10729 13698 7682 64,1 35,9 I
S
Fonte: Banco de Dados Legislativos do CEBRAP.
M
O
Dado que a contribuição do Legislativo é significativa, é preciso,
D
então, identificar quais atores no Legislativo são responsáveis por essas
A
alterações. A suposição é que através do processo de alteração é possível
verificar que a agenda do Executivo é na verdade a agenda dos partidos C

que compõem a coalizão. Para tanto, a seguir discutiremos o papel dos O


A
partidos políticos. Se a suposição está correta, devemos ser capazes de
L
ver a coalizão funcionando através do processo de alteração das propos- I
tas submetidas ao Legislativo. Neste momento, os partidos políticos são Z
os atores centrais, posto que lhes cabe fazer a ponte entre os Poderes. Ã
O
.

207

plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e da própria lei orçamentária


anual. Dada sua especificidade, ou seja, dado que são leis cujo efeito cessa após
sua aplicação, não os analisei, sendo esse um universo a parte que pede estudo
específico. PECs (propostas de Emenda à Constituição) não entram no recorte,
por não poderem ser objeto de veto.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 207 07/05/2021 10:39:58


Presidente, coalizão e maioria
Para entendermos o papel dos partidos, devemos considerar, pri-
meiramente, que o número de cadeiras da bancada partidária é condi-
cionante do poder dos partidos no interior do Legislativo. O número
de relatorias, por exemplo, está regimentalmente associado ao número
de cadeiras do partido e, como se observa em Freitas (2016a), ser relator
impacta o número de alterações. Regimentalmente, os relatores devem
ser escolhidos respeitando a proporcionalidade partidária e garantindo
rodízio entre os parlamentares dos diferentes partidos representados
na comissão. Como o presidente da comissão deve ter que respeitar a
proporcionalidade, os maiores partidos devem receber mais relatorias.
A
Como relatores têm papel crucial nas modificações feitas no interior
N do Legislativo, segue que as maiores bancadas terão maiores chances de
O alterar os projetos.
V
A O tamanho da bancada do partido no parlamento importa não só
porque os recursos no parlamento são divididos levando esta variável
C em conta, mas também porque as decisões são tomadas pela maioria.
I
Ê
Então, a primeira coisa a ser considerada é se o tamanho dos partidos
N está relacionado à sua capacidade de alterar as propostas.
C
I
No Gráfico 1, podemos ver a porcentagem de dispositivos propostos
A e aprovados pelo Legislativo por partido16 do autor. Observamos tam-
D
bém a média percentual de cadeiras do partido na data da apresentação
A do dispositivo, bem como o percentual de relatorias que ocupou no
conjunto dos projetos analisados. O que se observa é que o PMDB foi
P
O o partido que mais fez alterações, seguido pelo PT. O partido que mais
L exerceu o papel de relator foi o DEM (antigo PFL), terceiro partido
Í
T que mais fez alterações, seguido pelo PMDB. Entre os quatro maiores
I partidos, o PSDB é o que menos realiza alterações, apesar do grande nú-
C
A
mero de cadeiras e de relatorias, ele é responsável por menos de 10% das
.
alterações nos projetos do Executivo, proporção muito parecida com a
do PP (antigo PPB), embora a diferença no percentual de cadeiras que
208
os dois ocupavam seja de quase 10%.

16
Assim, como os demais gráficos e tabelas, para facilitar a visualização,
apresento os nove maiores partidos do país.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 208 07/05/2021 10:39:59


O Gráfico 1 demonstra que o tamanho da bancada importa, uma
vez que ele mostra que os quatro maiores partidos são os maiores res-
ponsáveis pelas alterações. Aos pequenos partidos fica reservado um pa-
pel secundário. No entanto, não há uma relação direta e linear entre
tamanho da bancada e número de alterações.

Gráfico 1: Porcentagem de dispositivos do Legislativo


por partido, relatorias e cadeiras (%) P
R
40

E
S
35

I
D
30

E
N
25

C
I
20

A
L
15

I
S
10

M
O
5

D
0

PMDB PFL>DEM PSDB PT PDS>PP PTB PDT PL>PR PSB A


Dispositivos do Legislativo (%) Média de cadeiras (%) Relatorias (%)
C
Banco de Dados Legislativos do CEBRAP. O
A
L
Nesse mesmo gráfico, também é possível ver que os quatro maio- I
res partidos, PMDB, DEM, PSDB e PT, foram indicados para quase Z
a mesma proporção de relatorias, respectivamente, 21%, 21%, 17% e Ã
O
18%. É notável que há certa desproporcionalidade em relação ao nú- .
mero de cadeiras que controlavam, assim como também se nota que o
número de alterações que realizavam não parece estar relacionado com
209
o número de relatorias que receberam.
Contudo, como mostrei no capítulo anterior, os relatores são res-
ponsáveis por grande parte das alterações – em média, 83%. De fato,
também quando separamos as alterações por condição do autor – re-
lator ou parlamentar – e por partidos (Tabela 2 abaixo), observamos a

Rogério - A nova ciencia politica.indd 209 07/05/2021 10:39:59


mesma relação notada no capítulo anterior, ou seja, relatores alteram
mais que os demais parlamentares. Há alguma variação entre os parti-
dos, mas relatores alteram sempre mais do que parlamentares.

Tabela 2: Porcentagem de dispositivos do Legislativo por partido e


posição institucional

Sigla do partido Relator Parlamentar Total

PMDB 90,1 (3298) 9,9 (364) 100,0 (3662)

PFL>DEM 75,6 (1191) 24,4 (384) 100,0 (1575)

PSDB 86,2 (1085) 13,8 (173) 100,0 (1258)


A PT 63,8 (458) 36,2 (260) 100,0 (718)

N PDS>PP 88,0 (543) 12,0 (74) 100,0 (617)

O PTB 91,2 (426) 8,8 (41) 100,0 (467)


V PDT 79,6 (234) 20,4 (60) 100,0 (294)
A
PL>PR 87,4 (216) 12,6 (31) 100,0 (247)

PSB 71,9 (92) 28,1 (36) 100,0 (128)


C
I Outros Partidos 56,6 (220) 43,4 (169) 100,0 (389)
Ê
N Fonte: Banco de Dados Legislativos do CEBRAP.
C
I
A
Dada a força dessa relação, seria esperado que quanto maior fosse
D o número de relatorias, maior a quantidade de alterações. Mas não é o
A que observamos. A relação entre ser indicado para relatoria e o número
P de alterações, também, não é direta, como podemos verificar no Gráfico
O 2, onde observamos o número de relatorias por projeto e por partido,
L em três categorias. Na primeira (relatorias) se observa o total de relato-
Í
T rias distribuídas para cada partido. Na segunda (relatorias por projeto)
I
C
é contabilizada apenas uma relatoria por projeto por partido, de modo
A que quando um partido foi designado mais de uma vez para a relatoria
. de um mesmo projeto, ele é contabilizado uma única. Na última barra
(relatoria e alteração), temos o número de vezes que o partido foi desig-
210 nado e fez alterações por meio do relator. Os partidos estão ordenados
por proporção média das bancadas na data da apresentação da alteração.
O que se observa é que, novamente, o tamanho do partido importa.
Importa principalmente para que o partido tenha um filiado designado
para a relatoria. Mas o que mais chama a atenção é que não são todos os

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relatores que fazem alterações. Quando olhamos para a barra cinza claro
fica claro que ocupar a relatoria não é condição suficiente para fazer
alterações aos projetos, ainda que os relatores sejam os atores que mais
alteram as propostas. Mas como explicar essa aparente contradição?
Ocupar a relatoria tem impacto na capacidade de alteração, mas
para entendermos porque essa relação não é direta, precisamos consi-
derar dois pontos. O primeiro ponto, como descrito, é que os projetos
passam por mais de uma comissão. Só as MPVs passam por uma única P
comissão especial mista, mas, mesmo nesse caso, são nomeados dois R
relatores, um senador e um deputado. Os demais projetos irão passar E
S
no mínimo por duas comissões em cada casa. Assim, o conjunto de
I
projetos analisados tiveram 626 relatores designados, uma média de 3,5 D
relatores por projeto. O segundo ponto é que um mesmo partido pode E
ser designado para dar parecer a um único projeto em mais de uma N
comissão. Dessa forma, se considerarmos apenas uma designação por C
I
partido por projeto, ou seja, se agruparmos os projetos por partido do A
relator, teríamos 443 designações, ou seja, 2,5 partidos deram parecer L
para cada projeto. I
S
M
Gráfico 2: Relatoria por projeto O

D
140

A
120

C
O
100

A
L
80

I
Z
60

Ã
O
40

.
20

211
0

PMDB PFL>DEM PSDB PT PDS>PP PTB PDT PL>PR PSB

Relatorias (N) Relatoria por projetos (N) Relatoria e alteração (N)

Fonte: Banco de Dados Legislativos do CEBRAP.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 211 07/05/2021 10:39:59


Quando verificamos o número de relatores que modificaram a pro-
posta, temos que apenas 198 dos relatores designados fizeram altera-
ções. Isto é, cada projeto foi alterado, em média, por apenas um relator,
independentemente do número de alterações feitas. Como assinalado
por Freitas (2016a), o que importa não é tanto ser ou não relator, mas
sim ser o relator principal das propostas. No Gráfico 3 podemos ob-
servar essa relação por outro ângulo. No gráfico apresento o percentual
de alterações realizadas pelo relator que mais fez alterações por projeto.
Para exemplificar, se um projeto teve três relatores que alteraram a pro-
posta a taxas de 10%, 30% e 60%, no gráfico está apresentado apenas o
relator que mais alterou, ou seja, o que alterou 60%. Assim, observamos
A
a taxa de contribuição do relator que mais fez alterações.
O que se verifica é que em 129 dos 179 projetos analisados, um
N
O
único relator fez todas as alterações de relator. Mas o que pode explicar
V o fato dos demais relatores não alterarem as propostas? O motivo para
A isso é simples, o processo de alteração não é caótico, é coordenado.
Como veremos na continuidade desse capítulo, o processo é coorde-
C nado pelos partidos, que por sua vez terão o volume de sua participação
I
Ê determinado por fazer ou não parte da maioria. Ou seja, esse processo é
N coordenado pelos partidos e pela maioria.
C
I
A Gráfico 3: Distribuição da porcentagem de alterações
realizadas pelo relator principal
D
140
A

P 120
O
L
Í 100

T
Frequência

I
80
C
A
60
.

40
212

20

0
50 60 70 80 90 100
Alterações realizadas pelo relator principal (%)

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Fonte: Banco de Dados Legislativos do CEBRAP

A coordenação no processo de alteração também pode ser obser-


vada se olharmos para as alterações feitas na Câmara e no Senado.
Como visto no capítulo anterior, a Câmara faz mais alterações do
que o Senado. Nas MPVs, onde o Senado pode ocupar a relatoria
principal da matéria, as alterações desta casa são significativamente
maiores do que a dos outros tipos de projeto. A partir destes indícios P
e olhando para o quadro geral de alterações, pode-se supor que a casa R
iniciadora resolve os conflitos entre as preferências dos partidos, dei- E
S
xando pouco para ser alterado na revisão dos projetos. Mas essa su- I
posição só pode ser feita se entendermos que os partidos são a ponte D
entre as casas e coordenam as preferências dos seus membros, não só E
N
no interior das casas como também entre as mesmas.
C
Assim, se um determinado partido altera o projeto na casa ini- I
ciadora e se essa alteração é coordenada entre os membros desse par- A
tido, não importando a qual casa ele pertença, segue-se que esse L
I
mesmo partido não deve alterar novamente o projeto em questão. Na S
Tabela 317, observamos o número e a porcentagem dos projetos altera- M
dos por partido. Na coluna “Uma casa”, apresenta-se os projetos que O
sofreram alterações em apenas em uma casa e na coluna “Duas casas”,
os projetos que foram alterados por um mesmo partido nas duas casas. D

Na tabela, não se separa alterações de relatores de alteração de parla- A

mentares. Assim, se um parlamentar de um partido fez uma alteração C


na Câmara e o relator do mesmo partido fez uma alteração no Senado, O
esse projeto é contabilizado na coluna “Duas casas”. A
Como se observa na Tabela 3, em 82% das vezes que um partido L
I
altera o projeto em uma das casas ele não altera na outra. Dos projetos Z
analisados, apenas em 17% (31) o mesmo partido fez alterações nas Ã
duas casas. Destaquemos esse ponto, não há nenhum impedimento re- O
.
gimental para alteração na casa revisora. Cada parlamentar individual-
mente, ou cada um dos relatores, pode oferecer quantas emendas achar
necessárias. O fato de haver tão poucas alterações de um mesmo partido 213

17
Notem que, diferentemente das tabelas anteriores, estamos contando projetos
alterados e não número de dispositivos. Na tabela, estão apenas os partidos
que tiveram representantes nas duas casas em todo o período analisado.

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na Câmara e no Senado é um forte indício de que os partidos coorde-
nam as alterações entre as Casas.
As duas evidências apresentadas acima. O fato de, em média, ape-
nas um relator fazer alterações por projeto, bem como o fato de um
mesmo partido quase não realizar alterações nas duas casas, aqui não
importando a condição do autor – ou seja, se alteração foi feita por re-
lator ou pelo parlamentar individualmente –, demonstram como o pro-
cesso de alteração dos projetos é coordenado no interior do Legislativo.
E está coordenação é realizada pelos partidos políticos.

A Tabela 3: Número e porcentagem de projetos alterados por partido

N Sigla do Partido Uma casa Duas casas Total


O
PMDB 85,1 (114) 14,9 (20) 100,0 (134)
V
A PFL>DEM 93,1 (134) 6,9 (10) 100,0 (144)

PSDB 85,7 (132) 14,3 (22) 100,0 (154)


C
PT 91,5 (130) 8,5 (12) 100,0 (142)
I
Ê PDS>PP 100,0 (80) 0,0 (0) 100,0 (80)
N
PTB 100,0 (50) 0,0 (0) 100,0 (50)
C
I PDT 100,0 (46) 0,0 (0) 100,0 (46)
A
PL>PR 100,0 (54) 0,0 (0) 100,0 (54)
D
Total 82,3 (144) 17,7 (31) 100,0 (175)
A
* Os partidos apresentados na tabela são aqueles que tiveram representantes na
P
Câmara e no Senado durante todo o período analisado.
O
Fonte: Banco de Dados Legislativos do CEBRAP.
L
Í
T
I Coalizão e maioria
C
A
Até aqui exploramos dois atores fundamentais, o relator e o partido.
.
Nesta seção, continuaremos a explorar o papel dos partidos, mas come-
çaremos a tratar do ponto principal desse trabalho, qual seja, o papel da
214
coalizão e da maioria na coordenação das alterações.
Na Tabela 4, podemos observar o número e a porcentagem de
alterações feitas por partido e por relação do partido com o Executivo –
coalizão ou oposição. O que se observa é que 85% das alterações são feitas
por membros da coalizão. Chama atenção que PMDB e PT praticamente

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não alterem quando estão fora da coalizão. O número de alterações do
DEM e PSDB quando estavam na coalizão é comparativamente menor
do que o do PT e do PMDB na mesma condição. Os dois primeiros
partidos, embora alterem quantitativamente menos quando estão na
oposição do que os partidos da coalizão, quando comparados cada um
consigo mesmo (em termos de sua situação em relação ao governo), te-
mos que PSDB faz quase a mesma quantidade de alterações na oposição
e na coalizão; e o DEM, por sua vez, altera mais na oposição do que P
quando na coalizão. R
E
S
I
Tabela 4: Dispositivos por partido do autor e por posição
D
em relação ao governo
E
Dispositivo do Legislativo N
Sigla do Partido Total
Coalizão Oposição C
I
PMDB 38,7 (3624) 0,4 (38) 39,1 (3662)
A
PFL>DEM 5,9 (553) 7,5 (705) 13,4 (1258)
L
PSDB 3,5 (326) 4,2 (392) 7,7 (718) I
S
PT 15,8 (1474) 1,1 (101) 16,8 (1575)
M
PDS>PP 5,1 (473) 1,5 (144) 6,6 (617)
O
PTB 2,7 (256) 0,4 (38) 3,1 (294)

PDT 0,6 (53) 0,8 (75) 1,4 (128) D


PL>PR 5,0 (467) 0,0 (0) 5,0 (467) A
PSB 2,5 (237) 0,1 (10) 2,6 (247)
C
Total 82,1 (7685) 17,9 (1670) 100,0 (9355)
O
*No total temos as alterações promovidas por todos os partidos. A
Fonte: Banco de Dados Legislativos do CEBRAP. L
I
Z
Essa relação entre partidos e alterações pode ser mais bem explo- Ã
rada. O Gráfico 418 apresenta a distribuição dos dispositivos no governo O
.
Fernando Henrique Cardoso por coalizão e por partido, separados por
sua posição em relação ao governo. O protagonismo da coalizão é desta-
cado. PMDB, PSDB e DEM são os partidos da coalizão que mais alte- 215

18
Os partidos no gráfico estão ordenados da mesma forma que todas as outras
tabelas e gráficos, ou seja, por tamanho no Legislativo. No entanto, para
facilitar a visualização apenas aparecem no gráfico os partidos que fizeram
pelo menos uma alteração. O mesmo vale para o gráfico 16.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 215 07/05/2021 10:39:59


ram os projetos. Somente na última coalizão do governo FHC, a única
em que o governo não era majoritário19, que a participação da oposição
aumenta. O DEM, antigo PFL, que sai da coalizão em 2002, continua
a alterar fortemente os projetos com origem no Executivo. Também é
notável o aumento da participação do PT. Cabe destacar que o aumento
no número de alterações do PT não é efeito da eleição de Luiz Inácio
Lula da Silva, uma vez que 73% delas ocorrem até setembro de 2001,
ou seja, antes das eleições.

Gráfico 4: Distribuição de dispositivos por partido e


por coalizão, FHC (%)
A FHC I 1 FHC I 2
80
N Coalizão Oposição Coalizão Oposição
O 60

V
Dispositivos do Legislativo por coalizão (%)

40
A
20

C 0
T
B
EM
B

B
B
PP

B
PP
EM

T
PT

B
PD
D
D

PT

do
D

PD

PS
I
PS
PM

S>

PM

S>
PS
D

PC
L>

L>
PD

PD
Ê
PF

PF

N FHC II 1 FHC II 2
C 80
I Coalizão Oposição Coalizão Oposição
A 60

40
D
A 20

P 0
T

B
PD DB
B
EM

B
B

B
PT
PP

EM

PT

B
PP
PD

PD
do

D
D

D
PS

PP

PS
PT
PS
PS
PM

PM
S>
D

S>

O
PC

B>
L>

L>
PD
PC
PF

PF

L
Í Fonte: Banco de Dados Legislativos do CEBRAP.
T
I
C
A
O Gráfico 5 apresenta a mesma distribuição para o governo Lula. A
.
coalizão também se destaca como ator principal a alterar os projetos do
Executivo. Ainda que diferentemente do governo FHC, o número de
216
partidos que fazem alterações é maior, como também é maior o número
de partidos que fazem parte da coalizão. Observa-se também que, no

19
Após a saída do PFL, atualmente DEM, o número de cadeiras da coalizão cai
significativamente. Na Câmara nesse período a coalizão tinha 45% da casa e no
Senado tinha 49% das cadeiras.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 216 07/05/2021 10:39:59


início do governo Lula, onde a coalizão era minoritária20, a participa-
ção da oposição é considerável. Note-se que grande parte das alterações
que PSDB e DEM fazem na condição de oposição são realizadas nesse
período.
Como vimos a coalizão é a protagonista quando o assunto é altera-
ções, mas o fato de fazer parte do governo, não é suficiente para explicar
seu protagonismo. O status da coalizão, isto é, se ela é ou não majori-
tária, deve ser considerado. Coalizões majoritárias tendem a dominar o P
processo de formatação das políticas. O status minoritário, por outro R
lado, implica em negociar com os partidos da oposição para se chegar E
S
ao número necessário de votos para a aprovação dos projetos.
I
D
E
Gráfico 5: Distribuição de dispositivos por partido
N
e por coalizão, Lula (%)
C
Lula I 1 Lula I 2 Lula I 3
I
30
Coalizão Oposição Coalizão Oposição Coalizão Oposição A
20
L
10
I
0
S

PC P P
B> DT
B

PC B
B
PV

P M
S> B

S/ S
rt
PS T
PT

PL T

PP

EM

S> B
PDP
R
PC PC SB
B

PC PR
B> oB
S

L> DB

P M
S> B

PL TB

B> doB
S
PF PV

PT
P T

Pa
PD

P
D

PS
do

PD SD

PP
D

PDPSD
P
PT

PP

PD SD

PP
P

>P

E
E
Dispositivos do Legislativo por coalização (%)

PC d

PM
PM
>

PF PM

D
D
D

L>
L>

PF
Lula I 4 Lula I 5 Lula II 1 O
100
80 Coalizão Oposição Coalizão Oposição Coalizão Oposição
60
D
40
20
A
0
L

PA L
PP

B> DT

PP

PP T
B

PV

PL TB
R
PC B
B

PS M
PC P B

PS S

>P B
R
B
L> B
PS M
PC DB

PS S
PMC
PS N

N
S> T

S>PT
B

O
B>PD
D

PS

PS
do

PP

PL T

PCPS
PF do
PD P
>P

>P
D

C
P

P
PM

PM

PM
PS

D
PL

L>

PD
PF

O
Lula II 2 Lula II 3
A
30
L
20
Coalizão Oposição Coalizão Oposição
I
10
Z
0
Ã
L
PTP

>P T

PP
PD B

PSR
PC B
PF doB

PC P EM
PPB
PS S
C
PSPV

PL TB
R
PC SB

L> B
EM

PC P B
B> DT
S
S>PT

S> T

PV
O
PLPD
P
D

B>SD

PF do

D
PD P

>P

PP
P

P
PM

PM

PS
D

D
L>

O
.
Fonte: Banco de Dados Legislativos do CEBRAP.

217
Esse ponto deve ser destacado: não basta fazer parte do Executivo.
Não basta ter poderes de agenda ou recursos – cargos ou acesso ao

20
A primeira coalizão do governo Lula tinha 33% e 26% das cadeiras na Câmara e
no Senado, respectivamente.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 217 07/05/2021 10:39:59


orçamento. Em parlamentos as decisões são tomadas pela maioria, é
preciso reunir o número necessário de votos caso se deseje aprovar um
projeto. E se a coalizão não é majoritária, ela tem que trazer para a mesa
de negociação os partidos da oposição.

Ministérios e relatores
Em parlamentarismos, quando se discute o processo de tomada de
decisão, o debate se concentra na relação entre os partidos no interior
do Executivo. Normalmente se assume que os ministros têm autoridade
e autonomia sobre a formulação de políticas setoriais. Laver e Shepsle
A (1994) chegam a afirmar que ministros seriam ditadores em suas áreas
N
temáticas, tendo autonomia total para formular políticas. Como apre-
O sentei no Capítulo 1, quando se discute coalizões em sistemas parla-
V mentaristas, assume-se que há delegação entre os membros da coalizão
A do controle de uma política setorial.
C
Thies (2001) põe em teste dois modelos de delegação de poder en-
I tre os partidos da coalizão. No primeiro, os ministros têm autonomia
Ê
total. No segundo supõe-se que os membros da coalizão delegam poder,
N
C
mas mantêm um monitoramento constante dos demais membros da
I coalizão. Os dois modelos são testados a partir da observação da nomea-
A
ção de ministros juniores, isto é, da observação de qual partido ocupa os
D cargos de segundo escalão no governo. O que o autor observa é que, em
A
geral, o ocupante destes cargos é de um partido diferente do partido do
P ministro. Ou seja, a nomeação destes serviria como um controle interno
O da coalizão, minimizado os riscos implícitos na delegação.
L
Í Obviamente, se há delegação, há risco. O risco inerente aos gover-
T
I
nos de coalizão é, portanto, que ministros elaborem políticas muito
C afastadas do ponto ideal dos demais membros da coalizão, manipu-
A
lando a informação que chega aos demais membros, levando-os a acre-
.
ditar que a política da forma como foi formulada é a mais adequada
(LAVER; SCHOFIELD, 1998; LAVER; SHEPSLE, 1994; MARTIN;
218
VANBERG, 2011)
Martin e Vanberg abordam o mesmo problema, no entanto, enten-
dem que o papel de manter o controle dos ministros cabe ao Legislativo.
Isto é, os partidos da coalizão através das alterações no Legislativo mante-
riam um controle de seus parceiros, evitando que ministros posicionem

Rogério - A nova ciencia politica.indd 218 07/05/2021 10:39:59


a política muito afastadas do ponto médio dos membros da coalizão.
Assim, esses partidos alterariam as propostas de maneira a levá-las para
o ponto médio da coalizão. Para os autores, o Legislativo é uma arena
privilegiada para o controle de ministros hostis.
Em sistemas presidencialistas essa discussão não é posta, uma vez
que não se assume que haja delegação21, ou seja, não se assume que haja
uma agenda compartilhada. De fato, não seria sem sentido supor que o
partido do presidente teria mais controle dos seus parceiros da coalizão, P
do que primeiro ministro em sistemas parlamentaristas, na medida em R
que o presidente pode ameaçar e mesmo demitir parceiros que tentem E
S
abusar de sua autonomia, sem que isso afete sua permanência no cargo.
I
No entanto, pelos motivos discutidos no Capítulo 1, não parece crível D
que ministros não tenham certa autonomia. Mesmo que não sejam di- E
tadores em suas áreas temáticas, ainda assim, deve ser reservado a eles o N
poder de decidir sobre políticas e sobre a gestão da implementação das C
I
mesmas. De outra forma, para que se brigaria tanto por ministérios, se A
estes não têm nenhum poder efetivo? L
A suposição é a de que o acordo na formação da coalizão implica I
S
em certa autonomia e, se há delegação, então, incorremos no mesmo M
risco apontado por Martin e Vanberg, qual seja: de que um membro O
da coalizão use de sua discricionariedade e controle de informação para
aproximar uma política da sua preferência, ao mesmo tempo em que D

afasta a política da preferência da coalizão. Nesse caso, as alterações no A

interior do Legislativo poderiam ser vistas como uma forma dos mem- C
bros da coalizão manterem o controle de seus parceiros. O
Os dois modelos de delegação de poder testados por Thies podem A
L
ser testados também via alteração das propostas do Executivo22. No pri- I
Z
Ã
21
Em sistemas presidencialistas se sabe muito pouco sobre como as decisões
O
são tomadas no interior do Executivo. Como argumentei, houve uma certa .
personificação do Executivo na figura do presidente, ou na melhor das
hipóteses no partido do presidente. Mesmo no Brasil, onde coalizões se
formam de maneira sistemática, o papel dos partidos membros da coalizão, 219
que não o do presidente, é desconhecido. Não sabemos se as decisões são
tomadas entre ministérios, pelo conjunto dos partidos, por parte deles, ou se
os ministros gozam da mesma autonomia suposta para seus companheiros
parlamentaristas.
22
Obviamente, os dois modelos são casos ideais, são modelos extremos em
continuo com variações entre os dois.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 219 07/05/2021 10:40:00


meiro caso, temos o ministro ditador em uma política setorial. Neste
caso, poderíamos supor que o partido do ministro tenta manter não
só o controle sobre a pasta e os cargos distribuídos no interior dela23,
como também tentará controlar o processo legislativo das propostas que
origina. Ou seja, tentará nomear o relator no interior do Legislativo,
mantendo assim algum controle sobre o processo de alterações. Nesse
caso, se o ministro do partido A é autor da proposta deve-se esperar que
o partido A também detivesse a relatoria da mesma.
No segundo caso, os partidos da coalizão, tentando minimizar os
riscos da delegação de um setor da política, e neste caso, procurariam
fazer um controle cruzado das políticas. Isto é, quando o ministro do
A partido A for o autor de uma proposta, o partido A não será relator da
N mesma. Nesse caso, os partidos da coalizão procurarão distribuí-la no
O interior do Legislativo para um relator do partido B, parceiro na coali-
V zão. Com isso, haveria um controle mútuo dos membros da coalizão,
A evitando que os partidos abusem do poder que lhes foi delegado.
No Gráfico 6, observa-se a relação entre os partidos dos ministros
C
I (nas colunas) e o partido dos relatores (eixo horizontal), no primeiro go-
Ê verno de FHC. A designação do ministro responsável pela proposta foi
N
feita considerando o ministro que a assina quando esta foi enviada ao
C
I Legislativo. Da mesma forma que um projeto pode passar por mais de
A uma comissão e ser relatada por mais de um partido, ele também pode
D
ser assinado por mais de um ministro, por vezes de partidos diferen-
A tes. Para lidar com esse problema, multipliquei os projetos tantas vezes
quantos forem os partidos envolvidos com a mesma. Assim, no gráfico24
P
O observamos o número de vezes que um projeto assinado pelo ministro
L do partido A foi relatado pelo partido B. No gráfico, só estão represen-
Í tados os partidos que assinaram projetos no conjunto analisado, bem
T
I como no eixo horizontal só se observam os partidos que relataram e
C alteraram as propostas.
A
.

23
220
Para mais sobre a distribuição dos cargos no interior do Executivo ver Praça,
Freitas, & Hoepers (2011). O ponto a ser destacado nesse trabalho é que há
fortes indícios de que a distribuição dos cargos no interior do Executivo não
tem como fim exclusivo patronagem.
24
Assim, não é possível somar os números apresentados para obter o total de
projetos. Uma vez que se um projeto foi assinado por um ministro do DEM e do
PSDB ele será contabilizado nas duas barras. O mesmo vale para as relatorias.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 220 07/05/2021 10:40:00


Para o primeiro governo FHC, podemos observar que projetos as-
sinados pelo PMDB (em preto) foram distribuídos igualmente entre os
quatro partidos da coalizão. Projetos assinados pelo PSDB, por outro
lado, foram, majoritariamente, distribuídos para o DEM, embora em
um caso, o projeto assinado pelo PSDB tenha sido relatado e alterado
por relator do mesmo partido. Do conjunto analisado, só um projeto
foi assinado pelo DEM e relatado pelo próprio partido. Os ministros
sem filiação partidária são os que mais assinam projetos, tendo sido,
P
estes, distribuídos igualmente entre DEM e PSDB.
R
E
S
Gráfico 6: Relação entre partido dos ministros e relatores (FHC I)
I
10 D
9 E
PMDB
8
N
PMDB

Partido do ministro
PFL>DEM C
PFL>DEM
7
PSDB I
PTB
6 A
PMDB Sem filiação
PSDB
5
L
PSDB I
4 S
PTB PTB
3 M
PMDB
2 O
Sem filiação Sem filiação
PSDB PSDB
1
PMDB PMDB Sem filiação Sem filiação
D
0 A
PMDB PFL>DEM PSDB PDS>PP PDT Outros
Coalizão Oposição
Relatoria C

Fonte: Banco de Dados Legislativos do CEBRAP. O


A
L
No Gráfico 7, temos novamente a relação entre ministros e relato- I
Z
res para o segundo mandato do governo FHC. Pode-se verificar que o
Ã
número de projetos assinados por ministros do PMDB diminui, no en- O
tanto, sua participação como relator aumenta. O PMDB passa a desem- .
penhar o papel feito no governo anterior pelo DEM, relatando grande
parte dos projetos assinados pelo PSDB, bem como os assinados por
221
ministros sem filiação partidária.
Diferentemente do apresentado para o governo anterior, o número
de projetos do DEM e do PSDB assinados e relatados por eles mesmos
aumenta. Mas, ainda assim, a maior parte deles é distribuída entre os
demais membros da coalizão. Os projetos do DEM são distribuídos

Rogério - A nova ciencia politica.indd 221 07/05/2021 10:40:00


para o PMDB e para o PSDB; os do PSDB, por outro lado, são distri-
buídos para todos os membros da coalizão e para alguns da oposição,
cujo crescimento da participação é notável. Aqui, vemos por outro ân-
gulo a relação apresentada no Gráfico 4: quando a coalizão deixa de
ser majoritária, ela tem de trazer para a mesa de negociação os partidos
da oposição. O PT é o partido da oposição que mais avalia projetos
assinados pelo PSDB. O DEM, quando na oposição, se concentra nos
projetos dos ministros sem filiação partidária.

Gráfico 7: Relação entre partido dos ministros e relatores (FHC II)


18

A 16
PMDB
PMDB

Partido do ministro
N 14 PFL>DEM
PFL>DEM PMDB
O 12
PSDB
PFL>DEM
V PDS>PP

A 10 Sem filiação

PSDB PFL>DEM
8
PSDB PSDB
C PFL>DEM
6
I PFL>DEM
PSDB PSDB
Ê PSDB
4
PDS>PP
N Sem filiação
PDS>PP
PSDB Sem filiação Sem filiação
2
C PDS>PP PFL>DEM
Sem filiação
Sem filiação
I Sem filiação Sem filiação Sem filiação
0
A PMDB PFL>DEM PSDB PDS>PP PFL>DEM PT PDT Outros

Coalizão Oposição
D
A Relatoria

P Fonte: Banco de Dados Legislativos do CEBRAP


O
L No Gráfico 8, observamos a mesma relação, agora para o primeiro
Í
T governo Lula. A participação do PT nas propostas, quando comparada
I com o governo do PSDB, é saliente. O PT assina quase todos os projetos
C
A que saem de seu governo e um terço dos que assina são relatados por ele
.
mesmo. Os demais projetos assinados pelo PT são distribuídos majori-
tariamente para o PMDB, embora todos os outros partidos da coalizão
222
tenham relatado pelo menos um projeto do PT. A participação do DEM
relatando projetos do PT também não é pequena. Aqui, novamente, a
participação da oposição é efeito da coalizão minoritária. O PMDB, tal
como no governo FHC, assina poucos projetos, ao mesmo tempo em
que tem um papel destacado nas relatorias. Entre os demais partidos da
coalizão, nenhum projeto foi assinado e relatado pelo mesmo partido.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 222 07/05/2021 10:40:00


Gráfico 8: Relação entre partido dos ministros e relatores (Lula I)
26

24

22 PMDB

Partido do ministro
PT
20 PDS>PP

18 PL>PR
PCdoB
16 PCB>PPS
PT
PMDB PMDB
14 Sem filiação

12

10 P
PT PT R
8

6 PDS>PP E

4 PL>PR
PT PMDB PT S
PMDB PT PT
I
2 Sem filiação Sem filiação PT
PT
Sem filiação
PT Sem filiação PT D
Sem filiação PCB>PPS Sem filiação PT Sem filiação PCdoB PT
0
PMDB PT PDS>PP PTB PL>PR PSB PCdoB PV PMDB PFL>DEM PSDB PDS>PP PDT Outros E
Coalizão Oposição N
Relatoria
C
Fonte: Banco de Dados Legislativos do CEBRAP. I
A
L
Gráfico 9: Relação entre partido dos ministros e relatores (Lula II) I
39 S
36
M
33 PMDB
PMDB
O
30 PT
PDS>PP
27 D
PDT
PMDB PL>PR
24 A
PMDB
PSB
PT
21
Sem filiação
18 PT
C
PT

15 O
12 A
PDS>PP
9 PDS>PP
PDS>PP PL>PR
L
PMDB
PL>PR PMDB I
6 PSB PL>PR PCdoB PMDB PT
PSB PT
Sem filiação PCdoB
PT
PMDB PDS>PP
Z
3 PT Sem filiação
PT
PDT PL>PR
PT
Sem filiação
PDT
PDT
PCdoB PT PL>PR PDT
PSB
Sem filiação Sem filiação Ã
0
PMDB PT PDS>PP PTB PDT PL>PR PSB PFL>DEM PSDB Outros
O
Coalizão Oposição
.
Relatoria

Fonte: Banco de Dados Legislativos do CEBRAP.


223

No Gráfico 9, que apresenta o segundo governo Lula, notamos


uma vez mais que o PT assina quase todas as propostas feitas pelo
Poder Executivo. A participação do PMDB relatando os projetos do
PT cresce, ainda que PT se mantenha relatando parte significativa dos

Rogério - A nova ciencia politica.indd 223 07/05/2021 11:00:46


seus próprios projetos. O número de projetos assinados pelo PMDB
também aumenta, e a relatoria dos mesmos está distribuída entre quase
todos os partidos da coalizão, apesar deste partido ser o partido mais
avalia propostas assinadas por ele mesmo, depois do PT.
Além do PT e do PMDB, só o PR (antigo PL) assina e relata suas
próprias propostas. A relatoria dos projetos assinados pelos outros
membros da coalizão é concentrada no PMDB, PT e PR. Notável é o
aumento significativo da participação do último, não só na apresenta-
ção dos projetos, como também na relatoria dos mesmos.
Assim, no conjunto analisado, notamos que o partido do presidente
A
parece ter mais controle do processo como um todo do que seus parcei-
ros. Isso é especialmente destacado no governo Lula. Ainda assim, na
N
maioria dos casos, o partido do ministro que assina a proposta não é o
O
V
mesmo partido que avalia a proposta no interior do Legislativo – apenas
A 30% dos projetos analisados foram assinados e relatados pelo mesmo
partido. Haveria, então, um controle cruzado dos membros da coalizão.
C
I
Notamos também que o PT centralizou mais as decisões sobre po-
Ê líticas no interior do Executivo do que fizera o PSDB. Por outro lado,
N
suas propostas foram distribuídas para um número maior de atores no
C
I Legislativo. O PSDB aparenta menos centralização nas assinaturas,
A mas, por outro lado, seus projetos, em geral, foram analisados por um
D único ator no Legislativo: no primeiro governo, pelo DEM; no segundo
A governo, pelo PMDB.
P Vimos então que os projetos do Executivo tendem a ser distribuí-
O
dos para relatores de partidos membros da coalizão, mas em geral esses
L
Í relatores não pertencem ao mesmo partido do ministro que assinou a
T
I
proposta. Vimos também que a coalizão só diminui o seu controle sobre
C a formatação das políticas quando é minoritária. Nesse último caso, a
A necessidade de reunir maiorias exige que se envolva a oposição no pro-
.
cesso de formatação das políticas.

224
Vetos presidenciais
Ao final do processo Legislativo, os projetos aprovados são envia-
dos à sanção presidencial. O presidente pode sancioná-los ou vetá-
-los. Em caso de veto, esse pode ser total ou parcial. Como discuti

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anteriormente, os vetos tendem a ser vistos como a expressão do
conflito entre os Poderes. Seriam o exemplo da divergência entre a
agenda do Poder Executivo e a do Legislativo.
Mas, como afirmei na introdução, a explicação para o veto não
é tão simples. No Gráfico 10, podemos observar o número de ve-
tos separado por autor do dispositivo vetado. O que se verifica, em
primeiro lugar, é que o número de vetos não é tão grande quanto se
poderia esperar, dado o volume de alterações. Ao menos é menor do P
R
que se deveria esperar, caso fossem vistos através da lente conflitiva.
E
Dos 8219 dispositivos do Legislativo que poderiam ser vetados – S
aditivos e modificativos –, o Executivo vetou apenas 1033, o que I
D
equivale a 13% do total de alterações. Note-se que os dispositivos su-
E
pressivos não podem ser vetados e, desta forma, são desconsiderados N
nesta análise. Observa-se também que o Executivo veta 89 dispositi- C
vos propostos por ele mesmo. I
A
À primeira vista, os partidos que mais alteram são os mais veta- L
dos, sendo esses o PMDB e o PT, seguidos por PSDB e DEM. No I
S
entanto, quando comparamos os quatro grandes com os menores
M
partidos, há uma clara desproporcionalidade entre o número de vetos O
e de alterações propostas.
D
No Gráfico 11, apresento a porcentagem de dispositivos vetados
A
em relação ao total de dispositivos que poderiam ser vetados por par-
tido. Quando procedemos desta forma, a relação entre o número de C

alterações feitas e vetos desaparece. O PSDB é o partido mais vetado, O


A
sendo que quase 25% do que propôs foi objeto de veto. PR e PTB
L
também sofrem um número bastante considerável de vetos nos dis- I
positivos que apresentam. O PMDB, partido que mais fez alterações, Z
Ã
teve menos de 10% de seus dispositivos vetados. Mas, o que explica
O
essas diferenças entre os partidos? .

225

Rogério - A nova ciencia politica.indd 225 07/05/2021 10:40:00


Gráfico 10: Número de vetos por autor

300
250
200
Veto (N)
150 100
50

A
0

PP
PT

T
o

EM

B
iv

PD
D

PT

PS
>P
O
S>
ut

PM

PS
D

PL
ec

L>

PD
Ex

PF

V
A
Fonte: Banco de Dados Legislativos do CEBRAP.

C
I
Ê Gráfico 11 : Dispositivos vetados/dispositivos do Legislativo
Dispositivos Vetodos/Dispositivos do Legislativo (%)

N 25
C
I
A 20

D
A
15

P
O
10
L
Í
T
I 5
C
A
. 0
PT

PP

T
B

EM

B
PD
D

PT

PS
>P
S>
PM

PS
D

PL
L>

PD
PF

226

Fonte: Banco de Dados Legislativos do CEBRAP.

No Gráfico 12, observa-se a porcentagem de dispositivos vetados


separados pela condição do propositor – se parlamentar ou relator – e

Rogério - A nova ciencia politica.indd 226 07/05/2021 10:40:00


por partido. Constata-se que dispositivos propostos por parlamentares
recebem quase o dobro de vetos do que os dispositivos introduzidos
pelos relatores. Só o PSDB e o PR tiveram mais dispositivos de relator
vetados do que de parlamentares. Esse dado indica, novamente, a im-
portância do relator como o coordenador do processo de alteração. Ele
mostra que as alterações no interior do Legislativo são coordenadas e
que o relator é um ator chave nesse processo.
P
Gráfico 12: Dispositivos vetados/dispositivos do Legislativo, por
R
condição do propositor
E
30
Dispositivos vetados/dispositivos Legislativos (%)

S
I
D
E
20

N
C
I
A
L
10

I
S
M
O
0

PMDB PFL>DEM PSDB PT PDS>PP PTB PDT PL>PR PSB Total D


Relator Parlamentar A

Fonte: Banco de Dados Legislativos do CEBRAP.


C
O
Mas o fato do PSDB, que ocupou por oito anos a presidência ter A
mais dispositivos de relator vetados do que os demais partidos, chama L
I
a atenção para o fato de que não é só a relatoria que explica a relação Z
entre alterações e vetos. Assim, é preciso acrescentar mais um ator na Ã
coordenação desse processo. O
.
No Gráfico 13, podemos observar a relação entre dispositivos do
Legislativo apresentados e vetados25, agora separados por sua relação
com o Executivo. O que se observa é que a oposição recebe duas vezes 227

mais vetos que a coalizão. Entre os quatro maiores partidos, PMDB,


DEM, PSDB e PT, estar na oposição ou na coalizão faz uma enorme

25
do Legislativo de tipo supressivas. Ficaram, portanto, apenas os dispositivos
que o Executivo pode vetar, a saber, aditivos e modificativos.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 227 07/05/2021 10:40:00


diferença no tocante ao sucesso da alteração proposta. PMDB e PT
se destacam, tendo sido 5 vezes menos vetados quando na coalizão. O
PSDB, partido mais vetado proporcionalmente, recebeu 3 vezes mais
vetos na oposição do que quando era governo.

Gráfico 13: Dispositivos vetados/dispositivos do Legislativo, por


posição em relação ao governo

55
Dispositivos vetados/dispositivos Legislativos (%)

50

45

40

A 35

30
N
25
O
20
V
A 15

10

C 5
I 0
B
PT

PP

T
B

EM

al
Ê
PT

PD
D

PS
>P

t
To
S>
PM

PS
D

PL
L>

N
PD
PF

C
I
Coalizão Oposição
A
Fonte: Banco de Dados Legislativos do CEBRAP.
D
A

P Como argumentei, a explicação para os vetos não deve ser resu-


O mida a um conflito entre as agendas do Poder Executivo e do Poder
L Legislativo. Vimos até aqui que as agendas não são tão divergentes
Í
T como se imagina. Os legisladores preocupados com políticas alteram os
I projetos do Executivo, mas não inserem neles dispositivos de conteúdo
C
A
local que visam a atender clientelas claramente definidas. Os partidos,
.
via relatores, coordenam o processo e avaliam os projetos que vem do
Executivo, negociando e fazendo concessões sobre os termos da política.
228
E fazer parte ou não da coalizão, assim como o status majoritário da
mesma, fazem uma enorme diferença não só no tocante às possibilida-
des de alterar os projetos, como também nas chances que as alterações
sobrevivam ao veto.
Nesse contexto, o significado e as razões por detrás dos vetos preci-
sam ser requalificadas. O veto não é expressão de um conflito inerente

Rogério - A nova ciencia politica.indd 228 07/05/2021 10:40:00


entre os Poderes, mas sim a forma como problemas pontuais são solu-
cionados, problemas não resolvidos na proposta que sai do Legislativo.
As justificativas de veto que o Executivo fornece, em sua grande maio-
ria, fazem alusão a incoerências que restaram no texto. Ou fazem refe-
rência a gastos não previstos. Em última análise, vetos constituem os
últimos ajustes em uma agenda que antes de ser conflituosa – como
poderia se supor à primeira vista –, é na verdade compartilhada pelos
membros da coalizão.
P
R

Conclusão E
S
No presente trabalho, analisei o funcionamento das coalizões que I
D
sustentam o Executivo no Brasil, com um olhar direcionado ao pro- E
cesso legislativo, ou seja, à forma como leis são apreciadas no interior do N
Congresso Nacional. A tese aqui defendida é a de que a formação de coa- C
lizões implica na divisão de poder e de responsabilidade sobre o conjunto I
A
de políticas, isto é, implica em que todos os partidos que compõem a L
coalizão participam e influem no resultado final do processo decisório. I
S
Para determinar a importância dos partidos que compõem a coa- M
lizão na formatação da agenda, analisei as alterações aos projetos do O
Executivo no Legislativo. Com isso foi possível determinar que o pro-
cesso de alterações está longe de ser caótico. Ele é coordenado pelos D
A
partidos que compõem a maioria, via relatores, que, por sua vez, têm
um papel central na construção do consenso em torno das políticas. C
A aprovação dos projetos de lei submetidos pelo Poder Executivo não O

pode ser explicada sem referência ao papel dos partidos, cuja ação, em A
L
última análise, se estriba na atuação dos relatores. I
A formação de coalizões tem implicações profundas para o pro- Z
Ã
cesso de formatação das Leis. As coalizões são formadas por um motivo
O
simples: as decisões no parlamento são tomadas contando votos. Vale .
o que a maioria decidir. Nenhum dos poderes de agenda do Executivo
dá a esse Poder a possibilidade de governar contornando o Legislativo
229
(FREITAS, 2016a). Isso se comprova no fato de que quando a coalizão é
minoritária, o controle do Executivo sobre o conteúdo das leis diminui,
uma vez que aumenta significativamente a participação da oposição.
Por outro lado, quando a coalizão é majoritária, ela controla o processo
de alteração das políticas. Mas esse controle não é do Presidente, ou

Rogério - A nova ciencia politica.indd 229 07/05/2021 10:40:01


exclusivamente de seu partido, mas sim do conjunto de partidos que
fazem parte da coalizão presidencial. É a maioria, em todos os casos,
que definirá a agenda que será aprovada no Legislativo.
A coalizão, de fato, governa. É ela a responsável pela alteração do
status quo. Por coalizão se entende um ator coletivo composto por inte-
resses partidários divergentes, ora em disputa, ora em acordo. Quem age,
na maior parte das vezes, é a coalizão e não este ou aquele partido. Neste
aspecto, o controle cruzado sobre as inciativas legislativas desempenha
papel crucial no controle mútuo dos partidos que compõem o Executivo.
70% dos projetos analisados neste trabalho são assinados por ministros
de um partido e relatados por um parlamentar de outro partido.
A
A divisão das pastas ministeriais entre os partidos implica em divi-
são de responsabilidade sobre o conjunto de políticas. Todos os partidos
N que compõem a coalizão participam e influenciam no resultado final
O do processo decisório. Como mostra o controle cruzado que se veri-
V
A
fica na tramitação das matérias, essa responsabilidade nunca é exclusiva.
Partidos, de uma forma ou outra, compartilham essa responsabilidade,
C
são coautores da maioria das propostas transformadas em lei.
I A coalizão formada para alcançar maioria no Legislativo tem como
Ê
consequência o aumento do número de atores que participam nas de-
N
C
cisões. A agenda do Executivo, não é a agenda do Presidente, mas sim a
I agenda da coalizão.
A

D
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Patrick Silva

Mestre em Ciência Política (2014) e Bacharel em


Ciências Sociais (2011) pela Universidade de São
Paulo. Em 2016, iniciei meu doutorado em Ciência
Política na Washignton University in St. Louis.
Atualmente trabalho com perguntas de pesquisa
sobre sistemas eleitorais, comportamento eleitoral
e campanhas políticas.

No mestrado, sob orientação da Professora Marta


Arretche, dediquei-me à análise do Poder Legislativo
no âmbito local, instituição que, apesar de sua
importância, é pouco estudada pela Ciência Política
brasileira. Especificamente, minha dissertação examinou três tópicos relacionados
às Câmaras Municipais: (1) as estruturas física e humana desses órgãos, (2) o perfil
dos vereadores e como ele se compara com o perfil dos candidatos e eleitores e (3) a
produção legislativa dos legisladores municipais. A qualidade da minha dissertação foi
reconhecida pelo Departamento de Ciência Política da USP por meio de sua indicação
ao prêmio da ANPOCS de melhor dissertação de mestrado em 2014. O capítulo
publicado nesta coletânea foi premiado em 2014 como o melhor artigo apresentado na
área de Instituições Políticas no IV Seminário Discente da Pós-Graduação em Ciência
Política da USP.

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A PRODUÇÃO LEGISLATIVA NOS MUNICÍPIOS
BRASILEIROS: UM ESTUDO DE 27 CÂMARAS
MUNICIPAIS (2001 A 2011)

Patrick Cunha Silva

Introdução
Entre os subcampos da Ciência Política, o dos Estudos Legislativos
se destaca pela quantidade de trabalhos que visam compreender di-
versos aspectos do funcionamento do Poder Legislativo brasileiro
(AMES, 2003; FIGUEIREDO; LIMONGI, 1999; FREITAS, 2008;
LIMONGI; FIGUEIREDO, 2005). Contudo, pouca atenção tem sido
dedicada às instituições legislativas nos planos subnacional e local. Este
trabalho enfrenta essa lacuna e visa contribuir para o entendimento so-
bre as instituições legislativas no plano municipal.
Seria o comportamento dos vereadores, no que compete a apresen-
tação de projetos de lei, semelhante ao dos deputados federais? Ou, tal
como posto pelo senso comum, a produção legislativa no nível muni-
cipal seria dominada por projetos honoríficos e meramente simbólicos?
Os resultados deste trabalho apontam que se por um lado, o tema com
maior número de projetos apresentados é o social, o segundo é o de
homenagens.
Não obstante a importância de classificar os projetos de lei e veri-
ficar quais são os tipos mais frequentes, neste trabalho se dá um passo
além das análises realizadas sobre o legislativo brasileiro na medida em
que se examina a possível associação entre a apresentação de projetos
e características dos parlamentares. Especificamente, se vereadores de
ocupações relacionadas a áreas tais como saúde e educação são mais pro-
pensos a apresentar projetos nestas áreas. Os resultados apontam para a
existência de associação entre algumas áreas ocupacionais e a apresen-
tação de projetos de lei. Este resultado revela que devemos pensar em
tipos de legisladores quando analisamos o plano local.

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Na próxima seção é apresentada uma revisão da literatura nacional
sobre o estudo do Poder Legislativo focalizando os argumentos sobre
produção legislativa; posteriormente, é feita uma descrição dos dados
e métodos utilizados na seção empírica; por fim, na terceira seção, são
apresentados os resultados da análise sobre a produção legislativa nos 27
municípios estudados.

A produção legislativa no Brasil


O estudo da produção legislativa é uma das áreas de pesquisa mais
estabelecidas na Ciência Política brasileira. Nos anos recentes, estudio-
A sos têm testado de modo sistemático interpretações bastante enraizadas
N
acerca do sistema político brasileiro – especificamente, o argumento de
O que o sistema de escolha dos deputados federais, estaduais e vereadores
V teria como efeito o comportamento paroquialista destes parlamenta-
A res (AMES, 1995a, 1995b, 2003; FIGUEIREDO e LIMONGI, 1999,
2002; LAMOUNIER, 1992; LIMONGI e FIGUEIREDO, 2005;
C
I
MAINWARING, 1991, 1999; PEREIRA e MUELLER, 2002, 2002).
Ê Isto é, que parlamentares visariam prioritariamente agradar suas bases
N eleitorais.1 Embora as controvérsias sobre esse e outros argumentos se
C
I mantenham, é fato que os estudos sobre a produção legislativa no Brasil
A estão tornando-se cada vez mais aprofundados e diversificados.
D Dentre os trabalhos realizados, destaca-se o pioneiro estudo de
A Figueiredo e Limongi (1999) sobre o processo decisório na Câmara dos
P Deputados. Os autores encontram uma nítida divisão de preferências nas
O matérias propostas pelo Executivo e pelo Legislativo: enquanto o tema
L social é dominante no Legislativo, o Executivo apresenta preferencial-
Í
T mente matérias administrativas e orçamentárias. O Brasil, desta forma,
I
C
poderia ser considerado um exemplo do que se convencionou chamar
A de “segredo ineficiente” (SHUGART; CAREY, 1992). Especificamente,
. países como o Brasil, seriam caracterizados por um conjunto de institui-
ções – um Poder Executivo forte e com líderes partidários fracos – que
234

1
É importante notar que apesar da literatura focar majoritariamente em bases
eleitorais geograficamente definidas, estas também podem ser definidas
considerando grupos populacionais. Por exemplo, parlamentares podem ter
uma base eleitoral composta majoritariamente por membros de um grupo
religioso.

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não possibilitam ao eleitor uma clara visão de plataformas políticas pú-
blicas oferecidas pelos partidos durante o período eleitoral. Isso aconte-
ceria porque estimulados pelas instituições, legisladores teriam em uma
agenda política com foco local em vez de uma com foco nacional2.
A fim de examinar se o modelo do “segredo ineficiente” é válido
para o Brasil, Amorim Neto e Santos (2003) investigaram a produção
legislativa da Câmara dos Deputados, com base na classificação de to-
dos os projetos de lei aprovados na Casa (1985-1999) e todos os proje-
tos propostos no ano de 1995. Os autores classificam as leis e projetos
de lei quanto ao tema, à abrangência e ao efeito causado. Os resultados
obtidos indicam que o principal tema de interesse dos parlamentares é o
social, confirmando os achados de Figueiredo e Limongi (1999).
No entanto, Amorim Neto e Santos destacam que a agenda social A
dos deputados não representa uma ampla agenda de reformas sociais.
P
Nas palavras dos autores, as leis do tipo social “(...) não promovem am- R
plos programas de política social e, por isso mesmo, não alteram o persistente O
status quo perverso do país (...)” (AMORIM NETO e SANTOS, 2003: D
675). Por outro lado, os autores contestam que os parlamentares seriam U
distribuidores de benefícios para suas bases, pois os projetos “(...) visam Ç
aos cidadãos em geral e não a áreas geográficas específicas” (idem: 675). Ã
O
Os achados de Amorim Neto e Santos (2003) permitem duas con-
clusões: (1) as leis propostas pelos parlamentares não buscam diminuir L
as clivagens econômicas e sociais brasileiras e (2) a maior parte das leis E
G
apresentadas pelos parlamentares é de âmbito nacional, ou seja, não pa-
I
roquialistas. Segundo os autores, a reduzida capacidade do Legislativo S
nacional para alterar o orçamento explicaria estes achados, uma vez que L
ela criaria um impedimento e um fator desmotivador para a apresenta- A
T
ção de políticas de pork barrel3. I
V
A
.
2
Cabe ressaltar que o modelo do “segredo ineficiente” pressupõe um Executivo
forte, que se encarregaria das políticas nacionais, ao passo que os parlamentares
cuidariam dos interesses de suas clientelas, propondo matérias paroquialistas 235
de caráter social (SHUGART e CAREY, 1992).
3
O termo “pork barrel” se refere a políticas governamentais cujos benefícios
econômicos ou serviços são concentrados em uma área específica, mas cujos
custos são repartidos entre todos os contribuintes. São exemplos deste tipo
de política, no âmbito nacional, os subsídios agrícolas. Neste capítulo, utilizo
os termos pork barrel e paroquialista como sinônimos. É importante notar

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Ao analisar as leis de caráter propriamente social4, Lemos (2001)
chega uma conclusão semelhante à de Amorim Neto e Santos (2003).
Baseada em evidências de que os parlamentares apresentam mais proje-
tos de impacto difuso, Lemos apresenta dois argumentos. O primeiro
refere-se à dependência da reeleição em relação à percepção do elei-
tor quanto aos benefícios recebidos, de modo que tal percepção não
depende de ganhos individuais. Ou seja, o eleitor não precisa receber
diretamente o benefício concedido pela lei, uma vez que ele é capaz
de perceber o desempenho parlamentar mesmo quando não é benefi-
ciado diretamente. A segunda explicação alude à forma das proposições.
Lemos encontra o predomínio de matérias do tipo regulatório5. A pre-
A ferência por este tipo de matéria seria causada pela limitada capacidade
de transferência de recursos do Legislativo, isto é, das limitações insti-
N
O
tucionais instituídas pela Constituição Federal de 1988 ao Legislativo
V brasileiro para a elaboração do orçamento.
A
Lemos (2001) afirma também que todos os partidos preferem apre-
sentar propostas difusas ao invés de concentradas. Contudo, a explica-
C
I ção apresentada por Amorim Neto e Santos (2003) diverge da de Lemos
Ê neste ponto. Os autores afirmam existir uma diferença no perfil das
N
matérias apresentadas pelos partidos da oposição e da base aliada, uma
C
I vez que, enquanto a situação tenderia a ter maior disposição para apre-
A sentar propostas de tipo paroquial, a oposição optaria por matérias com
D conteúdo nacional. Isto ocorreria porque a apresentação de projetos é o
A único modo de a oposição apresentar seu plano de governo para o país
P e, portanto, de se fortalecer.
O Outros dois trabalhos contribuíram para tornar mais precisas as in-
L
Í
terpretações sobre o comportamento parlamentar no Brasil: os trabalhos
T
I
C
A que estas políticas não se encaixam necessariamente no sentido de relação
. clientelística como definida por Victor Nunes Leal (2012 [1948]).
4
Os temas que englobam o que chamados pela autora de propriamente social
236
são: educação e saúde. É bom ressaltar que a autora também utiliza os decretos
legislativos e as resoluções na sua pesquisa (LEMOS 2001).
5
Nas palavras de Santos (1995: 462) matérias reguladoras são aquelas que dizem
“respeito aos casos em que estas propõem a regulação de atividades de setores
da economia, seja no mercado de bens e serviços, seja no mercado de trabalho.
A leis pode também alvitrar regras que regulem a competição e participação
políticas”.

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de Santos (1995) e Ricci (2003). O trabalho de Santos (1995), focado
no período de 1959-1963, foi um dos pioneiros na análise da produção
legislativa. Entre os achados do autor que se mantém para o período
1988-2002 está o que revela que o estado pelo qual o parlamentar foi
eleito não está associado com a apresentação de matérias. Ou seja, a
produção de matérias paroquiais não estava conectada à origem eleitoral
do parlamentar.
Entretanto, os resultados de Santos também diferem dos encontra-
dos para o período pós-88. Por exemplo, uma das conclusões de Santos
(1995) é que o número de leis de caráter clientelista em 1959-64 era
superior às de caráter nacional. A explicação para este achado estaria na
possibilidade de participação mais ativa na elaboração do orçamento –
no caso do período democrático de 1946 a 1964. A
Outro aspecto do debate refere-se à correlação positiva entre
P
a magnitude6 do distrito (M) e o número de proposições paroquiais R
apresentadas: quanto maior o número de cadeiras do distrito maior O
seria o número de projetos paroquiais. Neste sentido o trabalho de D
Santos (1995) não é conclusivo. No entanto, Ricci (2003) testou U
e refutou esta proposição em seu estudo para o período de 1988 e Ç
2002. Segundo o autor, não se pode conectar M com o número de Ã
O
propostas paroquialistas. Pelo contrário, o fenômeno observado é
oposto à suposição: quanto menor M, maior é o número de projetos L
paroquiais. E
G
Por último, cabe ressaltar o trabalho de De Carvalho (2003). O
I
autor se propôs a responder se o padrão da constituency influencia a S
atuação parlamentar do deputado. Os resultados da análise dos projetos L
de lei feita pelo autor apontam para a aceitação da hipótese distributi- A
T
vista: deputados com base dominante, seja concentrada ou fragmen- I
tada, são os que menos apresentam propostas de âmbito nacional. O V
autor argumenta e mostra empiricamente que, apesar do “que preten- A
.
dem alguns analistas, os dados demonstraram que os estímulos oriundos da
arena eleitoral estão longe de ser ‘neutralizados na porta do Congresso’” (DE
237

6
A magnitude (M) é o número de cadeiras em disputa num distrito nas eleições.
Para as eleições de deputados federais a magnitude varia de um mínimo de oito
cadeiras para estados menores como o Acre e um máximo de setenta cadeiras
para São Paulo.

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CARVALHO, 2003)7. No entanto, deve-se observar que em sua conclu-
são o autor pondera sobre qual modelo o sistema brasileiro representa: se
é o sistema no qual os partidos são os principais atores (FIGUEIREDO
e LIMONGI, 1999), ou se prevalece o individualismo, o particula-
rismo e o distributivismo (AMES, 2003). A conclusão apresentada é
que o sistema político brasileiro não pode ser encarado como forma
pura de nenhum dos dois. As regras internas do Congresso não seriam
fortes o suficiente para eliminar todos os incentivos da arena eleitoral;
tampouco seria verdade que todos os deputados brasileiros agem de
maneira paroquial. Portanto, o sistema eleitoral e as regras internas do
Congresso fornecem aos parlamentares múltiplas estratégias na arena
A parlamentar.
N Antes de iniciar a análise dos trabalhos que tomaram as Assembleias
O Legislativas como objeto, cabe destacar o trabalho de Marques (2012)
V por se tratar de um esforço de examinar a produção legislativa no Senado
A
Federal e as possíveis consequências da representação estadual no com-
portamento dos Senadores. O autor examinou os projetos de lei apre-
C
I sentados pelos senadores entre os anos de 2003 e 2010 e os classificou
Ê perante o tema e sua área de abrangência. Os resultados apontam para
N
um padrão semelhante ao verificado para a Câmara dos Deputados: o
C
I tema mais frequente é o social (48,4%) e apenas 13% dos PLs possuem
A impacto regional ou local.
D Deste modo, a literatura nos permite concluir que em nenhuma
A das Casas do Legislativo brasileiro a tese da conexão eleitoral entre o
P parlamentar e sua constituency geográfica encontra respaldo.
O
Feitas estas considerações sobre o Legislativo Federal, passemos aos
L
Í estudos sobre os planos estadual e municipal. Como destacado anterior-
T mente, pouca atenção foi dada à produção legislativa no nível estadual
I
C pela Ciência Política brasileira8. Ainda menor é o número de estudos
A que examinaram a produção legal municipal.
.

7
238
Uma base é dominante quando o candidato recebe a maior parte dos votos
de um município. Uma base fragmenta é aquela em que o candidato recebe a
maior parte de seus votos em municípios não contíguos, enquanto que uma
base concentrada é aquela em que o candidato recebe a maior parte de seus
votos em municípios contíguos.
8
Para um exame do Poder Legislativo estadual pela ótica das relações Executivo-
Legislativo conferir Abrucio (1998) e a coletânea organizada por Santos (2001).

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Destes, o primeiro que podemos destacar é o estudo de Castro,
Anastasia e Nunes (2009), cujo objetivo foi examinar a representação
política em doze Assembleias Legislativas9, mais especificamente, ava-
liar, entre outros fatores, em que medida a base eleitoral influencia o
comportamento dos legisladores. Os autores utilizaram como dados
as informações resultantes do survey aplicado pelo Centro de Estudos
Legislativos do Departamento de Ciência Política da Universidade
Federal de Minas Gerais (CEL-DCP-UFMG). A pesquisa obteve res-
posta de 513 dos 624 deputados que constituíam o universo. Os resul-
tados da pesquisa apontam que o grau de paroquialismo é mais elevado
entre: (1) deputados de estados com maior competição eleitoral, (2)
deputados da oposição, (3) deputados que diziam possuir como apoia-
dores prefeitos e vereadores, e, por fim, (4) entre os deputados que afir- A
mavam representar os interesses da sua região.
P
O estudo de Cervi (2009) também aponta para a confirmação deste
R
último achado. O autor analisou a produção legislativa dos deputados O
da Assembleia Legislativa do Paraná durante a 14ª Legislatura (de 1999 D
a 2002). No total foram examinados 2572 projetos dos quais 1578 ti- U
nham alguma limitação geográfica10. O autor também apresentou uma Ç
classificação da base eleitoral de cada deputado11. A conclusão é que Ã
existe uma relação entre a abrangência dos projetos e a base eleitoral: O

os deputados que apresentaram mais projetos de tipo regional foram os L


que mais receberam votos concentrados em uma região. E
Outro trabalho que analisou a produção legislativa da Assembleia G
I
Legislativa do Paraná é o de França (2006). A autora examinou os pro- S
jetos de lei apresentados durante a mesma legislatura examinada por L
Cervi (2009) e os classificou quanto ao tema. Segundo os resultados da A
T
I
V
E para análise sobre as relações Executivo-Legislativo no âmbito municipal ver: A
Andrade (1998) e Caetano (2004; 2005). .
9
As Assembleias estudadas foram: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo,
Minas Gerais, Rio de Janeiro, Goiás, Mato Grosso, Bahia, Pernambuco, Ceará,
239
Tocantins e Pará.
10
Como limitação geográfica quer-se dizer projetos que atingem desde uma
macrorregião do estado a um município específico.
11
Cervi não adota nenhuma medida corrente na literatura, ao invés o autor
emprega um critério por ele elaborado. Para detalhes conferir a nota 1 do artigo
(Cervi, 2009).

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autora, os projetos dos parlamentares paranaenses têm como principal
tema as “homenagens e utilidade pública” com 49,41% (1181 PLs),
seguido pelos projetos do tipo social com 25,30% (605 PLs). França
também classificou os projetos quanto ao seu escopo, ou seja, ao im-
pacto do PL na população: 45,3% dos PLs tinham impacto individual,
seguidos pelos projetos setoriais com 26,9%. Ressalta-se, contudo, que
os projetos individuais englobam os projetos de Utilidade Pública.
Também merece destaque o conjunto de trabalhados realizados por
Tomio e Ricci (2008, 2010, 2012). Os artigos consistem em um esforço
de analisar a produção legislativa em Assembleias Legislativas a partir
de uma perspectiva comparada. Os autores tomaram como objeto os
A projetos apresentados tanto pelo Executivo como pelo Legislativo e os
classificaram quanto ao impacto do conteúdo: se estadual, municipal ou
N
O
simbólico. A conclusão de Tomio e Ricci é de que a lógica da conexão
V eleitoral não é unanime na apresentação de projetos de lei. Das onze
A Assembleias examinadas, apenas em quatro os projetos de cunho mu-
nicipal foram a maioria dos apresentados (TOMIO e RICCI, 2012).
C Todavia, quando observada a taxa de sucesso dos projetos, o valor en-
I
Ê contrado para os de cunho municipal é, em todas as Assembleias, su-
N perior aos de estadual ou simbólico, mas os autores apontam que estes
C PLs estão restritos aos de declaração de utilidade pública. O que faz
I
A os autores afirmarem que “as estratégias distributivistas e paroquialistas
disponíveis aos deputados estaduais estão restritas a projetos de utilidade
D
A
pública” (Tomio e Ricci 2008:13). Tomio e Ricci (2012:212) terminam
afirmando que cabe aos pesquisadores interessados na tese da conexão
P
O
eleitoral o exame detalhado dos projetos de utilidade pública e qual o
L papel destes na estratégia eleitoral dos parlamentares.
Í
T
Por último, cabe apresentar os poucos estudos que trataram da
I produção legislativa nos municípios. O primeiro conjunto de estu-
C
dos tem em comum o fato de terem tomado como objeto de análise a
A
Câmara Municipal de São Paulo. Quatro são os estudos que compõem
.
este grupo.
240
O primeiro consiste no relatório do projeto Excelências organizado
pela ONG Transparência Brasil (2008c). Com o objetivo de verificar a
qualidade do trabalho dos legisladores no Brasil, o projeto Excelências
buscou determinar a qualidade das proposições feitas pelos vereadores
de São Paulo. A fim de realizar este exame, a ONG realizou uma coleta
e classificação (em duas categorias: relevantes e irrelevantes) de todos

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os PLs apresentados durante o período entre 2005 e 2008. As conclu-
sões da Transparência Brasil são alarmantes no que tange à utilidade das
proposições. Segundo o estudo, 91% das proposições têm conteúdo
irrelevante12. O número se mantem elevado (77%) quando se considera
apenas o número de leis aprovadas. De acordo com a Transparência
Brasil, os principais tipos de proposições feitas dizem “respeito a ho-
menagens, fixação de datas comemorativas e outros assuntos irrelevantes”
(TRANSPARÊNCIA BRASIL, 2008c). Esta conclusão parece confir-
mar para o caso da Câmara dos Vereadores de São Paulo a interpretação
feita por Ames (2003: 179) a respeito do Congresso Brasileiro, que se-
gundo o autor “quase nunca toma iniciativa de propor leis importantes”.
Os estudos realizados por Caetano (2004; 2005) tiveram o objetivo
de testar empiricamente a assertiva corrente do senso comum de que o A
parlamento local não discute as demandas da cidade. Caetano examinou
os projetos de leis13 aprovados em dois turnos pela Câmara paulistana P
R
durante o governo Marta Suplicy (2001-2004) para testar esta proposi-
O
ção. O método empregado incluiu duas dimensões de análise: uma para
D
identificação do tema e outra para identificação da abrangência dos PLs.
U
As descobertas do autor contradisseram o senso comum e a pesquisa da Ç
Transparência Brasil (2008c). Segundo Caetano (2004; 2005), o nú- Ã
mero de homenagens e fixação de datas não atinge o patamar de 9% dos O
PLs. O autor salienta o fato de as homenagens serem feitas por meio de
L
decretos legislativos e da ausência de separação analítica entre decretos
E
legislativos e PLs causa o viés dos levantamentos. G
Os dois últimos estudos são os de Silva (2011a; 2011b), no quais I
S
o autor examina a produção legislativa em duas legislaturas da Câmara
L
Municipal de São Paulo entre os anos de 2001 e 2008. O objetivo era A
T
I
12
V
A Transparência Brasil define como irrelevante os projetos de lei que tratam de
A
“homenagens a pessoas e instituições, batismo e rebatismo de logradouros, .
símbolos (atribuição de bandeiras, brasões etc. a entes diversos), designação
de cidades-irmãs e inclusão de datas comemorativas no calendário oficial do
município.”. (TRANSPARÊNCIA BRASIL, 2008c:1). Segundo a ONG, a produção 241
legislativa dos vereadores do Rio de Janeiro e de Porto Alegre é semelhante a dos
vereadores paulistanos. Sendo que para o Rio de Janeiro 93% (TRANSPARÊNCIA
BRASIL, 2008b) dos PLs foram considerados irrelevantes e, para Porto Alegre,
88% (TRANSPARÊNCIA BRASIL, 2008a).
13
Os projetos de lei considerados por Caetano foram os projetos votados em dois
turnos na Câmara, sancionados ou não pela prefeita.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 241 07/05/2021 10:40:02


verificar se os parlamentares com padrões de voto concentrado ou do-
minante tinham uma propensão para apresentar PLs direcionados a
uma área específica do município. Os resultados do autor apontaram
para a inexistência desta associação: vereadores com voto concentrado
ou dominante não apresentam mais projetos cujos impactos são terri-
torialmente localizados. Ademais, os dados revelam que a apresentação
deste tipo de projeto é rara, sendo que dos 5383 apenas 71 são deste
tipo.
O autor também testou a conexão dos parlamentares com grupos
específicos da população. Para tanto, Silva (2011b) empregou a classi-
ficação de bancadas temáticas da Transparência Brasil (2008c) e verifi-
A cou se vereadores pertencentes a bancadas temáticas apresentaram mais
projetos para estes grupos. Foram examinadas as produções dos verea-
N
O
dores pertencentes às bancadas sindicalista e evangélica. Os resultados
V mostram que este tipo do projeto é mais frequente do que os projetos
A direcionados a regiões específicas do município.
A despeito dos resultados verificados por Caetano (2004; 2005) e
C
I
Silva (2011a; 2011b) serem semelhantes aos dos autores que empreen-
Ê deram o exame do Poder Legislativo federal, a saber, a prevalência do
N tipo social entre os projetos de lei, os resultados de Ermacovitch (2010)
C
I
e Gomes (2009) põem em dúvida a possibilidade de expandir este
A achado para outros municípios brasileiros.
D Ermacovitch (2010) examinou os projetos de lei apresentados na
A Câmara Municipal de Porto Alegre entre os anos de 200514 e 2010 e
P
os classificou seguindo a tipologia elaborada pela ONG Transparência
O Brasil (2008c). Os resultados da autora são semelhantes aos verifica-
L dos pela ONG para o caso paulistano: para os anos de 2005 a 2008,
Í
T
34% dos projetos tratavam de temas “irrelevantes”, ao passo que para
I os anos de 2009 e 2010, 52% dos projetos compreendiam esta catego-
C
ria. Ermacovitch aponta que a porcentagem de projetos “irrelevantes”
A
aumenta quando são considerados apenas os aprovados, passando para,
.
respectivamente, 75% e 73%.
242
Por sua vez, Gomes (2009) analisou a produção legislativa da
Câmara Municipal de Belo Horizonte durante os anos de 2001 a 2007
a fim de verificar se existia uma conexão entre o padrão de concentração

14
Para a legislatura de 2005 a 2008 a autora classificou apenas os projetos dos
vereadores que foram reeleitos para a legislatura subsequente.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 242 07/05/2021 10:40:02


dos votos recebidos pelos vereadores e os projetos de lei por eles apre-
sentados. No que compete aos temas dos projetos, os dados do autor
revelam a prevalência dos PLs comumente associados à alcunha de ho-
menagens: projetos de denominação e homenagem corresponderam a
24% dos apresentados, constituindo a categoria com maior magnitude
entre as empregadas pelo autor. No que concerne à preocupação prin-
cipal do estudo, a conclusão apresentada foi de que não é possível esta-
belecer uma relação entre o padrão de distribuição dos votos recebidos
e a produção legislativa, resultado semelhante ao de Silva (2011a) para
o caso do município de São Paulo.
Como apresentado, a literatura que originalmente pautou o debate
sobre o tema derivou padrões de comportamento dos legisladores a par-
tir das instituições eleitorais. Os autores que se debruçaram sobre esta
A
questão, em sua maioria, rejeitaram os argumentos desta literatura no
que diz respeito aos impactos na produção legislativa. Entretanto, dois P
pontos se destacam pela ausência nos trabalhos supracitados. O pri- R

meiro é a falta de comparações entre parlamentos. Os únicos trabalhos O


D
que realizam comparações entre Casas são os de Tomio e Ricci (2008;
U
2010; 2012). O segundo ponto é sobre a limitação em relação aos fato-
Ç
res explicativos utilizados pelos autores. Todos os trabalhos que tenta- Ã
ram explicar a produção legislativa o fizeram utilizando como variáveis O
explicativas fatores relacionados à arena eleitoral, especificamente, à
conexão entre parlamentar e o padrão geográfico dos votos por ele re- L
E
cebidos. Única exceção a esta abordagem é o trabalho de Silva (2011b)
G
em que o autor pretendeu o exame da conexão entre o parlamentar e o I
grupo social que ele representa. S
L
A
Dados e métodos T
I
Os dados empregados neste trabalho são provenientes de um es- V
A
forço de sistematização da produção legislativa no plano municipal. .
Sendo um dos objetivos deste trabalho analisar a produção legislativa
de vereadores, nesta seção são apresentados os critérios empregados para
243
a seleção da amostra e para a classificação dos projetos de lei15.

15
Nesta seção são apresentadas considerações de cunho geral sobre a coleta
e o tratamento dos dados. Mais informações sobre os procedimentos de
codificação e de coleta estão disponíveis ver Silva (2014), Capítulo 1.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 243 07/05/2021 10:40:02


Dado o elevado número de municípios brasileiros (5565) o uso
de uma amostra é inevitável. Inicialmente, optou-se por utilizar uma
amostra estratificada de municípios, porém, em razão das dificuldades
enfrentadas para compor a amostra esta primeira abordagem foi aban-
donada. A segunda estratégia empregada foi a de verificar para quais dos
municípios pertencentes às oito Regiões Metropolitanas originais16 e a
do Rio de Janeiro os dados de produção legislativa estavam disponíveis
on-line. A opção por verificar este conjunto de municípios se deu pela
expectativa de que fossem estes os municípios com maior probabili-
dade de possuírem os dados on-line. Durante este primeiro empreen-
dimento, verificou-se que algumas Câmaras empregavam a mesma
A plataforma para a disponibilização da produção legislativa, o Sistema de
Apoio ao Processo Legislativo (SAPL) disponibilizado pelo Interlegis17.
N
O
Após esta primeira averiguação, optou-se por abandonar a ideia de se
V concentrar nas RMs, uma vez que a maioria das Câmaras não possuía os
A dados on-line. Assim, os dados expostos a seguir são, majoritariamente,
provenientes das Câmaras Municipais que utilizam o SAPL18.
C
I Um problema que os dados apresentam é o da variação do número
Ê de projetos disponíveis de um ano para o outro. Isto é, em muitos dos
N
casos não estão disponíveis todos os projetos apresentados ou faltam in-
C
I formações tais como a ementa ou o nome do autor. A fim de maximizar
A o número de projetos/munícipios analisados se optou por utilizar como
D unidade de análise o município/ano e como critério para a inclusão na
A amostra a disponibilidade de, ao menos, 85% dos projetos propostos
P no ano. Nos Gráficos 1 e 2 são apresentados o número de municípios
O e o número de projetos disponíveis para cada um dos anos analisados.
L
Í
T
I
C
A 16
As oito RM originais foram criadas pela lei complementar 14 de 1973 e consistiam
. nas RMs de São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador, Curitiba,
Belém e Fortaleza.
17
244
O Interlegis é um órgão ligado ao Senado Federal responsável por capacitação
profissional dos servidores do Senado que oferece suporte as demais Casas
legislativas brasileiras.
18
Para a coleta dos dados foi utilizado o procedimento de web crawler e o software
R. No total foram coletados e classificados projetos de 27 municípios, sendo 3
capitais de estados (Aracajú-SE, Fortaleza-CE e Porto Alegre-RS), totalizando
14716 PLs.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 244 07/05/2021 10:40:02


Gráfico 1: Número de municípios por ano

25
24

21
20
15 19

12
11 11 11
10

6 6 6 6
5

P
0

2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 R
O
Fonte: Banco de Dados de Legislativos Municipais.
D
U
Ç
Gráfico 2: Número de projetos por ano
Ã
2,500

O
2331
2246
L
E
2,000

1923
G
I
1557 S
1,500

L
1226 A
1090 1116
T
1,000

971
I
865
V
719
669
A
.
500

245
0

2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011

Fonte: Banco de Dados de Legislativos Municipais.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 245 07/05/2021 10:40:02


A opção por utilizar os dados provenientes do Interlegis19 também
afeta o tipo de inferência passível de ser realizada. Dado que a amostra
não é aleatória, nem representativa dos municípios brasileiros, a análise
do conteúdo dos projetos de lei não pode ser tomada como um qua-
dro geral da produção legislativa no Brasil, mas como o mais amplo
conjunto de dados sobre a produção legislativa em municípios até o
momento. Em outras palavras, o quadro apresentado é, mesmo que
limitado, o que dispõe do maior número de informações sobre a produ-
ção legislativa nas Câmaras Municipais brasileiras.
Antes de apresentar como os PLs foram classificados, cabe destacar
que foram categorizados e analisados apenas os projetos de lei propostos
A
por vereadores (titulares ou suplentes). Ou seja, projetos apresentados
N por órgãos da Câmara (Comissões, Mesa Diretora), pelo Executivo e
O por bancadas partidárias, não fazem parte deste estudo. A opção por
V
A
esta escolha se justifica pelo objetivo de fundo da pesquisa: a relação
entre o conteúdo do projeto e características do parlamentar.
C Objetivando-se maximizar o grau de compreensão da produção le-
I
Ê gislativa, optou-se por empregar três tipos de classificações. Primeiro, os
N projetos foram classificados em relação ao seu tema principal. Nesta pri-
C meira, foram utilizadas cinco categorias: social, econômico-orçamentá-
I
A rio, homenagem-simbólico, administrativo e político-institucional.
D A despeito do amplo uso que categorizações semelhantes em tra-
A balhos sobre produção legislativa (CAETANO, 2004; FIGUEIREDO
P e LIMONGI, 1999; FRANÇA, 2006), também são utilizadas outras
O duas classificações a fim de refinar o entendimento sobre a produção
L legislativa no nível local. A primeira teve como objetivo depurar a te-
Í
T mática dos projetos de lei. Cada um dos projetos foi indexado em uma
I
C
rubrica mais específica, tal como: assistência social, tributação e incen-
A tivos, data e semanas temáticas, desporto e lazer, entre outras20. Apesar
. das adaptações necessárias em razão de especificidades da produção

246

19
Segundo servidores do Interlegis, em muitos os casos a decisão por utilizar
o SALP é do presidente da Câmara e, em alguns casos, uma mudança na
presidência da Câmara pode acarretar a desistência do uso do SAPL.
20
No total, quarenta e seis categorias foram utilizadas. Destaca-se que categorias
com menos de 10 projetos foram agrupadas na rubrica “Outros”.

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legislativa municipal, esta segunda classificação tem como origem a in-
dexação realizada pelo Senado Federal aos projetos dos senadores.21
A última categorização consistiu em separar os projetos em polí-
ticas distributivistas e não distributivistas. Os PLs foram considerados
distributivistas quando objetivavam a criação de uma política focalizada
em um grupo específico da população e atribuía a ele um benefício,
enquanto que os demais PLs foram classificados como não distribu-
tivistas. Quando considerados distributivistas, os projetos receberam
uma última rubrica que visou determinar o grupo ao qual a política era
destinada.
Na próxima seção, inicio com a apresentação dos resultados descri-
tivos da análise dos projetos de lei na amostra. Posteriormente, realizo
A
alguns testes sobre a associação entre atributos dos parlamentares e o
conteúdo dos projetos de lei apresentados. Os dados sobre as carac- P
terísticas dos parlamentares são provenientes dos bancos de dados de R

candidaturas do Tribunal Superior Eleitoral22. O


D
U
Análise e resultados Ç
Ã
Nesta seção são apresentados os resultados obtidos a partir dos da- O
dos dos 27 municípios que compõem a amostra. Primeiramente são
L
apresentados os resultados da análise descritiva dos dados para que, pos-
E
teriormente, sejam examinados os resultados do modelo de regressão G
empregado para a análise da relação entre a produção legislativa e carac- I
terísticas dos legisladores. S
L
A
O conteúdo da produção legislativa T
I
No Gráfico 3, abaixo, é exposta a distribuição dos projetos que V
compõe a amostra em cada um dos grandes temas. A
.

247

21
A lista completa de categorias utilizadas pelo Senado Federal pode ser acessada
por meio da pesquisa avançada no sítio do Senado Federal: https://www25.
senado.leg.br/web/atividade/materias (Acesso em 20/07/2019)
22
Para as especificidades sobre o tratamento dos dados de candidatura, ver:
Silva, 2014, Capítulo 1.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 247 07/05/2021 10:40:02


Gráfico 3: Número de projetos por Tema 23

8,000
6748

6,000
4,000
2,000 5960

A
1310
N
577
O
64 46 8
V
0

A SOC HON ADM ECO NA POL OUT

Fonte: Banco de Dados de Legislativos Municipais.


C
23
I
Ê
N
Observa-se a prevalência dos temas social e homenagens sobre os
C demais. Juntos estes temas correspondem a 86% da produção legislativa
I nos municípios examinados. Ressalta-se que estas duas categorias são as
A
mais frequentes em 22 dos 27 municípios da amostra. A explicação para
D este fenômeno está na quantidade de projetos de lei de declaração de
A
utilidade pública e de denominação de logradouros.
P Também é notável que o padrão verificado nos dados, o da pre-
O
valência do tipo social, seja semelhante ao encontrado para o caso do
L
Í município de São Paulo (CAETANO, 2004; SILVA, 2011b) e para o
T caso Federal (AMORIM NETO; SANTOS, 2003; FIGUEIREDO;
I
C LIMONGI, 1999), apontando que o tema mais frequente entre os par-
A lamentares (em diferentes níveis da federação) é o social.
. A partir da análise do Gráfico 4, nota-se que, entre os projetos do tipo
social, três tipos se destacam: (1) sobre comércio, trabalho e emprego,
248 (2) relativos à saúde e de (3) declaração de utilidade pública. Quanto
aos PLs sobre saúde é possível levantar a hipótese de que o volume deste

23
Projetos considerados NA são aqueles em a ementa e conteúdo do projeto não
forneceram informações suficientes para categoriza-los".

Rogério - A nova ciencia politica.indd 248 07/05/2021 10:40:02


tipo de projeto se relaciona com as atribuições dos municípios para o
funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS). A despeito do sis-
tema de saúde ser regulamentado na arena federal (ARRETCHE, 2002,
2003), cabe aos municípios a implantação e a definição de micro aspec-
tos da política24. Os projetos apresentados dispõem, em maioria, sobre
campanhas de prevenção de doenças ou de vacinações, visitas em esco-
las e a obrigatoriedade de realização de algum exame específico, como o
do pezinho. Nota-se, portanto, que mais da metade dos projetos de lei
apresentados são sobre assuntos que afetam o dia-a-dia dos munícipes,
que propõem políticas que, se aprovadas, produziriam efeitos diretos na
população. Em outras palavras, os projetos de lei no nível municipal, ao
menos dos municípios presentes na amostra não são majoritariamente
irrelevantes.
A

P
Gráfico 4: Número de projetos do tipo Social por indexação
R
Ciência, tecnologia e informatica 19 O
Defesa do consumidor (informação) 19
Trânsito (Educação e informação) 22 D
Logradouro (Excluíndo nomeação) 27
Desenvolvimento social e combate à fome 28 U
Direitos humanos e minorias 33
Assistência social 51 Ç
Animais 82
Comunicações 93
Ã
Segurança 151 O
Família, proteção a criança, adolescentes 179
Social (Outros) 219
Desporto e lazer 227 L
Arte e cultura 301
Habitação e construção 316 E
Meio ambiente 496
Educação 692
G
Transporte (inclusive a pé) e trânsito 813 I
Utilidade Pública 912
Saúde
S
933
Comércio, trabalho e emprego 1135 L
A
0 500 1,000 T
Número de projetos
I
V
Fonte: Banco de Dados de Legislativos Municipais.
A
.

Por sua vez, os projetos que tratam do comércio, trabalho e em-


prego em linhas gerais dispõem sobre a regulamentação de profissões 249
(taxistas, motoboys) e do funcionamento do comércio (horário de

24
O inciso 7 do artigo 30 da Constituição Federal de 1988 define que compete
aos municípios “prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do
Estado, serviços de atendimento à saúde da população”

Rogério - A nova ciencia politica.indd 249 07/05/2021 10:40:02


funcionamento, comercialização de produtos específicos). Ressalta-se
que se optou por fundir os três temas em uma categoria em razão das
intersecções encontradas durante a leitura das ementas dos projetos25.
Por fim, cabe realizar algumas considerações acerca das declarações
de utilidade pública. Seguindo Cervi (2009) e Tomio e Ricci (2012),
optou-se por classificar os projetos de utilidade pública como social e
não como homenagem, tal como França (2006), por estes projetos re-
presentarem mais do que isso para as associações que recebem esse tí-
tulo. As associações que recebem o título de “Utilidade Pública” passam
a ser consideradas pelo Poder Público municipal como organizações
sem fins lucrativos. Isto garante a elas a possibilidade de investimento
A de todo seu rendimento na manutenção e expansão ou em suas ativida-
des estatutárias. Ou seja, a declaração de utilidade pública significa um
N
benefício para a entidade que a recebe. Passemos agora para o exame
O
V
dos projetos de lei classificados como homenagem.
A

Gráfico 5: Número de projetos do tipo Homenagem por indexação


C
I
Ê
N Honorífico 98
C
I
A Homenagem cívica 474

D
A Denominação de próprios e eventos 493

P
O Data comemorativa e semanas temáticas 1267
L
Í
T Denominação de logradouro 3628
I
C
A
0 1,000 2,000 3,000 4,000
. Números de projetos

Fonte: Banco de Dados de Legislativos Municipais.


250

25
Por exemplo, alguns projetos determinam regimes de contratação e de
funcionamentos para tipos de comércios específicos. Produzindo, como
consequência, a intersecção entre as categorias.

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No Gráfico 5 são expostos os dados sobre os projetos de lei do tipo
“homenagem”. Observa-se que a categoria mais frequente é a de deno-
minação de logradouro, com 60% da produção total. Nesta categoria
estão inclusos tanto os projetos de denominação quanto os de redeno-
minação de logradouros. Excetuando a denominação de logradouros,
as outras duas categorias mais frequentes foram a de criação de datas
e semanas temáticas e a de denominação de próprios municipais26 e
eventos, com respectivamente 21% e 8% do total dos projetos de ho-
menagem. Antes de passar para a análise dos projetos de cunho admi-
nistrativo, cabe realizar um comentário final sobre os projetos do tipo
homenagem.
Estes são os projetos de lei que são costumeiramente considera-
dos tanto pela população, quanto por especialistas como “irrelevantes” A
e/ou “inúteis”. Contudo, como Silva (2013) argumenta, ao examinar
P
os projetos de lei que denominam logradouros no município de São
R
Paulo, ao menos os projetos que dão nome a logradouros inomina- O
dos possuem uma função social, a saber: a de atribuir um endereço D
à casa do munícipe. Silva (2013:19) aponta que em alguns municí- U
pios brasileiros, como em João Pessoa (PB), a atribuição do Código de Ç
Endereçamento Postal (CEP) só é feita após a rua receber um nome. Ã
Portanto, o munícipe só está apto a receber correspondências em sua O

casa após sua rua receber uma denominação. Assim, denominar uma L
rua (sem nome) não possui apenas o conteúdo simbólico, mas também E
social. G
I
Entre os projetos Administrativos, os apresentados com mais fre- S
quência são os que dispõem sobre os servidores públicos e os que al- L
teram ou criam órgãos da administração pública, de modo que estes A

dois grupos respondem por 36% dos projetos deste tema. Os projetos T
I
sobre servidores públicos tratam, em sua maioria, da regulamentação V
de carreiras do funcionalismo público, de aumento salarial e concessão A
.
de benefícios, por exemplo, férias e cursos de aperfeiçoamento27. Por
sua vez, os projetos sobre órgãos públicos dispõem sobre autorizações
251

26
Próprios municipais são bem que pertencem ao município. Tais como escolas e
hospitais.
27
Ressalta-se que, apesar de competência exclusiva do Executivo, os vereadores
também apresentam projetos de cunho administrativo que alteram planos de
carreira de funcionários externos ao Poder Legislativo.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 251 07/05/2021 10:40:03


para órgãos públicos realizarem determinadas atividades e a autorização
ao Executivo para a criação de conselhos, fóruns e secretárias munici-
pais. Destaca-se, também, o número de projetos pertencentes à rubrica
Administrativo (outros). Estes projetos dispõem sobre regulamentação
do atendimento em órgãos da administração pública tais como: acesso
a processos e concessão de prioridade a pessoas em condições especiais
na tramitação de processos administrativos, aprimoramentos nas repar-
tições públicas e definição de regras internas ao processo administrativo.

Gráfico 6: Número de projetos do tipo Administrativo


por indexação
A

N
O Cria ou altera cargo específico 24
V Concursos Públicos 28
A
Servidores da Câmara 31
Organização nterna da Câmara e Prefeitura 45
C Processo legislativo 46
I
Salário dos vereadores e do prefeito 48
Ê
N Alienação, desafetação e doação de patrimômino 67

C Prestação de contas da Adm. Pública 110


I Regulação do solo urbano e planos urbanos 130
A Licitação, contratos e convênios 146
Administrativo (Outros) 161
D
A Administração pública: orgãos públicos 200
Servidores públicos 274
P
O 0 100 200 300
L Número de projetos
Í
T
I Fonte: Banco de Dados de Legislativos Municipais.
C
A
.

252

Rogério - A nova ciencia politica.indd 252 07/05/2021 10:40:03


Gráfico 7: Número de projetos do tipo Econômico por indexação

Fiscalização e controle 11

Econômicos (Outros) 27

Cria Fundos ou os altera 35

Planejamento e orçamento 38

Tarifas 150

Tributação e incentivos 316


A

0 100 200 300 P


Número de projetos R
O
Fonte: Banco de Dados de Legislativos Municipais.
D
U
Ç
Ã
Gráfico 8: Número de projetos do tipo Político-
-Institucional por indexação O

L
E
G
I
Regras eleitorais 21 S
L
A
T
I
V
A
.
Disponibilização de Leis e consultas populares 25

253

0 5 10 15 20 25
Número de projetos

Fonte: Banco de Dados de Legislativos Municipais.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 253 07/05/2021 10:40:03


No que diz respeito aos projetos com tema econômico é evidente a
predominância dos que tratam de tributação e incentivos. Estes projetos
tratam de concessão de isenção fiscal para alguns grupos da população
e para empresas, além da criação de taxas municipais (por exemplo, a
taxa da coleta de lixo e a de iluminação pública). Entre os projetos clas-
sificados como tarifas estão os que concedem isenção do pagamento de
passagem de ônibus para grupos da população (deficientes, estudantes,
aposentados, entre outros) e da taxa de estacionamento rotativo (zona
azul).
Por fim, cabe apresentar os projetos do tipo político-institucional.
Como se notou no Gráfico 3, o tema político-institucional é o que pos-
A sui o menor número de proposições – o que é explicado em razão da
N regulação federal sobre esse tipo de matéria. Observando o Gráfico 8,
O nota-se que apenas um tipo destes projetos supera o crivo estabelecido
V de dez PLs para ser considerada uma rubrica autônoma: os projetos que
A
dispõem sobre regras de campanha eleitoral no município. No caso, estes
projetos dispunham sobre proibições de propaganda eleitoral nos mu-
C
I ros e outdoors nos municípios.
Ê
N
C Gráfico 9: Número de projetos focalizados por grupo beneficiado
I
A
Pop. Doente 11
D Pop. Obesa 13
Militares 16
A Entidades Religiosas 20
Jovens 26
P Professores 27
O ONGs 49
L Região Determinada do Mun. 51
Í Estudantes 74
T Doadores de Sangue 75
I Mulheres 91
C Pop. de Baixa Renda 108
Funcionários Públicos 127
A
Outros 223
. Aposentados 244
Deficientes 313

254
0 100 200 300
Número de projetos

Fonte: Banco de Dados de Legislativos Municipais.

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No que tange aos projetos considerados distributivistas, a análise
do Gráfico 9 evidencia que o grupo que recebe o maior número de pro-
jetos é o dos deficientes, seguidos pelos aposentados e os funcionários
públicos.
Os projetos que foram classificados como destinados a pessoas com
deficiência tratavam, na maioria dos casos, de concessão de prioridade
no atendimento (tanto em estabelecimentos públicos, como privados),
reserva de vagas em estacionamentos, isenção do pagamento de taxas e
obrigatoriedade de reformas para acessibilidade em estabelecimentos.
Os projetos destinados a aposentados são semelhantes aos relativos aos
deficientes. Em geral, tratava-se de PLs que dispunham sobre priori-
dade no atendimento e na tramitação de processos judiciais e na admi-
nistração pública, reservas de vagas de estacionamento e concessão de A
meia-entrada. Por fim, os projetos dedicados a funcionários públicos
P
tratavam de concessão de benefícios, tais como férias e meia-entrada, R
e de aumentos salariais. Ressalta-se que este grupo é heterogêneo, pois O
não foram separadas as diferentes categorias profissionais existentes na D
administração pública. U
Ç
Duas últimas considerações devem ser feitas antes de passarmos à
Ã
análise de fatores associados à produção legislativa. A primeira obser- O
vação é sobre a categoria “outros”. Nesta rubrica foram incluídos os
projetos destinados a grupos que tiveram menos de 10 PLs. Entre estes L
E
grupos estão: taxistas, atletas, homens, ex-presidiários e artistas locais.
G
A segunda corresponde à categoria “região delimitada do municí- I
S
pio”. Tradicionalmente, esta é a categoria que deveria receber o maior
L
número de proposições se a lógica da apresentação de projetos fosse a A
estabelecida pela literatura sobre pork barrel (AMES, 1995b, 2003). A T
hipótese desta literatura para explicar a produção de políticas no legis- I
V
lativo é a de que o parlamentar produzirá políticas para as regiões em A
que recebe votos. Os partidários desta proposição (AMES, 1995, 2003; .

PEREIRA e MUELLER, 2003) têm defendido, para o caso brasileiro,


que os incentivos do sistema eleitoral (representação proporcional com 255
lista aberta) com competição intrapartidária estimulariam o compor-
tamento individualista do parlamentar. Especialmente os parlamenta-
res com alta concentração espacial do voto que, segundo Ames (1995;
2003), seriam o típico parlamentar brasileiro (ao menos no nível fede-
ral). Porém, não é o que se observa no Gráfico 9.

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Uma possível explicação para o baixo volume de projetos deste tipo
é a do tamanho dos municípios. Municípios pequenos dificultariam a
estratégia de concentração espacial do voto dos parlamentares o que,
portanto, tornaria a distribuição de benefícios concentrados no territó-
rio uma prática de baixo retorno eleitoral. Em um primeiro momento
a análise dos dados parece confirmar esta hipótese, uma vez que dos
49 PLs deste tipo, 38 foram apresentados em capitais de estado (no-
minalmente, Fortaleza e Porto Alegre). Todavia, estes municípios estão
presentes em todos os anos da amostra. Quando considerados quantos
projetos são apresentados por ano/município, a média de apresentação
deste tipo de projeto é de 2,7 PLs para Fortaleza e de 1,1 PLs para Porto
A Alegre. Portanto, mesmo em municípios com grande densidade popu-
N
lacional a apresentação de projetos direcionados a regiões específicas do
O território é raridade.
V
Semelhante a este achado é o resultado de Silva (2011a; 2011b)
A
para o município de São Paulo (SILVA, 2011). Ao examinar a produção
C legislativa do município de São Paulo entre os anos de 2001 e 2008, o
I autor verificou que dos 5383 PLs analisados, apenas 71 foram desti-
Ê
N
nados a regiões específicas do município. Em outras palavras, apenas
C 1,3% da produção legislativa dos vereadores de São Paulo tinha como
I destinatário uma região circunscrita do município.
A

D
A Fatores associados ao conteúdo da produção legislativa
P Nesta subseção são exploradas algumas hipóteses explicativas para
O
L
os padrões de apresentação de projetos que foram verificados na seção
Í anterior. A fim de verificar a associação entre atributos dos parlamenta-
T
I
res e a produção legislativa são utilizados modelos de regressão probit.
C Todavia, antes de iniciar a apresentação e interpretação dos resultados,
A
cabe definir quais relações são testadas, uma vez que apenas algumas
.
categorias de projetos são analisadas.
O primeiro conjunto de regressões se destina à análise da relação
256
entre o tema do projeto apresentado e a ocupação declarada pelo verea-
dor ao TSE quando se candidatou ao cargo. Espera-se observar uma as-
sociação positiva entre algumas áreas de ocupação e algumas categorias
de projetos. Esta expectativa se ampara no argumento da especialização
legislativa: parlamentares carregarão para o interior do parlamento seu

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background em áreas específicas, assim determinadas áreas de ocupação
deverão se associar positivamente com alguns tipos de projetos de lei.
Três são as possíveis associações examinadas: (1) entre projetos do
tipo saúde e parlamentares com áreas de ocupação ligadas a saúde; (2)
entre projetos do tipo educação e parlamentares advindos de ocupações
ligadas à educação; e (3) entre projetos do tipo servidores públicos e
parlamentares com origem no funcionalismo público.
No Gráfico 10 são apresentados os efeitos marginais médios das va-
riáveis independentes de interesse nas chances de propor um projeto de
lei com um determinado conteúdo,28 calculados utilizando um modelo
probit.

A
Gráfico 10: Efeito marginal médio em tipo de projeto de lei
P
(1) (2) (3)
Saúde Educação Servidores R
O
Profissional da Saúde
D
U
Profissional de Educação e Cultura
Ç
Ã
Estudante O

L
Funcionário Público
E
G
Mulher I
S
L
Esquerda
A
T
0 .05 .1 -.02 0 .02 .04 .06 -.01 .005 0 .005 .01
Intervalo de confiança de 95% I
V
A
.
Os resultados apontam que apenas a relação entre vereadores ad-
vindos do funcionalismo público e a apresentação de projetos para
servidores não é estatisticamente diferente de zero. Apesar das demais 257

associações serem significantes, observa-se que os valores dos coeficientes

28
Variáveis de controle não expostas nos Gráficos 10 e 11: escolaridade e % de
votos válidos recebidos.

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são baixos. As variáveis de ocupação prévia possuem valores próximos
a 0. Se tomados como efeitos na probabilidade de apresentação de um
projeto, o efeito de ser originário de uma carreira ligada à área de saúde
seria de 0,06 na chance de apresentação de um projeto de saúde; en-
quanto para os profissionais de educação o efeito seria ainda menor, de
apenas 0,02 na chance de apresentação29 e, no caso de estudante, cerca
de 0,03.
Em relação às variáveis de controle, o fato do parlamentar ser do
sexo feminino não possui associação com a apresentação de projetos dos
temas analisados. Por sua vez, pertencer a um partido de esquerda pos-
sui uma associação negativa tanto com educação, quanto com projetos
A que tem o funcionalismo público como tema – apesar do coeficiente,
N em ambos os casos, beirar a zero.
O Também é possível questionar se existe relação entre a ocupação
V
prévia do parlamentar e a produção de políticas distributivistas para
A
estas ocupações. Três relações entre ocupações e beneficiados pelas po-
C
líticas são examinadas: (1) profissionais de educação e cultura e políti-
I cas para professores; (2) profissionais de educação e cultura e políticas
Ê
para estudantes; e (3) funcionários públicos e políticas para servidores
N
C públicos.
I Outras duas relações são examinadas. Estas relações são entre carac-
A
terísticas dos parlamentares e grupos que possuem estas características
D na população. A primeira entre parlamentares que declararam ser apo-
A
sentados e projetos para aposentados e, a segunda, entre parlamentares
P do sexo feminino e a apresentação de PLs para mulheres. A expecta-
O
tiva deste tipo de relação se ampara no argumento da representação
L
Í descritiva (BRATTON e RAY, 2002; DOVI, 2002; MANSBRIDGE,
T 1999), de que parlamentares que pertencem a um grupo da população
I
C são vis-à-vis os demais mais prováveis de representar os interesses destes
A grupos; uma vez que por ser membro do grupo, este parlamentar levará
. as demandas de seus pares para o interior do parlamento.

258

29
Considerando, em todos os casos, as demais variáveis contínuas são
consideradas na média e as categóricas na moda.

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Gráfico 11 :Efeito marginal médio em grupo beneficiado

(4) (5) (6)


Professores Estudantes Servidores

Profissional Educação e Cultura


Estudante

Funcionário Público

Aposentado

Mulher

Esquerda
-.05 0 .05 -.1 0 .1 .2 .-.1 -.05 0 .05 .1

(7) (8)
Aposentados Mulheres

Profissional Educação e Cultura

Estudante A
Funcionário Público
P
Aposentado
R
Mulher
O
Esquerda
D
-.1 0 .1 .2 0 .05 .1
Intervalo de confiança de 95% U
Ç
Ã
O
Dos cinco modelos apresentados no Gráfico 11, apenas em dois
a associação esperada é estatisticamente significante. Nominalmente, L
E
a associação é significativa e positiva para os profissionais de educa-
G
ção e cultura e a apresentação de projetos distributivistas para pro- I
fessores e entre mulheres e apresentação de projetos direcionados a S
L
mulheres – a associação entre estudantes e projetos para estudantes é
A
significante se considerado p-valor<0,10. Todavia, novamente, os coe- T
ficientes apontam que a magnitude da associação entre as variáveis I
é pequena. Enquanto profissionais de educação e cultura possuem V
A
0,03 a mais de chance de apresentar projetos para este grupo ocupa- .
cional, vereadoras possuem 0,06 a mais de chance de propor um PL
direcionado a mulheres. A associação entre o sexo do parlamentar e
259
a chance de apresentação de projetos direcionados a mulheres, a des-
peito da magnitude, aponta para a mesma direção dos resultados en-
contrados por Bratton (2002) para o caso de seis parlamentos estaduais
americanos.

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Entre as variáveis de controle, observa-se que ser mulher tem uma
associação negativa com a apresentação de projetos para professores.
Porém, a magnitude da associação é menor entre todas as que são signi-
ficativas para todos os modelos: mulheres teriam uma redução na chance
de apresentação deste tipo de projeto em 0,01. Por sua vez, a variável
esquerda é significante apenas no último dos modelos: parlamentares de
partidos de esquerda teriam 0,02 a mais de chances de apresentar um
projeto para mulheres.
Em suma, a análise da associação entre características dos parla-
mentares (ocupação e sexo) e o conteúdo das proposições revela que,
quando existente, ela é, do ponto de vista do coeficiente estimado,
A fraca. Contudo, é importante entender a dinâmica do processo legisla-
tivo para avaliar o significado substantivo deste achado.
N
O Como a literatura de estudos legislativos tem mostrado
V (FIGUEIREDO e LIMONGI, 1999), o processo de tramitação de um
A
projeto de lei iniciado pelo Poder Legislativo é lento. Por exemplo, para
o caso da Câmara dos Deputados um projeto com origem no Legislativo
C
I demora cerca de 1000 dias para ser aprovado (FIGUEIREDO e
Ê LIMONGI, 1999: 53) e de 340 dias para a Câmara Municipal de São
N Paulo (SILVA, 2010). Isso significa que ao apresentar um projeto de
C
I lei o parlamentar precisa trabalhar para sua aprovação e não apresentar
A novos projetos com conteúdo semelhante. Apresentar um novo projeto,
D
neste caso, seria uma estratégia pouco racional por parte do legislador.
A Portanto, mesmo que os encontrados sejam de baixa magnitude, eles
apontam que características dos parlamentares possuem associação com
P
O as matérias legislativas por eles iniciadas.
L
Í
T Considerações finais
I
C
A
Neste trabalho se examinou a produção legislativa no plano muni-
.
cipal tomando os projetos de lei apresentados por vereadores (titulares e
suplentes) de vinte e sete municípios brasileiros como objeto. A análise
260
revelou que o tema apresentado com maior frequência é o social, seguido
pelos de homenagem e os administrativos. Este resultado se assemelha
ao encontrado por estudos realizados sobre o plano federal (AMORIM
NETO; SANTOS, 2003; FIGUEIREDO; LIMONGI, 1999) e acom-
panham parte dos achados para o plano municipal (GOMES, 2009;
SILVA, 2011b).

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No que compete ao tema específico destes PLs, entre os projetos de
tema social as maiores categorias dizem respeito a comércio, trabalho e
emprego, seguido pelos que declaram utilidade pública. Entre os proje-
tos homenagem, o mais frequente é o de denominação de logradouros.
Já entre os projetos administrativos, os subtemas com maior número de
matérias propostas foram os sobre servidores públicos, administrativos
e sobre órgãos públicos.
Posteriormente, foram examinados fatores associados ao conteúdo
da produção legislativa. Verificou-se que a ocupação anterior do parla-
mentar tem alguma relação com as propostas apresentadas. Observou-se
que ser oriundos de ocupações ligadas à saúde e a educação está asso-
ciado a uma maior frequência de apresentação de projetos nestas áreas.
Entretanto, a magnitude dos coeficientes é pequena, o que significa que A
o comportamento de um parlamentar advindo de uma destas carreiras
P
não é tão diverso do dos demais. R
Também se analisou a relação entre o pertencimento a um grupo da O
população e a produção de políticas distributivas voltadas para o grupo D
em questão. Os resultados destes testes apontaram para a existência de U

relação entre o parlamentar ser do sexo feminino e a apresentação de Ç


Ã
projetos de lei para mulheres; também se verificou a existência de uma
O
relação entre ter como ocupação uma profissão ligada a Educação e
Cultura e a apresentação de PLs destinados a professores e de ser es- L
tudante e apresentar projetos para estudantes. Porém, novamente, os E
G
coeficientes apontam para uma pequena associação entre estas caracte- I
rísticas e o conteúdo das propostas apresentadas. S
L
Antes de encerrar cabe um apontamento sobre o argumento pre-
A
sente no senso comum (TRANSPARÊNCIA BRASIL, 2008c) e em T
parte da literatura (ERMACOVITCH, 2010) de que os parlamentares I
são produtores de leis irrelevantes. Como observado nos dados, é neces- V
A
sário ter cautela ao sustentar este tipo de argumento utilizando dados .
de apenas um município e também é preciso questionar o que é “irre-
levante”. É verdade que as homenagens são o segundo tema quando se
261
considera a frequência em que os projetos são apresentados, porém é
importante ressaltar que este tipo de matéria não possui um caráter con-
flitivo e que sua proposição (e aprovação) possui poucos custos para os
parlamentares. Portanto, estranho seria se os vereadores não apresentas-
sem projetos com esta temática, especialmente, os de denominação de

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logradouros. Sobre estes últimos, como Silva (2013) mostra, em muitos
casos a falta de denominação de um logradouro acarreta problemas para
os munícipes que vão desde a impossibilidade de possuir um CEP (limi-
tando a possibilidade de receber correspondências) a constrangimentos
de outras naturezas30.
Ademais, cerca de 60% das proposições apresentadas pelos verea-
dores dos municípios presentes na amostra versavam sobre outros temas
que não podem ser considerados como “irrelevantes”. Vereadores pro-
põem incrementos nas políticas de saúde, educação, trânsito e trans-
porte. Realizam modificações em códigos importantes do município,
como o de obras, apresentam projetos de regulamentação do solo ur-
A bano – atribuição do município na CF-1988 (art.30, inciso VIII). Ou
seja, os parlamentares no nível local possuem propostas que, quando
N
O
aprovadas, provocam modificações diretas na vida dos munícipes. Por
V conseguinte, considerar a agenda legislativa dos vereadores como “irre-
A levante” e “inútil” é desconsiderar parte significativa das políticas pro-
postas e implementadas no nível local.
C
I Por último, é importante salientar que a produção legislativa é ape-
Ê nas uma das facetas da atuação parlamentar. Legisladores podem utili-
N zar outros recursos, como tempo em plenário, para atender e responder
C
I a demandas de seus eleitores. Neste sentido, parlamentares que se iden-
A tificam como representantes de grupos específicos, como os grupos reli-
D
giosos ou categorias profissionais (por exemplo, delegados ex-membros
A das forças armadas) provavelmente pautam suas atuações no legislativo
diferente de seus colegas. A investigação empírica desta hipótese, con-
P
O tudo, foge do escopo deste capítulo.
L
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30
Para uma amostra dos constrangimentos gerados, ver: “Rua sem nome provoca
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TRANSPARÊNCIA BRASIL. Relatório da pesquisa do projeto Excelências


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P
R
O
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U
Ç
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O

L
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G
I
S
L
A
T
I
V
A
.

267

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Jaqueline Porto Zulini

Professora adjunta do Centro de Pesquisa e


Documentação de História Contemporânea
do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-
FGV). Doutora (2016) e mestre (2011) em Ciência
Política pela Universidade de São Paulo (USP).
Bacharel em Ciências Sociais (2008) pela USP.

Desde a iniciação científica, problematizo a


visão pessimista sobre o passado político do
Brasil. Na minha dissertação de mestrado,
propus um entendimento menos normativo
das relações Executivo-Legislativo durante a
República de 1946-1964, rejeitando interpretá-la
como fadada ao desfecho autoritário. Encontrei
dados que desafiavam a imagem de um suposto
predomínio de coalizões legislativas formadas
ad hoc nos anos 1946-1964. No meu doutorado,
elegi o caso da Primeira República, aquela chamada de “velha” pelos ideólogos do Estado
Novo. Sistematizei indicadores de comportamento parlamentar inéditos referentes a
1900-1930 e sobre os quais versa o capítulo que escrevi para essa coletânea, mostrando
como a visão de uma Câmara dos Deputados subordinada ao presidente da República
não tem respaldo empírico.

Atualmente sigo procurando revisitar a memória representativa brasileira valendo-me


do instrumental da Ciência Política para analisar as polêmicas pautadas pela
Historiografia mais recente sobre a política do pré-64. Daí a minha presença à frente
do Projeto HIPOL - História das Instituições Políticas (https://projetohipol.wordpress.
com/). Em 2020, fui co-autora do livro Estudos Legislativos, que traz um balanço sobre o
estado-da-arte dessa área de estudos, destacando inclusive as lacunas existentes para
o período pré-1988.

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COMPORTAMENTO LEGISLATIVO ANTES DA
DEMOCRACIA: EVIDÊNCIAS DO BRASIL NA
PRIMEIRA REPÚBLICA (1900-1930)1

Jaqueline Porto Zulini

Introdução

Causou profunda e salutar


sensação o acto sereno e
energico do Sr. presidente da
Republica, respondendo á
degolla do Sr. José Bezerra, com
a nomeação do degollado para
seu ministro da Agricultura.
(O Malho, Edição n. 670, 17/07/1915, p. 25).

A epígrafe pautava uma charge publicada na revista satírica O


Malho em 1915. Ela ironizava um episódio de tensão nas relações
Executivo-Legislativo em meados da Primeira República (1889-1930).
O termo degola não tinha sentido literal: tratava-se de uma expressão
usada na época para definir os candidatos que não conseguiam se eleger
durante o processo de verificação dos poderes. Esse processo ocorria após a
apuração das eleições e tinha o propósito de proferir um veredito final
sobre os resultados eleitorais, resolvendo eventuais recursos dos candi-
datos. Como a Justiça Eleitoral não existia, cabia às casas legislativas

1
Este texto foi elaborado a partir da minha tese de doutorado defendida no
Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo em 2016.
Agradeço aos comentários inspiradores de Paolo Ricci, Angela de Castro Gomes
e Miriam Dolhnikoff.

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cuidar da verificação dos poderes. No caso comentado pela charge, a
Câmara dos Deputados não reconheceu a eleição do candidato José
Rufino Bezerra Cavalcanti em 1915, que tinha disputado uma vaga na
casa pelo Partido Republicano de Pernambuco. A ironia ficou por conta
da forma como a charge interpretou a reação do então presidente da
República, Venceslau Brás (1914-1918), nomeando para o Ministério
da Agricultura o candidato degolado pela Câmara: uma resposta direta
do Poder Executivo ao Legislativo.
No Brasil, a ciência política tem se furtado do estudo empírico das
instituições políticas de períodos anteriores à democratização do país.
Especialmente no caso da Primeira República, o tema caiu em descré-
A
dito por causa de três interpretações clássicas interligadas. Primeiro, a
N má avaliação daquela experiência representativa, considerada uma farsa
O diante da generalização da fraude eleitoral na época (CARONE, 1972;
V
CARVALHO, 2003; FAORO, 2001; FAUSTO, 1975). Segundo, a
A
supervalorização dos efeitos da chamada política dos governadores de
C 1900 em diante, criada pelo presidente Campos Sales (1898-1902) em
I acordo com os governadores estaduais às vésperas das eleições de 31
Ê
N
de dezembro de 1899 para impedir a eleição de oposições na Câmara
C dos Deputados (CARDOSO, 1975; FAORO, 2001; FAUSTO, 1975;
I LESSA, 1988; LYNCH, 2014; SOUZA, 1973). Inclusive, supondo o
A
recurso à degola das oposições como uma peça central na engrenagem
D dessa política (ASSIS BRASIL, 1990; CARONE, 1972; CARVALHO,
A
2005; FAUSTO, 2003). Terceiro, a ideia de que a política dos governa-
P dores resultou na posse de bancadas estaduais unipartidárias na Câmara
O
até 1930 e fez da arena legislativa mera formalidade, onde os depu-
L
Í tados apareciam apenas para referendar os acordos políticos pré-esta-
T belecidos entre o presidente da República e os governadores estaduais
I
C (CARDOSO, 1975; FAORO, 2001; FAUSTO, 1975; HOLLANDA,
A 2008; LESSA, 1988; LYNCH, 2014).
.
Partiu da historiografia uma revisão dessas interpretações clássicas
sobre a política republicana (FERREIRA; PINTO, 2017). Ficou evi-
270
dente que a memória do período foi escrita pelos ideólogos do Estado
Novo, interessados em desconstruir o passado representativo do Brasil
para elevar a bandeira do autoritarismo como intervenção necessária
à restauração da boa política (GOMES; ABREU, 2009). Estudos de
caso revelaram, de um lado, a permanência de grupos políticos rivais

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no pós-1900 disputando as eleições no Distrito Federal (FREIRE,
2000; PINTO, 2011; VENEU, 1987) e no estado do Rio de Janeiro
(FERREIRA, 1994) e, de outro, flutuações no comportamento legis-
lativo dos representantes do Distrito Federal (PINTO, 2006). Os es-
forços inspiraram uma revisita empiricamente orientada à dinâmica
político-eleitoral da Primeira República e o levantamento de dados para
todo o país, que revelaram um quadro mais complexo do predito pelas
interpretações clássicas. Embora trabalho recente tenha confirmado o
sucesso da política dos governadores em tornar unipartidárias a maioria
das bancadas estaduais empossadas na Câmara dos Deputados (RICCI; C
ZULINI, no prelo), outras pesquisas mostraram a existência de compe- O
tição política nas eleições dos deputados no pós-1900 (GOMES, 2019; M
RICCI; ZULINI, 2014) e o caráter atípico da degola das oposições na P
Câmara (RICCI; ZULINI, 2012; 2013). A redescoberta de dados sobre O
R
o período tem estimulado uma reinterpretação da fraude eleitoral, que
T
passou a ser entendida como um indicador do nível de disputa política A
na época (RICCI; ZULINI, 2014). De um ponto de vista teórico, co- M
meça a se relativizar a estabilidade institucional da política dos governa- E
dores (VISCARDI, 2016). N
T
Entretanto, faltam análises sobre as relações Executivo-Legislativo
O
após a criação da política dos governadores. O objetivo desse capítulo
é encarar essa lacuna a partir da perspectiva dos estudos legislativos. A L
primeira seção mapeia, através do levantamento das votações nominais E
G
realizadas na época, os principais tópicos que criaram tensões entre os I
poderes Executivo e Legislativo. Destacam-se os reconhecimentos dos S
poderes dos eleitos e os vetos presidenciais, que perduram nessa posi- L
A
ção ao longo de sucessivas legislaturas e são aprofundados nas sessões
T
seguintes. O estudo desses casos revela que a Câmara dos Deputados I
desempenhava um papel crucial para solucionar situações críticas e V
manter a política dos governadores ativa no pós-1900. O
.

Relações Executivo-Legislativo na Primeira República 271


(1894-1930)
Durante a Primeira República, as eleições para cargos executivos
não eram casadas com as eleições para os cargos legislativos. A lite-
ratura sobre o período aponta que esse aspecto motivou a criação da

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política dos governadores. Segundo a versão clássica, o então presidente
Campos Sales, eleito para um mandato de quatro anos, de 1898 a 1902,
enfrentava dificuldades para governar com os deputados eleitos para
um mandato de três anos, de 1897 a 1899. Os trabalhos legislativos
encontravam-se reféns das disputas criadas entre os deputados que es-
tavam divididos em duas facções opostas após o racha do único partido
nacional da época, o Partido Republicano Federal (PRF). Um racha
forçado pelo presidente Prudente de Morais (1894-1898) para reassu-
mir o controle do Legislativo (BACKES, 2006; GUANABARA, 2002;
VISCARDI, 2012). Eleito graças ao PRF, Prudente inicialmente deixou
a tarefa de articular maiorias no Congresso sob a responsabilidade do
A
líder do partido, Francisco Glicério. Porém, a aproximação de Glicério
N com a corrente florianista crescente dentro do PRF passou a ameaçar a
O
presidência da República. Na tentativa de isolar o comando florianista
V
A da legenda, Prudente articulou a apresentação de uma moção de soli-
dariedade do parlamento à pronta repressão autorizada pela presidência
C contra um ato de insurgência dos alunos da Escola Militar (BACKES
I
Ê 2006; BELLO, 1952; FAORO; 2001). A manobra era duplamente
N ofensiva para os florianistas. Primeiro porque a Escola Militar tinha for-
C mado a maior parte dos deputados que eram militares e seus alunos par-
I
A ticiparam das várias mobilizações em defesa da República. Em segundo
D
lugar, porque a moção foi protocolada por José Joaquim Seabra, “um
A parlamentar recém anistiado por tomar parte na revolta da Armada”
P
(BACKES, 2006, p. 92). Diante dessa situação a cúpula do PRF preci-
O sou escolher entre apoiar o requerimento assinado por um dos maiores
L adversários do regime e que condenava as ações de um espaço de defesa
Í
T dos valores republicanos ou rejeitá-lo, mostrando seu desacordo com
I
C
os atos da presidência. A decisão foi “reafirmar compromisso com o se-
A tor florianista do exército” (BACKES, 2006, p. 92). Glicério conseguiu
. maioria para rejeitar o requerimento, alvo de votação nominal, por 85
votos contra 59.2 O presidente da Câmara, Artur Rios, renuncia no dia
272 seguinte em solidariedade a Prudente. Renúncia igualmente consentida
em votação nominal, por 77 votos contra 70.3 Então ocorre a eleição

2
Cf. ACD, v. I, 28/05/1897, pp. 452-453.
3
Cf. ACD, v. I, 29/05/1897, pp. 469-470).

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para preenchimento da vaga aberta na presidência da Câmara e Glicério
enfrenta Artur Rios, que vence por 88 votos contra 76, invertendo o jo-
go.4 O efeito imediato é a divisão dos membros do PRF em dois grupos
opostos. De um lado, aqueles que se identificam com Floriano e passam
a se autodenominar “concentrados”. De outro, os alinhados a Prudente
e que se auto-intitularam “republicanos”. Campos Sales vota com esta
segunda facção, Glicério fica do lado dos concentrados e os moderados
do PRF se dividem (BACKES, 2006).
Temeroso da permanência desse racha poder atropelar o seu go-
C
verno, Campos Sales teria se antecipado e firmado um acordo com os
O
governadores estaduais para impedir que as eleições de 31 de dezem-
M
bro de 1899 permitissem a continuidade de representantes de facções
P
opostas na legislatura de 1900-1903. O presidente se comprometeu em O
não intervir nos negócios dos estados contanto que os governadores R
estaduais assegurassem a eleição de deputados sobre os quais tivessem T
A
controle. A expectativa por trás do acordo era a de que os governa-
M
dores conseguiriam condicionar o comportamento dos seus deputados
E
na Câmara, assegurando o apoio legislativo necessário para Campos N
Sales aprovar políticas nacionais (BACKES, 2006; BEIGUELMAN, T
1973; CARDOSO, 1975; CARVALHO, 1997; FAORO, 2001; O
FAUSTO, 1975; LEAL, 1997; LESSA; 1988; LYNCH, 2014;
L
SOUZA, 1973). Credita-se a essa política dos governadores a estabili- E
zação das relações Executivo-Legislativo até 1930 (CARDOSO, 1975; G
I
FAORO, 2001; FAUSTO, 1975; HOLLANDA, 2008; LESSA, 1988;
S
LYNCH, 2014). L
Essa tese ainda não foi testada à luz dos estudos legislativos con- A
T
temporâneos, que tradicionalmente consideram as votações nominais I
como indicador das questões conflituosas entre os poderes Executivo- V

Legislativo. Trata-se daquelas votações que registram o voto dado por O


.
cada legislador, individualmente, tanto no momento da votação para
efeito de apuração do resultado quanto para a posteridade, com a publi-
273
cação desse voto na ata da sessão legislativa. Os pesquisadores afirmam
que a exposição causada pelas votações nominais aumenta o custo da

4
Francisco de Sá também recebeu 1 voto e houve outro em branco (cf. ACD, v. II,
03/06/1897, p. 71).

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tomada de decisão em comparação às outras modalidades de votação
(COX, 1987; COX; MCCUBBINS, 1993).5
Partindo dessa premissa sobre as votações nominais funcionarem
como bom instrumento de captação de potenciais questões conflituosas
entre os poderes, mapeei as votações nominais ocorridas na Câmara
durante a Primeira República. O levantamento se baseou na pesquisa
da íntegra das atas das sessões legislativas publicadas nos Anais da
Câmara dos Deputados (ACD). Entre 1894 e 1930, ocorreram 478
votações nominais. O gráfico 1 expõe a distribuição das observações por
legislatura.
O gráfico mostra que 80,5% (385) das votações nominais se con-
A
centraram no pós-1900, isto é, após a criação da política dos governado-
N res. A análise da distribuição das votações nominais e do conteúdo delas
O revela episódios de conflito ou negociação entre os poderes Executivo
V
e Legislativo. Antes da criação da política dos governadores, o maior
A
pico de concentração das votações nominais ocorreu na legislatura de
C
1897-1899, exatamente aquele período marcado pelo racha do PRF
I que motivou Campos Sales a criar a política dos governadores. A radi-
Ê
calização política dentro da Câmara dos Deputados e as tensões com o
N
C governo foram bem detalhadas por Backes (2006). Depois da criação
I da política dos governadores, a outra fase que mais concentrou votações
A
nominais abrange as legislaturas iniciadas em 1918, 1921 e 1924. O
D gráfico 2 apresenta a proporção de votações nominais efetuadas em cada
A legislatura por temas.
P
O
L
Í
T
I
C
5
A A tomada de decisão no interior das casas legislativas também pode acontecer
em votações secretas e em votações simbólicas. Em votações secretas, o voto
.
de cada legislador é tomado de forma anônima, sem qualquer identificação
individual. Até antes da possibilidade aberta pela invenção do painel eletrônico
274 de contabilizar votos automaticamente sem identificar as preferencias
individuais dos deputados, a votação secreta ocorria na Câmara com o depósito
de cédulas não identificadas dentro de uma urna para posterior apuração. Nas
votações simbólicas, o presidente da mesa diretora coloca uma pauta em
votação e decide o resultado da eleição a partir da leitura visual do conjunto das
reações dos legisladores, que ficam sentados caso queiram aprovar a matéria
ou se levantam caso prefiram rejeitar a pauta.

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Gráfico 1: Distribuição das votações nominais realizadas na Câmara
dos Deputados, por legislaturas (1894-1930)

100

80 77
67
64
60 58

44
40
35 32
30 30
20 18 C
16
7 O
0 M
96

99

05

08

11

14

17

20

23

26

29
02

P
-19

-19
-19

-19

-19
-19
-19
-18
-18

-19

-19
-19

15
09

12

27
24
18

21
97

06
03
94

00

19

19

19
O

19

19

19
19
18

19
19
18

19

R
Fonte: Elaboração própria a partir da consulta aos ACD (1894-1930). T
A
M
Gráfico 2: Pauta das votações nominais realizadas na Câmara dos E
Deputados, por legislaturas (1894-1930) N
T
60
O

50 - - .. L
.. ..-..-..
- .- ..- .. ..
E
40 G
.. -..-..-..- -

I
- - ..- .. .

30 S
L
- - ..- .. ..

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..

10 I
-..-..- -

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.
02

05

08

11

14

17

20

23

26
99

29
96

-19

-19
-19

-19

-19

-19
-18

-19

-19
-19

-19
-18

09

15
12

21

24

27
97

00

18
03
94

06

19
19

19
19

19
19
19
18
18

19

19
19

275
Verificação de poderes Veto presidencial

-..-.. Proposta de emenda constituicional Outros

Fonte: Elaboração própria a partir da consulta aos ACD (1894-1930).

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O assunto que pautou quase um terço de todas as votações nomi-
nais ocorridas na Primeira República diz respeito à apreciação de vetos
presidenciais e teve maior incidência nos anos 1920. Não se pode des-
considerar esse dado. Estudos legislativos tradicionalmente interpretam
o veto presidencial às leis aprovadas como um indicativo do conflito
entre os poderes Executivo-Legislativo (CAMERON, 2000; 2009;
GROHMANN, 2003; MOYA, 2005). O mais interessante no caso do
Brasil na Primeira República é que a Constituição Federal de 1891 (art.
37, § 3º) estabelecia votação nominal quando a Câmara precisava deci-
dir pela manutenção ou derrubada do veto presidencial.6 Isso permite
medir o conflito não apenas em número de vetos, mas também o re-
A sultado das votações nominais. As outras duas questões que aliadas aos
N vetos presidenciais representaram quase 60% (58,8%) das 478 votações
O nominais realizadas na Câmara se referiram ao processo de verificação
V de poderes e às emendas constitucionais. Ambos dados surpreendentes
A
considerando-se a tese clássica dos efeitos perenes da política dos gover-
C
nadores até 1930. Concentradas na legislatura 1924-1926, as votações
I de emendas constitucionais dizem respeito à única reforma constitu-
Ê
cional levada a cabo durante a Primeira República e que adotou esse
N
C procedimento de deliberação compulsório. As próximas sessões filtram
I o exame das relações Executivo-Legislativo a partir do estudo da verifi-
A
cação dos poderes e dos vetos presidenciais, ambos dispersos no decurso
D do regime.
A

P
O A Câmara e o processo de verificação dos poderes
L
Í A responsabilidade da Câmara pelo processo de verificação de po-
T
I
deres dos deputados se fundamentava na teoria da separação dos po-
C deres de Montesquieu. Na maior parte dos regimes representativos da
A época, a prerrogativa de proferir o veredicto final sobre as eleições ca-
. bia ao Poder Legislativo para salvaguardar a sua autonomia. Sobretudo
diante do advento das monarquias constitucionais, predominava o
276
entendimento de que a medida impediria a potencial atomização das
casas representativas pelo Poder Executivo. Entretanto, a centralidade
da verificação dos poderes na rotina legislativa da Primeira República

6
Atualmente os vetos presidenciais são deliberados por votação secreta.

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foi ofuscada pela interpretação clássica que tende a reduzir o funciona-
mento do sistema representativo da época à farsa eleitoral (CARONE,
1972; CARVALHO, 2003; FAORO, 2001; FAUSTO, 1975). Até os
estudos que resgataram os dados sobre as degolas na Câmara (RICCI;
ZULINI, 2012; 2013) focaram somente no resultado do processo, sem
acompanhar o trâmite das decisões.
O processo de reconhecimento dos poderes dos deputados era dis-
ciplinado pelo próprio regimento interno da Câmara (RICD) e tinha
três etapas básicas. A primeira delas começava com a definição de quem
ocuparia o cargo de presidente provisório dos trabalhos legislativos, já C

que naquele momento inicial do processo de reconhecimento dos po- O


M
deres não existia, por definição, um plenário legalmente constituído.
P
Antes da criação da política dos governadores, essa posição cabia ao can-
O
didato mais idoso dentre os eleitos (RICD 1891, art. 1o). Um critério R
de ocupação aleatório, que dificultava projeções sobre quem se tornaria T
presidente provisório e tocaria a verificação dos poderes na Câmara. A
Tanto políticos contemporâneos como intérpretes posteriores apontam M

que Campos Sales articulou com o deputado Augusto Montenegro E


N
uma reforma regimental aprovada às vésperas das eleições legislativas de
T
1899 que promoveu duas mudanças no processo dos reconhecimentos O
para colocar a política dos governadores de pé. Uma das mudanças tor-
nava justamente o critério de idade secundário para induzir a passagem L
E
do posto de presidente provisório às mãos do governo (CARDOSO,
G
1975; GUANABARA, 2002; LEAL, 1997; SALES, 1983). Conhecida I
como guilhotina Montenegro, a reforma passou a dar preferência no S
L
provimento da posição ao político que tivesse sido presidente da mesa
A
diretora da Câmara na legislatura anterior. Apenas na hipótese da sua T
não reeleição o critério etário se manteria como regra de escolha do I
presidente provisório. Tratava-se de uma manobra política estratégica V
O
na medida em que Campos Sales previa a reeleição do deputado Vaz de .
Melo, então presidente da Câmara dos Deputados e aliado do governo.
Essa preocupação com a delimitação do político que ocuparia a 277
presidência provisória da Câmara se ligava à importância que o cargo
representava para o andamento da segunda e da terceira etapas do pro-
cesso de verificação dos poderes. O presidente provisório encabeçava o
processo dos reconhecimentos, tomando decisões-chave para o rumo
dos trabalhos que se pronunciariam sobre os resultados eleitorais em

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última instância. Na época, os resultados eleitorais eram totalizados em
cada estado por uma Junta Apuradora, que encaminhava à Câmara a
ata final dos seus trabalhos discriminando a votação dos candidatos e
cuja cópia servia como diploma eleitoral para eles pleitearem o reconhe-
cimento dos seus poderes.7 Cabia ao presidente provisório nomear uma
comissão de cinco membros (a Comissão dos Cinco) encarregada de ana-
lisar os diplomas eleitorais apresentados à Câmara e relacionar aqueles
que julgava revestidos das condições legais, aparentemente legítimos.
A Comissão dos Cinco precisava indicar no chamado Parecer n. 1
o nome dos candidatos referendados na classificação e o documento
acabava consistindo sempre no primeiro do gênero divulgado na sessão
A preparatória. Para ter validade, a lista precisava da aprovação do plenário
N e, como também ele não se encontrava constituído, o regimento deter-
O minava que os candidatos citados no parecer agissem enquanto plenário
V provisório. Portanto, as regras estimulavam o auto-reconhecimento ao
A
estender somente aos candidatos constantes do Parecer n. 1 o direito de
tomar parte das deliberações daquele papel que os abonava na prática.
C
I Uma forma de alcançar quórum mínimo para levar adiante os trabalhos
Ê de verificação de poderes e observada em outros países. Então podia
N
ter início a segunda fase do processo de reconhecimentos, quando se
C
I sorteava dentre os integrantes do plenário provisório os componentes
A das Comissões de Inquérito, responsáveis pela conferência dos diplomas e
D contestações eleitorais.
A Cada comissão de Inquérito ficava incumbida de analisar os pa-
P péis de alguns estados e depois se pronunciar a respeito dos nomes que
O recomendava a posse, podendo discordar tanto da opinião das Juntas
L
Í
Apuradoras responsáveis pela totalização dos resultados nos estados
T quanto da Comissão dos Cinco.8 Também existia possibilidade de ocor-
I
C
rer dissenso no interior de uma Comissão de Inquérito e a posição mi-
A noritária oferecer voto em separado pleiteando decisão alternativa assim
. como os candidatos componentes do plenário provisório contavam com

278
7
Para detalhes sobre as etapas do processo eleitoral na Primeira República, ver
Ricci e Zulini (2014).
8
O reconhecimento dos poderes acontecia após o processo eleitoral estar
encerrado e tinha a responsabilidade de pronunciar um juízo final sobre as
eleições, verificando a legalidade dos candidatos considerados diplomados
pelas instâncias inferiores. (RICCI; ZULINI, 2014).

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a chance de sugerir emendas às conclusões desses pareceres. A terceira
e última etapa dos reconhecimentos englobava justamente a votação
de todos os pareceres das Comissões de Inquérito e possíveis votos em
separado ou emendas. Encerradas as votações, se chegava à constituição
do plenário definitivo.
Como o diploma eleitoral era o critério formal para se identificar
preliminarmente quem integraria o plenário provisório, a outra mu-
dança feita pela guilhotina Montenegro em prol da execução da política
dos governadores focou a definição de diploma. Até então, considerava-
-se diploma eleitoral a cópia autêntica da ata de apuração geral assi- C
nada por todos os membros da Junta Apuradora que tivessem comparecido O

à sua elaboração (RICD 1891, art. 2o). Isso se tornava um problema M

justamente quando os membros da Junta não chegavam a um acordo P


O
e se dividiam em dois ou até três subgrupos, que elaboravam atas de
R
apuração por conta própria e encaminhavam, assim, duas ou três listas T
concorrentes de candidatos diplomados à Câmara. Tratava-se das cha- A
madas duplicatas ou triplicatas eleitorais, que criavam a possibilidade de M
candidatos de oposição tentarem o reconhecimento e levavam a disputa E
até o nível federal. A saída para o problema encontrada por Campos N

Sales em conúbio com o deputado Montenegro consistiu em especificar T


O
melhor o que se deveria entender como diploma eleitoral. A reforma
regimental maquinada por eles passou a descrever por diploma legítimo L
o documento expedido pela maioria dos membros da Junta. Basicamente, E
G
a determinação buscava favorecer a eleição dos candidatos mais consen-
I
suais no âmbito estadual e vincular a decisão da Comissão dos Cinco a S
essa preferência majoritária. Assim, entregava-se o arbítrio das corridas L
eleitorais aos estados para minimizar a influência do processo de verifi- A
T
cação dos poderes na definição dos eleitos. I
A literatura assumiu que os efeitos das duas medidas da guilhotina V
O
Montenegro foram automáticos e perenes, consolidando a política dos .
governadores (CARDOSO, 1975; FAORO, 2001; FAUSTO, 1975;
LESSA, 1988). Um diagnóstico baseado em memórias de políticos da
279
época, sem levar em conta o que se passou nos processos de reconheci-
mento dos poderes não mencionados por elas.
O gráfico 3 apresenta as deliberações nominais sobre os reconhe-
cimentos de poderes na Câmara ocorridas entre 1894 e 1930 por le-
gislatura. Elas também estão diferenciadas pelos seus resultados, isto é,

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se foram votações inválidas, válidas e unânimes ou válidas e divididas.
Essa classificação segue o padrão dos estudos legislativos de considerar
válidas aquelas votações que atingiram o quórum e como unânime a
votação onde menos de 10% dos votos divergiu da posição vitoriosa.

Gráfico 3: Resultados das votações nominais realizadas na


Câmara dos Deputados para efeito de reconhecimento de
poderes, por legislaturas (1894-1930)

20

15
A

N 10
O
V 5
A
0
05
96

17
08

20
*

C
02

23
99

11

29
26
14
-19

-19

-19
-18

-18

-19

-19
-19

-19
-19

-19
-19
I
09

15

21
97
94

12

18
03
00

06

27
24
19

19
19
19
18

19
18

19
Ê
19

19
19
19

N Inválidas Válidas e unânimes Válidas e divididas


C
I
A
Fonte: Elaboração própria a partir da consulta aos ACD (1894-1930).
D
A

P
Dentre as 95 deliberações nominais para efeito de reconhecimento
O dos poderes, 49 (51,6%) delas encerram resultados válidos e divididos,
L 34 (35,8%) atingiram o quórum e também a unanimidade e 12 (12,6%)
Í
T revelaram-se inválidas. A distribuição temporal dos diferentes tipos
I de resultados apresenta um quadro surpreendente. Antes da reforma
C
A
Campos Sales, decisões dessa monta já dividiam o plenário da Câmara
.
e a política dos governadores não encerrou as divergências definitiva-
mente. O pico dessas deliberações na legislatura de 1900-1902 pode ser
280
interpretado como produto das negociações políticas envolvidas para
reacomodar as elites apadrinhadas pelos governadores sob o pacto oli-
gárquico recém-criado. Não acabou ali, porém, a negociação dos reco-
nhecimentos. À exceção da legislatura de 1906-1908, quando nenhuma
deliberação nominal versou sobre a temática das verificações de poderes,
houve continuidade das votações nominais inválidas ou divididas em

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legislaturas subsequentes. Até a legislatura de 1903-1905, o padrão das
deliberações nominais centradas em matéria de verificação de poderes
consistiu em decisões divididas. Principia com a legislatura iniciada em
1912 uma guinada que torna predominantes as votações nominais váli-
das e unânimes. A legislatura de 1921-1923 desponta como a única da
década de 1920 com mais decisões divididas de verificações de poderes.
Estudos recentes revelaram que as eleições para compor as legisla-
turas de 1900-1902, 1912-1914 e 1915-1917 foram as mais críticas
da Primeira República. Não somente por causa do volume de degolas
eleitorais observado como também em termos da quantidade de recur- C
sos eleitorais perpetrados pelos candidatos a deputado declarados der- O
rotados pelas Juntas Apuradoras e que buscavam reconhecimento dos M
poderes na Câmara (RICCI; ZULINI, 2012; 2013).9 A questão aberta P

pelo quadro capturado nas votações nominais é o motivo de se precisar O


R
tomar decisões sobre os reconhecimentos através do método de delibe-
T
ração mais custoso mesmo após a criação da política dos governadores. A
Para compreender esse ponto torna-se necessário sistematizar como M
tramitaram os reconhecimentos dos poderes para a composição das onze E
legislaturas empossadas na Câmara entre 1900 e 1930. Na Primeira N

República, o distrito eleitoral não correspondia ao estado no caso dos T


O
estados mais populosos, subdivididos em mais de um distrito. Durante
as primeiras eleições federais da época, o Brasil se dividia em 63 distri- L
tos. Com a aprovação da reforma eleitoral conhecida como Lei Rosa e E

Silva, em novembro de 1904, esse número diminuiu para 41 distritos, G


I
que ficou valendo até o fim do regime. Como o processo de verifica- S
ção de poderes previsto no regimento interno da Câmara exigia que as L
Comissões de Inquérito se pronunciassem sobre todas as eleições, o es- A
T
perado era encontrar 63 pareceres em 1900 e 1903 e, dali em diante, 41
I
pareceres a cada ano eleitoral. Pela lógica, valores superiores indicariam V
O
.
9
O nome técnico usado para designar os recursos eleitorais apresentados
durante o processo dos reconhecimentos na Câmara pelos candidatos a
deputado derrotados era contestação eleitoral. A legislação da época previa a 281
apresentação das contestações durante o processo do reconhecimento dos
poderes para dar oportunidade de defesa aos candidatos que se sentissem
prejudicados por fraudes ou irregularidades na corrida eleitoral. Os candidatos
contestantes geralmente contestavam os seus competidores (os contestados)
na tentativa de reverter os resultados eleitorais e conseguirem se eleger. Para
detalhes sobre o teor das contestações, ver Ricci e Zulini (2017).

Rogério - A nova ciencia politica.indd 281 07/05/2021 10:40:05


eleições problemáticas. De forma semelhante, se os governadores as-
segurassem a concessão de diplomas eleitorais apenas aos candidatos
que apadrinhassem e o presidente provisório da Câmara montasse a
dedo a Comissão dos Cinco nomeando aliados para fazer valer a polí-
tica dos governadores, não haveria motivo para a apresentação de votos
em separado nem emendas de plenário. O oferecimento de votos em
separado e emendas sinalizaria, ao contrário, que o plenário provisó-
rio pretendia atuar no processo de reconhecimento dos poderes e não
apenas deferir todas as candidaturas apadrinhadas pelos governadores e
supostamente englobadas no corpo do Parecer n. 1 pela Comissão dos
Cinco em respeito à política dos governadores.
A A tabela 1 resume o trâmite do processo de reconhecimento dos
N poderes na Câmara entre 1900 e 1930 confrontando o número de dis-
O tritos eleitorais cujas eleições deveriam ser analisadas com o número de
V pareceres redigidos pelas Comissões de Inquérito, os votos em separado
A
oferecidos pelas visões minoritárias surgidas nessas comissões e as emen-
das de plenário.
C
I
Ê
N Tabela 1: Número de pareceres de reconhecimento de deputados,
C votos em separado e emendas (1900-1930)
I
A Distritos Votos em
Ano Pareceres (n)* Emendas (n)
eleitorais (n) separado (n)
D
1900 63 69 11 9
A
1903 63 78 4 6
P
1906 41 48 2 5
O
L 1909 41 46 2 15
Í 1912 41 55 6 48
T
I 1915 41 73 6 26
C 1918 41 42 4 6
A
1921 41 41 6 13
.
1924 41 49 1 5

1927 41 41 1 6
282
1930 41 41 0 17

Total 495 583 43 156

*Exclui o Parecer n. 1 preparado sempre pela Comissão dos Cinco.


Fonte: Elaboração própria a partir de consulta aos ACD (1900-1930).

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Os números mostram que em pelo menos metade das eleições, as
Comissões de Inquérito tiveram bastante trabalho para apontar quais
os candidatos deveriam tomar posse. Isto se depreende tanto pela quan-
tidade de pareceres como de votos em separado. Concentradas espe-
cialmente em 1912 e 1915 (47,4%), as emendas também sugerem a
resistência dos integrantes do plenário provisório em colaborar com o
governo assentindo automaticamente a posição que fosse colocada à
votação.
Algumas mudanças regimentais que impactaram a forma de votação
dos reconhecimentos na Câmara no pós-1900 nasceram justamente de C
reações diretas a essas eleições mais críticas, que estenderam as disputas O
políticas até o processo de verificação de poderes. A primeira mudança M
aconteceu em 1913 e tornou compulsória a votação nominal de todo P
parecer com voto em separado ou emenda oferecida pelo plenário.10 O
Essa alteração foi proposta por Carlos Peixoto Filho e Josino Araújo, R
deputados da bancada do estado de Minas Gerais na Câmara, logo após T
o fim da conturbada verificação de poderes de 1912.11 A reforma ficou A

conhecida como reforma Carlos Peixoto e também impediu o ofereci- M

mento de emendas modificando as conclusões dos pareceres. Tratava-se E


N
de uma determinação para evitar manobras de última hora alterando
T
a parte indicativa do nome do candidato reconhecido na verificação
O
de poderes. Em 1921, outra reforma regimental tornou compulsória
a votação nominal de todo voto em separado proveniente de posição L
minoritária dentro da Comissão de Inquérito, pois esse voto virava, na E
G
prática, um novo parecer. Essas medidas evidenciam o nível de con-
I
flito que marcou a formação de legislaturas mesmo após a criação do S
pacto Campos Sales. Em situações-limite onde a política dos governa- L
dores corria perigo de ser rompida, o plenário provisório funcionava A
T
como espaço de negociação para resolver os conflitos sem dissolver por I
completo os acordos que fechavam o mercado eleitoral às oposições. V
O melhor exemplo dessa constatação encontra-se nos debates acir- O
.
rados que tomaram o reconhecimento dos poderes durante o estudo
das eleições do primeiro distrito do Distrito Federal em 1915. Um caso
283

10
A aprovação da reforma aconteceu na sessão de 3 de outubro de 1913 (Cf. ACD,
v. VII, 03/10/1913, pp. 387-389). Para ver a íntegra dos três regimentos editados
na Câmara dos Deputados durante a Primeira República, ver Pacheco e Ricci
(2016).
11
ACD, v. IV, 13/06/1912, p. 293.

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tumultuado porque a Junta Apuradora acabou se cindindo, gerando
a duplicata de diplomas. O plenário decidiu destituir a Comissão de
Inquérito originalmente encarregada de estudar a situação porque o
relator excedeu o prazo para emitir parecer, embora o texto tivesse en-
trado à agenda de discussão do plenário provisório – inclusive, com duas
emendas atreladas.12 Novos membros passaram a integrar a Comissão
de Inquérito para avaliar os papéis eleitorais e redigiram outro pare-
cer, alvo de um voto em separado e seis emendas diferentes.13 Líder da
maioria àquele tempo, o deputado Antonio Carlos endossava o pri-
meiro parecer, mas decidiu deixar os seus correligionários livres para
votarem segundo a própria consciência:
A
deante da divergencia com que os meus colegas estão apreciando o
N pleito que vamos julgar, eu sinto que a attitude que me cabe assumir
O é a de que não ter a pretenção de encaminhar o voto da Camara, no
V sentido de qualquer das formulas propostas, mas, sim, a de dizer aos
A meus collegas que cada qual deverá pronunciar-se no caso conforme
mais acertado parecer ao seu esclarecido criterio embora mantenha
C eu, zelando minha coherencia, o voto que já proferi favoravel ao
I primeiro parecer.
Ê
(ACD, v. VI, 21/06/1915, p. 500).
N
C
I Maurício de Lacerda e Pedro Moacyr, ambos deputados pelo Rio de
A Janeiro, denunciaram que essa declaração representava, antes, a fraqueza
D do líder da maioria para controlar os rumos da deliberação. Maurício de
A Lacerda ironizou: “Então V. Ex., quando a Camara se divide em duas
P
grandes correntes, deixa de ser leader, não encaminha nada?”14 Lacerda
O insinuava a debilidade de Antonio Carlos diante de uma corrente con-
L trária forte na Câmara, capitaneada por outro líder:
Í
T
I emquanto ha uma declaração publica, formal, responsável do leader
C que, nesta Camara, é o guia politico nas votações, declaração de
A que uma questão é aberta, subterraneamente, ao contrario do que
. ele diz e prediz para a marcha das votações, ha uma corrente que,

284 12
Protocolado sob o número 60/1915, o parecer foi publicado nos ACD em
12/05/1915 e a ele se ofereceram duas emendas diferentes (cf. ACD, v. III, pp. 442-
512). A invalidação do documento ficou decidida na sessão de 17 de maio (cf.
ACD, v. IV, 17/05/1915, pp. 34-37).
13
Trata-se do parecer n. 60A/1915, impresso em 14/06/1915 (ACD, v. V, 14/06/1915).
14
ACD, v. VI, 21/06/1915, p. 500, grifo do original.

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com leader occulto e ignoto, fecha entre um dos grupos políticos da
Camara, que também obedece ao bastão do Sr. Antonio Carlos, a
questão politica da votação do parecer do 1o districto!
(ACD, v. VI, 21/06/1915, p. 504, grifos do original).

Pedro Moacyr entrou no debate para escancarar a identidade oculta:


“A verdade é esta: o leader é o Sr. Pinheiro Machado”.15 A historio-
grafia já registrou a força política de Pinheiro Machado, que fundou
o Partido Republicano Conservador (PRC) em resistência à chamada
política das salvações nacionais do presidente Hermes da Fonseca (1910-
1914). Uma política baseada em intervenções federais nos estados entre C
1911 e 1912 para substituir as oligarquias no poder e que despertou O
as oposições, sobretudo no Norte e Nordeste do país (BELLO, 1952; M
CARONE, 1971; SOUZA, 1973). A competitividade das eleições P
de 1912 e 1915 à Câmara tem sido interpretada como produto desse O
contexto em que Pinheiro Machado buscava ampliar o seu prestígio e R
se reorganizar após medir forças com o governo Hermes (CARONE, T
A
1971; SOUZA, 1973; RICCI; ZULINI, 2012). O diagnóstico con-
M
verge com a situação apontada na discussão do reconhecimento dos
E
eleitos pelo primeiro distrito do Distrito Federal, quando os deputados
N
sugerem que Pinheiro Machado estaria desafiando o líder da maioria ao T
tentar influenciar a verificação dos poderes. Segundo Lacerda, a omissão O
de Antonio Carlos sinalizava a incapacidade do governo em se impor
contra Pinheiro Machado: L
E
G
O bastão do Sr. Antonio Carlos hoje se oculta prudentemente para
I
se não quebrar contra os golpes do bastão ousado do caudilho: o S
Sr. Antonio Carlos, na hora em que os seus correligionarios devem L
entrar em uma batalha campal, decisiva, despoja-se de suas A
dragonas e dos seus bordados de marechal, passa á reserva, a uma T
reforma que a prudencia lhe dicta neste momento! I
V
(ACD, v. VI, 21/06/1915, p. 505).
O
.
Na visão de Pedro Moacyr, a aparente inação de Antonio Carlos
ao deixar de encaminhar a votação representava, ao contrário, um po-
sicionamento efetivo: “O nobre leader da maioria, abrindo a questão, 285

insurgiu-se virtualmente contra o fechamento por parte do P.R.C.”16 O

15
ACD, v. VI, 21/06/1915, p. 505, grifo do original.
16
ACD, v. VI, 21/06/1915, p. 507, grifo do original.

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próprio Moacyr explica: “Está ou não aberta a questão pelo leader? Está.
Não é verdade que o P.R.C. fechou a questão? E’ verdade. Logo o leader
está contra o P.R.C.”17 Uma ideia reforçada por Lacerda: “o leader, por-
tanto, vae mais longe: S. Ex. não é neutro, mas, para evitar uma crise
politica ao Governo da Republica, se insurge contra o fechamento da
questão.”18 Realizada a votação da primeira conclusão do parecer, nomi-
nal justamente por causa do voto em separado oferecido, a posição de
Antonio Carlos é derrotada por 77 votos contra 82. O plenário racha,
portanto, ao meio.
Esse episódio ilustra bem porque não se pode assumir a formação
de maiorias no pós-1900 como efeito colateral automático e perene do
A pacto Campos Sales. No agregado, o estudo do trâmite dos reconheci-
mentos revela que a Câmara funcionava como uma arena garantidora
N
da manutenção da política dos governadores. Quando os governadores
O
V
tinham dificuldade de conter a competição eleitoral dentro dos seus
A respectivos estados, o processo de verificação dos poderes era acionado
para arbitrar as disputas e tentar impedir o reconhecimento dos candi-
C datos de oposição. Eventualmente, concessões acabavam acontecendo
I
Ê
para se negociar uma reacomodação das elites políticas sem prejuízo,
N porém, do regime oligárquico.
C
I
A Produção legislativa e vetos presidenciais no contexto da
D política dos governadores
A
Nos regimes presidencialistas, todo projeto de lei aprovado pelo
P Congresso segue à sanção presidencial, que representa a aprovação da
O
matéria pelo Poder Executivo. Caso o presidente considere que o pro-
L
Í jeto aprovado pelo Congresso contraria o interesse público ou é incons-
T titucional, tem a possibilidade de vetá-lo. Nesse caso, os legisladores
I
C precisam apreciar as razões do veto e decidir entre o seu endosso (reti-
A rando a lei) ou pela sua derrubada (insistindo na promulgação da lei).
. Os estudos legislativos interpretam os vetos presidenciais como o clímax
da tensão entre governo e Congresso, ocorrendo justamente por causa
286 do fracasso da conciliação entre os interesses do Executivo com o dos le-
gisladores durante o processo de produção das leis (CAMERON, 2000;

17
ACD, v. VI, 21/06/1915, p. 507, grifos do original.
18
ACD, v. VI, 21/06/1915, p. 507, grifo do original.

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2009; GROHMANN, 2003; MOYA, 2005). Assumindo que a política
dos governadores estivesse operante até o final da Primeira República,
o Poder Executivo não encontraria oposição na Câmara dos Deputados
e, consequentemente, não teria motivos para vetar a legislação aprovada
entre 1900 e 1930.
A tabela 2 apresenta a produção legislativa da Primeira República
segundo o proponente desde a presidência de Prudente de Moraes
(1894-1898) até o governo de Washington Luís (1926-1930). O levan-
tamento dos dados se baseou na Coleção de Leis da República, organi-
zada pela própria Câmara dos Deputados.19 C
O

Tabela 2: Produção legislativa segundo a origem e vetos presidenciais, M


por governos (1894-1930) P
O
Origem das leis
Governo Total R
Executivo Legislativo T
Prudente de Moraes (1894-1898) 1.246 (80,1%) 310 (19,9%) 1.556 (6,8%) A
M
Campos Sales (1898-1902) 1.543 (79,7%) 392 (20,3%) 1.935 (8,5%)
E
Rodrigues Alves (1902-1906) 1.620 (69,2%) 720 (30,8%) 2.340 (10,3%) N
Afonso Pena (1906-1909) 1.129 (71,2%) 457 (28,8%) 1.586 (7,0%) T
O
Nilo Peçanha (1909-1910) 202 (17,6%) 946 (82,4%) 1.148 (5,0%)

Hermes da Fonseca (1910-1914) 2.917 (82,2%) 633 (17,8%) 3.550 (15,6%) L


E
Wenceslau Braz (1914-1918) 693 (27,2%) 1856 (72,8%) 2.549 (11,2%)
G
Delfim Moreira (1918-1919) 410 (70,2%) 174 (29,8%) 584 (2,6%) I
S
Epitácio Pessoa (1919-1922) 864 (30,9%) 1.929 (69,1%) 2.793 (12,3%)
L
Arthur Bernardes (1922-1926) 1.643 (75,7%) 526 (24,3%) 2.169 (9,5%) A
T
Washington Luís (1926-1930) 1.764 (69,1%) 790 (30,9%) 2.554 (11,2%)
I
Total V
14.031 (61,6%) 8.733 (38,4) 22.764 (100%)
O
Fonte: Elaboração própria a partir da Coleção de Leis da .
República e ACD (1894-1930).

287
Sancionaram-se 22.764 leis entre 1894 e 1930. Durante os governos
de Nilo Peçanha, Wenceslau Braz e Epitácio Pessoa, o Poder Legislativo
propôs a maior parte das leis aprovadas – em média, concentrando a

19
Agradeço a Lucas Goulart Oliveira pelo auxílio na coleta dos dados.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 287 07/05/2021 10:40:06


autoria de 74,8% da produção legal. Nos demais governos, o Poder
Legislativo teve protagonismo reduzido, em média, a 25,3% das leis. É
importante observar o dado sobre o governo Prudente de Morais mos-
trando como antes do advento da política dos governadores o Executivo
já dominava a produção legal. De fato, a análise comparada evidencia
exatamente esse padrão: a dominância legislativa do Poder Executivo
desde o século XIX (RICCI, 2006).
Resta saber qual era o conflito por trás das deliberações dos vetos
presidenciais. A tabela 3 ajuda a introduzir o problema. Ela apresenta
os vetos presidenciais ocorridos entre 1894 e 1930 diferenciados por as-
sunto e governos. Quantificou-se os vetos a partir dos Anais da Câmara
A dos Deputados, disponíveis no site da Câmara.20
N
O Tabela 3: Vetos presidenciais segundo o assunto das leis,
V por governos (1894-1930)
A
Foco das leis vetadas

Governo Funcionalismo Total


C Outros assuntos
I público
Ê
Prudente de Moraes (1894-1898) 6 (54,5%) 5 (45,5%) 11 (5,1%)
N
C Campos Sales (1898-1902) 5 (71,4%) 2 (28,6%) 7 (3,2%)
I
A Rodrigues Alves (1902-1906) 8 (66,7%) 4 (33,3%) 12 (5,6%)
D Afonso Pena (1906-1909) 21 (100%) 0 (0%) 21 (9,7%)
A
Nilo Peçanha (1909-1910) 12 (92,3%) 1 (7,7%) 13 (6,0%)
P
O Hermes da Fonseca (1910-1914) 22 (91,7%) 2 (8,3%) 24 (11,1%)
L
Wenceslau Braz (1914-1918) 19 (76%) 6 (24,0%) 25 (11,6%)
Í
T
Delfim Moreira (1918-1919) 1 (100%) 0 (0%) 1 (0,5%)
I
C
Epitácio Pessoa (1919-1922) 38 (67,9%) 18 (32,1%) 56 (25,9%)
A
. Arthur Bernardes (1922-1926) 4 (25%) 12 (75,0%) 16 (7,4%)

Washington Luís (1926-1930) 22 (73,3%) 8 (26,7%) 30 (13,9%)


288
Total 158 (73,1%) 58 (26,9%) 216 (100%)

Fonte: Elaboração própria a partir da Coleção de Leis da República


e nos ACD (1894-1930).

20
Agradeço a Fernanda Regina Machado pelo auxílio na coleta dos dados.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 288 07/05/2021 10:40:06


Considerada a magnitude da produção legal, os vetos presidenciais
foram raros (vide tabela 3). O pico ocorreu na presidência de Epitácio
Pessoa, responsável por 25,9% do total, seguido pelos governos de
Washington Luiz (13,9%), Wenceslau Braz (11,6%) e Hermes da
Fonseca (11,1%). Juntos, os quatro englobam cerca de 60% dos vetos
apresentados entre 1894 e 1930. Além disso, a tabela mostra que uma
classificação dicotômica basta para se visualizar o padrão dos vetos presi-
denciais, na sua maioria direcionados às leis do funcionalismo público,
como regulação de pensões e montepios para viúvas de funcionários
do Estado; aumentos de vencimentos; contagem do tempo de serviço C

para efeito de aposentadoria ou reforma do benefício e nivelamentos de O

salário por categorias. Apenas Floriano Peixoto e Arthur Bernardes não M


P
seguiram a lógica e se opuseram a questões mais variadas, sem padrão
O
evidente. R
Dentre os assuntos variados das demais leis vetadas, é importante T
destacar o veto que o presidente Epitácio Pessoa impôs à lei fixando a A
M
despesa da União para o exercício financeiro de 1922. A centralidade
E
da lei orçamentária para o governo federal era inconteste, até porque
N
o seu veto implicava tocar o país com o mesmo orçamento do ano an- T
terior, sem atualizações. O próprio Epitácio classificava o preparo do O
orçamento “justamente a mais importante de todas as attribuições”21
L
constitucionais confiadas ao Congresso por se tratar da lei por onde E
“mais fundo póde ferir os interesses nacionais, interesses de toda or- G
dem – politicos, administrativos, commerciaes, industriaes, financeiros, I
S
economicos”.22 L
Na mensagem enviada ao Congresso para justificar esse veto, o pre- A

sidente argumentou que não poderia permitir a elevação desenfreada do T


I
déficit do Brasil. Segundo Epitácio, o desajuste começou a tomar forma V
durante a tramitação na Câmara e se potencializou depois da passagem O
.
pelo Senado, que “elevou o deficit a alturas vertiginosas”.23 Mais especi-
ficamente, por conta “de favores a funccionarios publicos”.24 Um ponto
289

21
ACD, v. I, 10/03/1922, p. 30.
22
ACD, v. I, 10/03/1922, p. 27.
23
ACD, v. I, 11/03/1922, p. 64, grifo do original.
24
ACD, v. I, 11/03/1922, p. 75.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 289 07/05/2021 10:40:06


que procurava provar destrinchando a estratégia de preenchimento de
cargos por trás das várias medidas direcionadas a beneficiários específi-
cos. Por exemplo:

O art. 42 crêa um logar de 2o tenente desenhista no Corpo de


Bombeiros. E logo aponta quem deve ser nomeado; só quem tiver
mais de um anno de serviços de dentista ou auxiliar de dentista no
Corpo. Excusado é dizer que só ha um cidadão nestas condições.
Temos, pois, de novo o Congresso a invadir as attribuições privativas
do Presidente da Republica para fazer favores pessoaes e nomear
dentistas de Bombeiros.

A (ACD, v. I, 11/03/1922, p. 69).

N Através da exposição de motivos do veto, Epitácio Pessoa man-


O
V
dava um recado para o Congresso: “Violada a imunidade tradicional
A da lei orçamentária, haverá agora maior cuidado na sua preparação;
Deputados e Senadores mostrar-se-ão menos condescendentes, e os
C proprios interesses individuaes moderarão o seu arrojo”.25 O presi-
I
Ê dente cobrava apoio legislativo.
N
Além disso, Epitácio reagia à condição geral das finanças nacio-
C
I nais nos anos 1920 por acreditar conhecer o problema de fundo e ter
A uma solução para propor. No seu entendimento, o problema corres-
D pondia à ausência da exclusividade orçamentária, ou seja, o princípio
A de que as leis de previsão da receita e fixação da despesa não deviam
P trazer quaisquer outros adendos. Usava-se o termo cauda orçamentá-
O ria para se referir aos dispositivos inseridos no corpo do projeto orça-
L
Í mentário e estranhos ao teor dessa legislação específica visando regrar
T outras áreas em prazo menor, pois o orçamento tinha precedência no
I
C rito processual das duas Casas do Congresso. A prática remontava
A ao Império (ROURE, 1926) e incluía a revogação de leis, criação de
.
serviços, supressão de repartições públicas e reorganização de minis-
térios, entre outras medidas (WILGES, 2006).26 Segundo Epitácio,
290
a saída para impedir a execução das caudas e garantir a exclusividade

25
ACD, v. I, 10/03/1922, p. 36.
26
Nas palavras de Rui Barbosa, tratavam-se dos “orçamentos rabilongos”. Por
meio deste expediente se introduziu, por exemplo, o registro de hipotecas no

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orçamentária estava na adoção do veto parcial, um mecanismo até
então ausente da Constituição:

Eu sou hoje francamente pelo véto parcial [...] E’ o unico meio de


responder a essa fraude contumaz com que, todos os annos, desde
que se proclamou a Republica, e á semelhança do que se fez outr’ora
na Inglaterra contra a Camara dos Lords e nos Estados Unidos
contra o Presidente, procuramos, nas caudas orçamentarias, impor
ao Poder Executivo medidas as mais extranhas

(ACD, v. I, 10/03/1922, p. 33). C


O
De acordo com Belo (1952), Epitácio não contava com maioria M
parlamentar para alterar a Carta de 1891 afim de instituir o instrumento P
do veto parcial. O presidente cumpriu o mandato sem concretizar a am- O
bição. Dois anos depois, porém, Arthur Bernardes se elege presidente da R
T
República retomando a bandeira da reforma constitucional e, também,
A
endossando a necessidade de acabar com as caudas orçamentárias. A re-
M
forma vinga e o veto parcial se transforma em expediente constitucional E
a partir de 1926 ao lado de outras emendas promulgadas naquele ano N
à Carta de 1891. T
O
Todos esses dados abrem margem para se questionar se os vetos
presidenciais perseguiam essencialmente as matérias detidas no funcio- L
nalismo público, como sugerem os comentários de Epitácio Pessoa e o E
G
cunho dominante dos vetos observados (tabela 3). Para equacionar a I
dúvida, o gráfico 5 apresenta a proporção de leis sancionadas e vetadas S
sobre funcionalismo público desde o governo Prudente de Moraes até o L
A
governo Washignton Luís. T
I
V
O
.

291

Brasil e ainda foram revistos os procedimentos para a ação de desquite (SANTA


HELENA, 2003, p. 39).

Rogério - A nova ciencia politica.indd 291 07/05/2021 10:40:06


Gráfico 4: Leis sancionadas e vetadas sobre funcionalismo público,
por governos (1894-1930)
400

350

300

250

200

150

100

50

)
)

)
)

0)

)
)

)
)

26
98

09

30
06

18
02

22
14

19
A

91

-19

19
-19
-19

19
-18

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19
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-
-
-
-

14

22
19
10

18
09
94

26
98

06
02

19

(19
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19
(19
18

(19
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(18

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(19

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Ca

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W
en

W
m
Ro

Ar
A
ud

er
H
Pr

Leis aprovadas (n) Vetos apresentados (n)


C
I
Ê Fonte: Elaboração própria a partir da consulta à Coleção de Leis da
República e aos ACD (1894-1930).
N
C
I
A
A quantidade de leis sancionadas para reger o funcionalismo torna
residual os vetos incidentes sobre a mesma temática mesmo durante o
D
governo de Epitácio, que mais aplicou vetos desse gênero. Isso signi-
A
fica que não se pode entender os vetos como um problema inerente à
P questão do funcionalismo público.
O
L O ponto mais importante é justamente a tensão entre Executivo
Í
T
e Legislativo – e que não acaba com a imposição do veto. Durante a
I Primeira República, os legisladores conseguiam forçar a outorga da lei
C
e derrubar o veto imposto pelo Executivo se angariassem para o refe-
A
.
rido propósito dois terços dos votos dentre os presentes em decisões
nominais sucessivas nas duas Casas do Congresso.27 Tratava-se de um
292
momento crucial: a última etapa para se definir a posição vitoriosa e se
escolher pelo consenso com a recomendação do presidente da República
ou marcar o divórcio entre os poderes sobre o assunto vetado.

27
CF 1891, art. 37, § 3o.

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Metade dos vetos presidenciais deliberados na Câmara teve re-
sultado inválido (69 em 137) e a maioria se concentrou nas legis-
laturas iniciadas em 1918 e 1921 (juntas, reúnem 86 das votações
sobre vetos). Dentre as decisões que foram válidas, predominaram
as consensuais (48) diante das divididas (20). Números que exigem
investigação do ponto de vista das relações entre os poderes, pois
teoricamente a apreciação do veto presidencial pelo Legislativo cons-
titui a última oportunidade para o plenário escolher entre confluir
ao ponto de vista do governo ou divergir em definitivo sobre a po-
lítica vetada. Para esclarecer a preferência de cada legislatura nessas C
O
situações-limite, a tabela 4 registra o posicionamento da Câmara dos
M
Deputados sobre os vetos presidenciais nas votações válidas.
P
O

Tabela 4: Posicionamento da Câmara sobre os vetos presidenciais em R


votações nominais válidas, por legislaturas (1894-1930) T
A
Resultado da votação
Legislatura Total M
Mantido Derrubado E
1894-1896 3 3 6 N
1897-1899 3 2 5 T
O
1903-1905 1 1 2

1906-1908 2 2 4 L
1909-1911 3 5 8 E
1912-1914 1 1 2 G
I
1918-1920 8 7 15
S
1921-1923 10 6 16 L
1924-1926 4 1 5 A
T
1927-1929 3 2 5
I
Total 38 30 68 V
Fonte: Elaboração própria a partir dos ACD (1894-1930). O
.

Apenas na legislatura iniciada em 1909 o número de vetos derru-


293
bados superou o de vetos mantidos nas decisões válidas tomadas pelo
plenário da Câmara. No geral, houve equilíbrio entre manutenção e
derrubada dos vetos presidenciais. Esse dado mostra que a Câmara
se acionava em momentos críticos, servindo de arena de articulação
política.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 293 07/05/2021 10:40:06


Considerações finais
Nos últimos anos, tem havido novos esforços no sentido de repen-
sar os governos representativos desenvolvidos desde o século XVIII.
Especificamente no campo teórico, o trabalho de Bernard Manin
(1997) se destacou ao frisar o anacronismo de análises que reflitam o
assunto a partir do referencial democrático moderno. Afinal, os gover-
nos representativos tiveram origem elitista e não pretendiam estender o
poder político ao povo. Isso não esvazia, porém, a sua relevância como
objeto de pesquisa.
Uma série de estudos de caso contribuiu para a ressignificação das
A experiências representativas dos séculos XIX e princípios do século XX
a partir da reconsideração do papel das eleições (ANNINO, 1995;
N
O
MORELLI, 2007). Os efeitos dessa mudança de perspectiva começam
V a influenciar o resgate do passado representativo pela lente dos estudos
A legislativos. Pesquisas inéditas sobre o Brasil monárquico depararam-
-se com um padrão de relacionamento entre os poderes diverso do até
C então predito (DOLHNIKOFF et al, 2011; FERRAZ, 2017). A revi-
I
Ê são de Backes (2006) sobre a formação do pacto oligárquico em 1900
N pintou o Congresso como foro de articulação política, contrariando a
C tendência da interpretação convencional em pensar o parlamento como
I
A uma arena facilmente contornável desde antes do advento da política
dos governadores. De forma similar, pesquisa centrada no comporta-
D
A
mento dos representantes do Distrito Federal na Câmara durante os
anos de 1909 até 1922 não somente retratou o plenário como espaço de
P
O
negociação intraelite, mas comprovou o apoio inconstante da bancada
L ao governo (PINTO, 2006).
Í
T
Este capítulo procurou contribuir para o debate resgatando mo-
I mentos-chave em que a Câmara performava papéis importantes para
C
A
efeito da governabilidade. Vimos que a condição de árbitro final no
.
processo eleitoral gozada pelo Poder Legislativo durante toda a Primeira
República torna mais razoável pensar a Câmara dos Deputados an-
294
tes como peça essencial na máquina ativada pela política dos gover-
nadores do que como uma ferramenta fora de lugar. Ela não estava
alheia ao jogo político, pois funcionava como lugar para negociação
em casos de divergência e não apenas um “carimbo” pronto para ofi-
cializar as decisões tomadas em outras esferas. Sua inação poderia fa-
zer o pacto desmoronar. Um raciocínio que se estende ao caso dos

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vetos presidenciais. Situações-limite de confronto entre governo e
Congresso onde o plenário da Câmara emerge como arena essencial
para a construção de consenso. Mesmo que o presidente da República
tentasse concentrar diretamente a tomada de decisões cuja validação
dependia do Legislativo, diálogo e negociações com os parlamenta-
res se faziam necessários para construir a unanimidade em algumas
questões.

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M
P
O
R
T
A
M
E
N
T
O

L
E
G
I
S
L
A
T
I
V
O
.

299

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PARTE III: ELEIÇÕES E
ATUAÇÃO PARTIDÁRIA

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Mauricio Yoshida Izumi

Bacharel em Ciências Sociais (2010) e mestre


(2013) e doutor (2017) em Ciência Política pela
Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é
Professor Adjunto do Departamento de Ciências
Sociais da Universidade Federal do Espírito
Santo (UFES).

Do ponto de vista substantivo, a minha


principal área de interesse, desde a graduação,
é a dos estudos legislativos. No mestrado,
busquei contribuir para o debate salientando
o papel do Senado no interior do sistema
político brasileiro, bem como busquei avaliar o
impacto das coalizões governamentais sobre
o comportamento parlamentar. Os dois capítulos de que participo nesta coletânea
estão inseridos nessa agenda. No doutorado, expandi os meus interesses de pesquisa e
abordei temas como corrupção e comportamento eleitoral.

Do ponto de vista metodológico, tenho trabalhado com estimação de pontos ideais,


análise quantitativa de textos, inferência bayesiana e métodos quase experimentais de
pesquisa. Mais recentemente, no pós-doutorado, incorporei a dimensão espacial em
minhas pesquisas.

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FOCALIZAÇÃO OU DIÁLOGO? UMA ANÁLISE
QUANTITATIVA DOS DISCURSOS DOS
SENADORES BRASILEIROS

Maurício Yoshida Izumi

Introdução1
De acordo com Mayhew (1974), políticos estão interessados em
se reeleger. Com vistas a alcançar esse objetivo eles devotam diversos
esforços em algumas atividades básicas. A tomada de posição (position
taking) em temas relevantes é uma delas2. Existem várias formas de se
fazer isso. Por exemplo, ela pode ser feita por meio de votações nomi-
nais (POOLE E ROSENTHAL, 2007) e pela assinatura de projetos
(ALEMÁN ET AL., 2009). Mas, como o que interessa é o posiciona-
mento em relação a um determinado tema e não a formulação ou a mu-
dança de alguma política pública, outra maneira de se tomar posições é
por meio de discursos.
Assim, a questão que surge a partir deste ponto é qual a estratégia
que políticos devem adotar em seus discursos? Eles devem focalizar os
seus esforços em assuntos específicos – isto é, discursos que se limi-
tam a certos tópicos e que em geral ocorrem de maneira unilateral e

1
Este trabalho contou com o apoio das Bolsas da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo (FAPESP), processos 2013/24210-4 e 2018/08118-4. O
autor agradece aos comentários de Felipe Nunes, Fernando Bizzarro, Fernando
Guarnieri, Fernando Limongi, Glauco Silva, Lorena Barberia, Lucas Petroni e
Rogério Arantes.
2
As outras atividades são o advertising e o credit claiming. O advertising é o esforço
de disseminar o próprio nome pela constituency de forma tal que se crie uma
imagem favorável de si próprio. A ideia é se tornar conhecido, enfatizando
características pessoais como experiência, conhecimento, sinceridade e
independência. Já o credit claiming é agir de modo a gerar uma crença nos
atores políticos relevantes de que ele é o responsável pela realização de algum
benefício desejável.

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auto afirmativa – (PETROCIK, 1996; SIMON, 2002) ou devem in-
teragir com os seus adversários, gerando diálogo e disputas diretas em
torno de determinados pontos da pauta política (ANSOLABEHERE
E IYENGAR, 1994)? Para responder a essas questões utilizarei técnicas
de análise quantitativa de textos e um banco de dados inédito com a in-
dexação de mais de 64 mil discursos dos senadores brasileiros realizados
entre fevereiro de 1987 e dezembro de 2010. Os resultados apontam
para a hipótese do diálogo. Em geral, os partidos políticos brasileiros não
possuem nichos temáticos específicos. Senadores de diferentes partidos
convergem os seus discursos no que diz respeito ao tema. Se um senador
do governo discursar sobre um tema A, é muito provável que um sena-
A dor da oposição também faça um discurso sobre o mesmo tema A.
N Na seção que se segue apresentamos e discutimos as duas principais
O teorias sobre a estratégia dos parlamentares ao discursarem. Em seguida
V temos os dados e métodos utilizados neste trabalho. Por fim, apresenta-
A
mos os resultados e algumas considerações finais.
C
I
Ê
Focalização ou diálogo?
N
C
Para uma parte da literatura (PETROCIK, 1996; SIMON, 2002)
I os políticos focalizam os seus discursos em determinadas temáticas. Isto
A é, eles apenas discutem os temas nos quais eles acreditam ter uma van-
D tagem em relação aos seus oponentes. Isso ocorre porque eles não têm o
A interesse de aumentar a saliência de um assunto no qual os seus adversá-
P rios se saem melhores do que eles. Por exemplo, nos EUA os democratas
O concentram os seus esforços em temas tais como liberdades civis, ques-
L tões étnicas e raciais, mulheres e direitos dos homossexuais. Os republi-
Í
T canos, por sua vez, realçam temas tais como valores tradicionais, crime,
I exército e regulação da economia. Essa vantagem temática, na visão de
C
A
Petrocik (1996, 826), não surge do nada. Ela está relacionada com a
.
reputação construída pelo histórico de atuação dos partidos. Assim,
partidos que sempre estiveram engajados em problemas específicos são
304
vistos pelo eleitorado como mais competentes. Os políticos, por sua
vez, utilizam estrategicamente essa vantagem.
De acordo com Sagarzazu (2011), em sistemas partidários pouco
institucionalizados essa não é a estratégia dominante. Dada a fragilidade
das siglas partidárias, é mais difícil de se criar uma vantagem temática.
Como consequência, políticos não têm o incentivo de focalizar os seus

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esforços em áreas específicas de modo unilateral e auto afirmativa. O
diálogo deve prevalecer.
O diálogo ocorre quando um político inicia a discussão sobre um
tema e seu oponente reponde com um discurso sobre o mesmo tema.
Assim, um político busca interagir com outros políticos, independen-
temente do tema em debate. O oposto do diálogo é quando o político
discursa sobre um tema A e o seu adversário o ignora ou discursa sobre
um tema B (SIMON, 2002, 1). Essa troca de ideias é importante não
somente porque fornece informações relevantes aos eleitores, mas tam-
bém porque fornece interpretações concorrentes sobre políticas.
Para Ansolabehere e Iyengar (1994) os políticos têm incentivos para
F
dialogar. A motivação para isso surge da necessidade de se mostrarem
O
responsivos perante os seus eleitores. Algumas temáticas são importantes
C
para os eleitores tomarem as suas decisões e partidos que não se esforçam A
em falar sobre elas são vistos como indiferentes. Portanto, mesmo que os L
partidos tenham algum nicho específico, os políticos têm o incentivo de I
Z
discursar sobre os temas de propriedade de seus adversários. A
Segundo Sides (2006), essa «invasão» temática se dá de uma ma- Ç
neira peculiar. Ao discursarem sobre temas que são de «propriedade» Ã

de seus oponentes, os candidatos buscam ressaltar dimensões que estão O

em consonância com a tradição filosófica de seus partidos. Por exem- O


plo, durante os anos de 1990 nos EUA, os democratas, ao discutirem U
a questão da criminalidade – tema historicamente relacionado aos re-
publicanos –, defendem uma proposta de prevenção com o aumento D
I
do número de policiais nas ruas. Essa estratégia retórica permitiu aos Á
democratas demonstrarem a sua preocupação com um tema importante L
para os eleitores ao mesmo tempo em que eles defenderam uma política O
que seguia a ideologia de seu partido. G
O
Além disso, outro motivo para a existência de diálogo é a natu- ?
reza das questões concernidas (KAPLAN ET AL., 2006). Algumas de- ,
.
las são relativas à performance do governo. Questões como a situação
da economia, a segurança nacional e a corrupção são alguns exemplos. 305
Elas naturalmente suscitam algum tipo de diálogo. Por exemplo, du-
rante a campanha presidencial de 2010, a candidata do governo, Dilma
Rousseff (PT), teve que responder a questões relativas ao aborto e aos
escândalos de corrupção suscitadas pelos seus adversários José Serra
(PSDB) e Marina Silva (PV). Ao fazer isso, ela deixou de ressaltar em

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seu discurso a questão da situação econômica favorável do país e con-
sequentemente os seus índices de popularidade caíram nas pesquisas de
opinião (NUNES E MEIRA, 2012).
Em resumo, parte da literatura (PETROCIK, 1996; SIMON,
2002) prevê que adversários políticos enfatizarão diferentes tópicos,
tendo em vista o histórico de seus partidos. Por outro lado, outros auto-
res (ANSOLABEHERE E IYENGAR, 1994; SIDES, 2006; KAPLAN
ET AL., 2006) preveem que políticos enfatizarão o mesmo conjunto de
temas.
Na próxima seção apresentamos os dados e os métodos utilizados
neste trabalho para verificar qual das duas hipóteses descreve melhor o
A
que ocorre no caso brasileiro.
N
O
V Dados e métodos
A
Neste trabalho utilizamos um banco de dados inédito com a inde-
C xação de todos os discursos dos senadores brasileiros, realizados entre
I fevereiro de 1987 e dezembro de 2010. Temos ao todo 64.311 dis-
Ê
N
cursos, o que equivale a uma média de 175,7 discursos por senador
C (64.311/366) e 2679,6 discursos por ano (64.311/24).
I
A
A indexação3 é um conjunto de palavras-chave que facilita a recu-
peração do conteúdo dos discursos. Por exemplo, em discurso proferido
D
em 11 de dezembro de 2007 pelo senador Eduardo Suplicy (PT/SP)
A
temos como resumo o seguinte texto: “Comemoração da abertura da
P Semana de Valorização da Pessoa com Deficiência”. Neste exemplo, as
O
L
palavras que indexaram o discurso foram: “saudação, semana, valoriza-
Í ção, pessoa portadora de deficiência, elogio, execução, música, sessão,
T
I
regente, demonstração, capacidade, suplantação, limitação, comentário,
C dados, estudo, (FGV), situação, deficiência, Brasil, falta, escolaridade,
A emprego, gravidade, miséria, importância, programa, inclusão, especi-
. ficação, formação profissional, cumprimento, legislação, cota, mercado
de trabalho, importância, conscientização». Como podemos observar, a
306 indexação reúne as principais palavras que descrevem o tema do texto.
A principal vantagem de se trabalhar com a indexação e não com
o discurso é o processamento computacional. Por exemplo, o discurso

3
Veja um exemplo na Figura 8, no Apêndice deste capítulo.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 306 07/05/2021 10:40:08


do senador Eduardo Suplicy possui 947 palavras, mas a indexação tem
apenas 42. Em nosso conjunto de dados, as indexações têm em média
54,2 palavras (o desvio padrão é de 40,1 palavras).
A primeira etapa para classificar os discursos em diferentes áreas
temáticas foi selecionar uma amostra aleatória simples sem reposição
de tamanho 5.000. Retiramos as palavras irrelevantes (stopwords) bem
como aquelas pouco (<1%) ou muito (>99%) frequentes. A partir dessa
lista criamos uma matriz com a frequência de vezes que cada termo
aparece em cada um dos discursos e calculamos a matriz de distân-
cias. Aplicamos então uma análise de agrupamento hierárquica. Esse é
o mesmo procedimento utilizado por Sagarzazu (2011).
De maneira geral, comparando todos os pares de termos da matriz F
O
de distâncias agrupamos os dois termos que são mais semelhantes. A
C
matriz então é redefinida de acordo com o grupo que foi formado e
A
repete-se o processo até que todos os termos formem um único grupo. L
Com isso cada termo é alocado em um grupo. Baseado nesse resultado, I
Z
encontramos 17 temas diferentes.
A
Na Tabela 1 temos a lista de palavras em cada um dos grupos. Como Ç
vemos, os tópicos cobrem um amplo leque de assuntos como agrope- Ã
cuária, corrupção, educação, meio ambiente, relações internacionais e O
saúde. Em média, cada grupo possui 14 palavras. Temos um mínimo
O
de seis palavras para saúde e um máximo de 29 palavras para relações
U
internacionais.
Na Tabela 2, temos a frequência de discursos por tema. O tópico D
I
menos citado pelos senadores foi a Juventude com 0,8% e o mais citado Á
foi o de Relações internacionais com 18,6%. Dos mais de 64 mil dis- L
cursos, quase 5% não foram classificados. O

O principal objetivo deste trabalho é verificar se os parlamentares G


O
focalizam os seus discursos em temas específicos ou estão em constante
?
diálogo com os seus oponentes. Consideramos a existência de diálogo ,
.
quando alguém de um grupo comunica as suas preferências em resposta
a uma mensagem anterior feita por alguém de outro grupo com prefe-
307
rências distintas. Este ponto é importante, pois não há muito sentido
em falar em diálogo quando os dois lados estão expressando a mesma
posição. Parlamentares em diferentes partidos políticos ou em diferen-
tes coalizões (governo e oposição) são um indicativo de que eles não
estão apenas reforçando a mesma ideia. De acordo com alguns autores

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(IZUMI, 2016; ZUCCO, 2009), o conflito entre governo e oposição
representa razoavelmente bem as preferências dos parlamentares brasi-
leiros. Por tal razão trabalharemos aqui com partidos e coalizões e não
com indivíduos.

Tabela 1 – Palavras classificadas em cada categoria

Tema Palavras
agricultor, pequeno, produtor, rural, agropecuaria, produção, agricola,
Agropecuária agricultura, alimentos, provocação, movimento, trabalhista, propriedade,
agraria, assentamento, incra, invasão, terra, conflito, terras
operação, policia, prisão, impunidade, judiciario, punição, responsavel,
A Corrupção
depoimento, bingo, corrupção, cpi, investigação
N Distribuição de bolsa, familia, fome, miseria, pobreza, desigualdade, social, concentração,
O renda distribuição, renda
V comercio, exterior, industrial, industria, comercial, exportação,
A
importação, preço, produto, juros, taxas, retomada, crescimento,
Economia
economico, financeira, politica, efeito, crise, economia, estabilidade,
C
inflação, desemprego, desvalorização, analise,
I
Ê curso, estudante, mec, ensino, superior, tecnica, escola, universidade,
Educação
N estabelecimento, educação, professor
C
I eletrica, energia, hidroeletrica, usina, estrutura, infra, ferrovia, ligação,
A Infraestrutura conclusão, obra, porto, recuperação, rodovia, construção, habitação,
saneamento, aceleração, obras
D
A Juventude menor, adolescente, criança, abuso, exploração, sexual
ambiente, meio, preservação, sustentavel, madeira, ibama, mma,
P Meio ambiente
destruição, desmatamento, amazonica, floresta
O
deficiencia, pessoa, direitos, humanos, mulher, discriminação, negro,
L
Í Minorias idoso, estatuto, igualdade, catolica, igreja, indigena, reserva, comunidade,
T
indio
I
C pmdb, psdb, partido, politico, campanha, eleitoral, candidatura,
Partidos e
A presidencia, reeleição, candidato, eleições, vitoria, eleição, partidaria,
eleições
. representação

clima, conferencia, ambito, internacional, mundo, onu, ong, proteção,


308 Relações forças, fronteira, ameaça, soberania, territorio, bolivia, gas, natural,
internacionais petrobras, petroleo, estrangeira, eua, estrangeiro, pais, sul, america,
mercosul, brasileiro, externa, paz, mre,
Saúde doença, prevenção, hospital, saude, medico, tratamento
Seca francisco, transposição, abastecimento, agua, seca, auxilio, calamidade

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financeiro, sistema, bacen, bancos, oficial, banco, particular, creditos,
Sistema
facilitação, credito, bndes, financiamento, emprestimo, divida,
financeiro
pagamento, cef, contrato

salarial, reajuste, minimo, salario, previdencia, reformulação,


Trabalho
previdenciaria, aposentado, aposentadoria

correção, imposto, reforma, tributaria, tributação, cpmf, arrecadação,


Tributação
tributos
homicidio, morte, solidariedade, vitima, civil, sociedade, conscientização,
Violência conclamação, mobilização, cidadão, ocorrencia, publica, segurança,
combate, violencia, coletiva, manifestação, militar, policial

Fonte: Elaborado pelo autor.

F
O
Tabela 2 – Frequência por tema C
A
Tema Frequência Porcentagem
L
Relações internacionais 11.991 18,60% I
Economia 9316 14,50% Z
A
Partidos e eleições 7559 11,80%
Ç
Violência 6019 9,40%
Ã
Infraestrutura 4158 6,50% O
Educação 3542 5,50%

Corrupção 3402 5,30% O

Agropecuária 3020 4,70% U

Minorias 1981 3,10%


D
Distribuição de renda 1935 3,00% I
Sistema financeiro 1859 2,90% Á
L
Trabalho 1717 2,70%
O
Meio ambiente 1584 2,50%
G
Saúde 1217 1,90%
O
Tributação 728 1,10% ?
Seca 639 1,00% ,
.
Juventude 502 0,80%

NA 3142 4,90% 309


Total 64.311 100,00%

Fonte: Elaborado pelo autor.

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Para testarmos o argumento do diálogo precisamos de uma medida
de convergência dos temas discutidos. Isto é, precisamos de uma me-
dida que resuma quão semelhantes eles são em um determinado mo-
mento do tempo. Utilizamos aqui o índice desenvolvido por Sigelman
e Buell (2004). Ele é calculado pela seguinte expressão:

Ʃni = 1 (|PAi - PBi|)


100 - ______________ (1)
2

onde PA e PB são as porcentagens do total de atenção dada a cada tema


i pelos partidos A e B, respectivamente. Por exemplo, se o partido A
A
fez 100 discursos, dos quais 20 estão na categoria x, 30 na y e 50 na z,
N temos que PA em x é 20%, PA em y é 30% e PA em z é 50%.
O
V
Vejamos, queremos uma medida que resuma o grau de similaridade
A entre os partidos. Assim, uma maneira simples de se fazer isso é somando
a diferença absoluta das porcentagens em cada tema. E como estamos
C somando 100% duas vezes – uma de PA e outra de PB – dividimos por
I
Ê 2 para que tenhamos um índice entre 0 e 100. Por fim, subtraímos de
N 100 para que a medida seja de similaridade e não de dissimilaridade.
C
I
Por exemplo, se tivermos a seguinte distribuição:
A

D Tema x Tema y Tema z


A Partido A 20% 30% 50%

P Partido B 50% 20% 30%


O
L
Í O índice será igual a 70. Isto é, há 70% de convergência nos discur-
T sos feitos pelos partidos A e B. Na seção que se segue utilizaremos este
I
C índice de Sigelman e Buell (2004) para calcularmos a similaridade entre
A os adversários políticos no Brasil.
.

310
Resultados
Nesta seção verificamos se os senadores brasileiros focalizam os seus
discursos em nichos específicos ou se buscam discursar sobre os mesmos
temas que os seus adversários.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 310 07/05/2021 10:40:08


Figura 1: Proporção dos temas por partido

PFL>DEM PMDB PSDB


Rel. internacionais Economia
Economia
Partidos e eleições
Violência
Infra-estrutura
Educação
Corrupção

PSDB
5.0% 10.0% 15.0% 20.0%
PT
Rel. internacionais Economia
Economia
Partidos e eleições
Violência
Infra-estrutura F
Educação O
Corrupção
C
5.0% 10.0% 15.0% 20.0% 5.0% 10.0% 15.0% 20.0%
A
Fonte: Elaborado pelo autor a partir de dados do Senado Federal. L
I
Z
A
Na Figura 1, apresentamos a proporção dos temas discutidos
Ç
por partido. Foram selecionados apenas os cinco principais partidos Ã
(PFL>DEM, PSDB, PMDB, PSB e PT) e os temas que contribuíram O
com ao menos 5% dos discursos totais. Como é possível observar, em
O
geral, não há nenhum partido que se especialize em uma temática. Os
U
três principais temas discutidos pelos partidos brasileiros são relações
internacionais, economia e partidos e eleições. D
I
Analisando os programas dos partidos políticos, Tarouco (2012)
Á
encontrou um resultado diferente. De acordo com a autora, os partidos L
brasileiros se diferenciam no que tange ao conteúdo apresentado em O
seus programas. No entanto, as categorias utilizadas são mais amplas do G
que as utilizadas aqui e estão relacionadas a temáticas como democracia O
?
e liberdade, sistema político, bem-estar e qualidade de vida e grupos ,
sociais. .

Na Figura 2, temos a proporção por mês dos assuntos discutidos 311


entre governo e oposição. Foram selecionados apenas os temas que con-
tribuíram com ao menos 5% dos discursos totais. O 100% está na soma
das caselas. Como vemos, em geral, também não há nenhum tema que
tenha sido mais discutido ao longo do tempo pelo governo ou pela opo-
sição. Ambos os lados mantém a mesma proporção em cada assunto. A

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exceção fica por conta de alguns picos em alguns momentos, como nos
temas de relações internacionais e violência.

Figura 2: Proporção dos temas por mês

N
O
V
A

C
I
Ê
N
C
I
A

D
A

P
O
L
Í
T
I
C
A
Fonte: Elaborado pelo autor a partir de dados do Senado Federal.
.

312
Esse resultado difere do encontrado por Sagarzazu (2011) para o
caso venezuelano entre 1996 e 2007. Conforme o autor, houve um
aumento da atenção às questões políticas tais como eleições e sobre a
situação política do país, sobretudo pela oposição. Por outro lado, ques-
tões de economia, que antes eram mais discutidos pela oposição, tam-
bém diminuíram de proporção. Ou seja, houve uma mudança de temas

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como economia, saúde e segurança nacional para temas como eleições
e situação política do país. Ainda segundo Sagarzazu (2011), essa mu-
dança está associada a uma estratégia partidária de longo prazo de deixar
de ser identificado com uma temática específica para uma estratégia de
discutir aquilo que está em pauta no dia a dia.
Em resumo, no caso brasileiro, os partidos não focalizam os seus
discursos em uma temática específica. Todos os partidos se sentem em
uma posição confortável para discutirem questões dos mais diversos as-
suntos. Além disso, ao longo dos últimos 20 anos parece não haver
nenhuma mudança de comportamento. Governo e oposição dedicam a
mesma proporção de tempo para cada área. E nenhuma área se sobressai
em relação a outra. F
O
C
Figura 3: Índice de similaridade entre os partidos por legislatura A
L
I
Z
A
Ç
Ã
O

O
U

D
I
Á
L
O
G
O
Fonte: Elaborado pelo autor a partir de dados do Senado Federal. ?
,
.

Na Figura 3, temos o índice de similaridade entre os partidos por


313
legislatura. Foram selecionados apenas os cinco principais partidos. Em
cada casela temos o índice entre o partido do eixo x e o partido do eixo
y. Por exemplo, durante a 53a legislatura (2007-2010), o PMDB e o PT
convergiram em 83% de seus discursos no plenário do Senado Federal.
Assim, o triângulo inferior da matriz é igual ao superior e a diagonal

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secundária é constante igual a 100. Os casos que estão sem números são
aqueles nos quais não foi possível calcular o índice de similaridade, pois
não havia discursos. Em geral, encontramos valores altos. A média foi
de 77,4 com um desvio padrão de 15,6. O menor valor encontrado foi
na 50a legislatura (1995-1998) entre o PSB e o PL>PR (26,5) e o maior
foi na 50a legislatura (1995-1998) entre o PFL>DEM e o PSDB (94,4).
Mais de 75% dos casos possuem índices maiores do que 70,8; mais da
metade possuem índices maiores do que 80,4; e mais de 25% maiores
do que 86,1.

Figura 4: Índice de similaridade entre governo e oposição por mês


A

N
O
V
A

C
I
Ê
N
C
I
A

D Fonte: Elaborado pelo autor a partir de dados do Senado Federal.


A

P Na Figura 4, temos o índice de similaridade entre governo e oposi-


O ção por mês. Em média, o índice de similaridade foi de 72,2 com um
L
Í desvio padrão de 12,6. Em outras palavras, governo e oposição conver-
T giram nos temas discutidos em 72,2% das vezes. Isto quer dizer que se
I
C um dos lados realocasse apenas 27,8% de seus discursos, teríamos uma
A convergência perfeita das temáticas debatidas entre governo e oposição.
. De todos os meses (272), apenas 16 estão abaixo de 50% e somente
três abaixo de 25%. No entanto esses meses são aqueles que possuem
314 poucos discursos. Em geral, são os meses de janeiro e de julho quando
ocorre o recesso parlamentar. Por exemplo, os três meses com os me
nores índices encontrados são os de janeiro de 2001, julho de 2002 e
janeiro de 2007.
Embora campanhas políticas ocorram em contextos completamente
diferentes de discursos parlamentares, a comparação entre os resultados

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pode ser ilustrativa. Os nossos resultados para o caso brasileiro são se-
melhantes aos encontrados por Sigelman e Buell (2004) para as campa-
nhas presidenciais dos Estados Unidos entre 1960 e 2000. Durante esse
período, o índice de similaridade nas 14 campanhas teve uma média de
71,4 com um desvio padrão de 4,6. O menor valor encontrado foi de
63,3 para a eleição de 1972 e o maior para a eleição de 2000 com um
índice de 77,5.
Kaplan et al. (2006), por sua vez, analisando as campanhas televi-
sionadas dos senadores americanos entre 1998 e 2002 encontraram ín-
dices um pouco mais baixos. Das 65 corridas senatoriais o índice médio
de convergência foi de 44,1 com um desvio padrão de 16,7. O menor
valor foi de 0 em 2000 no estado do Novo México e em Illinois em F
2002. O maior foi no Kentucky em 1998 com um índice de 67,4. O
C
A
Figura 5: Índice de similaridade entre PT e PSDB por mês L
I
Z
A
Ç
Ã
O

O
U

D
I
Á
L
Fonte: Elaborado pelo autor a partir de dados do Senado Federal. O
G
O
Olhando para a similaridade entre os dois principais partidos bra-
?
sileiros – PT e PSDB – ao longo do tempo encontramos índices um ,
.
pouco mais baixos, conforme a Figura 5. A média foi de 58,3 com um
desvio padrão de 14,3. Ou seja, em quase 60% das vezes os senadores
315
do PT e do PSDB estavam discutindo sobre o mesmo tópico. O menor
valor encontrado foi de 10 e o maior foi 83,0. Em metade das vezes o
índice esteve acima de 61,8 e em 25% das vezes esteve acima de 67,8.
Embora esse valor não seja tão alto se comparado ao agregado dos par-
tidos de governo e oposição, não podemos considerá-lo um valor baixo.

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Sobretudo quando comparado com os valores encontrados por Kaplan
et al. (2006) para as campanhas dos senadores norte-americanos.
Em resumo, não há evidências empíricas para a ideia de que os par-
tidos focalizam os seus discursos em determinadas áreas temáticas. Pelo
contrário, adversários políticos tendem a discursar sobre os mesmos te-
mas. Os resultados apontam para uma convergência temática, seja entre
os partidos, seja entre governo e oposição.
Embora a convergência seja uma condição necessária, ela não é uma
condição suficiente para a existência de diálogo. Por exemplo, vamos
supor que dois parlamentares sejam convidados para um debate. No
entanto os dois são do mesmo partido – isto é, possuem posições polí-
A
ticas semelhantes em diversos assuntos. Se eles estiverem falando sobre
N o mesmo tema, teremos uma convergência muito alta. Porém, o que
O iremos assistir não pode ser considerado realmente um diálogo entre
V
eles, mas sim um reforço de ideias. O fato de possuírem as mesmas
A
posições políticas e estarem conversando sobre um mesmo tema não
C
é muito informativo. Ou seja, não há uma troca de ideias de modo a
I salientar as diferentes visões sobre o assunto. Há apenas um realce de
Ê
uma mesma visão.
N
C Em teoria, uma convergência alta entre adversários políticos seria
I um bom indício de diálogo. Isto porque é razoável imaginar que um
A
político do governo teria uma visão diferente da de um da oposição;
D ou um petista teria uma visão diferente da de um peesedebista, no pe-
A
ríodo compreendido por esta pesquisa. Assim, não teríamos apenas um
P reforço de uma posição, mas sim uma troca de ideias que seria informa-
O
tiva para os eleitores. Contudo, sempre há uma desconfiança em relação
L
Í ao caso brasileiro. Para Kinzo (2004), por exemplo, os partidos políticos
T não oferecem opções claras e diferenciadas aos eleitores no Brasil. Estes
I
C se veem diante de uma disputa em que os partidos políticos não são
A entidades que constroem alternativas eleitorais e identidades partidá-
. rias. A intensa fragmentação, a falta de nitidez decorrente das alianças
eleitorais e a prática de governo de coalizão têm efeitos negativos sobre o
316 eleitorado. Para o eleitor mediano é difícil fixar a imagem dos partidos,
distinguir seus líderes e propostas e, assim, estabelecer uma lealdade
partidária. (KINZO, 2005, 76-77)
Portanto, dada essa falta de nitidez e fraqueza das legendas parti-
dárias, o fato dos senadores de diferentes partidos terem um índice de

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convergência alta não é suficiente para supormos que a convergência
seja um indício de diálogo. Assim, na seção que se segue verificamos se
estamos diante de um reforço de ideias ou se de fato estamos diante de
uma troca informativa de propostas.

Reforço ou diálogo?
Precisamos saber se o que observamos na seção anterior – alta con-
vergência – é fruto de diálogo ou se os senadores estavam apenas refor-
çando as mesmas ideias. Se estivermos diante de um diálogo, esperamos
que os discursos sobre um mesmo tema apresentem posições distintas
umas das outras. Caso contrário, se estivermos diante de reforço, não F
haverá posições discordantes entre si. É importante frisar que as posi- O

ções apresentadas em discursos não podem ser observadas diretamente. C


A
Isto é, no jargão estatístico, são variáveis latentes. O desafio, portanto,
L
é estimar essas posições que não são observadas a partir daquilo que I
podemos observar, isto é, os discursos. Z
A
A princípio, não há uma maneira fácil e incontroversa de se fazer Ç
isso. Mas podemos imaginar que os discursos que utilizam o mesmo Ã
conjunto de palavras tendem a ter posições mais semelhantes do que O
discursos que utilizam conjuntos diferentes. Se supusermos que essa
O
afirmação seja correta, a técnica do Wordfish (SLAPIN E PROKSCH,
U
2008) se torna uma boa forma de analisarmos a questão.
O Wordfish é um algoritmo de escalonamento que produz estimati- D
I
vas das posições de textos em uma única dimensão. O modelo analisa a
Á
frequência de vezes que um discurso i menciona a palavra j. Assume-se L
que essa frequência, yij, segue a distribuição Poisson. Assim, o modelo é O
G
O
yij ~ Poisson(λij)(2) ?
λij = exp(αi + ψj + βj * ωi) ,
.

317
onde α é um parâmetro para controlar o comprimento do texto; ψ
controla o uso da palavra, já que algumas palavras são mais frequentes
do que outras; β é um parâmetro do uso específico da palavra, isto é,
captura a importância da palavra j no escalonamento do texto; e ω é a
estimativa da posição do texto i. A estimação é feita por meio de um

Rogério - A nova ciencia politica.indd 317 07/05/2021 10:40:15


algoritmo de maximização de expectativas4. O nosso parâmetro de in-
teresse é o ω.
O conteúdo substantivo da dimensão em que as posições são es-
timadas, em muitos casos, não é predeterminado pelo analista e não
necessariamente é uma dimensão ideológica. Por exemplo, ao aplicarem
esta técnica sobre os discursos proferidos nos debates do Parlamento
Europeu, Proksch e Slapin (2010) encontraram que as posições esti-
madas não refletem divisões ideológicas do tipo esquerda-direita. Pelo
contrário, as posições estão associadas às divisões partidárias a respeito
da integração da União Europeia e divisões nacionais. Slapin e Proksch
(2008), por sua vez, ao analisarem os programas dos partidos alemães
A encontraram fortes indícios de que os textos capturam uma dimensão
N ideológica.
O No nosso caso, a questão do conteúdo substantivo da dimensão
V
A
não é um problema pois aplicamos o algoritmo separando os discursos
por tema. Por exemplo, para o tema distribuição de renda, separamos
C as 1.935 discursos classificados nessa categoria e estimamos as suas po-
I sições nessa dimensão de distribuição de renda. Não nos interessa se
Ê
N
esta dimensão está associada a uma escala de favoráveis à distribuição
C versus contrários à distribuição; ou uma escala de esquerda e direita. O
I que nos interessa saber é se os adversários políticos possuem posições
A
distintas em cada um dos temas.
D
Na literatura é comum separar as temáticas em hard politics e soft
A
politics. A primeira categoria – hard politics – trata de temas que com-
P preendem o centro do processo político e da gestão econômica. Por
O
L
exemplo, economia e relações internacionais são temas classicamente
Í englobados por esta categoria. Soft politics, por sua vez, diz respeito a as-
T
I
suntos voltados à área social como a saúde, educação e meio ambiente.
C Nas Figuras 6 e 7 apresentamos os resultados para cada um dos
A
temas. Nelas temos as posições médias dos discursos do governo e da
.
oposição em cada uma das temáticas por legislatura com os seus respec-
tivos intervalos de confiança ao nível de 95%. Por exemplo, a primeira
318
linha do campo de relações internacionais da Figura 6 apresenta a po-
sição média estimada para o governo e para a oposição nos discursos
do tema de relações internacionais durante a 48a Legislatura. Assim, o

4
Para mais detalhes, ver Proksch e Slapin (2010).

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governo obteve uma média de 0,14 e a oposição de -0,20 na dimensão
de relações internacionais.

Figura 6: Posição estimada média do governo e da oposição


nos temas de hard politics

F
O
C
A
L
I
Z
A
Ç
Ã
O

O
U

D
I
Á
Fonte: Elaborado pelo autor a partir de dados do Senado Federal. L
O
G
Na Figura 6 temos os resultados para os temas de hard politics. O
Como podemos observar, na maioria das temáticas, governo e oposi- ?
ção apresentam posições distintas, sobretudo a partir da 50a Legislatura, ,
.
quando se inicia o primeiro mandato do presidente Fernando Henrique
Cardoso. Isso fica claro nos discursos sobre relações internacionais, eco- 319
nomia, sistema financeiro, trabalho e agropecuária. Nos assuntos rela-
tivos à corrupção e partidos e eleições é interessante notar que governo
e oposição passaram a se distinguir somente a partir da 52a Legislatura,
sob o governo Lula. Antes disso não havia posições diferentes sobre estes
temas.

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Estes dados são indicativos de que estamos diante de um diálogo
entre governo e oposição. Ou seja, aparentemente os parlamentares não
estão apenas reforçando as propostas uns dos outros sem levar em con-
sideração as suas posições em relação à coalizão governamental. Se um
senador da oposição proferir um discurso sobre a corrupção, não é ape-
nas provável que um senador do governo também discurse sobre esse
mesmo tema, ele também apresentará uma visão diferente.
Mas o mesmo parece não ocorrer para os temas de soft politics, como
pode ser visto na Figura 7. Com exceção de distribuição de renda, ne-
nhum dos outros tópicos parece distinguir o governo da oposição. Os
dois lados aparentemente não possuem visões tão diferentes sobre ques-
A
tões de educação, saúde, meio ambiente, minorias, juventude e seca.
N O que os dados nos mostram é que, de fato, não tivemos divergências
O
V
importantes nessas áreas. Podemos especular que isso ocorreu ou pela
A natureza da questão ou pelo tipo de força política que dominou a polí-
tica nacional durante o período analisado.
C No caso da distribuição de renda, que geralmente é classificado com
I
Ê um tema de soft politics, vemos que governo e oposição apresentam po-
N sições diferentes. Porém, no caso brasileiro, essa temática talvez não seja
C
I
apenas uma questão social. Este é um tema fundamental e que ganhou
A relevo especialmente na administração do governo Lula.
D
A

P
O
L
Í
T
I
C
A
.

320

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Figura 7: Posição estimada média do governo e da
oposição nos temas de soft politics

F
O
C
A
L
I
Z
A
Ç
Ã
O
Fonte: Elaborado pelo autor a partir de dados do Senado Federal.

O
U

Considerações finais D
O objetivo deste trabalho foi verificar se os senadores brasileiros I
Á
concentram os seus discursos em assuntos específicos, pois não perce- L
bem nenhum benefício em falar sobre temas que são especialidade de O
seus oponentes (PETROCIK, 1996; SIMON, 2002), ou se eles estão G
em constante debate em torno de determinados pontos da agenda polí- O
?
tica (ANSOLABEHERE E IYENGAR, 1994). ,
.
Utilizando técnicas de análise quantitativa de textos e um banco
de dados inédito com a indexação de mais de 64 mil discursos encon-
321
tramos suporte para a segunda hipótese. Adversários políticos tendem
a discursar sobre os mesmos temas. E mais importante do que isso,
em temas que compreendem o centro do processo político e da gestão
econômica, eles apresentam posições distintas. Se um político discursar
sobre um tema A, provavelmente o seu adversário discursará sobre o

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mesmo tema A. Porém, ele apresentará uma visão diferente da de seu
adversário.
Ao contrário do que argumentam Sagarzazu (2011) e Petrocik
(1996), acreditamos que isso não esteja relacionado à institucionali-
zação ou fraqueza do sistema partidário do país. O fato dos partidos
políticos não focalizarem os seus discursos em temas específicos e busca-
rem o constante diálogo com os seus oponentes não mostra outra coisa
senão a força dos partidos. A busca em se mostrar responsivo perante
os seus eleitores e apresentar diferentes visões sobre o mesmo problema
mostram a sua importância. Como lembra Sides (2006), ao discursa-
rem sobre temas que seriam de “propriedade” de seus oponentes, os
A políticos buscam ressaltar dimensões que estão em consonância com a
N ideologia de seus próprios partidos. Este parece ser o caso dos senadores
O brasileiros.
V
A

C
I
Ê
N
C
I
A

D
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P
O
L
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A
.

322

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Apêndice
Figura 8: Exemplo de uma página de indexação

Pronunciamento
Detalhamento
voltar
Autor Eduardo Suplicy (PT – Partido dos Trabalhadores /SP
Nome Completo Eduardo Matarazzo Suplicy
Data 03/05/2007 Casa Senado Federal Tipo Pronunciamento
Resumo Comemoração de centésimo quadragésimo segundo aniversário de
nascimento do Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon.
Indexação HOMENAGEM POSTUMA, ANIVERSÁRIO, CÂNDIDO MARIANO
DA SILVA RONDON, MARECHAL, PATRONO, TELECOMUNICAÇÃO,
BRASIL, DEFESA, COMUNIDADE INDÍGENA, SAUDAÇÃO, TELEVISÃO, F
ANÚNCIO, EXIBIÇÃO, PROGRAMA, HISTÓRIA, MARECHAL, DEFESA, O
PRESERVAÇÃO, MEIO AMBIENTE, REGISTRO, RECEBIMENTO, VISITA,
C
SERVIDOR, (IBAMA), PROTESTO, MEDIDA PROVISÓRIA, DIVISÃO,
ORGÃO PÚBLICO. A
L
Catálogo HOMENAGEM. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.
I
Publicação no DSF de 04/05/2007 – página 12428 Z
A
Ç
Texto integral
Ã

Fonte: Senado Federal. O

O
U

D
I
Á
L
O
G
O
?
,
.

323

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O

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U

D
I
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L
O
G
O
?
,
.

325

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Danilo Buscatto Medeiros

Doutor em Ciência Política pela University of


Virginia (2019), Mestre em Ciência Política pela
Universidade de São Paulo (2013) e Bacharel em
Ciências Sociais pela mesma instituição (2009).
Atualmente é pós-doutorando do Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP),
pesquisador do Núcleo de Estudos Comparados
e Internacionais da USP (NECI) e pesquisador
colaborador do Centros de Estudos de Opinião
Pública da UNICAMP (CESOP).

Minha trajetória como pesquisador é marcada


pela análise sistemática do comportamento
dos atores políticos no Brasil. No mestrado
estudei como a tão emendada Constituição
Federal de 1988 foi produzida. Demonstrei que um modelo institucional que dificultava
a formação de maiorias propositivas fortaleceu as lideranças, as quais passaram a
costurar acordos nas votações cruciais.

Já no doutorado investiguei as respostas oferecidas pelos legisladores brasileiros às


pressões dos eleitores e dos partidos. Através de análises de séries temporais, mostrei
que a variação no nível de desigualdade de renda das bases de apoio eleitoral influencia
o extremismo na legislatura, bem como a posição dos líderes partidários. Minha
pesquisa atual aprofunda estes resultados e investiga como o fenômeno da polarização
política está relacionado tanto a fatores exógenos e endógenos ao processo legislativo.

Realizei em coautoria outros estudos sobre a formação e agregação de preferências no


Congresso Nacional, entre os quais justamente o capítulo publicado neste livro.

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COALIZÕES E COMPORTAMENTO
LEGISLATIVO NO BRASIL (1988-2010)

Andréa Freitas
Maurício Izumi
Danilo Medeiros

Introdução
O objetivo deste capítulo é entender como se estrutura o comporta-
mento de deputados e senadores brasileiros em votações nominais vis-à-
-vis estratégias partidárias de participar ou não da coalizão de governo.
Com isso pretendemos contribuir para a discussão sobre a formação,
operação e manutenção das coalizões de governo em sistemas presiden-
cialistas multipartidários.
Em geral, assume-se que a distribuição das preferências reveladas
no Legislativo brasileiro segue uma estrutura unidimensional caracte-
rizada pelo conflito entre governo e oposição (Leoni 2002; Zucco Jr.
& Lauderdale 2011; Zucco Jr. 2009). Os estudos que motivam essa
conclusão analisam o comportamento dos deputados no plenário da
Câmara dos Deputados e estendem suas conclusões ao Congresso
Nacional, sem, no entanto, respeitar possíveis especificidades do Senado
Federal. Assim, nossa primeira preocupação é introduzir o Senado na
análise de forma a responder se o comportamento dos senadores no
plenário também pode ser caracterizado como unidimensional e, se tal
como a Câmara, é estruturado pela divisão governo-oposição.
Isso nos leva ao segundo ponto que pretendemos explorar. O que
explicaria esse padrão? Dito de outra forma, a entrada ou saída for-
mal de um partido da coalizão gera uma mudança de comportamento
dos parlamentares? As respostas podem ser encontradas na motivação
dos partidos para entrar ou sair da coalizão. Mais do que isso, cabe ex-
plicação para o quanto o comportamento legislativo é estruturado em
termos do conflito entre oposição e governo. Disso derivam outras ques-
tões: (1) os partidos que entram em uma coalizão durante um mandato

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presidencial já estavam alinhados com as preferências do governo ou
passam a apoiá-lo apenas após sua entrada? (2) Os partidos que saem de
uma coalizão o fazem porque já não acompanhavam o governo nas vo-
tações ou alteram seu comportamento logo após a saída ou ainda nada
muda? (3) Os parlamentares individualmente acompanham a decisão
de seus líderes? A depender das respostas ainda cabe questionar por que
o governo convidaria para a coalizão um partido que já o apoia? De tal
forma, será possível compreender com maior acuidade se a estratégia de
formar uma coalizão de governo é efetiva; isto é, se uma vez formada a
coalizão, esta estruturará o comportamento de seus membros, tal como
geralmente ocorre em sistemas parlamentaristas.
A Na seção que se segue fazemos alguns apontamentos acerca da me-
N todologia empregada – a estimação de pontos ideais – e apresentamos
O uma estatística descritiva dos dados utilizados. Na seguinte, discutimos
V a questão da dimensionalidade e o seu conteúdo substantivo. Em se-
A
guida, avaliamos a influência da coalizão sobre o comportamento legis-
lativo. Por fim, tecemos algumas considerações finais.
C
I
Ê
N Metodologia e objeto
C
I Neste trabalho utilizaremos as votações nominais na Câmara dos
A Deputados e no Senado Federal1 para entender o que estrutura o com-
D portamento dos parlamentares em plenário. Para recuperar as dimen-
A sões do espaço político utilizaremos técnicas de estimação baseadas em
P modelos espaciais do voto (Enelow & Hinich, 1984; Hinich & Munger,
O 1997).
L
Í O modelo espacial assume que as alternativas políticas podem ser
T representadas como pontos em um espaço euclidiano – uma linha,
I
C plano ou hiperplano. Legisladores, por sua vez, possuem preferências
A definidas sobre essas alternativas (McCarty, Poole, & Rosenthal, 2001).
. Assume-se, então, que essas preferências são de pico único (single-pea-
kedness), ou seja, de todas as alternativas políticas possíveis, apenas uma
328 delas é a preferida pelo legislador. Dizemos que ela é o seu ponto ideal.
Ainda parte-se do pressuposto de que as preferências são simétricas, ou

1
Os dados utilizados são do Banco de Dados Legislativos do CEBRAP e estão
disponíveis mediante solicitação aos autores.

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seja, se existe duas alternativas políticas equidistantes do ponto ideal do
legislador, ele é indiferente às duas propostas. Esse pressuposto é bas-
tante restritivo (Hinich & Munger, 1997). Isso porque ele exclui formas
plausíveis de preferências políticas. Por exemplo, a redução em 5% dos
impostos pode ser algo muito mais importante para um parlamentar
do que um aumento da mesma magnitude. É razoável imaginar que
ele não seja indiferente às duas propostas que, embora equidistantes em
relação à sua posição, apontam para direções opostas.
Por fim, é comum assumir que o voto seja sincero. O que equivale
a dizer que quando um legislador se depara com duas alternativas (vo- C
O
tar “Sim” ou “Não” em uma proposta), ele escolherá aquela que estiver
A
mais próxima de seu ponto ideal. Isso implica que a decisão tomada
L
naquele momento leva em consideração somente essas duas alternativas I
e deixa de lado tudo o que será votado no futuro (Hinich & Munger, Z
Õ
1997). A linha que divide os pontos ideais dos apoiadores dos oposito-
E
res da proposta é conhecida como linha de corte (cutline). Relacionado S
a isso, quando estamos diante de um plano com mais de uma dimensão,
assume-se também que as preferências são separáveis (separable prefe- E

rences). Isso quer dizer que a escolha feita em uma votação não tem in- C
fluência na escolha feita em outra votação. Se as preferências não forem O
separáveis, os pontos ideais em cada questão serão conhecidos apenas M
condicionalmente. P
O
Esta técnica é embebida pela ideia de sistemas de crenças de
R
Converse (1964). Segundo ele, um sistema de crenças é “uma configu- T
ração de ideias e atitudes cujos elementos são interligados por alguma A
forma de constrangimento ou interdependência funcional” (Converse, M
1964, p. 207). Por exemplo, se sabemos que um legislador é favorá- E
vel aos direitos trabalhistas, daí podemos derivar que ele será favorável N
T
ao aumento do salário mínimo e à expansão dos serviços públicos de
O
saúde. Ou seja, se sabemos que um legislador tomou uma decisão A em
?
um tema x, estamos aptos a afirmar que ele tomará uma decisão A’ no ,
.
tema y. Quando aplicado às votações nominais, essa interdependência
329
entre esses diversos assuntos tem uma interpretação geométrica.
Nos últimos 30 anos, diversos modelos probabilísticos de voto le-
gislativo foram desenvolvidos com base nessas ideias. Como, por exem-
plo o W-NOMINATE (Poole & Rosenthal, 1985, 1991) e o IDEAL
(Clinton, Jackman, & Rivers, 2004).

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Como argumentam Rosenthal e Voeten (2004, p. 621), modelos
paramétricos, como o W-NOMINATE e o IDEAL, “assumem que
os erros são independentes e identicamente distribuídos (i.i.d.) entre
os legisladores e as votações”. Ainda de acordo com eles, embora esse
pressuposto seja factível para o Congresso norte-americano, para o qual
tais técnicas foram desenvolvidas e largamente testadas, ele pode não
ser apropriado para o contexto de outras legislaturas, por exemplo, o
Congresso brasileiro.
Para deixar mais claro esse ponto, dizemos que um erro ocorre
quando um parlamentar vota “Sim”, quando o modelo diria que ele
deveria votar “Não” (ou vice-versa). Assim, em modelos paramétricos,
A
assume-se que todos os parlamentares – independentemente de suas
N características pessoais, de seus partidos ou da natureza da matéria em
O votação – possuem a mesma chance de votar de forma “errada”. No en-
V
tanto, algumas características – como a disciplina partidária, a migração
A
partidária e a formação de coalizões – tornam os erros mais prováveis
C para alguns grupos de parlamentares. Por exemplo, se o partido A exige
I uma disciplina maior de seus membros do que o partido B, então os
Ê
N
parlamentares do partido A estarão mais sujeitos a erros do que os do
C partido B, já que terão que votar contra as suas preferências. Isso violaria
I o pressuposto de independência. Raciocínio semelhante segue para as
A
migrações partidárias e a formação de coalizões. E como no caso norte-
D -americano a disciplina não varia entre os partidos, a migração partidá-
A
ria é um fenômeno raro e o sistema é bipartidário, não há a violação do
P pressuposto. O mesmo não pode ser dito sobre o caso brasileiro.
O
L Um primeiro ponto diz respeito à disciplina partidária. Se alguns
Í legisladores estão mais sujeitos a uma forte pressão do partido do que
T
I outros, o pressuposto de que os erros são i.i.d. é provavelmente vio-
C lado. Como os dados de Figueiredo e Limongi (1999) e Neiva (2011)
A
mostram, a disciplina entre os partidos no Congresso brasileiro varia
.
de maneira significativa. Enquanto alguns partidos, como o PT, são
extremamente coesos/disciplinados, outros, como o PMDB, possuem
330
índices não tão altos.
Em segundo lugar, a migração partidária é outro problema.
Obviamente, se os parlamentares não alterarem o seu comportamento
ao migrar de partido, não há problema algum. Mas, se eles migram
de um partido mais disciplinado para um menos disciplinado (ou

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vice-versa) e, assim, tornam-se sujeitos a uma maior pressão partidária
nas votações, o pressuposto é violado. Mais importante do que isso, é
razoável imaginar que mudar de partido altera o ponto ideal do parla-
mentar (Rosenthal & Voeten, 2004, p. 621). E o mesmo argumento
pode ser estendido para a entrada/saída de um partido da coalizão de
governo. Mesmo que o parlamentar não tenha migrado de partido, sa-
bemos que a orientação do partido e consequentemente do parlamentar
pode ser completamente diferente.
Por fim, o comportamento estratégico é um terceiro fator que viola
o pressuposto (Rosenthal & Voeten, 2004, p. 622). Votar estrategica- C
mente está aqui em contraposição à ideia de voto sincero. Isso implica O

que, se um parlamentar está diante de duas alternativas políticas, não A


L
necessariamente ele votará naquela que está mais próxima de seu ponto I
ideal. Legisladores que votam, digamos, com os interesses de seus esta- Z
dos e não com os do partido, violam sistematicamente o pressuposto de Õ

i.i.d.. E
S
Com vistas a minimizar esses problemas, será utilizada neste traba-
lho a técnica não paramétrica do Optimal Classification (Poole, 2000). E

Essa técnica, ao contrário do W-Nominate e do IDEAL, não é susten- C


tada sobre qualquer pressuposto acerca da forma funcional das prefe- O
rências dos legisladores e sobre a distribuição dos erros2. O OC busca M
encontrar os pontos ideais dos legisladores e os cutpoints das votações P
que minimizam o número de erros. Ou seja, ele maximiza a classificação O
correta das escolhas legislativas (Poole, 2000, p. 212). O procedimento R
consiste em três etapas (Poole, 2005, p. 82): T
A
M
1. Valores iniciais são gerados para os parlamentares a partir E
da decomposição em autovalores e autovetores (eigenvalue- N
T
-eigenvector decomposition) da matriz de concordância
O
parlamentar-parlamentar; ?
,
2. Dados os pontos ideais dos parlamentares, para cada votação .
é encontrado um plano de corte que maximiza a classificação 331

correta dos votos dos parlamentares;

2
O único pressuposto é o de que as preferências dos legisladores são simétricas
e de pico único.

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3. Dados os planos de corte das votações, para cada parlamentar é
encontrado um ponto no espaço que maximiza a classificação
correta dos votos dos parlamentares;
4. Retorna-se para a etapa 2.

Nesse processo iterativo, o número de classificações corretas nunca


diminui. E as etapas 2 e 3 podem ser repetidas até que nenhum ganho
em classificações corretas seja mais possível.
As estimativas geradas pelo Optimal Classification são altamente
semelhantes às produzidas pelas outras técnicas paramétricas. No en-
A tanto, ela tem a vantagem de não fazer nenhuma pressuposição acerca
N
da forma funcional da utilidade dos parlamentares e da distribuição dos
O erros.
V Nesse trabalho, utilizamos todas as votações nominais ocorridas no
A
plenário da Câmara dos Deputados e do Senado Federal entre janeiro
C
de 1989 e dezembro de 2010. Ao todo são seis legislaturas, sob o go-
I verno de cinco presidentes diferentes e com 19 coalizões formadas. Na
Ê
Câmara, durante esse período ocorreram 2.394 votações nominais, com
N
C a participação de 1.989 deputados e foram dados 847.295 votos. E no
I Senado ocorreram 1.408 votações nominais, com a participação de 362
A
senadores e foram dados 80.640 votos.
D
A
O Optimal Classification exclui todas as votações em que não houve
conflito. Ou seja, todas aquelas em que 97,5% do plenário votou de
P
forma igual serão excluídas. Além disso, o método inclui apenas os par-
O
L lamentares que votaram ao menos 20 vezes em cada período estudado –
Í neste caso, por legislatura. Uma importante decisão a ser tomada nesse
T
I momento é a escolha da unidade de análise. Poole e Rosenthal (1997), por
C exemplo, utilizam o parlamentar individual. Leoni (2002, p. 367) segue
A
uma estratégia semelhante e adota “retratos” do partido. Basicamente é
.
o partido pelo qual o parlamentar votou pela primeira vez na legislatura
em questão. Porém, dada a questão da migração partidária, acreditamos
332
que essa escolha seja problemática. Por exemplo, vamos supor que um
senador do PDT migre durante o primeiro mandato do governo Lula
para o PSDB. Suponhamos também que o PDT faça parte da coali-
zão do governo e o PSDB faça oposição. Se consideramos o parlamen-
tar em questão unicamente em um ou em outro partido, estaríamos

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cometendo um equívoco relativamente grave. Sobretudo se temos em
vista, como sugere grande parte da literatura (Figueiredo & Limongi,
1999; Leoni, 2002; Neiva, 2011; Zucco Jr. & Lauderdale, 2011; Zucco
Jr., 2009), que o pertencimento ou não do partido à coalizão gover-
namental é um fator determinante do comportamento parlamentar
individual.
Com vistas a minimizar esse problema, adotamos como unidade
de análise o parlamentar na coalizão. Esclarecendo: se um parlamentar
membro de um partido governista migrar para um partido que também
faça parte da coalizão, o parlamentar entra apenas uma vez em nossa C
O
base de dados. Contudo, se ele migrar para um partido que seja da
A
oposição, ele entrará com dois registros. Da mesma forma, se um legis-
L
lador estiver em um partido que se alterna entre coalizão e oposição na I
mesma legislatura, ele também terá dois registros. Z
Õ
Na Tabela 1, apresentamos o número de votações e de deputados e
E
senadores que sobreviveram aos critérios adotados. Em primeiro lugar, S
é possível notar que o número de votações é muito maior na Câmara.
E
Isso ocorre, em grande parte, porque todas as matérias, com exceção da-
quelas de autoria de senadores, começam a tramitar na Câmara Baixa. C
Isso não é irrelevante. Sobretudo se considerarmos que o Presidente da O
República é o principal legislador. Ou seja, grande parte das matérias M
começa sua tramitação na Câmara, se rejeitada ou se não completa seu P
processo de tramitação na casa, ela não chega ao Senado. Além disso, o O

número de senadores é muito menor do que o de deputados. Com 81 R


T
membros, o Senado brasileiro corresponde a apenas 16% do tamanho A
da Câmara dos Deputados – fato que reduz os potenciais autores de M
projetos, como também facilita a promoção de consenso, reduzindo o E
número de votações nominais nesta casa3. N

Assim, o número reduzido de votações nominais no Senado pode T


O
ser um indício de que os conflitos em torno das matérias já tenham sido ?
resolvidos na Câmara. Ou ainda que por ser uma casa menor tenham ,
.
maior capacidade de resolver esses mesmos conflitos antes da chegada 333

3
Freitas (2016) demonstra que projetos que são alterados na Câmara dos
Deputados dificilmente são alterados no Senado Federal. Ou seja, a tramitação
dos projetos na Câmara Alta é facilitada pela resolução dos conflitos em torno
da matéria na Câmara baixa.

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dos projetos no plenário. Nota-se ainda que, na média, as votações da
Câmara são mais conflituosas do que as do Senado. Cerca de 47% das
votações ocorridas no Senado foram excluídas porque não apresentaram
conflito – 97,5% do plenário votou igual –, ao passo que na Câmara
somente 24% superaram esse patamar de unanimidade. Ou seja, tra-
balharemos com 744 das 1.408 votações do Senado e 1.820 das 2.394
votações da Câmara.

Tabela 1: Votações e parlamentares incluídos

Câmara dos Deputados

A Votações Votações Deputados Deputados


Legislatura
N
nominais incluídas votantes incluídos
O 48ª 94 89 (94,6%) 815 595 (73,0%)
V 49ª 258 220 (85,2%) 978 841 (85,9%)
A
50ª 545 495 (90,8%) 811 765 (94,3%)

51ª 434 302 (69,5%) 768 652 (84,8%)


C
I 52ª 443 313 (70,6%) 864 799 (92,4%)
Ê 53ª 620 401 (64,6%) 705 602 (85,3%)
N
Total 2394 1820 4941 4254
C
I Senado Federal
A
48ª 45 35 (77,8%) 131 27 (20,6%)
D 49ª 179 126 (70,4%) 167 132 (79,0%)
A
50ª 514 264 (51,4%) 129 101 (78,3%)
P 51ª 280 158 (56,4%) 147 113 (76,9%)
O
52ª 222 99 (44,6%) 144 107 (74,3%)
L
Í 53ª 168 62 (36,9%) 126 77 (61,1%)
T
Total 1408 744 844 557
I
C Fonte: Elaborado pelos autores, com base no
A Banco de Dados Legislativos do CEBRAP.
.

No que diz respeito ao número de senadores votantes incluídos,


334
temos uma média de 93,3 por legislatura. Entretanto, temos um desvio
padrão alto (37,5) que atinge seu ponto mínimo na 48ª Legislatura
(com 27 senadores) e seu ponto máximo na 49ª (com 135 senadores).
Para a Câmara temos uma média de 692,3 deputados por legislatura

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com um desvio padrão de 87,5. Com essas informações, seguimos com
a análise da dimensionalidade na próxima seção.

Dimensionalidade
O problema da dimensionalidade do espaço político não é novo
para os estudiosos. Um dos maiores precursores a examinar a questão
foi Duncan Black (1948, 1958). Segundo o autor, em contextos unidi-
mensionais existe um equilíbrio único que se dá na posição mediana.4
Ou seja, em decisões tomadas pela regra da maioria, aquele que está C
nesta posição nunca perde. Nos modelos teóricos de decisão legislativa O
baseados na ideia de median-voter, as preferências dos legisladores e as A
L
propostas (ou emendas) em votação podem ser representadas por pon-
I
tos em um espaço euclideano. Para decidir o seu voto, cada parlamen- Z
tar calcula a distância entre o seu ponto ideal e a localização tanto da Õ
proposta como do status quo. Como sua preferência é de pico único, ele E
S
escolherá a opção que está mais próxima de seu ponto ideal (Krehbiel,
1998). Se a votação for de maioria simples, haverá equilíbrio na posição E
mediana. Repare que esse modelo assume que o partido não é capaz de
C
forçar ou constranger o voto do indivíduo. Se parlamentares de mesmo
O
partido votam de forma semelhante isto se dá por que eles possuem
M
preferências semelhantes (Krehbiel, 1993)5.
P
No entanto, estas assertivas só são válidas em espaços políticos uni- O
dimensionais. Quando estamos diante de um plano com mais de uma R
dimensão, o caos se instaura e tudo pode acontecer (McKelvey, 1976). T
A
Nesse momento, a questão do número de dimensões passa a ser rele-
M
vante. Mas como determinar o número de dimensões a ser estimado?
E
Na visão de Poole (2005, p. 141), isso é mais uma questão substantiva
N
do que estatística. Não há nenhuma técnica que seja crucial na escolha T
entre um modelo unidimensional ou multidimensional. Uma sugestão, O
porém, é olhar para o número de classificações corretas – isto é, o ajuste ?
,
.

335
4
A primeira formulação foi de Harold Hotelling (1929) com aplicações na
economia. Posteriormente, Anthony Downs (1999) o utilizou para estudar a
competição eleitoral.
5
Vale frisar que, nesse modelo, o voto do legislador não é necessariamente
sincero. É estratégico: o votante sempre optará pela opção mais próxima do
seu ponto ideal.

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do modelo (Poole, 2005). Classificações corretas ocorrem quando o
modelo prediz o voto do parlamentar igual ao voto que ele efetivamente
apresentou em uma votação.
Como é possível observar na Tabela 2, com apenas uma dimen-
são o OC classificou corretamente no mínimo 90,7% das votações (49ª
legislatura) para o Senado e 90,5% para a Câmara dos Deputados. Isso
não é um valor baixo, principalmente se compararmos com o resultado
encontrado para outros parlamentos ao redor do mundo. Por exemplo,
na 105ª legislatura da Casa dos Representantes americana temos um
valor de 88,2%. Ou o parlamento britânico com 89,7% (Leoni 2002,
369; Poole & Rosenthal 2001). Em outras palavras, o acréscimo de
A mais uma dimensão melhora pouco o ajuste do modelo, permitindo
N assim que consideremos para o caso brasileiro apenas uma dimensão.
O
V
A Tabela 2: Classificação Correta e APRE

Câmara dos Deputados Senado Federal


C
I Classificações Classificações
Legislatura Dimensões APRE APRE
Ê Corretas (%) Corretas (%)
N
1 91,2 0,68 94,8 0,81
C 48ª
I 2 93,5 0,76 98,5 0,94
A 1 90,5 0,63 90,7 0,50
49ª
2 92,3 0,70 93,7 0,66
D
A 1 92,6 0,72 91,9 0,61
50ª
2 93,3 0,75 93,2 0,67
P
1 94,0 0,76 92,1 0,58
O 51ª
L 2 95,0 0,80 94,0 0,68
Í
1 93,0 0,63 91,8 0,67
T 52ª
I 2 94,1 0,69 93,8 0,75
C
1 92,7 0,64 94,0 0,77
A 53ª
2 93,5 0,68 96,4 0,86
.
Fonte: Elaborado pelos autores com base no Banco de Dados Legislativos – CEBRAP.

336

Além da porcentagem de classificações corretas também precisamos


ver a APRE (Redução Proporcional do Erro Agregado). Pois, o primeiro
ajuste por si só tende a gerar estimativas inflacionadas pelas votações em
que uma maioria supera largamente a minoria. Por exemplo, vamos supor

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que em uma votação 90% do plenário vote “Sim” e os 10% restantes
votem “Não”. Se escolhermos aleatoriamente um parlamentar, a proba-
bilidade de classificar corretamente o seu voto é de 90% (Poole, 2005,
p. 129).
Para não cair nessa predição ingênua criou-se a medida APRE6. Ela
varia de zero a um. Quando seu valor é igual a zero significa que o mo-
delo não explica nada. Por outro lado, se atinge o valor igual a um, uma
classificação perfeita foi alcançada.
Na Tabela 2, temos o APRE com uma dimensão e com duas di-
mensões. O que se observa é que, o acréscimo de uma segunda dimen- C
O
são aumenta pouco a capacidade explicativa do modelo. Isso justifica a
A
adoção de apenas uma dimensão.
L
Em resumo, o que podemos concluir a partir dos ajustes é que com I
Z
apenas uma dimensão podemos representar razoavelmente bem as vota-
Õ
ções nominais do Senado Federal e da Câmara dos Deputados. A ques-
E
tão agora é saber qual é o conteúdo substantivo dessa dimensão. S

E
O conteúdo da primeira dimensão
C
Apenas uma dimensão serve para indicar o posicionamento dos par- O
lamentares. Mas qual seria ela? As análises de Poole e Rosenthal (1985, M
1991, 1997) permitem concluir que, no caso dos Estados Unidos, os P

comportamentos manifestos pelas votações podem ser explicados basi- O


R
camente por uma dimensão, que distingue liberais e conservadores. Isto
T
ocorre ainda que não se possa negar a existência de issues multidimen- A
sionais. Os autores sustentam que até a aprovação dos direitos civis nos M
anos 1960, questões de raça e de distribuição definiam as preferências, E
mas desde então se tornaram altamente correlatas de modo a se colap- N
sarem em um espaço unidimensional (Poole & Rosenthal, 2001, p. 7). T
O
Outras pesquisas sobre os congressos latino-americanos utilizaram
?
o W-Nominate. Alemán e Saiegh (2007) e Alemán (2008) analisam o ,
.
Congresso chileno no período recente e confirmam a forte divisão entre
337

6
O cálculo do APRE é dado pela seguinte expressão (Leoni, 2002, p. 369):
n Votos da Minoriaj – Erros feitos pelo NOMINATEj
APRE =∑
j=1 n
∑ Votos da Minoriaj
j=1

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as duas principais coalizões políticas do país, Concertación e Alianza, e
também suas estabilidades e coerências partidárias internas. As preferên-
cias podem ser resgatadas unidimensionalmente. O estudo de Onuki,
Ribeiro e Oliveira (2009) confirma os resultados para as votações de po-
lítica externa no Chile, mas mostra que no caso argentino as preferên-
cias não estão polarizadas, sendo difícil distinguir os partidos. Ao menos
na apreciação de política externa, os legisladores tendem ao centro. Para
os casos argentino (Jones, Hwang, & Micozzi, 2008; Jones & Hwang,
2005) e uruguaio (Altman, 2000; Zucco Jr., 2013), a despeito das afi-
nidades ideológicas dos parlamentares, observamos uma clara divisão
entre governistas e oposicionistas.
A Em estudo comparando 16 países, baseado na estimação de pon-
N tos ideais, Hix e Noury (2016) sustentam que em quase todos os con-
O textos institucionais o conflito governo-oposição, e não posições sobre
V políticas (policy positions), impulsionam o comportamento legislativo.
A
As exceções seriam os sistemas nos quais as coalizões legislativas são
construídas issue-by-issue: regimes presidencialistas com formação de
C
I coalizões de governo (notadamente o Brasil) e sistemas parlamentaristas
Ê de governo minoritário. Nestes casos, a diferenciação entre esquerda e
N
direita (preferências sobre políticas) ditaria o comportamento dos par-
C
I lamentares. Neste caso, e pensando exclusivamente nas conclusões dos
A autores sobre o Brasil, as suposições que fazem acabam por contaminar
D os resultados, basta dizer que ao analisar os regimes presidencialistas os
A autores juntam na categoria presidencialismo de coalizão Brasil, Chile,
P o Parlamento Europeu, e República Tcheca, esse último um parlamen-
O tarismo minoritário.
L
Í
No caso brasileiro, o estudo pioneiro foi de Leoni (2002). O ní-
T vel de 85% de predição dos votos analisados aponta para a unidimen-
I
C
sionalidade. Com a aferição da posição do Presidente da República,
A através do voto da liderança do governo no plenário da Câmara dos
. Deputados, é possível afirmar que as posições dos parlamentares na pri-
meira dimensão estão amplamente associadas à oposição ou ao apoio
338 dado às propostas do Executivo.
Nessa linha, Zucco Jr. (2009) analisa um número maior de legis-
laturas da Câmara de Deputados e conclui enfaticamente que, sendo
o significado substantivo da dimensionalidade totalmente subjetivo, a
primeira dimensão refletiria o conflito entre governo e oposição. Isto

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ocorreria porque o governo tenta ganhar apoio legislativo lançando
mão de diferentes recursos disponíveis. O autor sustenta que há que
se avançar quanto ao entendimento de que o comportamento legisla-
tivo é um indicador direto de ideologia, enquanto, em especial para o
caso brasileiro, “comportamento é o produto de inclinações ideológicas
pré-existentes e de trocas políticas entre governo e congresso” (Zucco
Jr., 2009, p. 1081). Voltando ao trabalho de Hix e Noury (2016), ainda
que discordem da assertiva de Zucco Jr. de que há unidimensionalidade
do espaço político brasileiro e que essa reflete o conflito entre governo
e oposição, os autores vão na mesma direção quando afirmam que os C
votos são conquistados no varejo e que as preferências sobre políticas O
importam para os parlamentares individualmente7. A
L
Enfim, a literatura que vem utilizando a estimação de pontos ideais I
de legisladores tem atribuído à primeira dimensão o espectro ideoló- Z
gico ou a divisão entre governo e oposição – muitas vezes, trata-se da Õ

combinação/sobreposição dos dois fatores (cf. Zucco Jr. & Lauderdale, E


S
2011). Comparar os pontos ideais estimados com a porcentagem de
votos favoráveis ao governo8 é uma saída para verificar se a ordenação se E
encontra dentro do esperado. É o que apresentamos na Figura 1.
C
Nota-se um padrão: as duas variáveis estão fortemente correlacio- O
nadas. A exceção fica por conta da 49ª legislatura, na qual encontramos M
uma correlação um pouco mais fraca. Até a 51ª, quanto maior o valor P
da 1ª dimensão, maior a quantidade de votos dados ao governo. A partir O
da 52ª legislatura, o quadro se inverte. Com a ascensão de um presi- R
dente de esquerda, as correlações continuam fortes, mas agora com o T
A
sinal negativo. Isso sugere que essa primeira dimensão de fato representa
M
uma clivagem entre governo e oposição.
E
N
T
O
?
,
.

339
7
Vale frisar que as conclusões de Hix e Noury (2012) estendidas ao Brasil são muito
influenciadas pela escolha de apenas uma legislatura (primeiro mandato de
Cardoso) e por analisar os resultados de regimes muito diferentes em conjunto
(Brasil, Chile, República Tcheca e Parlamento da União Europeia).
8
Para calcular a porcentagem de votos dados ao governo foram excluídas as
votações em que pelo menos 90% do plenário votou da mesma forma.

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Figura 1: Correlação entre a posição na 1ª Dimensão e a taxa de apoio
ao líder do governo

A
Fonte: Elaborado pelos autores com base no Banco de Dados Legislativos – CEBRAP.
N
O
V Tendo em vista os resultados de outras pesquisas sobre o sistema po-
A
lítico brasileiro, o conflito entre governo e oposição parece ser, de fato,
a clivagem a estruturar o comportamento legislativo. Não só os estudos
C
I que se baseiam em estimações de pontos ideais chegam a conclusões
Ê próximas, mas também Figueiredo e Limongi (1999, 2000), precur-
N
sores no tema, já mostravam que os partidos se diferenciam na arena
C
I legislativa e possuem um padrão de votação que separa governistas de
A oposicionistas. Basta lembrarmos que no Brasil os presidentes são dota-
D dos de fortes poderes de agenda. Como mostram Figueiredo e Limongi
A (2000, p. 155), 86% das leis sancionadas entre 1989 e 1997 foram in-
P
troduzidas pelos presidentes e a taxa global de projetos aprovados com
O origem no Executivo é de 78%9. Segundo os autores, ao controlar a
L agenda, o Executivo está apto a determinar o que será votado e quando
Í
T o será. A posse dessa prerrogativa permite aos presidentes alterarem a
I localização das políticas no espaço no qual os legisladores irão agir.
C
A Para além do controle do processo, os Executivos brasileiros siste-
. maticamente têm dividido o poder do partido do presidente entre os
partidos no Congresso. A divisão do poder em si, já demonstra que há
340 um entendimento por parte do presidente, ou do partido do presidente

9
Estas taxas são bastante estáveis ao longo do tempo, utilizando os mesmos
critérios de Figueiredo e Limongi temos que as taxas de dominância e sucesso
entre os anos de 1988 e 2018 são de 90,4% e 84,6%, respectivamente. Os dados
são do Banco de Dados Legislativos do Cebrap.

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que somente seus poderes de agenda não são suficientes, ou seja, é pre-
ciso compor maioria. Neste caso, como Figueiredo e Limongi (2009)
afirmam, ao compor a coalizão o presidente divide o poder, a agenda
aprovada do presidente no Congresso deixa de ser do presidente e passa
a ser a agenda da coalizão, no caso brasileiro – à exceção de Collor – a
agenda passa a ser a agenda da maioria.
Esta interpretação leva em conta a ideia de que há uma lógica a
conduzir o processo de construção de uma maioria legislativa baseada
na formação de coalizões de governo10. O apoio ao governo pode ser
conquistado pela construção da agenda política no interior da coalizão C
e não necessariamente por políticas paroquialistas. Entretanto, Zucco O

Jr. (2009) assume que somente dois fatores podem induzir o compor- A
L
tamento dos parlamentares: ideologia (preferências sobre políticas ou I
localização no eixo esquerda-direita) e pork barrel. Assim, desconsidera Z
o potencial que a divisão das pastas ministeriais possui sobre o com- Õ

portamento dos parlamentares, reduzindo o pertencimento à coalizão E


S
apenas ao acesso a pork.
Obviamente a base governista tem mais acesso a recursos advindos E

do orçamento, mas reduzir a formação da coalizão apenas ao acesso a C


pork é um erro, seja a partir da observação da realidade, seja do ponto de O
vista analítico. Pensemos na lógica da formação de coalizões: o ato prá- M
tico que revela a formação ou não de uma coalizão é a divisão de pastas P
ministeriais entre mais de um partido, ou seja, o partido formador abre O
necessariamente mão de algum poder efetivo. A maneira como o acordo R
é firmado entre os partidos da coalizão vai determinar a intensidade da T
A
quantidade de poder que o partido formador está abrindo mão neste
M
momento, que pode variar entre o status que é conferido ao nomeado
E
até o poder de efetivamente interferir em um ramo de política pública. N
Embora o estudo de coalizões em sistemas presidencialistas seja re- T
lativamente recente, já temos fortes indícios de que esta envolve mais do O
?
que a mera divisão de pork. Magar e Moraes (2012) demonstram que os ,
parlamentares membros da coalizão no presidencialismo uruguaio têm .

maiores chances de ter um projeto aprovado no parlamento do que os 341

10
Maioria legislativa e coalizão de governo são formações diferentes: o governo
pode conseguir 50%+1 dos votos em determinada votação sem que sua coalizão
detenha mais de 50% das cadeiras.

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da oposição. Araújo, Freitas e Vieira (2018) ao comparar 12 presiden-
cialismos latino-americanos mostram que a decisão de entrar na coali-
zão de governo está diretamente associada à capacidade de influenciar
a agenda de políticas públicas. Por fim, Freitas (2016) demonstra que
através das alterações realizadas no Legislativo os partidos membros da
coalizão fiscalizam as políticas públicas propostas pelo Executivo. Este
conjunto de trabalhos informa que quando os partidos aceitam fazer
parte de uma coalizão de governo, eles o fazem também para aumentar
sua capacidade de influenciar a agenda de políticas públicas.
Mas uma coalizão deve ter implicações também no comportamento
dos parlamentares individualmente. Coalizões de governo, no entanto,
A
“implicam acesso a cargos, a posições de poder, em troca de apoio legis-
N lativo” (Figueiredo, 2007, p. 1). Mais do que um acordo entre partidos,
O deve também ser um acordo no interior dos partidos. Assim, o acordo
V
é firmado entre partido e não entre indivíduos e implica a promessa de
A
apoio legislativo não apenas dos líderes partidários, mas de toda a ban-
C cada dos partidos (Freitas, 2016). Se isto é verdadeiro, devemos ser ca-
I pazes de medir o efeito da entrada e saída da coalizão no partido como
Ê
N
um todo. É o que investigamos na próxima seção.
C
I
A Comportamento legislativo e participação na coalizão
D Existe uma forte correlação entre a distribuição dos votos dos parla-
A
mentares no espaço com o conflito entre oposição e governo. Também
P sabemos em virtude do trabalho de Figueiredo e Limongi (1999) que
O
L
os parlamentares que pertencem à coalizão apoiam amplamente as
Í posições do governo nas ações legislativas. No entanto, como lembra
T
I
Krehbiel (1993, 2000), o simples fato de haver uma homogeneidade de
C preferências no interior de um partido e diversidade entre os partidos
A não leva necessariamente à conclusão de que o comportamento dos par-
. lamentares seja tido como partidário. Dito de outra forma, uma coisa
é considerar que temos uma medida de partidarismo, outra é dizer que
342
o partido é uma causa significante e independente do comportamento
partidário dos parlamentares.
Por exemplo, suponhamos que todas as votações nominais fos-
sem determinadas por lançamentos de moedas. Suponhamos também
que o resultado desse teste gerasse uma medida partidária tal como do

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parlamento britânico. Em um cenário improvável como este seria ra-
zoável questionar se o rótulo “partidário” seria digno desse nome. É pre-
ciso considerar formas alternativas de comportamentos que poderiam
ter gerado medidas similares de partidarismo (Krehbiel, 2000, p. 213).
Para o nosso caso, verificamos uma alta correlação entre as esti-
mativas geradas pelo OC e a proporção de votos favoráveis dados ao
governo. Ou seja, temos uma medida que expressa o conflito entre go-
verno e oposição. No entanto, o ponto para o qual estamos chamando
a atenção é que isso não nos leva à conclusão de que o fato de um par-
lamentar pertencer – ou não – à coalizão formal do governo seja a causa C
desse comportamento. Em poucas palavras, correlação não é o mesmo O
que causalidade. A
L
Por outro lado, o acordo do Executivo não é com os parlamentares I
individualmente, mas com os partidos. Então, para além da questão da Z
causalidade é preciso se perguntar em que medida esse comportamento Õ
é coletivo. Como mostra Neiva (2011, p. 189), o aumento ou a queda E
S
na porcentagem média anual de apoio dos partidos ao líder do governo
tem o mesmo movimento. Na medida em que a agenda política da E
Câmara no t0 só se repetirá no Senado no t1 ou t2 ou tn, era esperado
C
que o comportamento manifesto nas votações nominais não variasse na
O
mesma direção e com a mesma intensidade no t0. Neiva acaba por não
M
explorar esse fenômeno, e se concentra em analisar o comportamento
P
dos partidos individualmente em relação ao Executivo. O
No entanto, esse fenômeno pode nos dizer muito mais sobre as R
estratégias dos partidos na sua relação com o Executivo. Vejamos, dos T
1543 projetos votados no Congresso Nacional entre os anos de 1989 A

a 2010, somente 232 foram votados nominalmente na Câmara e no M


E
Senado e cerca de 10% foram votados nas duas casas no mesmo ano. As
N
agendas são definitivamente diferentes, especialmente se considerarmos
T
um ano específico. Uma das premissas básicas dos modelos espaciais de O
median-voter é que o indivíduo decide seu voto comparando a distância ?
do seu ponto ideal em relação ao status quo e à posição da proposta em ,
.
votação. O partido não exerceria influência no voto. Mas então como 343
explicar que, como vemos na figura 2, o apoio dado ao governo na
Câmara e no Senado trilha a mesma variação sendo que as agendas de
políticas são muito diferentes? Uma explicação para esse fenômeno não
pode ser dada sem inserir um ator coletivo organizando o cenário polí-
tico. Assim é preciso trazer os partidos políticos para a análise.

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Figura 2: Disciplina em relação ao líder do governo por partido,
Câmara e Senado

N
O
V
A

C
I
Ê
N
C Fonte: Freitas (2016).
I
A

D
Podemos observar na Figura 2 a disciplina em relação ao governo
A dos nove maiores partidos políticos na arena federal. Nas áreas cinzas,
observamos os períodos em que os partidos não fazem parte da coali-
P
O zão governista. O fato das taxas de apoio ao governo na Câmara e no
L Senado variarem na mesma direção, independente do pertencimento
Í
T
do partido a coalizão governamental, indica que os líderes partidários
I aumentam ou reduzem o enforcement para que suas bancadas adotem
C
posições mais ou menos governistas, independentemente das políticas
A
em votação. Trata-se de uma estratégia partidária na relação com o go-
.
verno, esteja o partido dentro ou fora da coalizão.
344
Destaca-se ainda que alguns partidos mantiveram um alto patamar
de apoio independente de estarem participando da coalizão em dife-
rentes momentos – notadamente os casos do PDS>PP (na época PPB),
do PMDB e do PTB. Por outro lado, PSDB, PFL>DEM e PT mudam
drasticamente de comportamento quando passam do governo para a
oposição e vice-versa. É preciso investigar esses fenômenos com maior

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acuidade. Assim será possível compreender o processo de formação de
coalizões, as diferentes estratégias partidárias e a importância do conflito
entre governo e oposição enquanto estruturador do voto em plenário.
Para tanto, trabalhamos com os pontos ideais dos parlamentares
estimados para quatro legislaturas: 49ª, 50ª, 51ª e 52ª, isto é, entre
1991 e 2007. Ficaram de fora a 48ª e a 52ª Legislatura uma vez que
as mudanças na composição da coalizão não são suficientes para ana-
lisarmos a mudança de comportamento dos filiados aos partidos que
entram ou saem da coalizão. Estimamos os pontos ideais de deputados e
senadores antes e depois da mudança de situação (no interior da mesma C
O
legislatura). A pergunta que guia a análise é como participar da coalizão
A
estrutura o comportamento dos partidos. Dessa forma, separamos dois
L
tipos de movimentação entre governo e oposição. No primeiro grupo – I
o qual chamamos de Individual – estão os parlamentares que saem de Z
Õ
um partido que está na coalizão e aderem a outro que está fora da base
E
governista, ou vice-versa. No segundo grupo estão os parlamentares que S
permaneceram em seus partidos, mas se movimentaram entre governo-
-oposição por decisão de sua legenda, a qual entrou ou saiu da coalizão E

durante uma mesma legislatura. Nosso foco será o segundo grupo, pois C
pretendemos analisar se uma decisão partidária (entrar ou sair da coa- O
lizão) tem impacto sobre decisões individuais (comportamento legisla- M
tivo dos parlamentares). P
O
Nas Figuras 3 e 4 apresentamos os pontos ideais estimados para os
R
migrantes individuais e também para os deputados e senadores que vo- T
taram nominalmente como governistas e oposicionistas no interior de A
uma mesma legislatura. Vale frisar que são apresentados os resultados M
apenas para os partidos que transitaram entre governo e oposição. E
N
Analisemos as Figuras 3 e 4. Sobre os migrantes individuais vale T
um breve comentário: são parlamentares que, no geral e sobretudo na O
Câmara, se movem pelo espectro quando alternam entre oposição e ?
coalizão. Isto é, aqueles que decidem trocar de partido aderindo ou ,
.
abandonando a base governista de fato alteram seu comportamento. A 345
decisão de migrar de legenda, nesses casos, parece motivada pela insatis-
fação com a posição anterior.

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Figura 3: Pontos ideais dos deputados que entraram ou saíram da
coalizão, por legislatura

N
O
V
A

C
I
Ê
N
C
I
A

D
A
Fonte: Elaborado pelos autores com base no Bancos de
P Dados Legislativos – CEBRAP.
O
L
Í
T
I
C
A
.

346

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Figura 4: Pontos ideais dos senadores que entraram ou saíram da
coalizão, por legislatura

C
O
A
L
I
Z
Õ
E
S

C
O
M
P
O

Fonte: Elaborado pelos autores com base no Banco de R


Dados Legislativos – CEBRAP. T
A
M

Dentre as movimentações coletivas – isto é, quando um partido E


N
entra ou sai da coalizão – podemos notar diferentes cenários, cuja varia-
T
ção pode estar relacionada com as especificidades de cada legislatura. A O
49ª Legislatura foi uma das mais movimentadas. Além de ter iniciado ?
um ano após a posse de Collor, o período contou com cinco compo- ,
.
sições de coalizão e ficou marcado pelo impeachment do Presidente, e 347
da consequente assunção do vice-presidente, Itamar Franco, à presidên-
cia. Nessa legislatura é possível notar que os parlamentares dos parti-
dos que entraram na coalizão após a posse de Itamar Franco (PMDB,
PSDB e PSB) se moveram significativamente no eixo, principalmente
no Senado. O mesmo ocorre com o PRN (PJ>PTC, partido pelo qual

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Collor foi eleito), com a diferença que a legenda deixou o governo após
o impeachment.
Das 179 votações ocorridas no Senado na legislatura 49, em torno
de 35% ocorreram sob o governo de Collor e o restante sob o governo
de Itamar. Para a Câmara, 54,6% das 258 votações ocorrem no governo
Collor. Na Figura 5 apresentamos a distribuição dos pontos ideais es-
timados para a 1ª Dimensão do OC tendo como unidade de análise
o parlamentar/presidente – ou seja, todos os parlamentares entraram
com dois registros, um sob o governo Collor e outro sob o governo
Itamar. Como é possível observar há uma forte divisão entre as estima-
tivas geradas para os parlamentares antes e depois da mudança presi-
A dencial ocorrida na 49ª legislatura. Dito de outra forma, o fato de ter
N dois presidentes está influenciando as estimativas. A mudança de com-
O portamento dos parlamentares pode estar relacionada com a diferença
V de agenda, dado que tivemos dois presidentes. Mas é a divisão entre
A
governo e oposição, de dois governos diferentes, que estrutura o voto.
C Na 50ª Legislatura (iniciada em 1995) a mudança na composição
I da coalizão envolveu a adesão do PPB (antigo PDS e atual PP) em
Ê
N
abril de 1996. Como é possível observar, os deputados e senadores de
C tal legenda alteram seu comportamento legislativo após a entrada na
I base governista. Mas, em grande parte dos casos, a movimentação na
A
1ª dimensão é pequena. Então, o que motivou a inclusão do PPB na
D coalizão?
A
A entrada parece ser fruto de uma estratégia do governo para for-
P
talecer a sua base aliada com vistas a passar um pacote de emendas
O
L constitucionais. Pouco antes da entrada do PPB na coalizão, entra em
Í votação no plenário da Câmara a PEC da previdência (PEC 33/1995).
T
I A coalizão possuía 309 cadeiras na Câmara dos Deputados, situação
C pouco confortável quando pensamos que são necessários 308 votos para
A
a aprovação de uma emenda constitucional. O PPB na época possuía
.
87 cadeiras, ou seja, número que somado à coalizão deixava o Executivo
em uma situação bem mais favorável.
348
Por outro lado, o PPB não pode ser considerado partido oposicio-
nista ao governo, uma vez que vota sistematicamente com o Executivo
– a taxa de concordância entre os membros do PPB com o líder do go-
verno é de cerca de 80%, mesmo no período em que este estava fora da
coalizão. No entanto, diferente dos partidos que têm pastas ministeriais,

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o PPB, não tem um compromisso formal com o Executivo. Ele mostra
isso na primeira votação de conteúdo da PEC da previdência: as taxas de
disciplina, até aquele momento em torno de 80%, caem para cerca de
65%. Nesta votação, o governo é derrotado por apenas 14 votos, votos
esses que poderiam ser dados pelo PPB. Neste caso, temos o que parece
ser uma estratégia bem sucedida do PPB, num momento de acirra-
mento do conflito no plenário da Câmara somado à necessidade do go-
verno de garantir a aprovação de uma agenda que exige supermaiorias.

C
Figura 5: Distribuição dos pontos ideais de deputados e senadores,
O
comparativo entre os governos Collor e Itamar Franco
A
L
I
Z
Õ
E
S

C
O
M
P
O
Fonte: Elaborado pelos autores com base no Banco de Dados Legislativos – CEBRAP. R
T
A
A alteração na composição da coalizão do segundo mandato de M
Cardoso (51ª Legislatura) não está relacionada à agenda de políticas E
públicas, mas sim à política eleitoral. Em março de 2002 o PFL (atual N
DEM) abandona o governo – mesmo ocupando a vice-presidência com T
O
Marco Maciel – com vistas à eleição de outubro daquele ano. As esti-
?
mativas geradas para a Câmara dos Deputados mostram que há um pe- ,
.
queno deslocamento em direção a posições mais centrais. Já no Senado
349
há mudanças significativas nos pontos ideais.
Vale notar que após abandonar a coalizão, o líder do PFL na Câmara
continuou a indicar voto em consonância com o líder do governo em
cerca de 95% das votações, porém a taxa de apoio de sua bancada caiu
para 85%. Fora da coalizão os deputados do PFL ficaram mais livres

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para divergir do governo. Mas é importante não perder de vista que a
saída do PFL estava relacionada com o seu interesse eleitoral. E, por-
tanto, não era esperada uma mudança drástica de seu comportamento
em votações nominais de matérias substantivas.
O primeiro mandato do Presidente Lula foi marcado por diversas
mudanças na distribuição das pastas ministeriais, resultando em cinco
coalizões durante a 52ª Legislatura. A adesão do PMDB ao governo em
janeiro de 2004 foi a principal alteração na composição da coalizão.
No Senado, o efeito parece ter sido diminuto em termos de comporta-
mento legislativo dos peemedebistas. Já na Câmara é possível notar que
existem gradações no tocante à mudança de posição dos deputados do
A
PMDB: alguns tiveram praticamente os mesmos pontos ideais estima-
N dos enquanto outros se movimentaram significativamente no espectro.
O O que teria, assim, motivado o governo a ceder ministérios ao PMDB?
V
Novamente aqui a razão parece ser a de garantir que o apoio conti-
A
nuaria. Vale lembrar também que a maioria do governo àquela altura
C era apertada e qualquer defecção da base poderia resultar em derrota
I e também que o PMDB era o maior partido da casa e capaz de co-
Ê
N
locar o governo Lula em uma situação mais confortável, em especial,
C no Senado.
I
A
O governo Lula ganhava o PMDB, mas perdia o PDT. Nesta le-
genda mais uma vez o que se vê é a alteração de posição de parte de
D
A
seus parlamentares. O partido estava dividido internamente e deixar a
coalizão parece ter sido o caminho para pacificar o partido. Mas é pos-
P
sível afirmar que no agregado o PDT se comporta de modo diferente
O
L em cada situação. Este comportamento é mais nítido na movimentação
Í de PPS e PV. Quando estes deixam o governo, os pontos ideais de seus
T
I deputados são alterados significativamente. Já o efeito da entrada do PP
C na coalizão sobre o comportamento de seus parlamentares existe, mas,
A
no geral, é mínimo.
.
Para uma visão mais geral do fenômeno analisado é interessante
350
observarmos a média das diferenças. Dito de forma análoga, iremos
computar a diferença entre o ponto ideal de cada parlamentar quando
este estava no governo e na oposição e fazer a média aritmética da legis-
latura. Fazendo isso temos os seguintes valores para a Câmara: 0,20 para
a 49ª legislatura; 0,24 para a 50ª legislatura; 0,48 para a 51ª legislatura;
e 0,33 para a 52ª legislatura. E para o Senado temos: 0,52 para a 49ª

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legislatura; 0,24 para 50ª legislatura; 0,54 para a 51ª legislatura; e 0,19
para a 52ª legislatura. Não é demais lembrar que os valores possíveis
estão no intervalo [0, 2]. Em média, temos mudanças moderadas. Ou
seja, elas não vão de um extremo governismo a um extremo oposicio-
nismo. Mas mudam de posição.
Ainda seguindo Kousser et al. (2007), com vistas a determinar a
significância estatística desses valores (média das diferenças) fizemos al-
gumas simulações. Construímos para cada legislatura 100 bancos de
dados nos quais randomizamos as posições dos parlamentares dupli-
cados. Para ser mais claro, vamos supor que um parlamentar qualquer C
O
tenha participado das 100 primeiras votações como governo e das 50
A
últimas como oposição. Ao randomizarmos a sua posição o que esta-
L
mos fazendo é transformar algumas das 100 primeiras votações como I
governista em oposicionista e algumas das 50 últimas como governista Z
Õ
em oposicionista. A ideia básica é saber se a diferença encontrada não é
E
fruto do acaso. Por exemplo, o senador Álvaro Dias migrou do governo S
para a oposição em 25 de setembro de 2001. Assim, na matriz original,
todas as votações nas quais ele participou como governista ocorreram E

entre o início da 51ª legislatura e o dia da mudança, e dessa data até o fi- C
nal da legislatura ele votou como oposicionista. Quando randomizamos O
a sua posição temos que os votos que ele deu como governista e como M
oposicionista estarão juntos nos seus dois registros. Ao fazermos isso vá- P
rias vezes (100 vezes) temos uma distribuição para comparar com a di- O

ferença média encontrada na matriz original. Caso a média encontrada R


T
na matriz original seja um valor frequente na distribuição dos valores A
simulados não rejeitamos a hipótese nula de que não há diferença de M
comportamento com a entrada ou saída da coalizão de governo. Caso E
contrário, se a magnitude da média das diferenças for muito maior do N
que as da distribuição, rejeitamos a hipótese nula de que não há mu- T
dança de comportamento. O
?
Na Figura 6 a distribuição que está em cinza é referente à média das ,
.
diferenças de cada uma das 100 simulações e a linha tracejada é a média
351
das diferenças original para a Câmara dos Deputados. Como vemos, em
todas as legislaturas as médias originais são significativamente maiores
do que as das distribuições.

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Figura 6: Diferenças das médias simuladas em relação diferença das
médias originais. Câmara dos Deputados

Fonte: Elaborado pelos autores com base no


Banco de Dados Legislativos – CEBRAP.

N
Figura 7 – Diferenças das médias simuladas em relação diferença das
médias originais. Senado Federal
O
V
A

C
I
Ê
N
C
I
A Fonte: Elaborado pelos autores com base no
Banco de Dados Legislativos – CEBRAP.
D
A

P O mesmo pode ser dito para o Senado, como vemos pela Figura 7.
O
L
Somente na 50ª e na 52ª legislaturas as diferenças não são tão grandes.
Í Mesmo assim, elas ainda são maiores do que a maior parte dos valores
T
I
simulados. Indo direto ao ponto, rejeitamos a hipótese nula segundo a
C qual entrar ou sair da coalizão de governo não faz diferença no compor-
A
tamento em votações nominais dos legisladores brasileiros.
.
Os resultados aqui apresentados são alguns indícios da importância
da coalizão de governo na modelagem do comportamento legislativo.
352
Tudo indica que os parlamentares que foram da oposição para a coali-
zão mudaram significativamente os seus padrões de votações, passando
a apoiar mais a agenda governamental após a entrada na coalizão. Já
aqueles que fizeram o movimento inverso (da coalizão para a oposição)
também alteraram o seu comportamento. No entanto, vale destacar que

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os migrantes individuais parecem se movimentar mais pelo eixo (pontos
ideais estimados para a primeira dimensão) do que os parlamentares
que trocam de posição em função de uma decisão de seu partido. A par-
tir dessa percepção é possível oferecer algumas interpretações. A entrada
de um partido nas coalizões analisadas pode ter como efeito o aumento
da coesão interna e da taxa de apoio ao governo, mas vale lembrar que
os níveis de disciplina em relação ao líder do governo já eram elevados
antes de o partido entrar na coalizão. As conclusões sobre os movimen-
tos de saída da coalizão vão na mesma direção. Estar fora da coalizão,
mesmo que com níveis altos de governismo, provê aos partidos e aos C
parlamentares maior liberdade para divergir do governo quando as pre- O

ferências se distanciam muito. Por isso, o governo aceita abrir mão de A


L
uma ou mais pastas ministeriais para firmar compromisso com aquele I
partido, alcançando uma maioria mais sólida. Z
Õ
E
Considerações Finais S

Como verificamos, a inclusão do Senado Federal nas análises torna E

o entendimento do comportamento legislativo brasileiro mais completo C


e preciso. Tanto na Câmara dos Deputados como no Senado, o plenário O
das casas é estruturado por um comportamento unidimensional guiado M
pela posição do partido em relação ao governo. Ou seja, o que divide P
senadores e deputados parece ser o conflito entre oposição e governo. O
R
Encontramos indícios de um comportamento partidário estru-
T
turando as estratégias nas votações nominais no Congresso Nacional, A
quando observamos que tanto na Câmara quanto no Senado as taxas M
de disciplina variam seguindo um mesmo sentido, ainda que as agendas E
políticas das casas sejam diferentes. N
T
Por fim, nos deparamos com evidências de que os parlamentares
O
mudam significativamente seu comportamento quando entram ou ?
saem da coalizão. Encontramos também movimentações coletivas, ou ,
.
seja, motivadas pelas mudanças de posições dos respectivos partidos aos
353
quais deputados e senadores são filiados. No entanto, este ponto merece
ser mais bem explorado, uma vez que está diretamente relacionado a
como e porque se formam coalizões em governos presidencialistas.
Este trabalho acrescenta evidências de que a formação de coalizões
em sistemas presidencialistas tem bases partidárias. Ao mostrar que a

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formação da coalizão de governo implica a mudança de comportamento
dos parlamentares individualmente e dos partidos de forma coletiva, ca-
minhamos no sentido de demonstrar que a formação de coalizões em
sistemas presidencialistas tem as mesmas implicações que em parlamen-
taristas. Dessa forma, deduzir que o apoio ao governo tem como base
apenas a distribuição de pork é algo que reduz seu significado e turva o
entendimento da relação entre os Poderes Executivo e Legislativo.
Conforme afirmam Cheibub, Przeworski, & Saiegh (2004) a única
diferença entre sistemas parlamentaristas e presidencialistas diz respeito
ao ponto de reversão, ou seja, ao que acontece quando não se forma
uma coalizão. De resto, estamos tratando de sistemas políticos nos quais
A a motivação dos atores é similar. E sendo assim, não é justificável a ma-
N
nutenção de duas agendas separadas de pesquisa (Cheibub & Limongi,
O 2010).
V
A
Por fim, entendemos que este trabalho avança no sentido de com-
preender o que estrutura o comportamento dos parlamentares em ple-
C nário. No caso brasileiro fica claro que o comportamento em plenário
I é motivado pelo status do partido em relação a coalizão. Mas como é
Ê
N
possível perceber, este comportamento não é individual, mas coletivo.
C O que significa que é estruturado de forma partidária.
I
A

D
A
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A

C
I
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N
C
I
A

D
A

P
O
L
Í
T
I
C
A
.

358

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ANEXO
Coalizões de governo no Brasil, 1988-2.010

Coalizão/ Data da Coalizão Evento de início da


Partidos da Coalizão
Presidente Início Fim nova coalizão
Promulgação da
Sarney 2 06-out-88 14-mar-90 PMDB – PFL
Constituição
Collor 1 15-mar-90 12-out-90 PRN – PFL Eleição presidencial
Collor 2 13-out-90 31-jan-91 PRN – PFL – PDS PDS entra
Collor 3 01-fev-91 14-abr-92 PRN – PFL – PDS Eleição Legislativa C

PRN – PFL – PDS – PTB O


Collor 4 15-abr-92 30-set-92 PTB e PL entram
– PL A
PFL – PTB – PMDB – Impeachment de L
Itamar 1 01-out-92 30-ago-93 I
PSDB – PSB Collor
Z
PFL – PTB – PMDB –
Itamar 2 31-ago-93 24-jan-94 PSB sai e PP entra Õ
PSDB – PP
E
Itamar 3 25-jan-94 31-dez-94 PFL – PMDB – PSDB – PP PTB sai S

PSDB – PFL – PMDB – Eleições presidencial E


FHC I 1 01-jan-95 25-abr-96
PTB e legislativa
C
PSDB – PFL – PMDB –
FHC I 2 26-abr-96 31-dez-98 PPB entra O
PTB – PPB
PSDB – PFL – PMDB – Eleições presidencial M
FHC II 1 01-jan-99 05-mar-02
PPB e legislativa P
FHC II 2 06-mar-02 31-dez-02 PSDB – PMDB – PPB PFL sai O

PT – PL – PCdoB – PSB – Eleições presidencial R


Lula I 1 01-jan-03 22-jan-04 T
PTB – PDT – PPS – PV e legislativa
A
PT – PL – PCdoB – PSB – PDT sai e PMDB
Lula I 2 23-jan-04 31-jan-05 M
PTB – PPS – PV – PMDB entra
PT – PL – PCdoB – PSB – E
Lula I 3 01-fev-05 19-mai-05 PPS sai
PTB – PV – PMDB N
T
PT – PL – PCdoB – PSB –
Lula I 4 20-mai-05 22-jul-05 PV sai O
PTB – PMDB
?
PT – PL – PCdoB – PSB – ,
Lula I 5 23-jul-05 31-dez-06 PP entra .
PTB – PMDB – PP

PT – PL – PCdoB – PSB – Eleições presidencial 359


Lula II 1 01-jan-07 01-abr-07
PTB – PMDB – PP e legislativa

PT – PR – PCdoB – PSB –
Lula II 2 02-abr-07 31-dez-10 PTB – PMDB – PP – PDT Entra PDT e PRB
– PRB

Fonte: Figueiredo (2007). Para o segundo mandato de


Lula seguimos os critérios da autora.

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Sergio Simoni Junior

Professor adjunto do Departamento de Ciência


Política da UFRGS, professor Permanente
do Programa de Pós-Graduação em Políticas
Públicas e Colaborador do Programa de Pós-
Graduação em Ciência Política da UFRGS (desde
2019). Doutor (2017) e mestre (2012) em Ciência
Política pela USP, graduado em Ciências Sociais
pela mesma instituição (2008).

Minhas pesquisas se concentram na área de


partidos e eleições nas suas diversas dimensões,
como a relação entre competição partidária
e políticas públicas, determinantes do
comportamento eleitoral, e as características
do sistema eleitoral e sistema partidário.
Desenvolvo pesquisas também na área de implementação de políticas públicas,
estudos legislativos e elites políticas.

O capítulo publicado nesta coletânea atualiza a análise de dados que conduzi no


mestrado e no artigo que premiado no Seminário Discente da Pós-Graduação em Ciência
Política da USP, em 2012. O objetivo é debater teórica e empiricamente o diagnóstico
de que a volatilidade eleitoral elevada no Brasil seria expressão da fragilidade dos
partidos e/ou de uma insuficiência de capacidade política de parcelas do eleitorado,
propondo explicações alternativas. No doutorado, dediquei-me a entender a relação
entre o Bolsa-Família e as eleições presidenciais brasileiras, e um de seus produtos foi
novamente condecorado com o prêmio do Seminário Discente na edição de 2017.

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VOLATILIDADE ELEITORAL E SISTEMA
PARTIDÁRIO: EM BUSCA DE UMA
ABORDAGEM ALTERNATIVA1

Sergio Simoni Junior

Introdução
A representação eleitoral e a competição partidária estão no cerne
do regime democrático contemporâneo. As propriedades e característi-
cas da relação entre partidos e eleitores são objeto central de estudo da
Ciência Política e um dos conceitos e indicadores básicos formulados
para a compreensão dessa dinâmica é a volatilidade eleitoral. Este in-
dicador, elaborado inicialmente por Pedersen (1979), refere-se ao grau
de estabilidade da relação partido-eleitor no tempo, e é, de acordo com
Taagepera e Grofman (2003), uma das medidas mais empregadas e con-
sensuais na Ciência Política.
A temática da volatilidade eleitoral emerge e ganha força particular-
mente nos estudos sobre o cenário europeu dos anos 1970, ligando-se a
questões sobre as relações entre partidos e classes sociais, tipo e natureza
dos partidos, ideologia e representação. A questão que mobilizava a li-
teratura naquele momento era verificar o possível desalinhamento que
estaria ocorrendo entre os partidos e suas bases sociais, outrora vistos
como articulados por meio das clivagens sociais (Pedersen, 1979).

1
Este texto foi originalmente publicado, com o mesmo título, na Revista Teoria &
Pesquisa, v.28, n.3, 2019, p. 48-71, a qual agradeço a permissão para republicação
com pequenas adaptações. O capítulo atualiza e tem como base a dissertação
de mestrado “Flutuação eleitoral e Sistema Partidário: o Caso de São Paulo”,
defendida no DCP/USP com financiamento FAPESP 2009/03532-8. Agradeço a
Fernando Limongi, Paolo Ricci, Yan Carreirão, Maria do Socorro Braga, Tiago
Borges, Gustavo Venturi, Rogério Arantes, Lara Mesquita, Andreza Davidian,
Patrick Silva, Ricardo Ribeiro, Thiago Silva e Lucas Petroni pelos comentários a
versões prévias.

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O outro debate no qual o índice de volatilidade é central, e no qual
este texto se insere, são os estudos sobre a democracia nos países da
chamada “terceira onda de democratização”, notadamente dentro da
perspectiva geral acerca da “institucionalização do sistema partidário”.
Pode-se dizer que o ponto nevrálgico, nessa perspectiva teórica, assume
caráter inverso da formulação original: tratava-se de saber se os partidos
e o sistema partidário lograriam se institucionalizar e, dessa forma,
segundo as principais formulações, concorrer para a consolidação das
novas democracias (Maiwaring e Scully, 1994; Mainwaring e Torcal,
2006; Mainwaring e Zoco, 2007).
A aplicação original do conceito e do índice de volatilidade eleitoral
A em países de democracia recente dá-se sob o esteio das teorias de mo-
N dernização e de desenvolvimento político (Huntington, 1975; Sartori,
O 1968), que buscam ressaltar a importância de um arcabouço institucio-
V nal adequado para lidar com a estrutura social vista de modo geral como
A
avessa a um regime democrático estável. Mais especificamente, para o
C
debate que aqui se trava, essa abordagem ressalta a importância de me-
I canismos institucionais que permitiriam neutralizar o comportamento
Ê
errático e sem vínculos partidários de grande parte do eleitorado.
N
C Essas questões balizam as principais análises sobre as características
I e a trajetória do sistema partidário brasileiro, caso considerado típico
A
na literatura como um país com baixo grau de institucionalização do
D sistema partidário, e consequentemente, de débil performance demo-
A
crática (Mainwaring, 1999).
P
O
Muito já se avançou no debate sobre a volatilidade eleitoral e sobre a
L institucionalização do sistema partidário de novas democracias. Alguns
Í trabalhos elaboraram críticas lógicas, empíricas e metodológicas ao ín-
T
I dice formulado por Pedersen (1979) (Bartolini e Mair, 1990; Powell e
C Tucker, 2014); outros criticaram o conceito de institucionalização de
A
Mainwaring (Peres, 2013; Luna e Altman, 2011; Zucco, 2015; Casal
.
Bertoa, 2017); e o próprio caso brasileiro é objeto constante de no-
vas avaliações e diagnósticos (Peres et al., 2011; Tarouco, 2010; Braga,
362
2010; Zucco, 2015; Carreirão, 2014; Vásquez e Archer, 2019).
No entanto, algumas dimensões centrais que perpassam o conceito
e mensuração de volatilidade eleitoral ainda carecem de maior aprofun-
damento, e serão exploradas neste capítulo. O termo “volatilidade elei-
toral” faz referência: (i) ao grau de instabilidade dos sistemas partidários

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e dos resultados eleitorais; e (ii) à fraqueza individual dos partidos e ao
comportamento errático de eleitores sem afinidades partidárias. Logo,
expressa tanto uma dimensão macro/sistêmica, quanto micro/indivi-
dual de partidos e de eleitores (Lane e Ersson, 1997; Bartolini e Mair,
1990). Essa é uma distinção que, embora importante para o entendi-
mento do fenômeno, passa, de modo geral, desapercebida na literatura. V
O
O índice de volatilidade de Pedersen (1979) diz respeito apenas à L
dimensão macro/sistêmica2. Seus resultados não permitem verificar o A
perfil social de eleitores mais voláteis, nem jogam luz sobre a força e T
I
estratégia de partidos individualmente. Ou seja, o índice de volatilidade L
de Pedersen (1979) não traz informações sobre a dimensão micro/indi- I
vidual do conceito de volatilidade. D
A
No entanto, como procurarei expor, as conclusões e avaliações de
D
análises que utilizam o índice de volatilidade pressupõem teorias e visões E
sobre esta dimensão. O comportamento volátil é de modo geral atri-
buído a pessoas com frágil ligação com os partidos, com imagens toscas E
L
do mundo político, de baixa “sofisticação” política. Esse tipo de eleitor E
seria irracional na expressão das suas preferências, e logo, inconstante e I
volúvel, prejudicando a consolidação do sistema partidário. Quanto aos T
O
partidos tomados individualmente, o suposto recai unicamente na sua
R
dimensão de canais de representação de interesses da sociedade, grande
A
parte caudatária da visão de partido de massas de Duverger (1987) e de L
partidos estruturados de Sartori (1982). Logo, nesta visão, alterações
E
na oferta partidária entre pleitos são geralmente tidas como expressão
da fragilidade do sistema partidário típica de novas democracias, fruto S
de constante criação, fusão, extinção de partidos e migração partidária I
S
(Tavits, 2008). T
O presente trabalho tem intenção de debater esses pontos teorica e E
empiricamente, elaborando novas análises. Para construir o argumento, M

do ponto de vista teórico, percorro caminho diverso ao usual da lite- A


.
ratura. Ressalto as bases comportamentais que fundamentam a visão
sobre o eleitor volátil. As teorias sociológicas e psicossociológicas do
comportamento eleitoral enxergam o eleitor flutuante como desviante 363

e como irracional. O próprio termo “volatilidade” carrega em si uma

2
O mesmo se aplica ao índice de volatilidade ideológica, variante importante e
também amplamente usada, proposto por Bartolini e Mair (1990).

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carga negativa e pejorativa. Sua origem é do mundo da química, e diz
respeito à tendência ou facilidade de uma substância passar de seu es-
tado líquido para o estado gasoso. No mundo político-eleitoral, isso
conotaria um estado imprevisível e disfuncional.
Alternativamente, mostrarei que teorias inspiradas na teoria da
escolha racional ressaltam que o comportamento volátil pode ser uma
decisão racional por parte do eleitor. Além disso, esse arcabouço teórico
também permite colocar no centro da equação o componente da
entrada estratégica dos partidos. Assim, ainda que a alteração da oferta
partidária implique, per se, o aumento do índice de volatilidade eleitoral,
não significa, necessariamente, fragilidade do quadro partidário.
A
Do ponto de vista empírico, utilizo os resultados eleitorais para
N o estado de São Paulo nas eleições para cargos do Executivo, ou seja,
O presidente, governador e prefeito, nos anos de 1982 a 2014, com
V
foco no período pós-94. A ênfase da literatura na análise dos cargos
A
legislativos perde de vista o fato de que a estrutura de incentivos
C
gerada pelas instituições políticas brasileiras (Figueiredo e Limongi,
I 1999; Samuels e Shugart, 2016) confere prioridade às disputas para o
Ê
Executivo (Lavareda, 1991). Além disso, os trabalhos que mensuram
N
C volatilidade para diversos cargos no Brasil mostram que o índice para
I cargos majoritários tende a ser superior aos cargos proporcionais (Bohn
A
e Paiva, 2009; Carreirão, 2014; Melo, 2010), colocando em revelo a
D necessidade de mais estudos sobre essa dinâmica.
A
Este trabalho inova ao considerar três níveis de agregação dos
P dados. Estado para os casos de presidente e governador; município da
O
capital no caso de prefeito; e seção eleitoral (urna). O recurso aos dados
L
Í por seção permite, além de minimizar os efeitos da agregação de dados
T (falácia ecológica3), analisar a volatilidade eleitoral estratificada por um
I
C indicador socioeconômico, a saber, o nível de escolaridade extraído
A das urnas. Dessa forma, pode-se verificar se a flutuação eleitoral está
. relacionada a determinados perfis sociais.

364
3
Cabe notar, no entanto, que o uso de dados agregados não deve ser
necessariamente tomado como second-best em comparação com dados
individuais, tanto do ponto de vista teórico quanto empírico. Para o debate na
literatura sobre volatilidade, consultar Lane e Ersson (1997) e Bartolini e Mair
(1990). Para uma discussão metodológica mais geral com aplicação para outra
questão, ver Simoni Jr e Magalhães (2018).

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Um estudo de caso tem suas limitações de validade externa, mas
apresenta possibilidades de aprofundar nas dimensões explicativas
contextuais (Gerring, 2004). No presente caso, permite analisar de
modo pormenorizado o impacto na volatilidade advindo de alterações de
curto-prazo na oferta partidária nas diferentes disputas para o executivo,
mantendo o pano de fundo de longo prazo da dinâmica do sistema V
O
partidário nacional e local. Esse cálculo é feito decompondo o índice
L
de volatilidade de Pedersen (1979) em duas variantes (Powell e Tucker, A
2014): a volatilidade de votos de partidos constantes e a volatilidade T
de votos de partidos que não entraram em ambas as disputas nos pares I
L
de eleições analisados. Assim, a proposta aqui segue a recomendação I
de Bohn e Paiva (2009: 205) de que “cabe-nos analisar o quanto as D
mudanças na oferta eleitoral afetam a volatilidade eleitoral”. A
D
Os resultados mostram que a volatilidade eleitoral é causada, em
E
grande medida, por estratégias dos partidos políticos, ao decidirem pelo
lançamento e retirada de candidaturas, não se devendo, necessariamente, E
L
a debilidades do sistema partidário. Além disso, a análise por níveis
E
educacionais das urnas revela que o comportamento flutuante não está I
ligado a nenhum tipo social específico de eleitor e, portanto, não pode T
ser atribuído aos cidadãos menos instruídos. O
R
Logo, do ponto de vista geral, a proposta deste texto consiste em
A
matizar a perspectiva segundo a qual índices de volatilidade elevados L
demonstrariam necessariamente um sistema partidário de baixa
E
institucionalização e débeis de canais de representação. Antes, coloca em
relevo a importância de pensar esse indicador dentro de uma perspectiva S
mais geral de competição eleitoral dinâmica, na qual partidos e eleitores I
S
podem mudar ou permanecer com suas estratégias de acordo com T
cálculos racionais. E
M
A
Volatilidade e sistema partidário – o debate europeu .
original4 e sua aplicação na América Latina e Brasil
O debate sobre a volatilidade eleitoral emerge a partir da visão 365

formulada por Lipset e Rokkan no final dos anos 60 (1990 [1967]). Os

4
Ver Peres (2005) para uma revisão mais pormenorizada desse conjunto de
literatura.

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autores realizaram uma análise da competição política europeia numa
perspectiva macro-histórica, relacionando a emergência dos partidos
e dos sistemas partidários a conflitos societais de grande porte. Nessa
perspectiva, os partidos exerceriam papel de expressão, no plano das
instituições políticas, das divisões que ocorrem na estrutura social,
divisões essas conceituadas como clivagens sociais.
Lipset e Rokkan (1990) estabeleceram a famosa tese do “congela-
mento do sistema partidário”. Ela foi fruto da constatação de que, a
partir dos anos 20 do século passado, o quadro partidário dos diferentes
países europeus assumira um formato que perduraria até o momento
em que os autores escreviam (anos 60). A leitura predominante que
A
foi feita do argumento Lipset e Rokkan ressalta a estabilidade do apoio
N eleitoral dos principais partidos no tempo, fruto da forte penetração das
O agremiações na sociedade.
V
A A tese de Lipset e Rokkan motivou a construção de indicadores
para verificar tal fenômeno. Pedersen (1979) foi o responsável por for-
C malizar o índice de volatilidade eleitoral (tanto é assim que muitos, e
I
Ê eu assim o farei, o denominam como índice de Pedersen), aplicando-o
N numa série temporal de casos europeus. Seus resultados indicam que de
C fato em alguns países os resultados eleitorais apresentam estabilidade,
I
A mas em outros a flutuação era crescente, matizando a hipótese do con-
gelamento do sistema partidário e da força das clivagens sociais.
D
A A partir de Pedersen (1979) erigiu-se um amplo conjunto de li-
P teratura destinado a debater o possível declínio da força dos partidos
O europeus e a possível disjunção entre o eleitorado e o sistema partidá-
L rio, com elaborações de novos argumentos, testes e indicadores (Rose
Í
T e Urwin, 1990; Crewe, 1983; Lane e Ersson, 1997; Bartolini e Mair,
I
C
1990).
A Em síntese, pode-se dizer que em países europeus de democracia
. antiga o desenrolar do debate teórico sobre a volatilidade eleitoral diz
respeito às discordâncias quanto ao papel dos partidos políticos na ex-
366 pressão de clivagens sociais. Outro é o uso do índice de volatilidade na
literatura comparada em países de democracia recente
O debate sobre volatilidade eleitoral no Brasil de modo especí-
fico, e na América Latina de modo geral, emerge numa preocupação
inversa quando de sua gênese no cenário do oeste europeu: trata-se

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agora de verificar a possibilidade de consolidação democrática, que,
segundo a literatura, exige a institucionalização do sistema partidário,
e, portanto, padrões estáveis de relacionamento entre eleitor e partido
no tempo5.
Mainwaring, em diversos trabalhos com diferentes co-autores, foi V
o autor que colocou essa questão na ordem do dia, influenciando for- O
temente a política comparada voltada aos países de democracia recente. L
O conceito de volatilidade se encontra, nesse conjunto de literatura, A
conectado ao de institucionalização6. A principal fonte conceitual são T
I
as teorias de modernização e desenvolvimento político, notadamente as L
formulações de Huntington (1975). O autor elabora a visão segundo a I
D
qual sistemas políticos institucionalizados são aqueles que desenvolvem
A
e atualizam suas estruturas analogamente à modernização socioeconô-
D
mica, de modo que lhes seja possível responder às pressões e demandas E
sociais. A tensão subjacente é a de que as etapas iniciais da moderni-
zação e de desenvolvimento econômico e social quebrariam os laços E
L
primários de pertencimento e identidade dos indivíduos, sem que estes E
sejam substituídos imediatamente por outros, causando, no âmbito po- I
lítico, comportamentos imprevisíveis, desordenados e radicalizados. T
O
O ponto central, portanto, está no grau e na rapidez em que ocor-
R
reriam os fenômenos da mobilização política, entendida esta como a A
incorporação das massas ao sistema político. O paradigma do desen- L
volvimento político argumenta que incrementos rápidos e massivos de
E
inclusão e participação política levam a erosão dos padrões de interação
política, ou seja, a processos de enfraquecimento das instituições. Numa S
I
perspectiva histórica e comparada, as teses de Huntington lançaram dú- S
vidas sobre os processos de redemocratização e de ampliação dos direitos T
políticos: as instituições presentes poderiam não suportar as demandas E
e preferências dos ingressantes. O problema seria a um só tempo socio- M
lógico e institucional. Sociológico, porque diz respeito a processos de A
.
socialização e de padronização de interações sociais. Institucional, por-
que se volta sobre as estruturas e procedimentos das relações de poder.
367

5
Questões semelhantes são também levantadas para o contexto do leste-
europeu. Ver, por exemplo, Tavits (2005).
6
A referência dos parágrafos seguintes é Limongi (2002)

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Focalizando a discussão no comportamento eleitoral, a visão
do desenvolvimento político deduz que as massas ingressantes no
processo de escolha de dirigentes políticos teriam preferências instáveis,
tendentes à radicalização, quebrando a estabilidade eleitoral de outrora.
Isso porque essa mudança eleitoral é fruto tanto da inadequação do
sistema social em transformação quanto da estrutura política. Aqui, e a
passagem é importante, eleitor volátil é igualado a eleitor com tendência
à radicalização.
Sartori (1968), em um dos seus textos sobre engenharia institucio-
nal, afirma que nos momentos de redemocratização, com expectativas
elevadas e extensão dos direitos políticos, a massa da população, carac-
A terizadas pelo autor como “illiterate and deprived” (Sartori, 1968: 277),
N deve ter seu comportamento político canalizado e fortemente delimi-
O tado por um sistema eleitoral e partidário “forte” (Sartori, 1986). Este
V adjetivo indica, aqui, a capacidade dessas instituições em influenciar as
A
preferências e o comportamento dos eleitores.
C Em trabalho clássico, Mainwaring e Scully (1994) lançam mão dos
I conceitos das teorias de desenvolvimento político para estudar os siste-
Ê
N
mas partidários na América Latina. Os autores utilizam o índice de vola-
C tilidade, dentre outras evidências, para defender a tese de que os partidos
I latino-americanos são menos institucionalizados que os seus congêneres
A
europeus. Os autores assinalam os perigos de tal sistema: propensão ao
D populismo e ao “pretorianismo” (um conceito de Huntington), déficit
A
de accountability, legitimidade e governabilidade. Sobre o Brasil, os au-
P tores afirmam: “vários estudos sobre atitudes políticas e comportamento
O
eleitoral no Brasil mostram que a maioria dos cidadãos não manifesta
L
Í preferências partidárias e seu padrão de voto, especialmente para cargos
T
I
importantes do Executivo, não é determinado pela predileção por orga-
C nizações partidárias” (Mainwaring e Scully, 1994: 54).
A
Assim, a literatura comparada sobre estabilidade de sistemas parti-
.
dários na América Latina era expressão de um sentimento mais geral, a
saber, a especificidade desta região quando comparada ao mundo desen-
368
volvido. Nestes, altos índices de volatilidade seriam um dos indícios da
perda de centralidade das clivagens e, de modo geral, mudanças na es-
sência da representação política; nas novas democracias, eles indicariam
que a democracia representativa teria problemas de funcionamento.

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A literatura nacional sobre partidos políticos é, em grande medida,
caudatária dos termos do debate assim colocados. A volatilidade eleitoral,
em particular, é tida como uma proxy do nível de institucionalização do
sistema partidário brasileiro, e este, por sua vez, tem relação direta com
o funcionamento do regime democrático. O debate passou a ser travado
então entre aqueles que defendem que o caso brasileiro apresenta altos V
O
índices de volatilidade eleitoral, revelando baixa institucionalização
L
partidária (Kinzo, 2007; Mainwaring e Zocco, 2007; Carreirão, 2014), A
e aqueles que consideram que os índices estão declinando e/ou não são T
elevados em comparação com outros países, o que apontaria para uma I
L
estruturação do quadro partidário (Braga, 2010; Bohn e Paiva, 2009)7. I
Em síntese, o debate tradicional sobre volatilidade está ancorado D

numa preocupação mais geral acerca do funcionamento da democracia. A


D
O conceito de volatilidade, tal como formulado até aqui, tem
E
claros pressupostos sobre o comportamento dos eleitores e sobre
comportamento dos partidos, mas que geralmente não são explicitados E
L
na literatura. Na próxima seção, abordarei as teorias do comportamento
E
eleitoral a fim de argumentar que a visão tradicional tem pressupostos I
parciais e controversos. A partir de teorias inspiradas nos modelos de T
escolha racional, elaborarei uma proposta analítica alternativa. O
R
A
Teorias do comportamento eleitoral e estratégia L

partidária E

A literatura tradicional de volatilidade eleitoral e sua aplicação S


para países de democracia recente tem pressupostos comportamentais I
S
ancorados nos modelos de comportamento eleitoral e de partidos
T
políticos. É de se notar a ausência na literatura de considerações sobre E
este ponto. Conforme veremos nesta seção, esse conjunto de literatura M
apresenta uma visão parcial sobre o eleitor fortemente embasada nas A
.
teorias sociológica e psicossociológica. Ao final, procurarei argumentar
que ganhos analíticos para a compreensão do fenômeno da flutuação
369

7
Cabe notar que muito da divergência é fruto do período temporal considerado
na análise e/ou do critério avaliativo sobre o quanto o caso brasileiro destoa de
um conjunto de países ou mesmo, implicitamente, de um patamar considerado
“ideal”.

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eleitoral podem advir da incorporação de elementos da escola da escolha
racional.
Numa obra clássica da escola sociológica do comportamento elei-
toral, The People’s Choice, escrito por Lazarsfeld, Berselson e Gaudet,
podemos encontrar o lugar do eleitor flutuante para essa teoria. Essa
obra estabeleceu a ideia de que predisposições sociais dos indivíduos já
direcionam suas preferências políticas, previamente às contingências de
cada campanha eleitoral. Por meio de processos históricos, agrupamen-
tos sociais conectam-se a determinados partidos e/ou correntes políti-
cas, a ponto de constranger as preferências políticas de seus membros
atuais e socializar as dos futuros. A passagem clássica dos autores é “a
A person thinks, politically, as he is, socially. Social characteristics deter-
N mines political preference” (Lazarsfeld et al, 1948: 27).
O Dessa forma, os cidadãos voláteis são vistos como aqueles que não
V
A
apresentam vínculos fortes com comunidades sociais. São marginaliza-
dos socialmente, pode-se dizer. Lazarsfeld et al (1948) ressaltam ainda
C que o “modelo ideal de cidadão” de certas concepções da democracia re-
I presentativa, a saber, o indivíduo bem informado, crítico, racional, que
Ê
N
a todo momento sopesa os argumentos e escolhe as melhores opções,
C não se encontra nos eleitores inconstantes: “the notion that the peo-
I ple who switch parties during the campaign are mainly the reasoned,
A
thoughtful, conscientious people who were convinced by the issues of
D the election is just plain wrong” (Lazarsfeld et al, 1948: 63). Os eleitores
A
constantes, ao contrário, “were reported to be more self-assured, better
P informed, more cooperative, and broader in their interest” (Lazarsfeld
O
et al, 1948: 70).
L
Í Assim, o conceito de clivagens sociais de Lipset e Rokkan (1990,
T
I [1967]), apresentado acima, expressa um tipo de ligação partido-eleitor
C considerada ideal pelo modelo sociológico, moldado por meio de rela-
A
ções e laços de natureza razoavelmente perene.
.
A corrente psicossociológica do comportamento eleitoral, também
chamada escola de Michigan, ressalta a importância analítica da apreen-
370
são, compreensão e avaliação dos indivíduos sobre o mundo político.
Uma obra marca seu período inicial, nos anos 60: The American Voter,
escrito por Campbell, Converse, Miller e Stokes. Os autores afirmam
que macro-fatores como classe social, religião, raça e as variáveis insti-
tucionais, como sistema partidário e sistema eleitoral, influenciariam

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indiretamente a decisão do voto. Todos passam por uma espécie de fil-
tro cognitivo do indivíduo, onde na ponta se encontra o sistema de
crenças de cada eleitor.
O conceito-chave que sintetiza as influências psicológicas sobre a
política é a Identificação Partidária (IP). A inscrição da IP nos indiví-
V
duos, por meio do processo de socialização, consiste numa adesão atitu- O
dinal aos partidos políticos. A funcionalidade do sistema democrático L
moderno residiria então não no indivíduo racionalmente engajado na A
política, mas na criação de vínculos de identidade entre partidos e cida- T
I
dãos. Além disso, a IP configura ainda “an important factor in assuring L
the stability of the party system” (Campbell et al. 1980: 121). Esse fa- I
D
tor de estabilidade do sistema partidário é fruto da estabilidade mesma
A
da IP. A orientação recebida no período de socialização implica que a
D
ligação psicológica entre indivíduos e partidos assuma “great stability E
between elections” (Idem: Ibidem). Um sistema político consolidado,
E
que perfaz uma situação na qual a maioria de seus cidadãos possua
L
IP, resultaria em pequena flutuação no resultado eleitoral de eleição E
para eleição. I
T
Falando mais detidamente do eleitor volátil, a caracterização que O
a escola de Michigan faz deste tipo de comportamento é pejorativa, R
crítica. Quando falam do eleitor que se diz independente, e que tam- A
bém é o que mais muda seu voto, Campbell et al. (1980: 143) afirmam L
que “the ideal of the independent citizen, attentive to politics, (...) who E
weighs the rival appeals of a campaign and reaches a judgment that is
unswayed by partisan prejudice” não é encontrado em suas pesquisas. S
I
Antes, “they have somewhat poorer knowledge of the issues, their image S
of the candidates is fainter”. T
E
Empiricamente, como afirma Figueiredo (1991: 39) “é a variável
M
educação que comanda a relação entre classe e identidade partidária
A
devido a sua importância na formação dos níveis de conceituação da .

política”. O nível educacional, diretamente ligado com a capacidade


cognitiva, é o fator mais importante a explicar o desenvolvimento de IP. 371
Portanto, os indivíduos de menor educação tendem, de acordo com essa
teoria, a apresentar menor IP e maior volatilidade eleitoral. Do ponto de
vista do governo democrático, a existência de muitos eleitores voláteis e
de pouca ou sem IP (os dois termos são praticamente sinônimos) é vista
como uma dificuldade para seu bom funcionamento.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 371 07/05/2021 10:40:22


A despeito de suas diferenças, ambas teorias do comportamento
eleitoral têm visões analíticas semelhantes sobre o eleitor volátil. Na
teoria sociológica, a explicação para esse fenômeno é a perda de força
das clivagens e/ou o aumento das pressões cruzadas sofridas pelos in-
divíduos; na teoria psicossociológica, os voláteis são eleitores não so-
cializados politicamente e/ou aqueles cujos sistemas de crenças são
desorganizados. Nos dois casos, a flutuação do voto é um fenômeno
prejudicial à prática democrática.
A literatura de volatilidade eleitoral, tanto a tradição a partir de
Lipset e Rokkan (1990), quanto a de origem a partir dos trabalhos de
Mainwaring é caudatária ou pressupõe, no nível do comportamento in-
A dividual, as visões das teorias sociológicas e psicossociológicas do com-
N portamento eleitoral.
O Da mesma forma, esse arcabouço analítico também supõe um mo-
V
delo específico de partido político, a saber, partidos de massa (Duverger,
A
1987) ou partidos estruturados (Sartori, 1982). Essa abordagem privile-
C
gia a dimensão da representação dos partidos e sua ligação com grupos
I ou clivagens da sociedade.
Ê
N No entanto, teorias oriundas na escolha racional levantam elemen-
C tos que permitem outra visão sobre o eleitor volátil e sobre a atuação
I dos partidos. De um lado, debates internos na literatura sobre “política
A
distributiva” trazem subsídios que permitem conferir racionalidade ao
D comportamento volátil. De outro, modelos de entrada estratégica ou
A
coordenação pré-eleitoral ressaltam a importância da racionalidade das
P decisões partidárias nas flutuações da oferta eleitoral.
O
L Essas teorias partem do modelo espacial de Downs (1999), ela-
Í borando-o e modificando-o. A teoria da “política distributiva” altera a
T
I equação da decisão do voto por parte do eleitor, enquanto modelos de
C coordenação pré-eleitoral atacam o pressuposto de que o número de
A
partidos competidores é fixo e exógeno à competição. Cabe ressaltar
.
que o uso que faço dessas teorias é deveras específico e delimitado, jus-
tificando sua ligeira exposição abaixo8.
372

8
Para uma revisão sobre modelos de política distributiva, consultar Golden e
Min (2013). Para modelos de entrada ou coordenação pré-eleitoral, consultar
Cox (1997).

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Os modelos de “política distributiva” acrescentam à equação do
eleitor a distribuição de políticas públicas por parte dos partidos, além
da dimensão ideológica original downsiana. Assim, eleitores agiriam
tanto com base em suas preferências partidárias quanto tendo em vista
as políticas ofertadas ou prometidas pelos partidos.
V
O eleitor volátil, nesses modelos, recebe o nome de swing voter. Ele
O
é ideologicamente inconsistente, sem adesões partidárias. O eleitor core, L
ao contrário, é ideologicamente próximo ou identificado a algum par- A
tido. Uma das principais discussões no âmbito dessa literatura trata-se T
I
do debate sobre qual seria a estratégia ótima a ser adotada por partidos L
desejosos de ganharem a eleição: prioridade de investimentos de políti- I
cas públicas no swing voter ou no seu core voter? D
A
Dentre outros autores, Stokes (2005) defende a primeira opção.
D
A autora afirma que a ameaça de defecção, de não votar no partido de E
preferência, dos eleitores core não é crível: por serem ideologicamente
identificados com o partido em questão, seu comportamento eleitoral E
L
não seria pautado por benefícios de curto prazo alocados. Assim, os par- E
tidos não deveriam desperdiçar recursos com seus eleitores partidários. I
T
Nesse mundo, pode-se dizer que os eleitores estáveis é que seriam
O
irracionais: manteriam sua preferência partidária a despeito de serem R
preteridos na distribuição de recurso. Assim, enquanto a literatura tra- A
dicional de volatilidade parte do princípio de que o funcionamento L
apropriado de um regime democrático exige baixos níveis de volatili-
E
dade, os modelos de política distributiva apresentam argumentos no
sentido de que o eleitor constante pode ser guiado por fatores não ra- S
I
cionais. Dito de outra forma, um comportamento volátil pode ser uma S
estratégia desejável do ponto de vista do eleitorado9. T
Em contraponto ao argumento de Stokes (2005), Cox (2010) res- E
M
salta a dimensão da entrada estratégica dos partidos. O autor defende
A
que o foco na distribuição de políticas públicas no core voter torna-se a .
estratégia ótima se considerarmos que a oferta de partidos competidores
não é fixa, mas antes endógena à competição eleitoral. Essa é a premissa
373
da qual partem os modelos conhecidos como “entrada estratégica”, ou,

9
Cabe notar que ponto semelhante foi defendido no debate brasileiro, de
maneira pioneira, por Souza (1972), em análise sobre a eleição presidencial de
1960.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 373 07/05/2021 10:40:22


nas palavras de Cox (1997), coordenação pré-eleitoral, elaborados tam-
bém a partir da matriz da teoria da escolha racional.
O ponto que interessa a este trabalho é chamar atenção para o fato
de que o quadro de escolha oferecido ao eleitor não é constante no
tempo. Partidos políticos atuam como instrumento de expressão de de-
mandas da sociedade, mas o fazem dentro de uma situação estratégica
que os leva, muitas vezes, a abrir mão de candidaturas. Expectativas
sobre o grau de apoio futuro e/ou possibilidade da eleição de adversários
estão entre os fatores que as legendas avaliam no momento de registro
de seus candidatos. Logo, alterações na oferta partidária não seriam,
necessariamente, expressão da fragilidade dos partidos ou do sistema
A
partidário, mas podem também ser compreendidas como estratégias
N racionais.
O
V
Esse ponto analítico pode ser encontrado também em outras abor-
A dagens. Mair (1997), que formula suas análises em debate com a pers-
pectiva das clivagens e não calcada na teoria da escolha racional, ressalta
C a importância da estratégia partidária para compreender a mudança
I
Ê
eleitoral. Além disso, ao revisitar a própria literatura sobre volatilidade,
N Peres (2005: 94) ressalta a importância da entrada dos partidos na com-
C preensão da dinâmica da volatilidade. Przeworski (1975: 65-5), em de-
I
A bate com Huntington, afirma que:
D
A “changes of voting distribution did not occur because new
individuals entered the electorate, nor because old voters “decided”
P to shift their preferences, but because the manner in which they
O could vote and the conditions under which they did vote were
L
altered independently of their will (…) Distributions of votes reflect
Í
T strategies of party leaderships (…)”.
I
C
Em suma, nem a mudança de voto do eleitor, nem a alteração da
A
oferta partidária podem ser tomadas como expressão de irracionalidade
.
ou disfunção da lógica representativa. Tendo em vista esta discussão
teórica, na próxima seção apresento a metodologia, os dados e a hipótese.
374

Metodologia, estrutura dos dados e hipóteses


Como dito, a discussão da volatilidade utiliza empiricamente o
indicador elaborado por Pedersen (1979). Sua fórmula é:

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VT = Ʃ| (Pit2 – Pit1)|
_______________
2

Onde VT: Volatilidade total; Pit2: porcentagem de votos do partido


i em t2 e Pit1: porcentagem de votos do partido i no t1. O algoritmo V
consiste na mudança líquida da força eleitoral dos partidos em dois O
pontos do tempo. L
A
Como argumentam Powell e Tucker (2014), o índice de Pedersen
T
conjuga em um indicador dois componentes diferenciáveis: um que I
abarca movimentação entre legendas constantes e outro que diz respeito L
I
a partidos que participam apenas de um dos dois pleitos utilizados no D
cálculo do índice. A
Utilizando a proposta metodológica dos autores, a estratégia ado- D

tada aqui será a comparação entre o indicador tradicional de Pedersen E

e a medida que considera apenas os partidos constantes entre um par E


de eleições. Para fins heurísticos, chamo essa medida de volatilidade L
contrafactual, pois seria a flutuação observada caso o quadro partidá- E
I
rio permanecesse constante. Evidentemente, a oferta de candidaturas T
depende das expectativas dos partidos quanto ao comportamento dos O
eleitores, mas essa separação analítica pode trazer ganhos interessantes. R
O ponto a ser ressaltado é o de que os eleitores têm seu comportamento A
restrito pela oferta de candidaturas, que formata o espaço político da L

competição. E
A fórmula dessa medida é semelhante à anterior, mas aplica-se ape- S
nas às legendas que disputam ambas as eleições: I
S
VC = Ʃ| (Pcit2 – Pcit1 )|
____________________
T
E
2 M
A
Onde, VC: Volatilidade contrafactual; Pcit2: porcentagem de votos .
do partido constante i em t2 e Pit1: porcentagem de votos do partido
constante i no t1. Em ambos os tipos de volatilidade, são utilizadas
375
as votações dos partidos individuais, desconsiderando votos brancos e
nulos.
Como dito anteriormente, as análises sobre a volatilidade eleitoral
no Brasil e América Latina se pautam quase que exclusivamente em
análises das disputas legislativas, ressoando o debate tal como ele surge

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na literatura europeia. No entanto, em um sistema presidencialista, a
estrutura de incentivos gerada pelas instituições políticas confere prio-
ridade às disputas para o Executivo, tanto aos partidos e candidatos,
quanto aos eleitores. Logo, se a intenção é verificar em que medida
os partidos políticos estão institucionalizados, em que grau existe um
alinhamento com o eleitorado etc., pode-se afirmar que o objeto ana-
lítico privilegiado devem ser os cargos para presidente, governador
e prefeito.
Não se trata de desconsiderar a importância política e analítica das
disputas legislativas. O ponto que quero levantar é: a preocupação teó-
rica central que está por trás do debate da volatilidade eleitoral, qual
A seja, relação partido-eleitor, representação política, institucionalização
N partidária e democrática, encontra, no Brasil, uma aplicação empírica
O mais acurada nas disputas para executivo. Pesquisas futuras podem acla-
V rar a relação entre as disputas executivas e legislativas.
A
A unidade de análise são as disputas no primeiro turno para gover-
C
nador no Estado de São Paulo, de prefeito da capital e os resultados do
I pleito presidencial no Estado. O recorte temporal coberto vai de 1982
Ê
a 2014, cobrindo seis pares de eleições presidenciais, oito para gover-
N
C nador e sete para prefeito, abarcando, portanto, um extenso período de
I funcionamento do atual período democrático brasileiro.
A
Os índices de volatilidade total e volatilidade contrafactual são men-
D surados em três níveis de agregação diferentes: o estado de São Paulo
A
(no caso das eleições de presidente e governador), a cidade de São Paulo
P (no caso das eleições para prefeito) e as seções eleitorais – urnas – (para
O
os três cargos). Devido à disponibilidade dos dados, a análise do último
L
Í nível é possível apenas a partir de 1994.
T
I A inovação do cálculo da volatilidade ao nível das urnas permite es-
C tratificar o indicador por meio de uma informação socioeconômica do
A
eleitorado: o nível de escolaridade, obtido pelas informações constantes
.
no Cadastro Eleitoral do TSE. Trata-se de um banco de dados com in-
formações sobre o eleitorado fornecidas pelo cidadão no momento do
376
alistamento eleitoral ou de transferência de seu local de votação. Neste
trabalho, utilizo as versões de 2006 (a mais antiga disponível), 2012 e
2014, conforme os pares de eleição.
O Cadastro Eleitoral apresenta as seguintes categorias educacionais:
“analfabeto”, “lê e escreve”, “fundamental incompleto”, “fundamental

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completo”, “ensino médio incompleto”, “ensino médio completo”,
“ensino superior incompleto” e “ensino superior completo”. O pro-
cedimento adotado nesta pesquisa consistiu na atribuição de valores
crescentes a cada categoria (1- “Analfabeto”, 2- “Lê e Escreve” até 8-
“Ensino Superior Completo”), soma do valor de escolaridade de to-
dos os eleitores em cada urna e posterior divisão pelo total de eleitores V
O
aptos a votar em cada seção. Assim, tem-se a escolaridade média de
L
cada seção. A
Para minimizar o problema da arbitrariedade da atribuição de valo- T
I
res às categorias educacionais, a análise da volatilidade ao nível das ur- L
nas é feita por quartis educacionais. Para cada par de eleições, elenquei I
todas as urnas em ordem crescente, da menor para a maior educação, e D

dividi em quartis. Logo, o primeiro quartil constitui-se nas 25% urnas A


D
com menor educação; o segundo quartil, nas 25% seguintes, e assim
E
sucessivamente.
Alguns esclarecimentos são importantes. Em primeiro lugar, os E
L
dados educacionais do Cadastro de Eleitores são desatualizados, pois E
apresentam o nível de escolaridade do eleitor no momento de sua ins- I
crição ou transferência do título eleitoral. No entanto, para acarretar T
O
problemas de mensuração empírica, um viés teria que ocorrer de modo
R
a alterar a ordenação das seções pelos quartis. Estou assumindo que esse
A
efeito é desprezível. Em segundo lugar, a necessidade de pareamento das L
urnas entre duas eleições para o cálculo da volatilidade leva, necessaria-
E
mente, à perda de informações devido à extinção e criação de urnas no
passar dos anos10. Por fim, é importante sempre lembrar que, mesmo S
calculadas no nível mais desagregado possível, as associações entre es- I
S
colaridade e volatilidade no nível das urnas não podem ser extrapoladas T
diretamente para o comportamento individual dos eleitores. E
Dada a discussão teórica realizada acima, a intenção deste traba- M

lho é dupla: de um lado, averiguar se a volatilidade está revelando um A


.
eleitorado inconstante, volúvel e idiossincrático, ou se, antes, efeitos de
estratégias de coordenação dos partidos; de outro, verificar se existe um
perfil social específico que caracteriza o comportamento flutuante. 377

Como veremos, os resultados indicam que a volatilidade eleitoral


não revela um quadro instável e caótico, no qual os partidos pouco

10
O percentual médio de votos mantidos por par de eleição foi de cerca de 85%.

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importariam para a decisão do eleitor. Antes, a dinâmica partidário-
-eleitoral no longo e no curto prazo revela razoável estabilidade. No
longo prazo, a flutuação eleitoral deve ser compreendida como inserida
em três contextos diferentes: a redemocratização dos anos 1980; a re-
modelagem do quadro partidário provocada pela vitória e decadência
do governo Collor; e a bipolaridade nacional construída a partir dos
anos 90 entre PT e PSDB.
Os fatores de curto prazo dizem respeito às decisões de entrada dos
partidos em cada pleito específico. A análise mostra que essa dimensão é
importante para compreender a variação da volatilidade, o que fornece
indícios de que esta medida diz menos respeito ao funcionamento geral
A do regime democrático e mais a uma dinâmica específica da competição
eleitoral, de relação estratégica entre partidos e eleitores.
N
O Além disso, no âmbito do perfil social do eleitorado, os dados mos-
V tram que não é possível afirmar que existe um comportamento volátil
A inerente de acordo com graus de escolaridade. Em alguns pares de elei-
ção são nas urnas com maior educação que se verifica maior flutuação
C
I
de votos, em outros, são as de menor educação. A mudança de voto pa-
Ê rece ter mais relação com a dinâmica da competição eleitoral, as caracte-
N rísticas e as forças dos partidos apresentados, do que com características
C
I
sociais dos eleitores.
A

D Análise empírica
A

P
Eleições presidenciais 1989-2014
O
L
As eleições presidenciais brasileiras assumiram dois formatos dife-
Í rentes no período de 1989 a 2014. O primeiro vigorou, na verdade, em
T
I
uma única eleição, em 1989, e caracterizou-se pela excessiva fragmen-
C tação: mais de 20 partidos disputaram votos na primeira disputa direta
A
para presidente desde 1960; o primeiro colocado foi um partido na-
.
nico (PRN), com pouco mais de 30% dos votos; e o segundo colocado
(PT) atingiu menos de 20%. O segundo formato vigorou no período
378
de 1994 a 2014. Nestes pleitos, as eleições presidenciais brasileiras são
caracterizadas pela proeminência de PT e PSDB, seguidos por terceiras
forças variáveis.
A tabela 1 apresenta os índices de volatilidade eleitoral de Pedersen
para as eleições presidenciais calculadas no nível do Estado de São Paulo:

Rogério - A nova ciencia politica.indd 378 07/05/2021 10:40:22


Dois pontos chamam atenção: (1) o elevado patamar da flutua-
ção entre 89-94, expressando a reorganização do quadro partidário que
ocorreu entre esse período; (2) mas também os não baixos índices no
período recente, que parecem não corroborar o argumento da estabili-
dade da bipolaridade da eleição presidencial.
V
O
Tabela 1: Volatilidade eleitoral Pedersen – Presidente – Nível L
do Estado de São Paulo – % A
1989-1994 1994-1998 1998-2002 2002-2006 2006-2010 2010-2014 Média T
I
55 14,7 35 34,7 21,5 31,2 32
L
I
Número de partidos competidores em cada eleição: 22 (1989) – 7 (1994) – 12 (1998) –
D
6 (2002) – 7 (2006) – 9 (2010) – 11 (2014).
A
Fonte: TSE e Banco de Dados Eleitorais NECI.
D
E
Vamos agora distinguir o quanto da volatilidade se deve à mudança
de preferências do eleitor e quanto ela é condicionada pela alteração da E
L
oferta partidária. No rodapé da tabela 1 constam informações sobre o
E
número de partidos que disputaram cada pleito. As “entradas” e “saídas” I
de partidos grandes e médios entre 1989 e 2014 não foi pequena. Dessa T

forma, o eleitor teve a possibilidade de não se restringir à bipolaridade O


R
PT-PSDB, ao mesmo tempo, no entanto, foi impossibilitado muitas
A
vezes de manter sua preferência partidária em dois pontos do tempo
L
seguidos.
E
Assim, pode-se retirar, do índice de volatilidade apresentado acima,
os votos dos partidos que “flutuaram” em cada par de eleições. Trata-se S
do índice de volatilidade contrafactual, tal como apresentado em seção I
S
anterior. Os apoiadores desses partidos entram necessariamente no ín-
T
dice de volatilidade, mas por fatores que escapam a sua discricionarie- E
dade: não puderam repetir sua preferência partidária em dois pontos do M
tempo por decisão partidária de entrada/retirada de candidaturas. A
.

Tabela 2: Volatilidade Contrafactual – Presidente –


Nível do Estado de São Paulo – % 379

1989-1994 1994-1998 1998-2002 2002-2006 2006-2010 2010-2014 Média


51 6,3 26,1 17,5 10 18,4 21,5

Número de partidos que se repetem em cada par de eleição: 6 (1989-1994) – 4 (1994-


1998) – 4 (1998-2002) – 2 (2002-2006) – 5 (2006-2010) – 9 (2010-2014).
Fonte: TSE e Banco de Dados Eleitorais NECI.

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A análise deve seguir a comparação com os resultados da tabela 1:
naquela estão os índices formados a partir dos votos em todos os parti-
dos. Na tabela 2, apenas dos partidos que se apresentaram nas duas elei-
ções. Observa-se que principalmente no início da série muitos partidos
não participam em duas eleições consecutivas. A diferença nos índices
de volatilidade entre as duas tabelas mostra os eleitores que alteraram
seu voto em função da mudança na oferta partidária.
A observação do valor médio dos seis pares considerados em ambas
as tabelas mostra que o cenário contrafactual reduz em cerca de 33%
o índice de volatilidade. Considerando as médias da volatilidade de
Pedersen e da volatilidade contrafactual sem o primeiro par, 1989-1994,
A
tem-se que a primeira fica em torno de 27,4%, enquanto a segunda
N alcança 15,7%. Logo, a flutuação eleitoral necessariamente condicio-
O
V
nada pela mudança da oferta partidária atinge 43% do índice médio
A total entre os pares 1994-1998, 1998-2002, 2002-2006, 2006-2010 e
2010-2014 nos resultados paulistas das eleições presidenciais brasileiras.
C Mudanças de preferências entre partidos constantes ocorreram forte-
I
Ê mente principalmente em 1989-1994 e também entre 1998-2002. Nos
N demais pares de pleitos, grande parte da volatilidade é explicada pela
C
I
movimentação na oferta partidária.
A E como a volatilidade se relaciona com o nível de escolaridade
D das urnas? Na tabela 3, apresento o índice médio de volatilidade de
A Pedersen, calculado em cada seção, estratificado por quartis de escolari-
P dade em ordem crescente.
O
L
Í Tabela 3: Volatilidade eleitoral Pedersen – Presidente –
T Nível das urnas – Quartis educacionais – %
I
C Ano/Quartil 1994-1998 1998-2002 2002-2006 2006-2010 2010-2014
A 1 quartil 17,1 34,9 29,2 19,9 30
. 2 quartil 16,1 35,5 34,2 22,3 33,3
3 quartil 14,4 35,6 38,5 24 35,1
380 4 quartil 12,2 31,3 40,3 24,8 32,9

Fonte: TSE e Banco de Dados Eleitorais NECI.

Note-se que enquanto em 1994-1998 a flutuação tem queda linear


quando se passa das seções de menor para as de maior escolaridade, em

Rogério - A nova ciencia politica.indd 380 07/05/2021 10:40:22


2002-2006 e em 2006-2010, o padrão se inverte: quanto menor a esco-
laridade, menor é a volatilidade eleitoral. Além disso, nos três últimos
pares de eleição analisados o quartil com menor escolaridade é o menos
volátil. Logo, não se pode afirmar que eleitores com menor educação
são inerentemente mais voláteis.
V
O
Tabela 4:Volatilidade Contrafactual – Presidente – L
Nível das urnas – Quartis educacionais – % A
T
Ano/Quartil 1994-1998 1998-2002 2002-2006 2006-2010 2010-2014 I
1 quartil 7,2 24,6 13,2 11 18 L
2 quartil 7 25,8 17 11,6 20 I
D
3 quartil 6,4 26,9 20,6 12,2 21,3
A
4 quartil 5 25,2 23,3 11,8 21,7
D
Fonte: TSE e Banco de Dados Eleitorais NECI.
E

E
Os índices de volatilidade contrafactual, ou seja, os valores da L
flutuação do voto como seriam se as opções partidárias permaneces- E
I
sem constantes, revelam que as diferenças entre os grupos educacio- T
nais são aplainadas: os valores por quartis de escolaridade da tabela 4 O
mostram uma maior homogeneidade na relação entre volatilidade e es- R
colaridade do que a encontrada nos testes com o índice de Pedersen, A
considerando todas as legendas. Esse dado revela que os partidos que L

mobilizaram o eleitorado, mas não apresentaram plataforma em dois E


pleitos seguidos obtiveram inserção educacional específica, seja nos
S
mais educados, seja nos menos. A mudança de voto parece ter mais I
relação com a dinâmica da competição eleitoral, as características e as S
forças dos partidos apresentados, do que com características sociais T
E
dos eleitores.
M
A
.
Eleições para governador de São Paulo 1982 – 2014
Os pleitos para governador, de 1982 a 2006, atravessaram três
381
grandes momentos político-partidários da história recente do Brasil:
a transição e abertura democrática dos anos 1980, a eleição e queda
do presidente Collor, e o período de bipolaridade da disputa nacional
entre PT e PSDB, construído nos anos 1990 e vigente até 2014.
Assim, esse é um bom caso para verificar o impacto das mudanças

Rogério - A nova ciencia politica.indd 381 07/05/2021 10:40:22


nacionais, contextuais e de longo prazo na volatilidade para governador
de estado.
Na tabela 5, encontram-se os índices de volatilidade de Pedersen,
agregados ao nível estadual:

Tabela 5: Volatilidade Eleitoral Pedersen – Governador –


Nível do Estado de São Paulo – %
1982- 1986- 1990- 1994- 1998- 2002- 2006- 2010-
Média
1986 1990 1994 1998 2002 2006 2010 2014
15,3 41,3 61,4 40,2 31,4 28 16,6 29,9 33
A Número de partidos competidores em cada eleição: 5 (1982) – 5 (1986) – 7 (1990) – 8
(1994) – 10 (1998) – 15 (2002) – 13 (2006) – 6 (2010) – 9 (2014).
N
Fonte: TSE e Banco de Dados Eleitorais NECI.
O
V
A
A tabela 5 revela dados interessantes. A reorganização do quadro
C
partidário e o período Collor parecem ter impactado fortemente a vola-
I tilidade em 1986-1990 e 1990-1994, os pares com valores de Pedersen
Ê
mais elevados. Isso se reforça levando em consideração o pequeno ín-
N
C dice de 1982-1986, no começo da abertura partidária, e a flutuação
I eleitoral menor nos últimos pares.
A
No entanto, abaixo veremos que o peso desses fatores de longo
D
prazo incidiu mais sobre a estratégia partidária pontual de entrada e
A
saída da competição que nas preferências expressas dos eleitores.
P
O
A tabela 6 apresenta os valores da volatilidade contrafactual, ou
L seja, as mudanças de voto apenas entre os partidos constantes em cada
Í par considerado:
T
I
C
A Tabela 6: Volatilidade Contrafactual – Governador –
. Nível do Estado de São Paulo – %
1982- 1986- 1990- 1994- 1998- 2002- 2006- 2010-
Média
382 1986 1990 1994 1998 2002 2006 2010 2014
14 22,5 25,6 22,5 19,7 12,6 10,5 13,7 17,6

Número de partidos que se repetem em cada par de eleição: 4 – (1982-1986) – 3


(1986-1990) – 4 (1990-1994) – 7 (1994-1998) – 7 (1998-2002) – 8 (2002-2006) – 5 (2006-
2010) – 4 (2010-2014).
Fonte: TSE e Banco de Dados Eleitorais NECI.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 382 07/05/2021 10:40:22


Os resultados revelam que quase 50% da volatilidade captada pelo
índice de Pedersen é causada necessariamente pela alteração da oferta
partidária. Essa mesma porcentagem é em média o número de parti-
dos que entram em disputa em dois pleitos consecutivos. Cada par de
eleições apresentou sua especificidade: enquanto em 1982-1986 quase
V
toda a flutuação se deu entre os partidos “constantes”, em 1990-1994 e
O
2010-2014 perto de 60% esteve determinada pelas mudanças no leque L
de escolhas do eleitor. A
T
Ao levarmos em consideração a contextualização histórico-política, I
veremos que os índices de volatilidade não se alteraram muito entre os L
períodos de consolidação democrática no Brasil. Tão importante quanto I
D
esses fatores de longo prazo são as decisões estratégicas dos partidos A
pontuais de cada pleito. Evidentemente, a observação dos resultados D
eleitorais é suficiente para verificar que os períodos históricos estão as- E
sociados com quedas e subidas de determinados partidos: por exemplo,
E
a decadência do PMDB no começo dos anos 1990, e a subida do PT L
nos 2000 e posterior declínio em 2014. Entretanto, o que é importante E
I
sublinhar é que o quadro partidário revela uma movimentação do elei- T
torado razoavelmente constante no tempo, fortemente impactado pelas O
decisões partidárias. R

Para analisar a relação entre escolaridade e flutuação eleitoral, fo- A


L
ram utilizados os mesmos procedimentos das disputas para presidente.
Abaixo se encontra a tabela 7 da volatilidade de Pedersen: E

S
I
Tabela 7: VGovernador – S
Nível das urnas – Quartis educacionais % T
E
Ano/Quartil 1994-1998 1998-2002 2002-2006 2006-2010 2010-2014
M
1 quartil 39,2 36,4 27,3 16,7 29,7
A
2 quartil 40,2 34,3 27,2 17,6 30,8 .

3 quartil 41,5 30,6 30,2 18 31,6


4 quartil 40,3 23 34,2 16,6 28,8
383
Fonte: TSE e Banco de Dados Eleitorais NECI.

Os dados mostram uma relação entre volatilidade e educação


semelhante ao das eleições presidenciais: em alguns pleitos, são as seções

Rogério - A nova ciencia politica.indd 383 07/05/2021 10:40:22


com menor escolaridade as que apresentam um indicador maior, em
outros, a média da flutuação do voto é maior nos últimos quartis, de
maior nível educacional.
A tabela 8 traz os mesmos exercícios, mas com o índice de
volatilidade contrafactual:

Tabela 8: Volatilidade Contrafactual – Governador –


Nível das urnas – Quartis educacionais %
Ano/Quartil 1994-1998 1998-2002 2002-2006 2006-2010 2010-2014
1 quartil 21,9 22,2 12,4 10,4 16,3
A 2 quartil 22,6 21 12 10,9 15,1
3 quartil 23,2 19 14,5 11,5 14,2
N
4 quartil 22,3 15,3 18,5 11,5 11,2
O
V Fonte: TSE e Banco de Dados Eleitorais NECI.
A

C
A distribuição educacional da volatilidade contrafactual, ou seja,
I apenas entre os partidos constantes, revela uma diminuição do peso da
Ê variação da educação na variação da flutuação eleitoral, reforçando a
N
C
hipótese defendida neste trabalho.
I
A
Eleições para prefeito de São Paulo 1985-2012
D
A Desde a primeira eleição direta para prefeito de São Paulo
P pós ditadura militar, em 1985, até 2012, cinco partidos diferentes
O ganharam as oito eleições para a prefeitura de São Paulo, de todos os
L
Í
matizes ideológicos. Essa afirmação parece indicar uma instabilidade
T eleitoral crônica do eleitor paulistano. O objetivo aqui é traçar um
I
C
quadro analítico mais acurado, que permita visualizar até que ponto
A essa indicação corresponde à realidade ou se, antes, a flutuação do
. resultado eleitoral para as eleições municipais de São Paulo deve-se mais
às mudanças nas opções partidárias definidas pelas elites políticas aos
384 eleitores do que propriamente às oscilações das preferências expressas
no voto.
A tabela 9 apresenta o índice de volatilidade de Pedersen para
prefeito de São Paulo:

Rogério - A nova ciencia politica.indd 384 07/05/2021 10:40:22


Tabela 9: Volatilidade Eleitoral Pedersen – Prefeito – Nível
da Cidade de São Paulo %
1985- 1988- 1992- 1996- 2000- 2004- 2008-
Média
1988 1992 1996 2000 2004 2008 2012

59,6 17,3 18,4 41,8 30 38,7 45,1 35,8


V
Número de partidos competidores em cada eleição: 11 (1985) – 14 (1988) – 9 (1992) –
12 (1996) – 15 (2000) – 14 (2004) – 11 (2008) – 12 (2012). O
L
Fonte: TSE e Banco de Dados Eleitorais NECI.
A
T
I
A variação no quadro de candidaturas apresentadas foi grande.
L
Fazendo o cálculo da volatilidade contrafactual, cujos valores estão I
expostos na tabela abaixo, observa-se que quase metade do índice de D

Pedersen, exposto na tabela 10, se deve à movimentação dos partidos, A


D
impossibilitando o eleitor de repetir sua preferência. Cabe notar a im-
E
portância de se levar em consideração o quadro partidário para enten-
der a volatilidade entre 2008 e 2012: o indicador tem uma queda de E
85% no cenário contrafactual. L
E
I
T
Tabela 10: Volatilidade Contrafactual – Prefeito –
O
Nível da Cidade de São Paulo %
R
1985- 1988- 1992- 1996- 2000- 2004- 2008- Média A
1988 1992 1996 2000 2004 2008 2012 L

37,7 14 14,6 23,4 21,5 15,1 7,1 19


E
Número de partidos que se repetem em cada par de eleição: 7 (1985-1988) – 5
(1988-1992) – 4 (1992-1996) – 8 (1996-2000) – 10 (2000-2004) – 6 (2004-2008) – 6 S
(2008-2012). I
S
Fonte: TSE e Banco de Dados Eleitorais NECI.
T
E
A tabela 11 apresenta o índice de volatilidade de Pedersen dentro M

dos quartis educacionais: A


.

385

Rogério - A nova ciencia politica.indd 385 07/05/2021 10:40:23


Tabela 11: Volatilidade eleitoral – Prefeito – Nível das urnas –
Quartis educacionais – %
Ano/quartil 1996-2000 2000-2004 2004-2008 2008-2012
1 quartil 40,5 30,5 30,2 44,9
2 quartil 42,2 30,6 35,5 47,3
3 quartil 42,9 34 42,3 49,3
4 quartil 41,1 32,5 50 51,5

Fonte: TSE e Banco de Dados Eleitorais NECI.

Ao contrário do que supõe a interpretação da volatilidade baseada


nas teorias da modernização e desenvolvimento político, a mudança de
A voto esteve fortemente relacionada a seções de alta escolaridade. Esse
N
mesmo exercício realizado para o cenário contrafactual, ou seja, reti-
O rando os partidos que não participaram de duas eleições seguidas, revela
V os mesmos padrões, conforme se vê na tabela 12: as seções de maior
A
educação são as que mais alteraram sua preferência eleitoral entre os
partidos constantes.
C
I
Ê
N Tabela 12: Volatilidade Contrafactual – Prefeito – Nível das urnas –
C Quartis educacionais – %
I
Ano/quartis 1996-2000 2000-2004 2004-2008 2008-2012
A
1 quartil 18,3 21,6 10,1 8,3
D 2 quartil 22,2 21,5 13 8,8
A
3 quartil 25,2 25,2 16,9 9,4
P 4 quartil 27,8 25,6 21,7 14,8
O
Fonte: TSE e Banco de Dados Eleitorais NECI.
L
Í
T
I Para finalizar, o conjunto de análises da volatilidade para os cargos
C
de governador de São Paulo, prefeito da capital e resultados presiden-
A
ciais no Estado de São Paulo mostra que as seções com menor escolari-
.
dade não são indubitavelmente as responsáveis pelas maiores flutuações
do voto. Muitas vezes, na verdade, ocorre o oposto. Além disso, grande
386
parte da volatilidade eleitoral é causada por decisões partidárias de en-
trada e saída do jogo eleitoral.
Poder-se-ia questionar que isso revela propriamente a falta de esta-
bilidade do quadro partidário. Afinal, um sistema consolidado impli-
caria nas mesmas legendas participando recorrentemente nos pleitos.

Rogério - A nova ciencia politica.indd 386 07/05/2021 10:40:23


A discussão teórica levantada acima chama atenção para problemas de
coordenação pré-eleitoral enfrentados pelas agremiações partidárias.
Em um sistema multipartidário e federativo como o Brasil, esses pro-
blemas se multiplicam. Cabe ainda notar que as eleições de 2002 e
2006 ocorreram sob uma decisão do Poder Judiciário que ficou conhe-
cida como “regra da verticalização das coligações”. Em linhas gerais, V
O
essa decisão estabeleceu que as coligações estabelecidas pelos partidos
L
na eleição presidencial deveriam ser respeitadas nas alianças entre as A
legendas nos demais pleitos. Ou seja, decisões exógenas não apenas ao T
comportamento dos eleitores, mas também aos partidos, influenciaram I
L
a oferta da competição eleitoral, e logo, a volatilidade, neste período. I
Em resumo, não se trata necessariamente de debilidades do qua- D
A
dro partidário, mas antes de decisões estratégicas tomadas em cenário
D
de considerável complexidade. Além disso, como forma de minimizar
E
essa possível objeção, cabe notar que grande parte do impacto na vola-
tilidade causada por comportamentos “inconstantes” da apresentação E
L
de candidaturas foi causada por partidos grandes e médios, como o E
PMDB, PP, PSB e DEM, e não por legendas pequenas ou satélites do I
sistema partidário brasileiro. T
O
R

Considerações Finais A
L
O esforço deste trabalho busca proporcionar uma nova interpreta-
E
ção para o fenômeno da volatilidade eleitoral no Brasil (focando no caso
de São Paulo), e, assim para a avaliação sobre o papel dos partidos po- S
I
líticos no momento eleitoral. Neste sentido, contribui para discussões S
acerca da institucionalização do sistema partidário, e, de modo geral, T
para o funcionamento da democracia no Brasil. A tese defendida é a E

de que o índice de flutuação do voto é fortemente influenciado pelo M


A
comportamento dos partidos, ao decidirem sobre o lançamento de can- .
didaturas, e não revela, necessariamente, um comportamento eleitoral
desordenado. Além disso, a decisão do voto volátil não tem compo-
387
nentes irracionais e não pode ser atribuída, como parte das teorias de
comportamento eleitoral o faz, a eleitores de baixa escolaridade.
Esse argumento é construído tanto teórica quanto empiricamente.
Na parte teórica, passou-se por diversas visões sobre o comportamento
volátil do eleitor. Na literatura tradicional sobre volatilidade, o eleitor

Rogério - A nova ciencia politica.indd 387 07/05/2021 10:40:23


inconstante é causa e consequência de processos de desalinhamento do
sistema partidário com as clivagens da sociedade, numa situação de crise
do sistema de representação protagonizado pelos partidos. Na perspec-
tiva do desenvolvimento político, notadamente Huntington, o eleitor
volátil é típico de contextos políticos não institucionalizados, nos quais
o cidadão localizado nas menores posições da estratificação social, prin-
cipalmente, assumiriam comportamentos radicalizados sem o devido
“freio” das instituições políticas. Nas teorias do comportamento elei-
toral, observou-se que as abordagens sociológicas e sócio-psicológicas
enfatizam o caráter marginal do eleitor inconstante: este não teria laços
de pertencimento estáveis com grupos da sociedade ou então teria um
A sistema de crenças desordenado. Além disso, a abordagem tradicional
N sobre volatilidade supõe um tipo específico de partido político, descon-
O siderando dimensões estratégicas de seu comportamento.
V
A
Um dos objetivos desse capítulo é trazer outro olhar para o eleitor
flutuante. Para tanto, mobilizei uma literatura preocupada com estraté-
C gias partidárias e competição eleitoral. De um lado, ressaltei a necessi-
I dade de se incorporar os constrangimentos impostos pela mudança na
Ê
N oferta partidária para a decisão de voto do eleitor. Legendas entram e
C saem da competição eleitoral, muitas vezes impossibilitando que elei-
I
A
tores mantenham seu comportamento estável. De outro lado, levantei
argumentos que questionam a própria atribuição de irracionalidade ao
D
A
eleitor volátil.

P
Do ponto de vista empírico, os resultados apontam que que grande
O parte da flutuação se deve à alteração do quadro partidário, e não está
L mais associada a eleitores com maior ou menor educação. Logo, as evi-
Í
T dências levantam dúvidas quanto à visão tradicional sobre a volatilidade
I eleitoral e institucionalização do sistema partidário, inspirada na teoria
C
A da modernização. Antes, são mais compatíveis com uma perspectiva de
. competição eleitoral, no qual partidos e eleitores agem racionalmente,
construindo e mobilizando preferências. A hipótese defendida pode le-
388 var, então, a novos testes em outros contextos eleitorais, e logo, trazer
novas compreensões ao comportamento eleitoral e à dinâmica do sis-
tema partidário no Brasil.

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L
E
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T
O
R
A
L

S
I
S
T
E
M
A
.

393

Rogério - A nova ciencia politica.indd 393 07/05/2021 10:40:23


Marina Merlo

Doutoranda e mestra em Ciência Política pela


USP (2017) e bacharela em Ciências Sociais pela
mesma instituição (2014). Hoje é assessora
técnica na Prefeitura de São Paulo na Secretaria
de Assistência e Desenvolvimento Social.

Dedico-me a análise das eleições, partidos


políticos e da participação política nas
democracias, em especial do Brasil e países
emergentes. No mestrado, fiz um estudo de
caso das vereadoras eleitas, utilizando-me de
dados quantitativos disponibilizados pelo TSE
para caracterizar suas campanhas eleitorais
e trajetória política e também entrevistas em
profundidade com as vereadoras em exercício
em 2016. A dissertação foi indicada ao prêmio de melhor dissertação de 2017 pelo DCP-
USP no mesmo ano.

Desde a graduação tenho interesse em programação em linguagem R e métodos mistos


de pesquisa. Passei pela Folha de S. Paulo durante as eleições de 2018, desenvolvendo
um algoritmo de classificação automática de temas com o conteúdo da campanha
eleitoral digital, TV e rádio dos candidatos a presidência e ao governo do Estado de
São Paulo. No doutorado, analisarei o impacto das Tecnologias da Informação e
Comunicação na participação política no Brasil.

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MULHERES TOMANDO PARTIDO E
PARTIDOS FAZENDO CANDIDATAS: A
TRAJETÓRIA DE VEREADORAS DA CIDADE DE
SÃO PAULO EM 2016

Marina Merlo

Introdução
Qual o papel dos partidos políticos no sucesso eleitoral das mulhe-
res? Sabe-se que as mulheres enfrentam mais obstáculos que os homens
para se eleger. As explicações passam por eventual resistência do eleito-
rado em aceitá-las no poder (AGUILAR; CUNOW; DESPOSATO,
2015), pela socialização feminina focada na esfera privada (FRASER,
1990; MANSBRIDGE, 1998; PATEMAN, 1988; PHILLIPS, 1998b),
pela suposta falta de interesse delas em seguir a carreira política (FOX;
LAWLESS, 2012, 2013) e pela falta de recursos para realizar suas cam-
panhas (SPECK; MANCUSO, 2014; SPECK; SACCHET, 2012). Há
ainda análises focadas no desenho institucional do sistema partidário
e eleitoral (KITTILSON; SCHWINDT-BAYER, 2012; NORRIS,
2013; SHVEDOVA, 2005) e no efeito da Lei de Cotas1.
Se, por um lado, a literatura tem avançado nas tentativas de res-
posta às causas da sub-representação feminina, por outro, ainda são
poucos os trabalhos empíricos brasileiros que se aprofundam no papel
dos partidos e suas lideranças na promoção ou exclusão das mulheres na
competição eleitoral (ARAÚJO; BORGES, 2012, 2013; BARREIRA;
GONÇALVES, 2012; CARNEIRO, 2009). Os estudos mais recentes

1
A Lei nº 12.034, de 2009, que acrescentou os parágrafos 3º e 4º ao art. 10 da Lei
Nº 9.504, de 1997, determina que “Do número de vagas resultante das regras
previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30%
(trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de
cada sexo”

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sobre as relações entre os partidos e as campanhas de mulheres apontam
que as agremiações assumem, primordialmente, os incentivos institu-
cionais formais e informais mobilizados na decisão de conceder espaço
para mais mulheres em seus quadros; da mesma forma, as mulheres
calculam suas estratégias de entrada na política ponderando quanta
resistência o ambiente oferece e qual o esforço envolvido em superar
essas dificuldades (CELIS; CHILDS; KANTOLA, 2016; CHILDS;
KITTILSON, 2016; KITTILSON, 2006; SANBONMATSU, 2006).
A partir dos dados analisados neste capítulo, é possível distinguir o
ingresso das mulheres na carreira legislativa municipal em quatro tipos:
as Independentes, que não dependem nem do partido, nem de lideran-
A ças ou padrinhos políticos para acessar o cargo; as Apadrinhadas, que
N conseguiram vencer por conta do apoio direto de uma liderança polí-
O tica; as Padrinho-Partidárias, que aliam uma carreira dentro do partido
V com o apoio de uma liderança para ter uma candidatura forte; e, por
A
fim, as Partidárias, que contam somente com sua trajetória nas instân-
C
cias intrapartidárias para se legitimar.
I Exceto pelas candidaturas do tipo Independente, é possível argu-
Ê
N
mentar que o principal achado sobre as relações entre partidos e lideran-
C ças políticas está na centralidade alcançada pelas siglas no momento de
I definição das candidaturas e das campanhas, quando os partidos exer-
A
cem controle e influência direta sobre alguns candidatos em detrimento
D
de outros. O partido político e seus líderes são capazes de criar e fomen-
A
tar candidaturas que acreditam ter potencial eleitoral. O argumento de
P que a liderança depende totalmente de uma oferta espontânea de can-
O
L
didaturas não se verifica nas entrevistas: a maioria das então candidatas
Í foi convencida ou recrutada.
T
I Embora nem sempre esteja presente nas primeiras atividades políti-
C cas das vereadoras, o partido político aparece como um dos horizontes
A
possíveis de participação política quando um familiar já tem um en-
.
volvimento partidário, desenhando-se um horizonte de sua trajetória
antes mesmo de considerar uma candidatura. Nesse sentido, o contato
396
com as atividades políticas por meio da família constitui capital polí-
tico convertido e adquirido ao longo da candidatura e da campanha,
distinguindo essas candidatas tanto por lhes fornecer um histórico de
atividade política, como por lhes dar legitimidade e acesso às redes de
contato e apoio com outros políticos e dentro do partido.

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Além dessa introdução, o capítulo conta com três seções. Na pró-
xima, discutem-se as principais expectativas teóricas para o compor-
tamento do partido e das mulheres nas etapas de filiação partidária,
candidatura e durante as eleições. A seguinte desenvolve a metodologia
empregada e os principais achados. A última, por sua vez, propõe uma
tipologia das carreiras baseada no grau de envolvimento e influência do
partido político e discute as consequências teóricas e normativas dos
achados.

Revisão bibliográfica M
U
Participação política e filiação partidária L
H
A participação política pode ser definida como toda a atividade que
E
tem a intenção ou o efeito de influenciar a ação do governo (BURNS; R
SCHLOZMAN; VERBA, 2001, p. 4). A literatura indica que as mulhe- E
res são menos propensas a se envolver em atividades dessa natureza em S

todos os regimes democráticos investigados, já que o gênero aprofunda- T


ria os custos envolvidos na participação (KITTILSON; SCHWINDT- O
BAYER, 2012; ROSENSTONE; HANSEN, 2002). M

Segundo a teoria política feminista, tal participação reduzida A


N
justifica-se pela estruturação dos espaços públicos dentro de uma ló-
D
gica masculina, muitas vezes incompatível com a linguagem definida
O
no âmbito privado, socialmente relacionado ao feminino (FRASER,
1990; MANSBRIDGE, 1998; PATEMAN, 1988; PHILLIPS, 1998b). P
Outros fatores estruturais importantes relacionam-se às oportunidades A
R
políticas com as quais mulheres têm contato ao longo da vida, como,
T
por exemplo, nascer ou ser criada em famílias politicamente ativas I
(FOX; LAWLESS, 2005). D
O
A filiação e o envolvimento em partidos são indicados como formas .
mais clássicas de participação em regimes democráticos, principalmente
pela herança da concepção do partido de massas (DUVERGER, 1992).
397
As motivações tanto para um partido buscar filiados quanto para indiví-
duos se filiarem dependem dos custos e benefícios que as regras e o mo-
mento político impõem a esses atores, como a necessidade de angariar
recursos – tanto financeiros, de contribuições dos seus integrantes, para
financiamento das atividades, quanto humanos, para gestão da máquina

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partidária – e a busca por influência em disputas intrapartidárias ou por
estabelecimento de uma reserva de candidatos (SCARROW, 1994).
Dentro da legislação brasileira, o alistar-se2 como eleitor é o pri-
meiro degrau na participação política tradicional, seguido por se filiar
a um partido para, então, poder se candidatar e se eleger3. A Figura 1
ilustra como é o acesso às candidaturas no Brasil (ÁLVARES, 2008):

Figura 1: Escada de acesso dos eleitores ao cargo eletivo


Escada de Acesso do/a Eleitor/a ao Cargo Eletivo

A
Eleitos/as
N
Candidatura
O
V Filiação partidária
A
Simpatizante

C Alistamento do/a eleitor/a


I
Ê
N Fonte: Elaboração de Álvares (2008, p. 904).
C
I
A Nesse quadro, há indícios de que a obrigação do tempo mínimo de
D
filiação e a ocorrência das convenções partidárias determinam o fluxo
A de ingresso partidário no Brasil – a maioria dos eleitores se filia próximo
ao prazo da data-limite para o registro de candidaturas (SPECK, 2013).
P
O
Desta forma, as motivações disso, no Brasil, teriam por foco a disputa
L eleitoral e não necessariamente o interesse ideológico. Especificamente
Í
T
sobre mulheres, há evidências não apenas de que se associam mais
I
C
A 2
Segundo o parágrafo 1º do artigo 14 da Constituição Federal de 1988, o
. alistamento eleitoral é obrigatório aos brasileiros maiores de dezoito anos e
menores de setenta anos, sendo facultativo para os analfabetos, os maiores de
398
setenta anos e de idade igual a dezesseis ou dezessete anos.
3
De acordo o artigo 9º da Lei Eleitoral (Lei nº 9.504/97), só são aceitas as
candidaturas daqueles que são filiados há pelo menos seis meses e que tenham
o mesmo domicílio eleitoral há pelo menos um ano. Desde a promulgação da
Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096/95) e da Lei Eleitoral, a formação e as
regras do selectorado ficam a critério de cada partido a partir do seu estatuto
(Art. 7º da Lei 9.504/97).

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a partidos políticos localizados à esquerda do espectro ideológico
(HTUN, 2002; MATLAND, 2005), fato verificado também no Brasil
(ÁLVARES, 2008), mas também de que, quando o fazem, ainda no
caso das brasileiras, apresentam taxas significativamente menores de fi-
liação e de envolvimento em atividades partidárias (RIBEIRO, 2015).

Candidatura
Na bibliografia brasileira, o debate sobre partidos concentra-se na
sua importância para o funcionamento da democracia (AMARAL,
2013). Há uma já consolidada literatura que explicita a relevância dos M

partidos dentro do processo legislativo (FIGUEIREDO; LIMONGI, U

1999), contrapondo-se àquela de meados da década de 1990 que L


H
apontava para a sua fragilidade (AMES, 1995; LAMOUNIER, 1992;
E
MAINWARING, 1999). R
Estudos mais recentes destacam a centralidade dos partidos na for- E
mação de coalizões em eleições (GUARNIERI, 2015), na coordenação S

partidária na disputa por prefeituras e cadeiras no legislativo (AVELINO; T


BIDERMAN; BARONE, 2012) e na articulação dos partidos en- O
tre os diferentes níveis do sistema partidário brasileiro (CARNEIRO; M
ALMEIDA, 2008). Também há indícios de que as agremiações exercem A
controle sobre a lista de distribuição do tempo no Horário Gratuito N
de Propaganda Eleitoral (ALBUQUERQUE; STEIBEL; CARNEIRO, D
2008), sobre recursos humanos e da máquina partidária (BRAGA; O
BOURDOUKAN, 2010), entre outros.
P
Para o que aqui se propõe, um arcabouço analítico útil para a aná- A
lise da seleção de candidaturas é o de oferta e demanda (NORRIS; R
LOVENDUSKI, 1995). Oferta são os aspirantes e potenciais candida- T
I
tos que voluntariamente se disponibilizam para a lista; demanda, por D
sua vez, são as lideranças e dirigentes, que compõem o selectorado – O
como indicado na tipologia de Rahat e Hazan (2001) – e que estipulam .

o número e características dos candidatos escolhidos. Desenvolvimentos


posteriores dessa chave de leitura (KROOK, 2010) consideram tam- 399
bém como demanda e oferta chegam num equilíbrio: as expectativas
dos potenciais candidatos sobre o que os selecionadores querem podem
fazê-los nem sequer se candidatar.
Na proposta original de Norris e Lovenduski (1995), as autoras
diferenciam dois tipos de julgamento dos selecionadores. Chamam o

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primeiro de discriminação direta, quando tomam sua decisão por ata-
lhos informacionais de estereótipos sociais. O segundo tipo é a discrimi-
nação imputada, quando antecipam as reações do eleitorado e escolhem
candidaturas com base nessas expectativas.
A oferta de potenciais candidatos é impactada pelas discriminações
ao tentar antecipar os critérios dos selecionadores; dessa forma, os inte-
ressados muitas vezes nem chegam a tentar a candidatura por crer que
não cumprem os requisitos ou que não têm as habilidades necessárias
para entrar na política. Como aponta Krook (2010), o último é um dos
fatores que mais pesam sobre as mulheres. Existem evidências empíricas
de que o recrutamento e a seleção de candidatas são significativamente
A alterados quando existe uma percepção mais positiva das lideranças so-
N
bre candidaturas femininas – seja pela visão favorável de sua atuação
O política (SANBONMATSU, 2006), seja pela crença de que essas candi-
V daturas serão estratégicas para conseguir mais votos (FRANCESCHET,
A 2005 apud KROOK, 2010, p. 709).
C
I
Ê
Campanha eleitoral
N
Existe uma ampla gama de estudos que apontaram preponderân-
C
I cia dos recursos financeiros para o sucesso eleitoral dos partidos e seus
A
candidatos (MANCUSO, 2015), tanto quanto para a sobrevivência
D enquanto organizações (BRAGA; BOURDOUKAN, 2010; KRAUSE;
A REBELLO; DA SILVA, 2015). A explicação mais frequente para a ne-
P cessidade de recursos é a prevalência da figura do candidato individual
O diante da do partido durante a campanha (AMES, 1995; CAREY;
L
Í SHUGART, 1995; MAINWARING, 1991; SAMUELS, 1999).
T Mesmo com a arrecadação sendo central para a condução da campa-
I
C nha com esses incentivos personalistas, ainda são poucos os estudos
A que investigaram a decisão das doações entre diferentes candidaturas
. (MANCUSO, 2015).
Nesse aspecto, as campanhas femininas, por sua vez, recebem
400
menos dinheiro que as de homens. Sacchet e Speck (2012) encontra-
ram que aquelas arrecadam menos que as candidaturas masculinas;
quando controlado pelo fator reeleição (que representaria a posse de
capital político), a diferença de arrecadação diminui, mas persiste.
Pode-se concluir, assim, que, apesar do financiamento de campanha

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ser capaz de mitigar algumas desvantagens, essa desigualdade faz com
que as candidaturas femininas não alcancem o mesmo potencial que as
masculinas.
Existem outros recursos que podem ser mobilizados pelos candi-
datos e pelos partidos que não necessariamente passam por recursos
materiais. Tais recursos fariam parte do capital político que o candidato
carrega consigo, que advém de sua rede de contatos e influência e que,
em certa medida, afeta suas possibilidades de seguir e crescer na carreira
política (MIGUEL, 2003, p. 121).
A noção de capital político, retrabalhada a partir de Pierre Bourdieu,
M
pode ser separada em dois tipos: o capital delegado, que é aquele origi-
U
nário da própria política, e o capital convertido, que ocorre quando há L
a transferência de outro campo para validá-lo no político por meio das H
campanhas eleitorais. Um acesso possível dessas redes é o que Miguel E
et al. (2015) chamam de capital familiar: um candidato consegue se R
beneficiar do prestígio político de um parente próximo que já é uma E
S
liderança consolidada.
T
O
Metodologia e apresentação dos resultados M
A
Este capítulo se utiliza de dados qualitativos e quantitativos. Os
N
quantitativos são aqueles disponibilizados pelo TSE referentes à relação
D
de filiados, as informações das candidaturas registradas, da prestação de
O
contas da campanha e de resultados apurados. Embora apresentados
apenas de forma descritiva, esses dados permitem contextualizar as nar- P
A
rativas das entrevistas dentro do quadro da competição eleitoral como
R
um todo, possibilitando avaliar o desempenho e recursos obtidos em T
comparação com outras candidaturas, bem como confrontar o caso das I
eleições municipais de 2016 em São Paulo com os achados de outros D
O
estudos. .
Os dados qualitativos, por sua vez, foram entrevistas em profun-
didade conduzidas com as vereadoras eleitas. A escolha de se analisar 401
somente aquelas eleitas em 2016 na cidade de São Paulo se dá por
dois motivos: primeiro, há uma limitação das evidências disponíveis
para se compreender o mecanismo da atuação partidária na carreira
dessas candidatas; segundo, as eleições municipais proporcionais são
consideradas pela literatura como as mais favoráveis para o ingresso

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de mulheres (NORRIS, 2013) e como as que mais elegem mulhe-
res no Brasil (MIGUEL; QUEIROZ, 2006), além de ser conside-
rado como o cargo de ingresso na carreira política típica (MIGUEL,
2003).
No caso da Câmara de São Paulo, o número de vereadoras eleitas
teve aumento de 120% em relação a 2012, indo de cinco para onze,
num universo de 55 cadeiras. Destas onze, cinco estão em seu primeiro
mandato eletivo; outras seis já ocuparam outros cargos ou foram ree-
leitas. Seis eleitas foram entrevistadas: Juliana Cardoso (PT), Sâmia
Bomfim (PSOL), Adriana Ramalho (PSDB), Janaína Lima (NOVO),
Edir Sales (PSD) e Aline Cardoso (PSDB). Apesar de não ter sido eleita
A em 2016, Isa Penna (PSOL) também participou por ter ocupado o
N cargo ao longo do mês de março de 2017, durante a licença do verea-
O dor Toninho Vespoli (PSOL), totalizando sete entrevistas. Exceto pelas
V vereadoras Soninha Francine (PPS) e Patrícia Bezerra (PSDB), que ha-
A
viam se licenciado do cargo para assumir a liderança em secretarias mu-
C
nicipais, todas as outras vereadoras – Rute Costa (PSD), Sandra Tadeu
I (DEM) e Noemi Nonato (PR) – foram contatadas, porém, sem sucesso.
Ê
N
Todos os contatos foram realizados entre março e abril de 2017 por
C meio dos e-mails e telefones oficiais disponibilizados no site da Câmara
I dos Vereadores de São Paulo, bem como por meio de abordagens pes-
A
soais nos gabinetes das vereadoras ou em eventos oficiais. As entrevis-
D tas foram realizadas nos próprios gabinetes e gravadas por celular, após
A
consentimento verbal, preferencialmente desacompanhadas ou sem
P interferência externa4. Foi utilizado um roteiro semiestruturado5 que
O perguntava sobre a trajetória política delas até chegar a ser eleita. O con-
L
Í junto final de entrevistadas apresentou perfil diverso o suficiente quanto
T à ideologia de seus partidos e à sua experiência política para observar
I
C diferenças entre as trajetórias.
A As entrevistas foram transcritas em sua integralidade e as respostas
. foram codificadas recortando os relatos em três momentos: as primeiras

402
4
Três entrevistas foram acompanhadas pelos assessores de imprensa das
vereadoras: Aline Cardoso (PSDB), Adriana Ramalho (PSDB) e Edir Sales (PSD).
Com as vereadoras do PSDB, as assessoras eram mulheres e não interferiram
na entrevista. Com a vereadora Edir Sales, o assessor deu sua opinião durante
a entrevista e interferiu em algumas das respostas.
5
O roteiro está disponível para download em goo.gl/x55HGO

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atividades políticas até a decisão de se filiar a um partido político; a
decisão e o registro da candidatura e a campanha eleitoral. Para cada
uma dessas etapas, as respostas foram manualmente codificadas siste-
matizando qual o papel que o partido político e suas lideranças tiveram,
buscando entender similaridades entre as vereadoras e com o apontado
pela literatura.

Análise das evidências empíricas


Seguindo a estrutura da pirâmide de acesso de Álvares (2008), ve-
mos na Tabela 1 que as mulheres são maioria entre os eleitores e um M

pouco mais da metade dos filiados6 da cidade de São Paulo. Esse nú- U
L
mero é superior ao registrado no Brasil, no qual as mulheres são 44,2%
H
dos filiados7.
E
R
E
Tabela 1: Sexo da população, eleitores e filiados da cidade de
S
São Paulo em 2016
T
Mulheres Homens Indeterminado Mulheres/
Total O
N % n % n % Homens
M
População 11.253.503 5.924.871 52,65% 5.328.632 47,35% - - 1,11
A
Eleitores 8.754.649 4.715.753 53,87% 4.024.248 45,97% 14.648 0,17% 1,17
N
Filiados 558.311 273.464 48,98% 266.825 47,79% 18.022 3,23% 1,02
D
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do TSE e do IBGE. O

P
Contudo, na Tabela 2, é possível verificar que as mulheres se filiam A
menos que os homens, proporcionalmente: embora o alistamento entre R
as mulheres seja superior ao dos homens – são 79,59% da população T
I
feminina alistada como eleitora contra 75,52% dos homens – por outro D
O
.
6
Por meio de pedido de acesso à informação via LAI, o TSE afirmou que não
divulga o sexo dos filiados na relação disponível para download por questões
de sigilo. Os filiados foram classificados de acordo com o seu primeiro nome 403
com base na relação de nomes dos candidatos a vereador em 2016. Apenas
3,22% dos nomes não foram classificados. O código está disponível mediante
requisição.
7
Dados de filiação de dezembro de 2016. Disponível em <http://www.tse.jus.br/
eleitor/estatisticas-de-eleitorado/eleitores-filiados-por-sexo-e-faixa-etaria>.
Acesso em 4 de julho de 2017.

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lado, 4,62% da população de mulheres é filiada, contra 5,01% dos ho-
mens; da mesma forma, 5,8% das eleitoras são filiadas a algum partido
político, contra 6,63% dos eleitores.

Tabela 2: Proporções do perfil de população, eleitores e filiados por


gênero da cidade de São Paulo
Mulheres Homens

Eleitoras Filiadas Eleitores Filiados

População 79,59% 4,62% - -

Mulheres
eleitoras - 5,80% - -
A
População - - 75,52% 5,01%
N
Homens
O eleitores - - - 6,63%
V
A Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do TSE e do IBGE.

C Quando observamos as proporções entre mulheres e homens


I
Ê (Figura 2), vemos que apenas seis dos trinta e cinco partidos registrados
N possuem mais mulheres que homens filiados, contra dezoito em que
C os homens são maioria8. Os partidos com as maiores proporções de
I
A mulheres na cidade de São Paulo são o PRB, com 53,80%, e o PSC,
com 51,61%. Os partidos que, proporcionalmente, têm sua base filiada
D
A mais masculina são o NOVO, com 85,12% de homens e a REDE, com
80,83%. Esses partidos não confirmam o que é indicado pela literatura,
P
O
de que as filiadas estão em maior quantidade em partidos de esquerda
L e recém-criados9.
Í
T Quando analisamos as entrevistas, três das sete vereadoras relataram
I ter se filiado a um partido político já considerando ser candidata (Edir
C
A
.
8
Essa contagem desconsidera os partidos cuja proporção entre homens e
404
mulheres não é clara por conta do número de indefinidos (PSL, PTB, PDT, PT do
B, PP, PSDC, PSB, PRP, PTN, PMN e PPS). Foram apenas considerados aqueles
cuja proporção de mulheres e homens é distinta o suficiente entre si.
9
PMB, NOVO e REDE obtiveram seu registro no TSE em outubro de 2015; porém,
o PMB figura em quarto lugar entre os partidos com mais mulheres enquanto
os outros dois são os últimos da lista. O PSC é considerado um partido de direita;
tanto o NOVO quanto o PRB, de centro-direita; e a REDE, de centro-esquerda.

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Sales, Adriana Ramalho e Janaína Lima); todas as outras quatro o fize-
ram antes de decidir a candidatura.

Me filiei um ano antes [de sair candidata], nunca fui ligada, sabe, a
partido, a fazer partido... que partido no Brasil hoje só serve pra dar
legenda, vamos falar o que é a verdade. Não tem mais idealismo, né?
(...) eu entrei no PL quando eu fui pra ser candidata. (EDIR SALES,
2017)

Figura 2: Filiados regulares na cidade de São Paulo por gênero

Gênero dos filiados por partido – Registro Regular M


PRB U
PSC
PT L
PMB
PMDB H
PR
PSL E
PTB
PDT
R
PT do B E
PP
PSDC S
PSB
PRP
PTN T
PMN
PPS O
PHS
PSDB M
PC do B
PPL A
PSOL
PROS N
SD
PCB D
PRTB
PSTU O
DEM
PTC
PEN P
PV
PSD A
PCO
REDE
R
NOVO T
0%

0%

I
25

50

75

10

% de filiados D
Gênero Feminino Indeterminado Masculino O
.
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do TSE.

Como dito, as motivações para a filiação a um partido dividem-nas 405


entre aquelas que se filiaram já considerando uma candidatura e outras
cujo envolvimento partidário foi anterior a essa decisão. Esse achado vai
ao encontro da hipótese indicada pela literatura para as motivações de
filiação partidária no Brasil, em que se estima haver um efeito pragmá-
tico por conta do que é exigido por lei. Entre as filiadas que já pensavam

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em sua candidatura, tanto Edir Sales quanto Janaína Lima citam ter for-
malizado sua associação com o partido muito próximo do limite legal
para tal. Por outro lado, outras vereadoras como Aline Cardoso, Juliana
Cardoso, Sâmia Bomfim e Isa Penna participavam de atividades parti-
dárias sem o horizonte da candidatura em mente.
A entrada no partido por meio de um familiar ou por afinidade
ideológica, conforme encontrado nos estudos de survey (RIBEIRO,
2015), também se confirma com as entrevistas. Aline Cardoso relata
que, apesar de ter se aproximado das atividades do partido por conta do
pai, começou a se envolver por iniciativa própria por gostar de política
desde mais nova. A presença de um histórico familiar de participação
A partidária e política também aparece no relato de Juliana Cardoso. Ela
diz que, antes de se candidatar, já tinha contato com o partido desde
N
pequena pelo fato de a mãe ser uma das fundadoras. O movimento es-
O
V
tudantil é outro meio indicado pela literatura para favorecer a entrada
A das mulheres na política e para propiciar proximidade com a estrutura
partidária: são os casos de Sâmia Bomfim e Isa Penna, ambas do PSOL.
C Os relatos de Janaína Lima, Sâmia Bomfim e Isa Penna indicam
I
Ê que a escolha do partido ao qual se filiariam foi, em grande medida,
N por identificação com a ideologia partidária; Aline Cardoso, Adriana
C Ramalho e Juliana Cardoso, por sua vez, citam a escolha pela proximi-
I
A
dade familiar. Edir Sales, a única que não cita ter escolhido o partido
por afinidade ideológica ou por indicação familiar, estaria mais próxima
D
da filiação pragmática indicada por parte da literatura (SPECK, 2013).
A
No pleito de 2016, das 1.275 candidaturas para o cargo de vereador
P
disponíveis no repositório de dados do Tribunal Superior Eleitoral10,
O
L
393 delas foram de mulheres, perfazendo 30,82% do total. Se, num
Í primeiro momento, pode-se pensar que os partidos cumpriram o esta-
T
I
belecido pela lei de cotas, ao analisar a lista de candidaturas das agre-
C miações (Figura 3) vemos que nem todas apresentaram o mínimo de
A 30% de candidaturas, embora a maioria tenha apresentado uma com-
. posição acima da porcentagem definida pela lei. Entre os doze partidos
que não apresentaram pelo menos 30% de candidaturas femininas estão
406

10
Os dados foram acessados no dia 10 de abril de 2017 em <http://www.tse.
jus.br/eleicoes/estatisticas/repositorio-de-dados-eleitorais>. Os números
podem mudar dependendo de atualizações de pendências judiciais e outras
atualizações como um todo.

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partidos de esquerda que historicamente apoiam a pauta da participa-
ção feminina na política, como o PT, o PSOL e o PSB.
Por outro lado, quando observamos a composição das listas por co-
ligação (Figura 4), vemos que praticamente todas cumprem o mínimo
determinado, exceto pela coligação composta pelo PMDB/PSD e o
PTB. Isso parece indicar que existe, então, uma coordenação interparti-
dária para o preenchimento da cota, com alguns partidos compensando
a presença de mulheres para outros, a exemplo do caso do PSB, partido
com o menor número de mulheres em sua lista – apenas 7,7%, contra
os 30,8% da sua coligação. O mesmo acontece na coligação entre PSC
e PRB: enquanto que, sozinhos, apresentam, respectivamente, 14% e M
31% de candidaturas; coligados, a lista de ambos atinge 30,1%. U
L
H
Figura 3: Gênero das candidaturas para vereador da cidade de São E
Paulo em 2016 por partido R
Gênero das candidaturas por Partido E
PCB
S
PSTU
PCO T
PSDB
PROS O
PRP
PR M
PPL
PMB A
PSL
PRB
N
SD
D
REDE
PC do B O
NOVO
Partido

PHS
PSDC P
PSD
PTN A
PRTB
R
PV
PEN T
PTB
I
PSOL
PMDB D
PT
PPS O
PP .
PT do B
DEM
PTC
PDT
407
PSC
PSB
0%

0%
%

%
25

50

75

10

% de candidaturas
Gênero Feminino Masculino

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do TSE.

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Apesar das candidatas formarem pouco mais de um terço das can-
didaturas, elas receberam apenas 14% do total dos votos nas eleições
de 2016 em São Paulo: foram 656.654 votos recebidos pelas mulheres
contra 3.804.248 votos depositados em candidatos homens; visto de
outra forma, os homens receberam uma votação 5,8 vezes maior que
as mulheres (Tabela 3). Em média, as candidaturas femininas recebem
menos votos que as dos homens, mesmo entre as eleitas, as quais re-
cebem 67% da média dos votos dos eleitos. Em média, as vereadoras
eleitas receberam 31.556 votos contra os 46.817 dos homens (Tabela
3) e apresentam um padrão de votação mais concentrado, porém mais
próximo da média dos homens que as não-eleitas.
A

N
Figura 4: Gênero das candidaturas para vereador da cidade de
O
São Paulo de 2016 por coligação partidária
V
A Gênero das candidaturas por Coligação
PSTU
PCO
C PPL
PSL
I SD
Ê R EDE
PC do B
N NOVO
C PSDC
Coligação

PSDB / PSB /PP /DEM


I PSOL / PCB
A PTN
PRTB
PV
D PT / PDT / PR / PROS
PRP / PTC / PT do B
A
PRB / PSC
PPS / PHS / PMB
P PEN
PTB
O PMDB / PSD
L
0%

0%

Í
25

50

75

10

T % de candidaturas
I
C Gênero Feminino Masculino
A
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do TSE.
.

408
PT e PSOL, localizados à esquerda no espectro ideológico, tiveram
suas candidatas selecionadas pelo seu perfil: mulheres, jovens e ligadas a
movimentos de base. Segundo o relato das três vereadoras, suas candi-
daturas foram possibilitadas pela estratégia das lideranças do partido de
acreditar que era preciso lançar nomes com esse perfil; Juliana Cardoso,

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Sâmia Bomfim e Isa Penna foram, assim, convencidas pelo partido a
participarem do pleito. Esses casos ilustram o que Kittilson (2006) de-
monstra ocorrer com os partidos europeus, em que a incorporação das
mulheres postulantes a cargos eletivos se dá por um movimento de cima
para baixo, partindo das lideranças, visando antecipar um potencial de
votos ainda não explorado. Isso ilustra também como essas candidatas
não sofreram o que a literatura chama de discriminação imputada pelo
partido, já que a expectativa que tinham sobre a recepção do eleitorado
era positiva.

M
Tabela 3: Estatísticas descritivas dos votos recebidos por resultado e U
gênero da cidade de São Paulo em 2016
L
Eleito Não Eleito Total H
E
Medida fem/ fem/ fem
Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres Homens R
masc masc /masc
E
Soma 34.7120 205.9941 17% 309.534 174.4307 18% 656.654 3.804.248 17%
S
Média 31.556 4.6817 67% 810 2.082 39% 1.670 4.313 39%
T
Mediana 33.999 35.772 95% 302 711 42% 311 759 41%
O
Desvio padrão 9.440 44.083 21% 1744 3.932 44% 5.569.013 14.300.356 39%
M
Mínimo 12.464 14.957 83% 0 0 - 0 0 -
A
Máximo 45.285 301.446 15% 16212 27.334 59% 45.285 301.446 15%
N
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do TSE. D
O
Então, tanto o Adriano [Diogo] quanto o grupo pensou que teria que
P
ser uma novidade, uma inovação, né – ousada, de ser uma mulher
A
e uma jovem da periferia. Então, eu meio que coube nesse perfil
R
de candidatura. (...) Eu tinha minha atuação política muito forte
T
no PT e no mandato [do Adriano Diogo], mas nunca pensei em ser
I
candidata nem a síndica de prédio, pra você ter uma ideia. (JULIANA D
CARDOSO, 2017) O
.
Por outro lado, o relato da vereadora Edir Sales confirma a exis-
tência de candidaturas que são lançadas pelo partido a partir das carac-
409
terísticas individuais, pensando no potencial de “densidade eleitoral”
do candidato, mesmo quando ele não participa da vida partidária.
Diferentemente daquela demonstrada pelo PSOL e PT, a motivação
de seu partido parece não ter levado em conta seu gênero ou sua atua-
ção específica. O papel ativo das lideranças políticas na consolidação e

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escolha da candidatura também aparece nos relatos das vereadoras do
PSDB, Adriana Ramalho e Aline Cardoso. Assim como todas as outras
vereadoras eleitas pela mesma coligação, ambas têm vínculo familiar
com políticos de carreira consolidada.

Eu tive condições iguais [em relação aos homens] de competir. Eu


tive, eu tenho que assumir que eu tive. Eu tive, a Adriana [Ramalho]
teve, a Patrícia [Bezerra] teve, porque a gente já tem alguém que
nos abriu a porta, alguém que nos estendeu a mão, alguém que nos
financiou. (...) Então tive, talvez, uma condição diferenciada pra
concorrer e pra chegar ao poder. (Cardoso, A., 2017)

A Esse “abrir portas” traduz-se tanto no contato facilitado com a es-


N
trutura partidária, com as campanhas eleitorais de outros candidatos,
O notadamente, seus familiares, quanto na possibilidade de contar com o
V apoio das lideranças e aliados políticos que o familiar em questão têm
A ou, ainda, no poder herdar a mesma base eleitoral. Este último aspecto é
evidenciado pelo relato de Adriana Ramalho, ao dizer que só se tornou
C
I
candidata por ser filha de um deputado estadual e por poder compar-
Ê tilhar seus votos, e que o “abrir portas” aconteceu quando ela pôde ter
N mais destaque e participar de eventos por conta da ligação com o seu pai.
C
I Outra interpretação possível desses relatos, à luz da literatura, é que
A
a relação familiar e sua posterior integração nos quadros e atividades
D partidárias serviram de atalhos informacionais para nortear as deman-
A das das lideranças políticas. No caso das vereadoras pelo PSDB e até
P mesmo no de Edir Sales, o vínculo familiar as favoreceu na avaliação
O da discriminação direta avalizada pelo partido, independentemente da
L discriminação imputada relativa às expectativas sobre o eleitorado. Tais
Í
T atalhos informacionais ficam patentes na fala de Aline Cardoso, que in-
I
C
dica que foram a experiência e a participação nas atividades partidárias,
A mesmo depois de alguns anos afastada, somadas ao fato de ser filha de
. um deputado estadual eleito pela sigla, que possibilitaram a aprovação
de sua candidatura pelo partido. A vereadora dá um peso maior para
410 a sua participação nas atividades partidárias como fator principal do
apoio do partido à sua candidatura, relatando que recebeu suporte de
outros filiados quando decidiu se candidatar:

Quando eu resolvi ser candidata, muitas pessoas do partido me


falaram assim “Nossa, Aline, fazia anos que a gente esperava você

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ser candidata. A gente via que você tinha esse potencial. A gente
enxergava isso em você. Não por você ser filha de ninguém, mas
porque você sempre se colocou, porque você sempre participou,
você sempre teve um protagonismo e o seu espaço era garantido
pelas suas colocações” (...). (CARDOSO, 2017)

Também conforme a literatura indica, a decisão ou a escolha de


sair candidata ou não também pesa de acordo com os votos esperados e
com a antecipação da concorrência na eleição – são as candidaturas com
“densidade eleitoral”, ou seja, as apostas mais seguras que o partido cos-
tuma fazer. Adriana Ramalho conta que, após aconselhamento do pai,
ao aceitar participar do pleito, não sabia se sairia candidata na cidade de M

Cotia, onde calculava precisar de 3 mil votos para se eleger, ou em São U


L
Paulo, onde teria uma campanha mais difícil por conta do número de
H
candidatos na disputa, podendo ser comparada a uma campanha para E
deputado. R
Outras vereadoras também relatam receios que tiveram nesse pro- E
S
cesso. Tais incertezas quanto à candidatura, conforme estudos apon-
tam, são um dos principais bloqueios que as mulheres têm para tomar T
essa decisão. Não se trata apenas, como o relato de Adriana Ramalho O

transparece, do medo do resultado eleitoral e da exigência de trabalho e M

esforço em uma campanha; outras vereadoras relatam que sentiam não A


N
estarem prontas ou capacitadas para sair como candidatas.
D
A vereadora pelo PT, Juliana Cardoso, declarou que teve receio as- O
sim que fora convidada, pois acreditava não ter o perfil de um vereador,
que, segundo ela percebia, seria o de um homem, branco e mais rico. P
A
Esse relato é muito próximo à discriminação que as próprias candidatas
R
têm consigo mesmas, quando mulheres acreditam que não cumprem os T
requisitos e qualificações necessárias para postular cargos eletivos. I
D
Aline Cardoso, por outro lado, apesar de afirmar que acreditava em
O
seu potencial e capacidade, diz que falta às mulheres essa autoestima .
sobre suas qualificações para ser candidata, sem levar em conta que,
muitas vezes, são mais bem capacitadas que outros candidatos. Sua fala
411
revela não apenas o receio de ser pretensiosa em seu desejo de prosseguir
uma candidatura, como também o processo de se convencer de que tem
capacidade para seguir a candidatura. Importante ressaltar que, junto
com Janaína Lima, a vereadora faz parte das candidaturas classificáveis
como ofertas, por ter tido intenção deliberada e própria de fazê-lo.

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Janaína Lima, única candidatura eleita pelo partido NOVO na ci-
dade de São Paulo e a única mulher eleita pelo partido no Brasil todo
em 2016, minimiza as incertezas e dificuldades que teve para conseguir
se candidatar e credita o seu sucesso inteiramente ao seu esforço pessoal,
apesar de reconhecer que enfrentou muitos obstáculos em sua trajetória
por conta da sua origem. Ela também relata que conseguiu se eleger
mesmo sem um apadrinhamento político para dar visibilidade para sua
candidatura.
O depoimento da vereadora Janaína Lima toca em dois pontos
abordados pela bibliografia crítica. Em primeiro lugar, ela foi o único
caso evidente de oferta de candidatura: a escolha de se filiar a um par-
A tido foi posterior à decisão de concorrer para um cargo eletivo. Filiou-se
em abril de 2016, já visando participar do processo seletivo para se
N
O
candidatar à vereadora.
V Em segundo lugar, seu relato é o único que citou espontaneamente
A a existência de processos seletivos dentro do partido para os interessa-
dos. Em sua avaliação, isso foi justamente um diferencial para conside-
C
I
rar qual partido daria melhores condições à sua candidatura. O dado vai
Ê ao encontro do que a literatura sobre o tema diz a respeito dos efeitos da
N transparência e abertura de seleção e recrutamento dentro dos partidos
C
I
para o aumento da participação das mulheres – isto é, procedimentos
A claros para todas as filiadas e filiados permitem a participação mesmo
daqueles às margens das cúpulas burocráticas.
D
A Todas as outras seis entrevistadas relatam ou terem sido conven-
cidas a se candidatar pelas lideranças partidárias ou, então, se aprovei-
P
O taram de sua participação na estrutura partidária e de um momento
L favorável a candidaturas do seu perfil. Essas evidências indicam que
Í
T
a demanda dos partidos, conforme o modelo de Norris e Lovenduski
I (1995), não está limitada a ser atendida pela oferta de aspirantes. O
C caso dessas seis vereadoras é evidência de que o partido é capaz de se
A
mobilizar para atender suas demandas e está aberto a incorporar mu-
.
lheres quando estas cabem em suas estratégias, como Kittilson (2006)
descreve. Independentemente da existência de uma oferta reduzida, os
412
partidos e suas lideranças não têm papel passivo perante um número
reduzido de candidatas aspirantes e criam condições para que elas acon-
teçam quando as julgam eleitoralmente vantajosas.
Esses relatos também reforçam os outros achados sobre partidos e
organização partidária no Brasil, no sentido de que os partidos e suas

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lideranças controlam o acesso dos candidatos às listas, logo, a escolha
das candidaturas está ligada à estratégia política de cada um. Tais cri-
térios, contudo, parecem variar entre os partidos ou, ainda, entre coli-
gações. Como este trabalho foca apenas nas candidaturas de mulheres,
não é possível afirmar que o perfil e a estratégia de seleção dos candida-
tos sejam os mesmos aplicados na escolha das candidaturas como um
todo; porém, pode-se apreender alguns padrões.
As quatro candidatas eleitas pela coligação do PSDB/DEM/PSB/
PP, por exemplo, têm trajetórias ligadas a familiares homens que já eram
políticos experientes dentro dos seus partidos. Conforme apontam
M
Miguel et al. (2015), laços pessoais atuam como um capital importante
U
para o ingresso na política (MIGUEL; MARQUES; MACHADO,
L
2015, p. 721), e constituem um dos capitais políticos mais decisivos H
para que as portas sejam abertas. E
Conforme relatos das vereadoras do PSDB, foi o laço familiar que R
E
as possibilitou participar mais das atividades do partido e ter apoio para
S
sua candidatura; no caso de Adriana Ramalho, foi o convencimento de
lideranças partidárias ligadas ao pai que fez com que ela saísse candi- T

data. Esse mesmo padrão de ingresso na política parece se repetir com O


M
as vereadoras eleitas na coligação PMDB/PSD: tanto Edir Sales quanto
A
Rute Costa, ambas do PSD, tiveram irmãos que foram vereadores antes
N
delas e, assim, puderam “herdar” o capital político deixado por eles
D
quando desocuparam os cargos.
O
Sobre isso, as entrevistas das candidatas pelo PSDB e PSD também
P
revelam que eventuais discriminações diretas e imputadas que poderiam
A
ter sofrido internamente foram amenizadas por seus padrinhos políti- R
cos; ao que parece, o laço familiar com figuras experimentadas politi- T
camente serviu de atalho informacional para o partido julgar que suas I
D
candidaturas estavam, de fato, concorrendo, e não só participando
O
da eleição. .
As entrevistas também mostram que suas candidaturas foram via-
bilizadas, conforme o modelo de Kittilson (2006), por oportunidades 413
políticas. Nessa conjuntura, o partido delibera sobre o quanto uma can-
didata mulher seria necessária para agradar ao eleitorado, e a decisão
final submete-se, em alguma medida, à pressão top-down, já que quase
todas relatam ter agido por convencimento ou julgamento dos quadros
partidários.

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Numa análise descritiva do total de recursos recebidos pelos can-
didatos (Tabela 4), é possível observar que as campanhas das mulheres
tiveram menos recursos financeiros em São Paulo, no ano de 2016: em
média, as vereadoras eleitas receberam 91,9% do total de recursos ar-
recadados pelos vereadores eleitos. O total das candidaturas femininas,
mesmo perfazendo 30% das candidaturas, acessaram cerca de 20% do
total do financiamento dos candidatos homens. Entre as candidaturas
que não se elegeram, a diferença entre homens e mulheres é maior: elas
receberam 42,96% do total de recursos dos candidatos.

Tabela 4: Total de recursos recebidos pelos candidatos a vereador da


A cidade de São Paulo em 2016 por resultado e por gênero
N Eleitos Não Eleitos
O Medida fem/ fem/
Feminino Masculino Feminino Masculino
V mas mas
A
Soma R$ 4.078.019,74 R$ 17.750.605,45 22,97% R$ 3.477.032,60 R$ 17.755.647,73 19,58%

% do total 9,47% 41,22% 22,97% 8,07% 41,23% 19,58%


C
I Média R$ 370.729,07 R$ 403.422,85 91,90% R$ 9.102,18 R$ 21.188,12 42,96%
Ê Mediana R$ 373.085,75 R$ 320.751,21 116,32% R$ 3.957,45 R$ 4.496,54 88,01%
N
D. padrão R$ 224.589,39 R$ 399.432,18 56,23% R$ 25.907,38 R$ 60.248,38 43,00%
C
I Mínimo R$ 45.004,78 R$ 43.189,56 104,20% R$ 0,00 R$ 0,00 0,00%
A Máximo R$ 696.302,46 R$ 2.396.056,00 29,06% R$ 371.712,29 R$ 598.171,20 62,14%

D Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do TSE.


A

P
O
Nas estatísticas descritivas dos recursos de campanha das eleitas,
L quando separadas entre as incumbentes (que já ocuparam o cargo de ve-
Í readora) e as desafiantes (que estão em seu primeiro mandato) na Tabela
T
I 4, vemos que o custo médio por voto entre as últimas é de R$11,73,
C cerca de 14% superior ao montante gasto pelas primeiras. A média do
A
total de recursos recebidos pelas incumbentes foi de R$382.201,58, va-
.
lor superior em cerca de 20% ao recebido pelas desafiantes. Ou seja, a
campanha das reeleitas foi mais eficiente e mais bem financiada que a
414
campanha das desafiantes, como é indicado pela literatura.
A vantagem de incumbência pode ser observada nos depoimentos
de Juliana Cardoso e Edir Sales, reeleitas para seu terceiro mandato na
Câmara dos Vereadores. Ambas relatam igualmente terem feito suas
campanhas nos territórios em que mais atuam e que sabiam que tinham

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votos, com estratégias de “política de rua” com visitas e caminhadas nos
bairros.
Essa maior eficiência na conversão de recursos financeiros para
votos pode ser explicada pelo aumento no capital político proporcio-
nado pela conquista do cargo, como ficou evidenciado pela narrativa
de Juliana Cardoso, que passou a fazer as campanhas subsequentes ao
primeiro mandato baseadas nas suas realizações enquanto vereadora, o
que chamou de “renovação do contrato”.

Tabela 5: Estatísticas descritivas dos valores recebidos pelas candidatas M


a vereadora na cidade de São Paulo em 2016
U
Desafiantes L
Desafiantes Incumbentes
/Incumbentes H

Receita total R$ 299.539,66 R$ 382.201,58 78%


E
R
Mediana R$ 338.551,87 R$ 309.635,08 109%
E
Desvio Padrão R$ 241.765,08 R$ 248.730,68 97%
S
Máximo R$ 658.095,72 R$ 696.302,46 95%

Mínimo R$ 12.427,67 R$ 83.245,60 15%


T
O
M
Custo por voto total R$ 11,73 R$ 10,30 114%
A
Mediana R$ 12,29 R$ 7,71 159%
N
Desvio Padrão R$ 8,85 R$ 6,82 130%
D
Máximo R$ 25,54 R$ 19,43 131%
O
Mínimo R$ 1,00 R$ 2,08 48%

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do TSE. P


A
R
Quando questionadas sobre como levantaram recursos para a cam- T
panha, as narrativas passam pelo relato sobre o recebimento do fundo I
D
partidário. Nem todas afirmam ter recebido repasse desses valores pelo
O
partido, como é o caso de Adriana Ramalho e Isa Penna. Entre aquelas .
que dizem ter recebido recursos do fundo, a narrativa é acompanhada
das dificuldades e contrapartidas atreladas ao repasse. Aline Cardoso,
415
por exemplo, indica que, apesar da captação de recursos não ter sido fá-
cil, uma candidatura tem menos dificuldades e, inclusive, pode receber
mais recursos do partido quando se é uma candidata reconhecida.
Também existe uma diferença no padrão da composição do finan-
ciamento recebido pelo tipo da receita (Figura 5). Nesse aspecto, em

Rogério - A nova ciencia politica.indd 415 07/05/2021 10:40:25


geral, mulheres têm menos recursos próprios e de pessoas físicas; por
outro, recebem maior financiamento do partido e de outros candidatos.
O padrão de composição entre eleitas e não eleitas é bastante parecido,
com aquelas recebendo mais repasses dos partidos políticos e de pessoas
físicas do que estas.
O fato de os candidatos homens contarem com maior financia-
mento de fundos próprios aplicados em suas campanhas pode ser ex-
plicado pelo que Miguel (2009) indica como a conversão de capital
econômico em capital político, isto é, quando o candidato consegue
utilizar os recursos financeiros de que tem a sua disposição para se tornar
politicamente relevante no momento da campanha eleitoral. Miguel et.
A ali (2015) apontam ainda que o capital político adquirido pelo econô-
mico é mais comum entre os homens, também confirmando o que se
N
O
observa nos dados na Figura 5.
V
A
Figura 5: Tipo de receitas por resultado e gênero para vereador da
cidade de São Paulo em 2016
C
Tipo de Receitas
I
Eleito Não Eleito
Ê
N
C
I
A
Masculino
Tipo da receita
D Doações pela internet
Outros
Gênero

A
Recursos de outros candidatos
P Recursos de partido político

O Recurso de pessoas físicas


Feminino Recursos próprios
L
Í
T
I
C
00

25

50

75

00

00

25

50

75

00
0.

0.

0.

0.

1.

0.

0.

0.

0.

1.

A
. Porcentagem da receita total

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do TSE.


416

O apadrinhamento político aparece no relato de quatro das sete


vereadoras entrevistadas: Juliana Cardoso, apadrinhada pela liderança
política do seu grupo, Adriano Diogo, para ser sua sucessora na Câmara
dos Vereadores; Edir Sales, apadrinhada pelo irmão Eurípedes Sales (na

Rogério - A nova ciencia politica.indd 416 07/05/2021 10:40:25


época, MDB) para dar continuidade em seu trabalho na região como
política; Aline Cardoso, apadrinhada pelo pai, Celino Cardoso, depu-
tado estadual eleito, e Adriana Ramalho, também apadrinhada pelo pai,
Ramalho da Construção, deputado estadual eleito.
Conforme os estudos nos indicam, o apadrinhamento político é
uma das maneiras de se transferir capital político de um candidato a
outro. Exceto pelo caso de Juliana Cardoso, todas as outras vereadoras
que foram apadrinhadas dependem de vínculos familiares. A transfe-
rência de capital político pelo capital familiar aparece de forma forte
nos relatos de Aline Cardoso, Adriana Ramalho e Edir Sales. As três
M
indicam que entraram na política por conta dos laços familiares e que U
esses mesmos laços lhes proveram redes de apoio e divulgação durante L
a campanha. As narrativas se assemelham bastante ao que já fora ras- H
treado pela literatura: o capital familiar dá acesso às redes de lealdades E
R
e compromissos que o padrinho político já possui. O apadrinhamento
E
político de fato parece reduzir as dificuldades da candidatura pelas al- S
ternativas que oferece para a condução da campanha, não obrigando
T
as candidatas a focarem apenas na arrecadação de recursos financeiros.
O
Outro diferencial na construção do capital político que essas M
vereadoras tiveram à sua disposição está no fato de que, das sete A
entrevistadas, quatro delas viveram sua primeira campanha própria em N
2016, sendo que as outras três já haviam sido candidatas em outras D
eleições ou trabalhado em campanhas de outros candidatos – o que O

pode ser entendido como um capital político originário. Dentre as no- P


vatas, apenas Janaína Lima nunca havia tido experiência alguma com A
uma campanha eleitoral. O fato de já estarem inseridas no cotidiano R
político-partidário faz com elas obtenham não só legitimidade como T
I
candidaturas viáveis, mas também permite que elas acionem toda uma D
rede de apoios de lideranças políticas para sua candidatura. O
.
Mesmo sem padrinhos políticos, as vereadoras do PSOL, Sâmia
Bomfim e Isa Penna, e Janaína Lima também tinham experiência o
suficiente seja como figuras públicas, seja dentro do partido, para ser 417

convertida como capital político utilizável em suas próprias campanhas.


Mesmo no caso de Janaína Lima, que propositalmente tem uma candi-
datura e campanha apartadas das práticas partidárias tradicionais, teve
à sua disposição as redes do movimento político de que fizera parte

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em 2015, o Vem Pra Rua, contando com o apoio de suas lideranças
públicas.

Discussão e conclusões
A análise das entrevistas e dos dados eleitorais permite que se es-
quematize uma tipologia, conforme disposto na Figura 6. Ela segue um
contínuo entre uma dependência da estrutura e atuação partidária, até
uma menor influência dos partidos políticos e suas lideranças. Pode-se,
assim, propor quatro tipos de trajetórias diferentes: Independente,
Apadrinhada, Padrinho-partidária e Partidária. As candidatas do tipo
A Independente seriam aquelas que não dependeram nem do partido,
nem de lideranças ou padrinhos políticos para acessar o cargo; as
N
O
Apadrinhadas são aquelas que conseguiram vencer por conta do apoio
V direto de uma liderança política; já as do tipo Padrinho-partidária alia-
A ram uma carreira dentro do partido com o apoio de uma liderança para
ter uma candidatura forte; e, por fim, as Partidárias contaram somente
C com sua trajetória nas instâncias intrapartidárias para se legitimar.
I
Ê A carreira do tipo Independente é a de Janaína Lima, que relata
N ter tido uma trajetória bastante autônoma de influências de partidos,
C
I
familiares ou padrinhos políticos. Exceto pelo primeiro contato com a
A política, que diz ter sido devido ao exemplo familiar, o caminho percor-
D
rido até a vitória eleitoral é bastante distinto das outras vereadoras por
A não transparecer em sua narrativa nenhuma influência direta do partido
ou de alguma liderança. A filiação partidária e o momento da seleção
P
O
de sua candidatura são descritos como formalidades e suportes mínimos
L necessários para seguir em campanha, também conduzida com inde-
Í
T
pendência dos recursos materiais e imateriais da sigla.
I O segundo tipo, identificado como Apadrinhado, é o de Adriana
C
A
Ramalho e Edir Sales, cujos depoimentos indicam maior influência e
.
dependência das decisões de seus padrinhos políticos para se eleger, o
que não significa necessariamente uma implicação na estrutura partidá-
418
ria. Ambas tiveram familiares diretamente ligados ao exercício de um
mandato eletivo como exemplo de envolvimento político e esse mesmo
vínculo familiar foi o que motivou uma ou mais lideranças partidárias
a apostarem em suas candidaturas. Seus relatos são permeados de de-
cisões e apoios dessas lideranças como norte de suas carreiras: dizem
ter se filiado apenas como meio viabilizador da candidatura, sugerida e

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colocada por um padrinho político que as conduziu como suas candi-
datas ou herdeiras ao longo da campanha.

Figura 6: Trajetória das vereadoras entrevistadas

Janaína Edir Adriana Aline Juliana Isa Sâmia


Lima Sales Ramalho Cardoso Cardoso Penna Bomfim
(NOVO) (PSD) (PSDB) (PSDB) (PT) (PSOL) (PSOL)

M
Primeiro
contato U
com uma
atividade
L
Família Universidade
política H
E
Pré-eleições

R
Primeiro E
contato
com um S
partido Família
Outro Mov. Estudantil
político
T
O
M
Razão A
para se
filiar a um N
Candidatura Pessoal
partido
D
O

P
Decisão
para se A
Pré-campanha

candidatar Pessoal Liderança(s) Partidária(s)


R
T
I
D
O
Apoio à .
candidatura Outro Padrinho(s) político Dirigentes partidários
Campanha

419

Capital
político
usado na
campanha Convertido Familiar Político/Partidário
Fonte: Elaboração própria de acordo com o sistematizado das entrevistas.

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Em terceiro lugar está a carreira Padrinho-partidária, de Aline
Cardoso e Juliana Cardoso. Diferentemente do grupo anterior, elas
tiveram e têm participação marcada na vida partidária, ambas men-
cionando a filiação a determinada legenda por interesse nesse tipo de
atuação, ainda muito jovens, antes da ideia de uma candidatura ser
aventada. Contudo, foi o apoio de uma liderança política já estabele-
cida dentro do partido que deu peso para sua candidatura ser ratificada
por outras lideranças e possibilitou o acesso de redes de apoio político
ao longo da campanha.
Por fim, Sâmia Bomfim e Isa Penna, ambas do PSOL, são para-
digmáticas da carreira política Partidária, vinculada quase que exclusi-
A vamente ao movimento estudantil e à militância dentro do partido. É
somente depois de um histórico de militância consolidado dentro do
N
O
partido que surge o convite por parte dos dirigentes para se candidatar,
V por representarem um perfil de candidatura que o partido gostaria de
A ter e não por configurarem uma continuidade de um mandato ou lide-
rança política já estabelecida.
C
I A presença partidária ativa na maioria dos relatos indica que as can-
Ê didaturas dependem de apoio e validação externas – principalmente
N
ligadas a um partido ou liderança política – para concorrer de forma
C
I competitiva. É plausível de se supor que essa seja a regra da disputa
A política, mas, pelos relatos das eleitas e pelo indicado na literatura, há
D indícios de que, para as mulheres, a obtenção desse apoio é mais cir-
A cunstancial. O sucesso eleitoral não dependeu somente de sua disposi-
P
ção pessoal; ao contrário, as lideranças partidárias foram, de maneiras
O diferentes, responsáveis pela inserção delas na política e pelo estímulo
L direto de sua participação nas eleições.
Í
T A dependência dos partidos e de suas lideranças, por parte das
I candidatas, não permeia, contudo, a trajetória das vereadoras desde o
C
A começo. Isso é mais forte nos períodos de pré-campanha e durante a
.
campanha, haja vista a influência para viabilizar as candidaturas, con-
forme figura em quase todos os relatos. Nesse sentido, pode-se aventar a
420
hipótese de que o início de trajetória política, em que os partidos polí-
ticos estão ausentes, é uma das causas do baixo recrutamento de poten-
ciais candidatas ao longo da formação das listas, indicando que existe de
fato uma baixa disponibilidade de filiadas aspirantes a um cargo político
durante a seleção de candidaturas, isto é, a oferta de candidaturas pode
ser menor que a de homens.

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Distantes das fileiras dos partidos, essas mulheres, cuja participação
política se dá em outras atividades, podem não ter projeção o suficiente
ou para chamar a atenção das lideranças recrutadoras, ou para conhecer
o funcionamento das disputas intrapartidárias e nelas se envolver. As
possibilidades que se abrem para seguir uma carreira disputando elei-
ções, dessa forma, dificilmente surgirão espontaneamente.
Corrobora essa hipótese o fato de a maioria das entrevistadas apon-
tar ter tido contato com a estrutura partidária por meio da família, o
que indica dependência de uma “herança” política para que as mulheres
se aproximem dos partidos. As exceções são as candidaturas do tipo
Independente e do tipo Partidária – a primeira, de Janaína Lima, por re- M
cusar o envolvimento político-partidário tradicional; e as segundas, do U
PSOL, por se envolverem em grupos do movimento estudantil ligados L
H
ao partido, proporcionando-lhe uma via de entrada. As quatro candida-
E
tas dos tipos Apadrinhada e Padrinho-partidária só chegaram ao partido
R
pela filiação de algum familiar. E
Já no período de pré-campanha e na campanha, confirma-se o que S
a literatura tem evidenciado: os partidos e suas lideranças são atores T
relevantes no processo da seleção, recrutamento e fortalecimento das O
candidatas. O momento da formação das listas, em especial, é quando M
se definem quem serão os candidatos e quais terão apoio de suas lide- A
ranças. Isso indica que, ao contrário do que se dizia sobre as candidatu- N
ras terem motivação puramente individual, o momento da campanha D
eleitoral revela que as entrevistadas não passam a receber mais apoio O
dos partidos e das lideranças além daquele conquistado para se regis-
P
trar como candidata, mas apenas estendem os mesmos suportes que já A
tinham – isto é, apenas convertem a anuência para a candidatura em R
apoio político-eleitoral. T
I
Assim, pode-se argumentar que, embora as mulheres tenham gran-
D
des obstáculos financeiros ao longo de suas campanhas, a maior dificul-
O
dade está na obtenção de uma candidatura respaldada por aqueles que .
controlam e formam as listas. Quando isso é conquistado, é bastante
provável que suas campanhas tenham estrutura suficiente para serem
421
competitivas.
É possível ainda pensar em algumas consequências normativas a
partir desses achados. A primeira delas é sobre qual é a representação
feminina e, sobretudo, se feminista, que está sendo escolhida para os
cargos eletivos, para além da quantidade de mulheres eleitas. Se são

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poucas as que conseguem vencer, em número ainda menor são aquelas
cuja trajetória se distingue da carreira e dos grupos políticos hegemôni-
cos, consolidados. Essa dependência de lideranças tradicionais desperta
igualmente questionamento similar: quanta liberdade de ação têm essas
eleitas fora do fazer político já estabelecido? Em troca do apoio dado à
candidatura e à campanha, é possível inferir que há uma concessão a se
fazer durante sua atuação parlamentar, o que impõe restrições para se
posicionar de forma mais independente.
Para além de exigir mais mulheres, os estudos acadêmicos e as rei-
vindicações sociais devem se pautar por mudanças nos mecanismos de
acesso aos cargos eletivos de modo a democratizar a entrada de mulhe-
A
res nos quadros partidários e nas listas. Isso pode passar pelo fortaleci-
N mento dos órgãos de mulheres dentro dos partidos para que tenham
O poder de apoiar e sustentar suas próprias candidaturas; pela exigência
V
A
do preenchimento efetivo dos 30% de candidaturas femininas deter-
minados pela Lei de Cotas e da distribuição dos recursos do Fundo
C Partidário e do Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral como forma
I de compensar a falta de apoio dos círculos políticos tradicionais.
Ê
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PARTE IV: HISTÓRIA DO
PENSAMENTO POLÍTICO E SOCIAL

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Leonardo Octavio Belinelli de Brito

Doutor (2019) e mestre (2015) em Ciência Política


pela Universidade de São Paulo (USP. Graduado
(2011) em Ciências Sociais pela Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp).

Atuo no campo de estudos conhecido como


pensamento político e social brasileiro. No
mestrado, publicado sob o título Os dilemas
do patrimonialismo brasileiro (Alameda/FAPESP,
2018), desenvolvi um estudo comparado sobre
as “interpretações do Brasil” de Raymundo
Faoro e Simon Schwartzman a partir de suas
utilizações do conceito de patrimonialismo.
O trabalho procurou desenvolver uma parte
do programa de pesquisa formulado por Gildo
Marçal Brandão em Linhagens do pensamento político brasileiro (Hucitec, 2007).

No doutorado, realizei um estudo comparado sobre as formas como Fernando Henrique


Cardoso e Roberto Schwarz utilizaram a metodologia marxista para formularem suas
interpretações a respeito da formação nacional. O estudo sustenta que, a despeito das
diferentes disciplinas e posições políticas dos autores, ambos operaram de modo similar
com tal arcabouço metodológico. O capítulo publicado neste livro, contemplado como
um dos melhores trabalhos do Seminário Discente do Programa de Pós-Graduação em
Ciência Política da USP em 2016, diz respeito a esse programa de pesquisa.

Atualmente, investigo a recepção da teoria da dependência de Fernando Henrique


Cardoso e Enzo Falleto na chamada “Escola Paulista de Sociologia”.

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QUE HORAS SÃO? ROBERTO SCHWARZ E A
CRÍTICA DO CONTEMPORÂNEO1*

Leonardo Octavio Belinelli de Brito

Quando se menciona o nome de Roberto Schwarz, a reação mais


comum é relacioná-lo aos seus estudos sobre Machado de Assis e ao
ensaio, normalmente pouco compreendido, “As ideias fora do lugar” –
que consiste, sumariamente, numa tentativa de desvendar as razões pe-
las quais as ideias e as novas formas, “indispensáveis à modernização do
país, causavam não obstante uma irrecusável sensação de estranheza e
artificialidade, mesmo entre seus admiradores e adeptos” (SCHWARZ,
2012, p.167). Naturalmente, a lembrança é justa. Porém, essa ênfase
pode ofuscar outras discussões, profundamente ligadas às aludidas, pre-
sentes nos ensaios de Schwarz. Isto é: além de um estudioso da aclimata-
ção da forma romance no Brasil – problema luckacsiano (WAIZBORT,
2007, 2009) que só pôde ser adequadamente resolvido por meio do
entendimento de planos extra-literários que reverberam nas formas dos
romances de Machado de Assis “tardio” –, Schwarz é um pensador pro-
fundamente ligado aos impasses da sociedade brasileira contemporânea,
sempre pensando-a a partir de seus nexos globais. Esse capítulo pre-
tende explorar esse ângulo de sua produção intelectual.
Há uma particularidade de se olhar o conjunto de produções de um
autor a partir de um momento posterior às suas elaborações: é possível
tentar compreender as unidades e rupturas, nem sempre deliberadas,
do conjunto. Se os textos acompanharam as realidades dos momen-
tos nos quais foram escritos, como pensamos que é o caso, o conjunto
forma um painel cujas linhas evolutivas interessam estudar. É a partir

1
* Este capítulo foi publicado originalmente na Revista de Ciências Humanas,
volume 51, número 2, 2017. Agradecemos aos editores a autorização para
publicação nessa coletânea.

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desse “lugar” que procuraremos fazer uma interpretação da obra de
Schwarz que buscará destacar os fios de continuidade de suas reflexões.
Para realizá-la, partiremos de alguns ensaios recolhidos em O pai de
família e outros estudos, passaremos por Que horas são? por Sequências
brasileiras e chegaremos ao último livro de Schwarz, Martinha versus
Lucrécia. Como se percebe, não abordaremos os livros de Schwarz so-
bre Machado de Assis – e nem todos os ensaios dos livros analisados,
vale deixar claro desde já, em parte porque são estudos mais conheci-
dos e, principalmente, devido ao espaço curto, que além de dificultar
uma abordagem mais abrangente dos ensaios schwarzianos, também
impossibilita as construções das mediações exigidas pelos estudos ma-
A chadianos. Mas deixe-se claro que este caminho é plenamente possível
N e que nesses estudos há chaves indispensáveis para a compreensão dos
O sentidos das modernizações brasileiras.
V
A Antes de passar aos ensaios, convém deixar clara qual será a linha
que conduzirá a reflexão do texto, qual seja: a modernização brasileira e
C os vários aspectos que a acompanha, sempre segundo Schwarz. Dito em
I
Ê
outras palavras, argumentaremos que o conjunto dos ensaios de Schwarz
N podem ser lidos como um composto de análises críticas sobre os diver-
C sos problemas da modernização do país, sempre percebidos a partir das
I
A relações entre questões gerais – como a formação do país e a forma
do romance brasileiro – e os impasses conjunturais. Salvo engano, no
D
A
mesmo sentido vão Anderson Gonçalves, Edu Otsuka e Ivone Rabello
quando afirmam que, desde a publicação de O pai de família (1978),
P
O
passando por Que horas são? (1987) e Sequências brasileiras (1999), até
L Martinha versus Lucrécia (2012), cada coletânea, cobrindo mais ou me-
Í
T
nos uma década, apresentam estudos decisivos para a compreensão de
I vários momentos da história e da cultura brasileiras” (GONÇALVES,
C
OTSUKA; RABELLO, 2013, p. 328).
A
.

As falácias do moderno: a modernização do período


432 1964-1988
Os ensaios que compõem Pai de família e outros estudos, cujo texto
principal é “Cultura e Política, 1964-1969”, tem como eixo ordenador
os impasses estéticos, políticos e sociais surgidos no contexto do pós-
-golpe de 1964. Para analisar a forma do livro, é preciso que se tenha em

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conta uma estratégia recorrente da qual se vale o nosso autor, qual seja:
a publicação em separado dos ensaios e seu posterior recolhimento em
formato de livro. Assim, quando reunidos em livro, os ensaios costumam
ter “sua força potencializada, na medida em que, no conjunto, o debate
de ideias, o comentário histórico-sociológico e a crítica estética, longe de
se retraírem em seus nichos, configuram problemas que se cruzam, [...]
compondo panoramas complexos dos momentos que acompanharam
[…].” (idem, p. 329). Este parece ser o caso do livro em pauta, pois, se
observarmos com atenção os ensaios que precedem “Cultura e Política”,
veremos que eles tocam, em separado, temas que o ensaio principal
reunirá: a formação conciliatória das classes urbanas brasileiras, “moder-
nas”, em relação às raízes rurais, “atrasadas”, em O Amanuense Belmiro,
de Cyro dos Anjos; a tensão entre o poder militar supostamente civili-
zatório e modernizante em relação à sociedade mal-formada do sertão
em Os fuzis, a confusão do raciocínio político conservador de Oliveiros
Ferreira e a ascensão da indústria cultural em “Nota sobre a vanguarda e c
onformismo”.
Ora, será em “Cultura e Política, 1964-1969” que encontraremos
a articulação de várias teses que compõem o seguinte quadro: o golpe Q
de 1964 foi largamente apoiado pelas bases conservadoras do país, que U

temiam a ascensão popular prenunciada no período anterior; porém, o E

regime instituído pelos militares não foi “atrasado”, ao contrário. Como H


observou Schwarz, o regime “era pró-americano e antipopular, mas mo- O
derno. Levava a cabo a integração econômica e militar com os Estados R
Unidos, a concentração e a racionalização do capital. Neste sentido o A
S
relógio não andara para trás, e os expoentes da propriedade privada
rural e suburbana não estavam no poder” (SCHWARZ, 2008a, p. 84). S
Ã
São vários os tópicos analisados por Schwarz ao longo deste texto:
O
os erros teóricos e estratégicos do Partido Comunista, o caráter his- ?
tórico do regime militar, as diversas manifestações culturais – ainda
.
dominadas pela esquerda até 1969, nas quais vibravam fortes ener-
gias políticas, por sua vez figuradas em elaborações artísticas de in- 433
teresse que, apesar de distantes hoje no tempo, ainda nos ajudam a
pensar de alguma forma (cf. CEVASCO, 2014, p. 195). Vamos nos
deter em um dos casos dessas manifestações, o do Tropicalismo. A es-
colha do “caso” se dá porque o movimento cultural capitaneado por
Caetano Veloso marcará a entrada da indústria cultural no Brasil

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– constituindo, assim, um episódio chave de nossa modernização
cultural.
Caracterizando a experiência social da qual o Tropicalismo tirará
suas concepções artísticas, diz o crítico: “a integração imperialista […],
revive e tonifica a parte do arcaísmo ideológico e político de que neces-
sita para a sua estabilidade. De obstáculo e resíduo, o arcaísmo passa
a instrumento intencional da opressão mais moderna, como aliás a
modernização, de libertadora e nacional passa a forma de submissão”
(SCHWARZ, 2008a, p. 87). Ora, foi precisamente esse o nexo político
e ideológico que tornou o Golpe de 1964 possível: o “atraso” – as classes
agrárias alinhadas com o imperialismo norte-americano e com a bur-
A guesia nacional – pavimentou um caminho para uma certa realização
N da modernidade local. É essa combinação, muito frequente na história
O brasileira, que é em parte trágica, em parte cômica, que aparece em
V O Amanuense Belmiro e regerá a forma literária em Machado de Assis
A
(SCHWARZ, 2012b).
C
Segundo Schwarz, o Tropicalismo, no seu próprio procedimento
I artístico, figura, com novos elementos, essa situação histórica. Como?
Ê
N
Ao colocar sob a luz dos meios mais modernos as condições atrasadas
C do país, agora tidas como insuperáveis. Daí a força dessa construção
I alegórica, mas nem por isso carente de ambiguidades, que passará a ser a
A
imagem dominante do país até hoje (ALAMBERT, 2012). Nos termos
D do crítico:
A

P Sistematizando: a crista da onda, que é, quanto à forma, onde os


O tropicalistas estão, ora alinha pelo esforço crítico, ora pelo sucesso
L do que seja mais recente nas grandes capitais. Esta indiferença, este
Í
T
valor absoluto do novo, faz que a distância histórica entre técnica e
I tema, fixada na imagem-tipo do Tropicalismo, possa tanto exprimir
C ataque à reação quanto o triunfo dos netos citadinos sobre os avós
A interioranos, o mérito irrefutável de ter nascido depois e ler revistas
. estrangeiras. Sobre o fundo ambíguo da modernização, é incerta a
divisa entre sensibilidade e oportunismo, entre crítica e integração.
434 Uma ambiguidade análoga aparece na conjugação de crítica social
violenta e comercialismo atirado […]. (SCHWARZ, 2008a, p. 88-89)2

2
Vale lembrar que em um famoso debate entre os tropicalistas, ocorrido na
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo em
06 de junho de 1968, quando indagado por Chico de Assis sobre as posições

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O ensaio de Schwarz deixa claro que o Tropicalismo, no entanto,
nasceu no seio da esquerda e representa uma nova sensibilidade diante
da vitória do capital. Era uma feição da “nova esquerda” mundial que
nascia no terreno ideológico brasileiro. É exatamente por isso que,
cerca de quarenta anos depois, Schwarz voltará ao tema para analisar
o percurso de Caetano Veloso como percurso típico de nosso tempo
(CEVASCO, 2014; SCHWARZ, 2012a). Voltaremos ao tema adiante.
De qualquer modo, vale notar a contraposição entre o tropicalismo e a
arte nacionalista de esquerda, que se fundamentava numa certa configu-
ração político-estética que perdeu chão histórico com o golpe de 1964.
Em Verdade Tropical, há a narração do momento no qual Caetano
Veloso leu “Cultura e Política 1964-1969” e é a equidistância que o
crítico literário estabelece entre as duas posições que chamou a atenção
de Veloso no ensaio de Schwarz, embora o músico busque imputar ao
crítico literário exatamente o estereótipo da esquerda. Além de um bom
exemplo da prosa do músico, o trecho revela o seu típico posiciona-
mento sobre a esquerda, sempre vista de um ponto de vista essenciali-
zado. Vale a citação:
Q
Na minha primeira ida de Londres à Paris, ele tinha em mãos um U
artigo de Roberto Schwarz sobre o tropicalismo. Era uma cópia E
datilografada que o autor – seu amigo – tinha dado a ele. O artigo
era interessante e estimulante. Mas desde já sabia-se que seria H

uma versão complexa e aprofundada da reação desconfiada que a O


esquerda exibia contra nós. Schwarz não demonstrava, no entanto, R
nem hostilidade nem desprezo pelo nosso movimento. Ao contrário: A
dava-lhe grande destaque dentro do esquema que apresentava das S
relações entre a cultura e a política do Brasil pós-64. Estávamos longe
S
da rejeição total que tivemos de um Boal, por exemplo. De todo modo
Ã
seria uma honra para mim que o tropicalismo recebesse tanta e tão
O
terna atenção de um pensador naturalmente tão pouco identificado
?
com nossa sensibilidade. Era visível, por exemplo, que ele tinha mais
.
intimidade com o que se fazia em cinema e teatro do que com o que
se passava na música popular. Impressionava-me que opusesse o
método de alfabetização Paulo Freire ao que os tropicalistas fariam: 435

tropicalistas, Gilberto Gil foi claro: “E nós estamos aqui para vender. Não fomos
nós que fizemos de nossa música mercadoria. Mas ela só penetra quando
vendida.” (GIL e VELOSO, 2012, p. 130).

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isso era exatamente uma repetição em sua teoria do que tinha
acontecido em minha vida. Mas sua redução da “alegoria” tropicalista
ao choque entre o arcaico e o moderno, embora revelasse aspectos
até então impensados, resultava finalmente empobrecedora.
(VELOSO, 2008, p. 441).

Os anos 80 serão marcados por alguma esperança e muitas batalhas


políticas, culturais e econômicas. No campo das expectativas, o surgimento
de um partido dos trabalhadores hostil à herança populista e a expectativa
do fim do regime militar davam o tom; no campo das dificuldades, além
da crise econômica mundial, os impasses culturais locais, integrados ao
contexto da produção e circulação capitalista da cultura, na qual tudo
A
se passa como se houvessem “opções” culturais igualmente disponíveis
N numa espécie de mercado simbólico mundial, também não tornavam as
O lutas emancipatórias mais fáceis. Ou seja, os traços mercantilizadores da
V
A
cultura contemporânea que começaram a vigorar no Brasil dos anos 70
se aprofundaram na década seguinte e são tratados por Schwarz em Que
C horas são?
I
Ê
De saída, note-se a relação estreita entre a discussão sobre o pa-
N pel das vanguardas nos anos 70 – vanguardas que mudaram de papéis
C históricos quando passaram a tematizar aperfeiçoamentos técnicos sem
I
A horizonte de superação, funcionando sob o império da lógica mercan-
til – e a discussão com o concretismo nos anos 1980. Ao analisar o
D
A poema “Póstudo” de Haroldo de Campos, Schwarz observa não só a
generalidade da ambição, que anda junto com uma espécie de deva-
P
O neio de grandiosidade, de mudar “tudo”. Afinal de contas, o que signi-
L fica “tudo”? Não é o caso de entrar nos detalhes da leitura cerrada que
Í
T Schwarz faz do poema de Campos. Para os nossos propósitos, o que
I interessa destacar é como Schwarz interpreta o papel da técnica, a van-
C
A guarda – a modernização, enfim – nesse poema:
.
No desenho das letras, salvo engano, estão citados a pop art e a
art decô. Notem-se neste sentido o pisca-pisca, efeito dos círculos
436 concêntricos, e o clima ligeiramente passado, que recobre de
distância e nostalgia a disposição modernista de mudar tudo. A
era presente define-se no mesmo passo, pelo grafismo-chamariz e
pela citação arbitrária de estilos, à falta de racionalidade própria.
(SCHWARZ, 2012c, p.60).

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Para abordar apenas uma das camadas da crítica de Schwarz ao
poema de Campos, note-se a combinação entre generalidades e o impe-
rativo da mudança, ainda que não se saiba bem o motivo3, se coaduna
admiravelmente bem ao contexto contemporâneo de mundialização do
capital – afinal de contas, elemento também moderníssimo. A espe-
cificação, esforço materialista por excelência, fica de fora e faz as ve-
zes de elemento ultrapassado. E, neste sentido, há semelhanças entre
Tropicalismo e Concretismo4. Em outros termos: a ênfase na forma –
tomada não na sua fundamentação histórica5, mas sim em sua dimensão
aplainada, como veículo de transmissão de um certo conteúdo – como
motor da modernização coloca ambos os movimentos em sentido simi-
lar, o da esterilização das possibilidades da arte crítica, pois o que passa a
importar é precisamente o veículo e não a mensagem que é transmitida.
Aliás, certa auto-obsessão compartilhada pelos dois movimentos pode
ser vista como sinal disso. De passagem, observe-se que o tom crítico de
Schwarz sobre o poema de Campos foi decisivo para a intensificação de
um debate sobre a relação entre arte e sociedade na crítica literária que
durou – dura? – bastante tempo (MOURA, 2011, p. 86).
Q
Por outra parte, Schwarz também identifica os equívocos de outra
U
ordem, como fica claro nas polêmicas que estabelece com o chamado
E
“terceiro-mundismo”, um conjunto de correntes que se queriam eman-
cipatórias, porque vinculadas às lutas pelas libertações nacionais dos H
O
R
3
Como observa Schwarz em “Nacional por subtração”, isso se dá também na A
própria esfera da produção do conhecimento, como indicam as constantes S
submissões de pesquisadores aos modismos acadêmicos.
S
4
Caetano Veloso (2008, p.231) é explícito ao reconhecer a sua dívida com o
Ã
Concretismo. E é sintomático que enfatize a força da “visão sincrônica” – ou
O
seja, o apagamento da História, dimensão real por excelência –, que causaria,
?
em sua visão, a “superação da oposição centro/periferia.” (idem, p. 231).
5 .
Sobre a questão da relação entre forma e realismo, diz Schwarz: “O abalo que o
dinamismo interno da obra inflige à realidade da percepção empírica, ainda a
mais sóbria, constitui a poesia e o ensinamento deste arranjo. A forma, nesta 437
acepção, proporciona a experiência do mundo contemporâneo, e faz as vezes
de realidade, cujo processo moderno, aliás, para continuarmos com Marx,
também se realiza à revelia e pelas costas de seus sujeitos. A integridade total
da composição, sem sacrífico da parte de acaso na matéria cotidiana, passa
a ser o penhor do acerto estético e o objeto privilegiado da reflexão crítica.”
(SCHWARZ, 2008b, p. 182-183).

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anos 60 e 70, e desconfiadas da União Soviética. No período, o terceiro-
-mundismo parecia propor algo inovador em relação ao capitalismo e
ao comunismo e possuía, nos termos do crítico, um “clima de profe-
tismo e vanguarda”, bem estimulado por artistas que davam “enverga-
dura e vibração estético- política a seu trabalho. Isso sem prejuízo de sua
ingenuidade e demagogia, que ficarão igualmente, mas enquanto docu-
mento” (SCHWARZ, 2012c, p. 127). Já com relação ao público local,
os artistas terceiro-mundistas davam um espetáculo ao almejarem se po-
sicionar no centro da atualidade contemporânea. Porém, em sua avalia-
ção, Schwarz argumenta que o terceiro-mundismo encobria o conflito
de classes em prol de uma visada positiva e ingênua sobre as possibili-
A
dades emancipatórias da nação, no que seguia, aliás, o nacionalismo
N retrógrado.
O
V
Explicando a sua visão:
A
Assim, se mesmo em países cuja realidade é bem mais aceitável, o
C trabalho artístico deve a sua força à negatividade, não vejo porque
I logo nós iríamos dar sinal positivo, de identidade nacional, a relações
Ê
de opressão, exploração e confinamento. Estas são a realidade do
N
terceiro mundo, mas não constituem superioridade. (SCHWARZ,
C
I 2012c, p.128).
A

D Ora, tanto a perspectiva da apologia da integração pela homogenei-


A zação cultural como pela especificidade nacional tem em comum justa-
P
mente o desejo irrefletido de se integrar. Por outro lado, podem resultar
O em convergências, pois as diferenças – não tematizadas na chave das
L desigualdades – podem funcionar como se fossem opções de escolhas
Í
T num contexto no qual elas não põem em jogo os elementos decisivos,
I
C
de maneira que são tomadas na sua dimensão mais ingênua.
A Em Que horas são? a faceta engajada do crítico fica evidente em
. “Política e Cultura”, originalmente formulado como uma plataforma
cultural elaborada para o Partido dos Trabalhadores (PT) em 1982.
438 Posicionando-se contra as teses que afirmam que a cultura é um privilé-
gio da burguesia – e que, portanto, não deve ser almejado pelas classes
populares –, ou que a cultura não deve ser objeto prioritário dos anseios
populares, ou ainda que a cultura popular é pura e assim deve ser pre-
servada, diz o autor:

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A tese desta página vai em direção contrária: com o surgimento
dos meios de comunicação de massa, que transformaram muito
o processo da expressão e da comunicação social, a questão
cultural tornou-se decisiva justamente para o trabalhador. Como
democratizar a TV, o rádio, a imprensa, que são o oxigênio e a
fumaça que a nossa imaginação respira? Como seria a TV sem
manipulação? São perguntas difíceis, mas a luta social efetiva, e
sobretudo um projeto de futuro, são impossíveis sem entrar nesse
terreno. (SCHWARZ, 2012c, p. 83-84).

Depois de caracterizar os meios de comunicação de massa no Brasil


como concentrados nas mãos da classe dominante, como alienadores
e homogeneizadores – praticamente toda a população é incorporada
pelos meios de comunicação de massa, pouco importando suas divisões
sociais, que nem por isso deixam de existir – o autor argumenta que
“trata-se, no plano do espírito, de uma expropriação semelhante à que
o capitalismo operou no plano da vida econômica. Entretanto, vale a
pena insistir em que tanto no caso da economia como no caso da cul-
tura é inviável a volta atrás […]” (idem, p. 84). Ou seja: se é verdade
que os meios de comunicação atuais são parte do aparato social domi-
nante, não é menos verdade que não é possível pensar a democracia Q
contemporânea sem a sua presença. Eis o problema-chave: a moderni- U

zação não permite voltar atrás – como, bem ou mal, apostava parte dos E

adeptos do terceiro-mundismo e do nacionalismo (SCHWARZ, 2012c, H


p. 34) –, mas fazer a apologia de sua atuação no mundo capitalista tam- O
bém não resolve o problema central, o da sua submissão à lógica da R
mercantilização da cultura. A
S

S
Nosso fim de século XX e o início do XXI: a modernização
Ã
colapsada O
?
Os anos 1990 são marcados pelo apogeu daquilo que se chamou
.
de “globalização”. No caso brasileiro, houve o estabelecimento de po-
líticas econômicas de viés neoliberais que sustentavam que a econo-
439
mia brasileira era demasiadamente “fechada” e que o desenvolvimento
econômico viria, justamente, por meio da sua integração ao mercado
mundial. Tratou-se, como não é difícil de imaginar, de um novo ciclo
de modernização.

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Os efeitos sociais da forma local de integração ao capitalismo glo-
bal não tardaram a aparecer e são analisados em Sequências brasileiras.
Talvez por reconhecer que estávamos diante de uma nova etapa moder-
nizante, o ponto de partida histórico e lógico das reflexões de Schwarz
em Sequências é reconhecimento de que a modernização brasileira não
só não cumpriu o que dela se esperava – a integração nacional – como
resultou no seu oposto. Daí o interesse do ensaio “Fim de século”, no
qual o autor sintetiza elementos básicos as linhas de força que regeram
a história brasileira contemporânea. Como nos lembra o ensaio, nem
as dimensões arcaicas do país desapareceram, nem os elementos novos
nos redimiram. “Com a distância no tempo e a ampliação da perspec-
A tiva, entretanto, essa mesma mescla sofre mais outra vira-volta: deixa de
N
funcionar como emblema nacional, para indicar um aspecto comum
O das industrializações retardatárias, passado a representar um traço ca-
V racterístico da cena contemporânea em seu conjunto.” (SCHWARZ,
A
1999, p.157).
C Remontando ao nacionalismo desenvolvimentista, Schwarz assinala
I a sua tentativa de articular, pela primeira vez, “um imaginário social
Ê
N
novo [...] e que aspira, também pela primeira vez, a certa consistência
C interna: um imaginário no qual, sem prejuízo das falácias nacionalistas e
I populistas, parecia razoável testar a cultura pela prática social e pelo des-
A
tino dos oprimidos e excluídos” (SCHWARZ, 1999, p. 157). E mesmo
D
a sua derrota não invalidou tudo, restando “o sentimento das coisas
A
que se havia formado”6. O nacional-desenvolvimentismo, nascido do
P mercado interno e industrialização, teve um quê de epopeia patriótica
O
L
a partir da construção de Brasília”, que tinha no horizonte uma “so-
Í ciedade nacional integrada, livre dos estigmas coloniais e equiparada
T
I aos países adiantados” (SCHWARZ, 1999, p. 157). Mesmo as elites,
C naquele momento, assumiriam que, para a realização do intento, seria
A
necessário uma articulação de interesses locais independente daqueles
.
próprios aos norte-americanos. Entretanto, o processo de aprofunda-
mento do nacional-desenvolvimentismo gerou uma convicção mais
440

6
Talvez essa seja uma chave da valorização da atuação criadora e formativa de
Antonio Candido, tal como aparece em Sequências brasileiras. Além disso, essa
é precisamente a posição que Schwarz toma no debate que trava com Otília
Arantes sobre o papel contemporâneo da arquitetura moderna.

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profunda: para sua realização de maneira anti-imperialista, era necessá-
ria a mudança da correlação das forças das classes sociais brasileiras. Daí
a necessária radicalização social, cortada pelo golpe de 1964, mas nem
por isso completamente eliminada: continuava, por exemplo, a animar
o Cinema Novo, o pensamento de Celso Furtado e mesmo a Teoria da
Dependência.
Com o golpe de 1964, a democratização foi suspensa e o nacional-
-desenvolvimentismo volta à baila, agora com feições conservadoras.
Ainda assim, alguns intelectuais, mais anti-imperialistas e desenvolvi-
mentistas que democráticos, acompanharam com simpatia o projeto
militar. Com o fim do período, dadas as crises do petróleo, da dívida e a
globalização da economia, os anos 80 indicaram, segundo Schwarz, que
“o nacionalismo desenvolvimentista se havia tornado uma ideia vazia,
ou melhor, uma ideia para a qual não havia dinheiro” (SCHWARZ,
1999, p. 158). Eis o início do nosso “fim de século”, cuja marca é a
evidência de que o desenvolvimento pode não ter sido nem nacional
e muito menos uma epopeia. “O motor da industrialização patriótica
esteve na Volkswagen e os esforços de integração da sociedade brasileira
resultaram num quase-apartheid.” (SCHWARZ, 1999, p. 158-159). Q

Como resultado, a industrialização criou o que Schwarz chamará, se- U


E
guindo o pensador alemão Robert Kurz, de “sujeitos monetários sem
dinheiro”, fórmula que designa os sujeitos integrados na lógica capita- H
lista da vida contemporânea sem condições efetivas de dela participar. O
R
Essa tragédia social não é particular do Brasil, ainda que conte com
A
feições locais. Para localizar a dimensão mundial do processo, o crí- S
tico literário recorre ao diagnóstico contemporâneo feito por Kurz em
O colapso da modernização. Segundo o teórico alemão, o capitalismo S
Ã
contemporâneo seria marcado pela falta de necessidade do trabalho
O
humano, o que se deve às evoluções tecnológicas com as quais conta. ?
Assim, massas populacionais ao redor do globo se tornariam sujeitos
.
economicamente supérfluos, porque nem trabalhadores, nem consu-
midores. No caso da periferia, a situação é ainda pior porque os custos 441
da modernização tornam-se proibitivos, condenando grande parte dos
países ao âmbito das modernizações falhadas. De passagem, vale notar
que essa parece ser precisamente a tese de Francisco de Oliveira em O
ornitorrinco (2003). Como diz Schwarz no prefácio escrito ao ensaio
do amigo. “Trata-se de um quadro de “acumulação truncada” […] em

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que o país se define pelo que não é; ou seja, pela condição subdesenvol-
vida, que não já não se aplica, e pelo modelo de acumulação, que não
alcança” (SCHWARZ, 2012a, p. 156)7.
Ora, são precisamente os sujeitos monetários sem dinheiro e a fa-
lência do projeto de integração nacional que dão as tônicas dos roman-
ces de Chico Buarque, Estorvo, e Paulo Lins, Cidade de Deus, ambos
analisados por Schwarz em Sequências brasileiras. Para os que partilham
da posição da crítica dialética, a coincidência não é casual: deve-se à
forte ligação entre forma artística e processo social que a arte pode ter
nos seus melhores casos.
No caso do romance de Chico Buarque, o que se percebe é a
A
decadência de uma classe média carioca da qual o protagonista é
N
membro-herdeiro. Filho de militar – apoiador do golpe de 1964?- o
O
V
narrador-protagonista anda à solta pelo Rio de Janeiro, que é marcado
A pela delinquência generalizada. Depois da crença, própria do popu-
lismo do período nacional-desenvolvimentista – de que a pureza popu-
C lar sanaria os malfeitos da elite, Schwarz constata que “chegamos agora
I
Ê a um atoleiro de que ninguém quer sair e em que todos se dão mal”
N (SCHWARZ, 1999, p. 179). O vazio deixado pela leitura do livro passa,
C então, a ser qualidade estética, na medida em que figura um traço da
I
A percepção contemporânea sobre os horizontes fechados do futuro. Se
D
lembrarmos que 1988 foi marcado pela chamada “constituição cidadã”,
A que prometia, apesar do contexto econômico difícil em que foi elabo-
rada, um salto civilizacional para o país, e que o livro referido de Chico
P
O Buarque foi publicado em 1991, pode-se perceber a intensidade do pro-
L cesso de desmanche pelo qual o país passou. Como afirma o autor:
Í
T
I Note-se que a tônica do romance não está no antagonismo, mas na
C
fluidez e na dissolução das fronteiras entre as categorias sociais –
A
estaríamos nos tornando uma sociedade sem classes, sob o signo da
.
delinquência? –, o que não deixa de assinalar um momento nacional.
Ainda assim, não se entende o nivelamento sem considerar as
442 oposições que ele desmancha. (SCHWARZ, 1999, p. 179).

7
Isso a despeito do próprio Francisco de Oliveira (1993) ter recebido com muitas
reticências a tese de Kurz, quando da tradução de O colapso da modernização
(1992) para o português.

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A afirmação de Schwarz ganha concretude ao observamos que
o protagonista não tem função social – desocupado? Jovem rico e
rebelde? –, bem como ao analisarmos a maneira como a qual os trabalha-
dores aparecem no livro, sempre ligados a funções ilegais e precarizadas.
Se o narrador não é exatamente um “sujeito monetário sem dinheiro”
porque possui uma cidadania herdada de sua condição de classe prévia,
os trabalhadores mencionados podem ser realisticamente lidos sob a ca-
tegoria formulada por Kurz.
O mesmo pode ser dito dos protagonistas de Cidade de Deus, ro-
mance de estreia de Paulo Lins, que figura o que seu autor chamou
de “neofavela”, caracterizada pelo predomínio da guerra do tráfico, ele-
mento ausente na versão anterior das comunidades precarizadas. Cidade
de Deus é um romance marcado pela indistinção entre o certo e o errado
– norma e exceção – e pela sequência agitada, porém monótona, de
sucessivos confrontos e tragédias. No romance de Lins, percebemos
uma correlação do maior interesse: ao passo que a criminalidade
cresce, a idade dos bandidos diminui. A ação do romance se passa,
predominantemente, dentro do espaço da Cidade de Deus, com poucas
passagens ocorrendo fora. Quando ocorrem, as situações se passam nos Q
presídios. Desse modo, embora apresente a situação em perspectiva am- U
pla, o desenrolar dos eventos acontece em espaço diminuto. Do ponto E
de vista literário, esse traço forneceu força ao romance, pois, segundo
H
Schwarz, “ela dramatiza a cegueira e a segmentação do processo” (idem,
O
p. 166).
R
Neste plano local, o crítico literário indica a potência dos trafican- A
tes, que “usaram a cabeça e aprenderam lições duríssimas, isso sem falar S
na incalculável tensão nervosa que suportam a todo momento. Nem
S
por isso deixam de ser pobres-diabos que morrem como moscas, longe Ã
da opulência que nalgum lugar o tráfico deve proporcionar” (idem, p. O
166-167). ?

Aí está uma chave do romance: essa oscilação entre personagens de .


potência e pobres-diabos, nos termos do crítico literário, “formaliza e
dá realidade literária à fratura social, que se reproduz também na esfera 443

do crime” (idem, p. 167). De outro lado, o livro usa ferramentas lite-


rárias clássicas mas em novos sentidos. Exemplo disso é a aproximação
que o crítico faz entre Cidade de Deus e o naturalismo, pois tanto o ro-
mance como o movimento cultural têm relação direta com a realidade

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que investigam. Nesse registro, Schwarz lembra que o romance ficcio-
naliza, a partir do ponto de vista dos jovens, tomados como objetos de
estudos, os resultados da pesquisa da antropóloga Alba Zaluar sobre o
crime e a criminalidade no Rio de Janeiro. Além da investigação empí-
rica, o romance se aproxima do naturalismo também pela presença do
expediente de recapitulação do passado e o explorar o presente (idem,
p. 169). Ora, como entender que semelhanças com providências de um
movimento literário mal afamado podem ter se tornado pontos fortes
do romance de Lins? Salvo engano, Schwarz aponta que o fato se deve
à racionalidade própria que residiu a confecção do romance, que logrou
concatenar técnicas expositivas de maneira reveladora. Guardadas as de-
A vidas proporções, vale lembrar, para tornar claro o nosso argumento,
da advertência de Schwarz sobre Machado de Assis, segundo a qual
N
O
o autor de Memórias póstumas de Brás Cubas logrou construir um ro-
V mance realista usando técnicas antirrealistas (cf. SCHWARZ, 2008b,
A p. 27).
No campo da novidade histórica, a indiferença pelas mortes dos
C
I jovens criminosos é o sinal de sua naturalização no contexto das “neo-
Ê favelas”. Para sentirmos a dramaticidade da situação, basta comparar
N
essa situação com as comoções generalizadas causadas quando os antigos
C
I malandros da favela morriam. “Digamos que a forma anterior de mar-
A ginalidade era bem mais simpática, para não dizer menos anti-social”
D (idem, p.170).
A O quadro composto por Lins, no qual o tráfico de drogas ocupa
P lugar central na dinâmica social retratada, desqualifica uma série de ar-
O gumentos que viam nas marcas das trajetórias individuais dos neofa-
L
Í
velados as razões para seus destinos infelizes. Frise-se: esses jovens são
T resultado da exclusão e, ao mesmo tempo, “resultado do progresso, o
I
C
qual naturalmente qualificam.” (idem, p. 171).
A
.
O que vem pela frente? Ou A viagem redonda da dialética
negativa da volubilidade
444
Em Martinha versus Lucrécia, o diagnóstico do contemporâneo é
feito de maneira diferente daquela utilizada em Sequências brasileiras.
Ao invés de aprofundar a discussão dos dias atuais, Schwarz se volta
para o passado para compreender o “percurso de nosso tempo”. Como
observam Gonçalves, Otsuka e Rabello:

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Em vez disso, Martinha versus Lucrécia, à vista desarmada, dá a
impressão de apenas retomar problemas já formulados em ensaios
anteriores, comentar o percurso do próprio autor (em duas das
entrevistas) e compor uma coleção de retratos de intelectuais
de que Schwarz esteve próximo nos anos 1960. No entanto, o
desconcerto inicial do leitor exige que ele se lance à atividade da
compreensão. Embora os ensaios de Martinha versus Lucrécia
sugiram afastamento em relação às urgências do presente, o
reexame dos anos em torno de 1964, recorrente nos textos do livro,
permite pensar a ditadura como o momento em que se iniciou
a contemporaneidade. (GONÇALVES, OTSUKA; RABELLO, 2013.
p. 331-332).

Ora, o conjunto dos vários retratos sobre intelectuais locais – Gilda


de Mello e Souza, Bento Prado, Michael Lowy, Sérgio Ferro, além de
Giannotti e de entrevistas nas quais narra sua própria trajetória – forma
um panorama analítico da geração de Schwarz. Todos, cada um à sua
maneira, fizeram parte do processo de institucionalização das ciências
humanas no país como também foram figuras importantes na resistên-
cia à ditadura inaugurada em 1964. Nesse sentido, revisitar a trajetória
de colegas e a sua própria fornece a Schwarz o álibi para pensar alguns
Q
dos principais impasses da inteligência nacional que, aliás, chegou às
U
diversas instâncias governamentais do país. Comentando esse assunto,
E
diz Schwarz:
H
O fenômeno é notável e não foi suficientemente discutido. Contudo, O
o grande sucesso social-político da geração da resistência teve seu R
preço. Conforme esta ocupava as novas posições, deixava cair as A
convicções intelectuais anteriores – por realismo, por considerar S
que estavam obsoletas, por achar que não se aplicavam no
momento, por concluir que sempre estiveram erradas, ou também S

por oportunismo. De modo que o êxito da esquerda foi pessoal e Ã

geracional, mas não de suas ideias, das quais ela foi se separando, O

configurando algo como um fracasso dentro do triunfo, ou melhor, ?

um triunfo dentro do fracasso. Talvez se pudesse dizer que parte do .


ideário de esquerda se mostrou surpreendentemente adequada às
necessidades do capital. O respeito marxista pela objetividade das 445
leis econômicas não deixava de ser uma boa escola. Seja como for, a
tendência é tão numerosa, e aliás espalhada pelo mundo, que uma
crítica de tipo moral não alcança o problema. (SCHWARZ, 2012a,
p. 219).

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Não é o caso de analisar cada um dos retratos. Destaquemos um:
o de Sérgio Ferro, de quem Schwarz se aproximou ao longo dos anos
1970, quando se reuniram para ler O Capital junto a outros colegas
(RODRIGUES, 2016). O caso de Ferro é interessante porque o arqui-
teto tomou o rumo oposto ao do ritmo das coisas, isto é, optou pela a
recusa aos aspectos alienadores da modernização local. Ferro, engajado
desde jovem, não só descobriu a mudança de sentido da modernização
brasileira causada pelo golpe, como foi à luta armada para derrubá-
-lo; além disso, também percebeu, ao estudar a economia política do
canteiro de obras, que o modernismo arquitetônico, matriz do que ha-
via de melhor em se tratando de progressismo à época, tinha aspectos
A conformistas. As descobertas de Ferro tiveram implicações. “O efeito
N imediato delas entretanto foi o encerramento da atividade de arquiteto
O de Sérgio, que ficou sem campo prático de trabalho e se recolheu ao
V
ensino e à pintura. Foi o custo a pagar pela consequência, ou também
A
o prêmio que esta lhe proporcionou” (idem, p. 221). Nesse sentido,
C
ficam claros os limites da opção de Ferro, sem prejuízo de seus acertos
I teóricos e da seriedade de sua posição moral – que, se é válida, não deixa
Ê
N
de ter limites como posição política. Correndo o risco da repetição: as
C contradições ensejadas pela modernização não são resolvidas nem pela
I hostilidade completa com relação a ela, como não são melhoradas pela
A
sua apologia.
D
A
Em sentido similar ao dos retratos, Schwarz analisa O ornitorrinco,
ensaio de Francisco de Oliveira8. Dizemos “similar” porque, embora o
P
O
texto de Schwarz seja um prefácio, a publicação em conjunto do novo
L ensaio de Oliveira, em 2003, com o seu Crítica da razão dualista, de
Í
T
1972, permitiu ao crítico colocar em questão os nexos sociais – isto é,
I as permanências e as mudanças e suas (novas) articulações na sociedade
C
brasileira – analisados nos dois ensaios de Oliveira.
A
.
8
Francisco de Oliveira (2007) conta que o ensaio “Fim de século”, de Schwarz,
446 foi tomado como plataforma inicial para uma pesquisa que o CENEDIC
desenvolveu. “Tentamos mapear os “desmanches” da ordem “getulista” – como
dizem seus adversários pela direita, Fernando Henrique Cardoso e Lula – que
a luta social, o conflito de classes, para chamá-lo pelo seu nome clássico,
havia transformado em direitos do trabalho, eixo central da modernização
da sociedade brasileira e referência principal do cálculo econômico burguês.”
(Oliveira, 2007, p. 150).

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Segundo Schwarz, se Crítica da razão dualista buscava apontar
maneiras de lidar com os entraves do subdesenvolvimento, O ornitor-
rinco analisa quais foram os impactos da modernização brasileira, que
transformou o país num “monstrengo social”. Segundo Oliveira, essa
metamorfose monstruosa teria ocorrido no momento em que alguns
países deram um salto nas forças produtivas, o que não conseguimos
reproduzir. A Terceira Revolução Industrial seria uma mistura de mun-
dialização do capital com a expansão dos conhecimentos técnico-cien-
tíficos, que não possuímos e estaríamos proibidos de possuir devido às
patentes. Ademais, a velocidade de produção tecnológica torna inútil
aquisição avulsa dos novos aparatos. Dessas circunstâncias conclui o crí-
tico literário: “Nessas circunstâncias de neoatraso, os traços herdados do
subdesenvolvimento passam por uma desqualificação suplementar, que
compõe a figura do ornitorrinco” (SCHWARZ, 2012a, p.153). Sem
forçar a mão, não deixa de ser sugestiva, nesse sentido, lembrar da ob-
servação de Schwarz segundo a qual “o ensaísmo periférico de qualidade
sugere a existência de certa linearidade indevida nas construções dialéti-
cas de Adorno e do próprio Marx – uma homogeneização que faz supor
que a periferia vá ou possa repetir os passos do centro” (idem, p.49). Q
A precarização do trabalho e tudo o que a acompanha – desmanche U
de direitos, informalização do trabalho, as “ocupações” – indicam que E

o capitalismo perdeu o seu lado civilizatório. Excluídos da competição H


internacional por tecnologia e com uma sociedade precarizada, o Brasil- O
ornitorrinco figura uma “sociedade derrotada”. Se é verdade que a bur- R
guesia nacional optou pela derrota – como teorizou Fernando Henrique A
Cardoso quando intelectual de esquerda, a quem Oliveira acompanha S

–, houve uma porta aberta para o salto do desenvolvimento. “Mesmo S


não aproveitadas, ou deliberadamente recusadas, as brechas do período Ã
circunscrito pela Segunda Revolução Industrial – quando ciência e tec- O
nologia ainda não estavam monopolizadas – existiam” (idem, p.154). ?

Não somos, pois, nem subdesenvolvidos, nem alcançamos um estágio .

mais elevado. Daí a metáfora com o ornitorrinco, um bicho que não


é nem isso, nem aquilo. O prefaciador observa que O ornitorrinco foi 447

escrito “em espírito de revisão conclusiva”, mas sem negar a ideias da


Crítica da razão dualista. Aponta, contudo, para os motivos das derrotas
históricas sofridas pela perspectiva do ensaio anterior. Neste sentido, o
novo ensaio tem uma perspectiva de “auto-historicização”.

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E como fica o campo cultural local diante dessa modernização trun-
cada? Salvo engano, é precisamente isso que Schwarz analisa no seu en-
saio sobre Verdade Tropical, autobiografia de Caetano Veloso publicada
em 1997, que também é uma história situada do Tropicalismo e da ge-
ração que estava ao redor de 1964. Mais: trata-se de um músico popu-
lar, de formação de esquerda, que foi perseguido pela ditadura militar.
Daí, aliás, que Schwarz interprete Caetano Veloso como uma persona-
gem “típica”, na acepção de Lukács, isto é, como um personagem que
encarna as contradições e as verdades das linhas históricas tensionadas
a partir de uma dada realidade (cf. CEVASCO, 2014, p. 196). Como
explica ainda Maria Elisa Cevasco:
A
Desse ângulo, Caetano personifica e revela por onde passam os
N
caminhos que levam das aspirações e ambições de superação dos
O
entraves do Brasil – o motor das grandes movimentações tanto
V
A políticas como culturais dos anos formativos para essa geração
que hoje tem mais de 60 anos – às posições de uma “esquerda”,
com muitas aspas, que diz fazer a única política possível. Pode ser
C
I que o tema das gerações seja um dos temas subjacentes ao ensaio,
Ê emoldurado por vários pontos de chegada em diferentes projetos
N […]. (CEVASCO, 2014, p. 196).
C
I
A
Vale destacar que Schwarz sublinha a força estética do livro de
Veloso e a sua estatura intelectual respeitável. Mas vale notar a pecu-
D
A
liaridade de que Verdade Tropical é um livro escrito por um músico
popular. Ora, uma das fontes de interesse do livro reside aí, afinal de
P
contas, popular pode significar pouco letrado, marginal, pouco sofisti-
O
L cado, etc. Por outro lado, no sentido moderno, popular significa disse-
Í minado, aspecto diretamente ligado à indústria cultural. Se o livro de
T
I Veloso representa o que Schwarz chama de “emancipação intelectual da
C música popular brasileira”, cabe observar que como no Brasil o “atraso”
A
e o “moderno” não se chocam, mas se dinamizam, o livro de Caetano
.
Veloso demonstraria que:
448
Exclusão social – o passado? – e mercantilização geral – o progresso?
– não são incompatíveis, como supõem os bem-pensantes, e
sua coexistência estabilizada e inadmissível (embora admitida)
é uma característica estrutural do país até segunda ordem. Bem
mais do que as outras artes, e a música popular está imersa nesse

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descompasso, o que a torna nacionalmente representativa, além de
estratégica para a reflexão. (SCHWARZ, 2012a, p. 54).

Schwarz acompanha, fazendo leitura cerrada, a narrativa de Veloso,


que começa em sua infância. O jovem Caetano Veloso tinha exata cons-
ciência do que se passava nos anos 1960: o programa estético das artes
engajadas e da esquerda era mudar a estrutura iníqua do país por meio
do reconhecimento do direito à cidadania da enorme parcela da popu-
lação brasileira situada à margem dos bem situados O curioso na narra-
tiva de Caetano é a sua mistura de dois tempos distintos, o passado e o
presente, o que configura uma certa forma do livro9, que busca conciliar,
retrospectivamente, aquilo que, quando vivido, era radicalidade.

Dito isso, a altura de visão de Caetano não é estável, sempre


ameaçada por descaídas regressivas. Volta e meia a lucidez cede
o passo a superstições baratas, à mitificação despropositada do
Brasil, à autoindulgência desmedida, ao confusionismo calculado.
Em passagens tortuosas e difíceis de tragar, a ditadura que pôs na
cadeia o próprio artista, os seus melhores amigos e professores, sem
falar no estrago geral causado, é tratada com complacência, por
ser ela também parte do Brasil – o que é uma verdade óbvia, mas Q
não uma justificação. O sentimento muito vivo dos conflitos, que U
confere ao livro a envergadura excepcional, coexiste com o desejo E
acrítico de conciliação, que empurra para o conformismo e o kitsch.
Entretanto, como num romance realista, o acerto das grandes linhas H
recupera os maus passos do narrador e os transforma em elementos O
representativos, aumentando a complexidade da constelação. R
(idem, p. 57). A
S
Interessa destacar, para nossos objetivos, a posição do jovem
S
Caetano sobre a cultura local. Fugindo ao esquema simplista entre na- Ã
cionalismo versus imperialismo, o jovem de Santo Amaro da Purificação O
adotava o rock n’roll como símbolo de inconformismo, o que lhe confe- ?
ria certa autenticidade diante do atraso com o qual convivia, mas nem .
por isso deixava de ser uma posição particular e que, por isso mesmo,
449

9
Destaca-se o sentido adorniano do termo: “Embora se oponha à empiria
através do momento da forma – e a mediação da forma e do conteúdo não
deve conceber-se sem sua distinção – importa, porém, em certa medida e
geralmente, buscar a mediação no facto de a forma estética ser conteúdo
sedimentado.” (Adorno, 2015, p. 15).

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ia na contramão da recepção passiva do que vem de fora. Pode-se as-
sinalar, com efeito, que mesmo essa posição não deixa de ser marcada
pela influência cultural norte-americana, mas convém observar que se
tratava do ritmo do mundo àquela altura, ritmo, aliás, marcado pelo
fortalecimento do raio de ação da indústria cultural. Em síntese: se-
gundo Schwarz, o jovem Caetano, apesar de crítico do provincianismo
de sua cidade natal, não desvalorizava as mediações locais na sua relação
com a cultura externa, o que era um achado para alguém de sua idade.
Nesse sentido, o crítico literário observa que a oposição formulada por
Caetano não era a do local versus o cosmopolita, mas sim entre formas
de consumo inconformista versus passiva.
A Algo similar continuará a perpassar a trajetória de Caetano depois
N de sua ida a Salvador. Porém, como traço distintivo, aparece uma dia-
O lética entre o anseio pela ruptura radical e o apego às tradições. Aqui
V aparece, então, um problema já aludido: esta atitude fazia com que
A
Caetano confiasse que todas as tensões terminariam solucionadas, que
seria reconhecido pelos adversários e que no final todos sairiam bem.
C
I Desse modo, Schwarz sugere que:
Ê
N
Seja como for, o seu traço de personalidade muito à vontade no
C
I atrito mas avesso ao antagonismo propriamente dito combinava
A com o momento brasileiro pré-golpe, quando durante algum tempo
pareceu que as contradições do país poderiam avançar até o limite
D
e ainda assim encontrar uma superação harmoniosa, sem trauma,
A
que tiraria o Brasil do atraso e seria a admiração de todos. (idem, p.
P 65 – grifo nosso)
O
L A ilusão de que as contradições brasileiras seriam superadas harmo-
Í
T niosamente ganham figurações – e, não custa assinalar, registros histó-
I ricos – na trajetória de Caetano, que tinha um pai simpático à União
C
A
Soviética e detentor de um quadro de Roosevelt na sala de sua casa. De
.
algum forma, a filiação de Caetano à bossa-nova ia no mesmo sentido e,
segundo Schwarz, a sua exposição acerca do tema é um dos pontos altos
450
do livro, com destaque para uma sentença de 32 linhas que é caracte-
rizada pelo crítico como um “olé dialético” (idem, p. 70). Essa filiação
de Veloso é um acerto estético, a despeito das eventuais ilusões conti-
das no programa bossa-novista. Trata-se de um acerto porque a bossa-
-nova reelaborou a influência norte-americana de maneira que esta não
interrompesse as linhas de força da arte musical nacional, que foram,

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ao contrário, reforçadas pelas criações de Tom Jobim, João Gilberto,
e outros. Tudo somado, as relações entre Salvador, Santo Amaro, cul-
tura internacional e bossa nova sugeria um movimento (inverossímil)
de modernização do país feito de modo harmonioso e sem prejuízo de
ninguém, como se ele não contivesse graves contradições.
É o golpe de 1964 que porá tudo isso abaixo e causará repulsa ao
Caetano dos anos 60, que se alinhava, apesar das tensões, com a esquerda
local. No entanto, esse posicionamento sofrerá mudança brusca depois
de que Caetano Veloso assistiu a Terra em Transe, de Glauber Rocha,
filme que trata do papel dos intelectuais no contexto do golpe de
1964. Em especial, Caetano destaca uma cena em que o personagem
Paulo Martins grita com um sindicalista e diz para as câmeras: “Estão
vendo quem é o povo? Um analfabeto, um imbecil, um despolitizado”
(VELOSO, 2008, p. 99-100).
A cena, que figurava o desespero diante do ocorrido, foi interpre-
tada por Caetano como uma libertação da relação entre intelectuais
avançados e massas populares – ideia cuja base era a morte do popu-
lismo. Assim, ao aceitar as palavras de Martins sem mediações, Caetano
pensou, segundo Schwarz, no Q
U
E
… começo de um novo tempo que ele deseja marcar, um tempo
em que a dívida histórico-social com os de baixo – talvez o motor H
principal do pensamento crítico brasileiro desde o Abolicionismo O
– deixou de existir. Dissociava-se do recém- derrotados de 64, que R
nessa acepção eram todos populistas. A mudança era considerável e A
o opunha a seu próprio campo anterior, a socialistas, nacionalistas e S
cristãos de esquerda, à tradição progressista da literatura brasileira
desde as últimas décadas do século XIX, e, também, às pessoas S
simplesmente esclarecidas, para as quais há muito tempo a ligação Ã
interna, para não dizer dialética, entre riqueza e pobreza é um dado da O
consciência moderna. A desilusão de Paulo Martins transformara-se ?
em desobrigação. Esta a ruptura, salvo engano, que está na origem .
da nova liberdade trazida pelo tropicalismo. (idem, p. 79).
451
Desse modo, se a esquerda oscilava entre “entregar os pontos” e
partir para medidas desesperadas – a luta armada, prefigurada no filme
citado –, Caetano via diante de si um futuro repleto de liberdades ar-
tísticas a serem exploradas. Saliente-se que o músico adotava posições
rebeldes e próximas da contracultura. Mas eis o ponto: ao passo que

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se opunha à ditadura militar, Caetano passava a se opor, também, à
esquerda, vista como defensora de ideologias velhas. “Assim, a posição
libertária e transgressora postulada por Caetano rechaçava igualmente
– ou quase – os establishments da esquerda e da direita, os quais tratava
de abalar ao máximo no plano do escândalo cênico, ressalvando, entre-
tanto, o mercado” (idem, p. 81 – grifo nosso).
A ditadura militar é vista, então, por Caetano como: a) reconhe-
cedora do seu potencial subversivo – o que agradava a Caetano, que
via nisso um sinal de inteligência superior do regime em relação à es-
querda, que o hostilizava; b) aspecto próprio do ser brasileiro contra
o qual não haverá rupturas fortes; c) como injusta com ele, que não
A fazia coisas sérias contra o regime. No mais, assinale-se que Schwarz
N pontua que quando lemos a sua narração sobre a sua disputa com
O Geraldo Vandré e sobre sua reação ao incêndio do prédio da União
V Nacional dos Estudantes (UNE) “assistimos a uma conversão histó-
A
rica, ou, melhor dizendo, à revelação de que a esquerda, até então esti-
mada, é opressiva e não vale mais que a direita” (idem, p. 87 – grifo do
C
I autor)10.
Ê
Como dito, para Caetano, a esquerda passava a obstruir a inteli-
N
C gência. Em resposta ao diagnóstico, houve a formalização da estratégia
I estética tropicalista, cujos elementos básicos já mencionamos acima. A
A
disparidade dos elementos conjugados – bossa-nova, João Cabral de
D Melo Neto, a cultura pop, Chacrinha, o desejo de intervenção e a con-
A
sequente ambição vanguardista – figura e reafirma os contrastes da rea-
P lidade. A dimensão propositalmente cínica da arte tropicalista ganha a
O
(des)forma adequada com a ideia de sincretismo, lógica que, segundo
L
Í Caetano, rege as composições dos alinhados com sua posição. Se era
T
I
uma posição de força – afinal, fundamentada na realidade –, vale notar
C o sentido do Tropicalismo para Schwarz:
A
.

10
452 Vale lembrar do discurso de Caetano Veloso no teatro Tuca, em São Paulo, em
setembro de 1968, quando criticava a plateia de esquerda que lhe vaiava: “Vocês
estão por fora! Vocês não dão para entender. Mas que juventude é essa? Que
juventude é essa? Vocês jamais conterão ninguém. Vocês são iguais sabem
a quem? São iguais sabem a quem? […] Àqueles que foram na Roda viva e
espancaram os atores! Vocês não diferem em nada deles, vocês não diferem
em nada.” (VELOSO, 2012, p. 169).

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Acentuando o paradoxo, digamos então que as oposições que o
tropicalismo projetava superar eram elas mesmas portadoras de
ambição superadora, e que nesse sentido era a própria superação
que estava sendo superada, ou, ainda, a própria noção de progresso
que estava sendo desativada por uma modalidade diferente de
modernização. (idem, p. 97).

Ora, como observa o crítico:

Por um lado, o artista deixa claro que a imaginação tropicalista é


libérrima e se alimenta onde bem entende, sem respeito à hierarquia
(elitista? preconceituosa?) que coloca o grande escritor acima da
popularidade televisiva. Por outro, a inspiração igualitária não
convence, pois na associação de Chacrinha e Sartre há também a
alegria debochada de nivelar por baixo, sob o signo emergente da
indústria cultural, que rebaixa tanto a gente pobre quanto a filosofia,
substituindo por outra, não menos opressiva, a hierarquia da fase
anterior. Seria o abismo histórico entre cultura erudita e popular
que se estaria tornando coisa do passado? Seria a desqualificação do
pensamento crítico pelas novas formas de capitalismo que estaria
em andamento? […]. O gosto duvidoso que a brincadeira deixa na
boca é um sabor do nosso tempo. (idem, p. 100).
Q
U
Esse sabor amargo põe em xeque a vigência da crítica dialética.
E
Frise-se a potência da questão. Se Schwarz logrou identificar nos seus
estudos machadianos os fundamentos históricos do que Paulo Arantes H

(1992) chamou de “dialética negativa da volubilidade” – subjetividade O


R
própria da elite de um país modernamente dualista –, aqui estamos
A
diante desse problema em escala amplificada, pois permeado pela ló- S
gica da modernização da indústria cultural, que torna todos os seus
S
elementos equivalentes e regidos sob o mesmo princípio: o do sucesso
Ã
mercantil. Com a hegemonização desse princípio, os fundamentos de
O
uma arte autônoma – isto é, regida e elaborada segundo outros fun- ?
damentos – correm o risco de extinção. É esclarecedora a observação .
de Schwarz segundo a qual a crítica dialética “supõe obras e socieda-
des muito estruturadas, com dinamismo próprio” (idem, p. 292). Por 453
outro lado,
Já ninguém pensa que os países de periferia têm uma dialética in-
terna forte – talvez alguns países do centro tenham, talvez nem eles. E
no campo das obras, com a entrada maciça do mercado e da mídia na

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cultura, é voz corrente que a ideia de arte mudou, e é possível que o pa-
drão de exigência do período anterior tenha sido abandonado. Talvez os
pressupostos da crítica dialética estejam desaparecendo. (idem, p. 292).
Como se viu, esse diagnóstico está calcado nas análises de obras
como Estorvo e Cidade de Deus. Por outro lado, a análise schwarziana
nos ensina a suspeitar de conceitos e ideias tidos como insuspeitos,
como “integração”, “modernização”, “progresso” e mesmo “democra-
cia”. Sem ir pela via de negar os avanços políticos que o país teve após
a redemocratização, é decisivo notar que a “integração” dos pobres, al-
mejada pela tradição de autores que tinha como horizonte para o país
a “formação” nacional (ARANTES, 1992; ARANTES; ARANTES,
A
1997), veio, via de regra, pelo sub-emprego e/ou pelo crime e sempre
N sustentada pela ânsia do consumo mercadológico e não pela vida da
O cidadania. Naturalmente, esse acontecimento é resultado da “moderni-
V
A
zação” e do “progresso” da nossa integração ao novo contexto de mun-
dialização do capital. Nesse sentido, até segunda ordem, o potencial
C cidadão que emergia do conflito entre classes fica suspenso para se dar
I de outras maneiras, na qual perseveram o ressentimento, a vingança e a
Ê
N predação entre os iguais. (RABELLO, 2015).
C No âmbito da cultura, é sintomático que a Tropicália tenha se tor-
I
A nado a visão que exportamos do país e tenha, por isso mesmo, se tor-
nado sucesso de público no exterior (ALAMBERT, 2012). Não menos
D
A sintomático é a declaração de Caetano Veloso segundo a qual o serta-
nejo universitário e o funk carioca “são a Nova Tropicália”11. Vê-se aí
P
O
que o horizonte entrevisto por Schwarz parece correto, afinal de con-
L tas, é difícil imaginar que os dois estilos musicais aludidos contenham
Í
T
os elementos necessários de uma obra de arte no sentido adorniano,
I segundo o qual a grande obra de arte é reveladora. Ao contrário, os
C
A
dois estilos são marcados pela integração absoluta ao cenário cons-
.
truído pela indústria cultural, no qual contam as evoluções técnicas
e o sucesso mercadológico, ambos louvados por Caetano na notícia
454
citada.

11
Fonte: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/05/160407_caetano_
mv>. (Acesso em 19 mar. 2019)

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No entanto, é verdade que a “contemplação da perda de uma força
civilizatória não deixa de ser civilizatória a seu modo” (SCHWARZ,
1999, p. 58). Por outro lado, ao contrário do que dizem alguns,
a História não chegou ao fim e o seu relógio continua a andar. Por
isso mesmo, apesar das dificuldades que o pensamento crítico con-
temporâneo enfrenta – algumas delas sumarizadas acima –, é preciso
seguir os passos de Schwarz e perguntar-se a todo o momento: que
horas são?

Referências

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Q
U
E

H
O
R
A
S

S
Ã
O
?
.

457

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Felipe Freller

Doutor em Ciência Política pela USP e pela École


des Hautes Études en Sciences Sociales/ Centre
d’Études Sociologiques et Politiques Raymond
Aron (EHESS/CESPRA). Bacharel em Ciências
Sociais (2012) e mestre em Ciência Política
pela USP (2015). Atualmente, sou pesquisador
associado do CESPRA.

Desde a iniciação científica, interesso-me


pelo liberalismo político francês do século XIX
e pelo modo como ele lidou com os desafios
políticos legados pela Revolução Francesa. Na
iniciação científica, pesquisei a interpretação
da Revolução Francesa de Alexis de Tocqueville,
analisando a relação entre o social e o político
na obra desse autor e sua apropriação por François Furet. Em minha dissertação de
mestrado, condensada no capítulo apresentado neste livro (publicado também na
Revista Estudos Políticos), comparo as leituras da Revolução Francesa propostas por
François Guizot e Tocqueville, argumentando que o primeiro foi um entusiasta do papel
histórico da Revolução, mas um crítico de suas bandeiras (especialmente a soberania
do povo), ao passo que o segundo foi um crítico da “obra” da Revolução, mas julgou
possível reformular o princípio da soberania popular.

Minha tese de doutorado, intitulada “Benjamin Constant e o problema do arbítrio: um


decisionismo moderado”, trata do problema do arbítrio na obra de Benjamin Constant,
buscando compreender a articulação tensa entre a rejeição de um governo arbitrário
e a incorporação teórica de situações em que a decisão política assume a forma da
discricionariedade.

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GUIZOT, TOCQUEVILLE E
OS PRINCÍPIOS DE 17891*

Felipe Freller

Introdução
De acordo com Mellon (1958, p.2), “qualquer que seja a área da vida
da Restauração para a qual se volte, encontraremos a História no centro
mesmo das discussões”2 – seja no Parlamento, na imprensa, nas univer-
sidades ou nos livros. Essa constatação justifica sua afirmação segundo
a qual “a História era a linguagem da política” (Ibid, p. 1). No centro
dessas disputas políticas em torno da História – as quais, vale dizer, não
se restringiram ao período da Restauração, mas abarcaram quase todo o
século XIX francês –, estava a Revolução Francesa, a qual era abordada
como um problema sob um duplo aspecto: por um lado, os chamados
“princípios de 1789” continuavam sendo objeto de intensa polêmica, o
que exigia todo um trabalho de rediscussão, reinterpretação e reformu-
lação desses princípios, os quais não chegaram até nossos tempos sem
terem sido profundamente transformados por esses debates oitocentis-
tas; por outro lado, o próprio lugar da Revolução na História francesa
e europeia constituía um grande objeto de disputa. Determinar as rela-
ções de continuidade e de ruptura que a Revolução Francesa mantinha
com os períodos anteriores da História da França e da Europa era algo
central nas disputas políticas, pois disso dependia quais eram os cursos
de ação política possíveis na França pós-revolucionária.

1 *
Esse capítulo foi publicado originalmente na Revista Estudos Políticos. v. 7,
n. 14, 2016. Agradecemos aos editores a autorização para publicação nessa
coletânea. Este trabalho contou com o apoio da FAPESP Processo 2012/20299-
8 para a sua realização
2
Todas as citações de referências bibliográficas indicadas em outra língua que
não o português foram traduzidas por mim.

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Este capítulo compara as contribuições que dois importantes au-
tores e personagens políticos da França do século XIX deram a esse
debate: François Guizot e Alexis de Tocqueville. Ambos tinham em co-
mum a preocupação de compreender a Revolução Francesa à luz da
história anterior da França, procurando iluminar não apenas a ruptura
representada pela Revolução, mas também os traços de continuidade
que ela manteve com a evolução política francesa anterior a sua eclosão.
Os autores rompiam assim com a interpretação da Revolução Francesa
formulada pelos próprios revolucionários, os quais concebiam sua pró-
pria obra como uma ruptura total com uma História vista como até ali
injusta e irracional, mas também com a interpretação formulada pelos
A contrarrevolucionários, os quais também viam a Revolução como uma
N ruptura total, embora lamentassem essa ruptura e preferissem a socie-
O dade existente antes dela. Guizot critica explicitamente essas duas inter-
V pretações ao escrever, no Prefácio à primeira edição de sua Histoire de la
A
Révolution d’Angleterre, de 1826: “Cessemos, portanto, de pintá-las [as
revoluções inglesa e francesa] como aparições monstruosas na História
C
I da Europa; que não nos falem mais de suas pretensões inauditas, de suas
Ê
infernais invenções: elas empurraram a civilização na rota que ela segue
N
C
há quatorze séculos” (GUIZOT, 1845, p. XII). Tocqueville, que foi um
I aluno entusiasmado de Guizot na época de seus cursos de 1828-1830
A
na Sorbonne sobre a História da Civilização na Europa e na França
D antes de se tornar um opositor do governo encabeçado por seu antigo
A
professor na década de 1840, seguiu seu mestre doutrinário3 no empre-
P endimento de conciliar a Revolução Francesa com a trajetória prévia da
O França. A conclusão de seu artigo “État social et politique de la France
L
Í avant et depuis 1789”, de 1836, é que “exagera-se assim comumente
T os efeitos produzidos pela Revolução Francesa” (TOCQUEVILLE,
I
C 2004a, p. 39), pois as bases do edifício levantado por ela já existiriam
A antes de sua eclosão. Escrito vinte anos depois, o Prefácio de O Antigo
. Regime e a Revolução, de 1856, contém uma crítica à representação
usual da Revolução Francesa como um abismo que cortaria em duas
460

3
“Doutrinários” era a expressão cunhada no início da Restauração e utilizada
para se referir ao grupo político-intelectual do qual Guizot fazia parte, o qual
incluía também nomes como Camille Jordan, Victor de Broglie, Pierre-Paul
Royer-Collard, Prosper de Barante, Charles de Rémusat e Pellegrino Rossi.

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partes inconciliáveis a história da França (e da humanidade) que evoca
diretamente, ainda que sem a mencionar, a mesma crítica feita por
Guizot trinta anos antes, no Prefácio à primeira edição de Histoire de la
Révolution d’Angleterre (TOCQUEVILLE, 2009, p. XLI-XLV).
Apesar dessa preocupação comum em inscrever a Revolução
Francesa na História, ainda restam muitas controvérsias entre os co-
mentadores sobre as relações e os diálogos entre as duas interpretações
de 1789. Autores como Larry Siedentop e Aurelian Craiutu tendem a
enfatizar as proximidades teóricas e políticas entre Guizot e Tocqueville,
inclusive no que diz respeito à interpretação da Revolução Francesa. O
clássico artigo de Siedentop, “Two Liberal Traditions”, foi fundamen-
tal para sublinhar as importantes diferenças entre as tradições liberais
francesa e anglo-saxã, até então pouco claras. Porém, em seu intuito de
enfatizar as diferenças entre as duas tradições liberais, o autor dá pouca
importância às diferenças existentes no interior do liberalismo político G
francês oitocentista. O problema político de Tocqueville é interpretado U
como sendo o mesmo dos doutrinários desde os anos 1820, a conser- I
vação das liberdades locais em uma sociedade democrática como a pro- Z
O
duzida pela Revolução Francesa (SIEDENTOP, 1979, p. 167). Esse
T
problema político teria orientado a comparação entre as trajetórias da ,
França e da Inglaterra empreendida por Guizot em suas obras históri- T
cas: no primeiro país, a aliança entre a realeza e o Terceiro Estado contra O
a nobreza teria sacrificado a tradição de liberdades locais, ao passo que, C
no segundo, a resistência unificada da aristocracia e da burguesia contra Q
a concentração de poderes nas mãos do rei teria resultado na conser- U
vação das liberdades locais (Ibid: 163-164). Com isso, a interpretação E
V
histórica de Guizot é aproximada daquela desenvolvida por Tocqueville I
em “État social et politique de la France avant et depuis 1789” e O L
Antigo Regime e a Revolução. A leitura desenvolvida mais recentemente L
E
por Craiutu é muito próxima da de Siedentop, a respeito inclusive do
.
modo como Guizot e Tocqueville se aproximam na comparação entre
as trajetórias da França e da Inglaterra (CRAIUTU, 1999, p. 477-478;
461
Id, 2003, p. 102-104).
Em contraste, há comentadores que se interessam mais em contra-
por Guizot e Tocqueville. É o caso de Lucien Jaume, para quem o pen-
samento dos dois autores é caracterizado por uma divergência sobre o
lócus da autoridade: enquanto Guizot associaria o lócus da autoridade ao

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poder governamental, Tocqueville teria encontrado nos Estados Unidos
o lócus da autoridade residindo no próprio povo, espalhado pelas loca-
lidades (JAUME, 2008, p. 343-366). A essa divergência fundamental,
complementar-se-ia uma divergência sobre a interpretação da história
da França, a qual teria como ponto-chave o conceito de sociedade. Uma
vez que Guizot conceberia a sociedade como “o máximo de unidade es-
piritual e política” (Ibid, p. 376), ele associaria seu nascimento na França
ao movimento de centralização monárquica, particularmente sob Luís
XIV. Tocqueville, por outro lado, interpretando a sociedade a partir da
noção ciceroniana do “agir em comum”, concluiria que a centralização
monárquica na realidade destruiu a sociedade francesa, isolando as di-
A ferentes classes e tornando-as incapazes de agir conjuntamente (Ibid,
N
p. 366-378).
O Este trabalho compartilha com Siedentop e Craiutu a tese de que
V
pode ser percebida uma influência de Guizot na obra de Tocqueville,
A
principalmente no aspecto já abordado nesta Introdução: a preocupa-
C
ção comum de situar a Revolução Francesa na História de longa dura-
I ção da França e da Europa, relativizando o grau de ruptura reputado à
Ê
N
Revolução de 17894. Não obstante, o foco do capítulo é explorar como
C cada um dos dois autores legou para a posteridade um modo diferente
I de se relacionar com a herança da Revolução Francesa. Nesse sentido, o
A
trabalho se baseia mais fortemente na interpretação de Jaume acerca de
D duas visões inconciliáveis sobre o lócus legítimo da autoridade na socie-
A
dade moderna e sobre o papel da centralização monárquica na consti-
P tuição ou desarticulação da sociedade francesa..
O
L
A hipótese defendida aqui se fundamenta na constatação de que os
Í dois aspectos da Revolução mencionados no início – os “princípios de
T
I 1789” e o lugar da Revolução Francesa na História – podiam no século
C XIX ser tratados separadamente. Assim, defenderei que Guizot foi um
A
entusiasta do papel da Revolução na História, mas um crítico de suas
.
bandeiras; e que Tocqueville, ao contrário, é um crítico do papel que
a Revolução desempenhou na História da França, mas não se mostra
462
tão crítico em relação às bandeiras revolucionárias: em relação prin-
cipalmente ao princípio da soberania do povo, objeto de refutação

4
Um dos primeiros autores a notar essa preocupação comum entre Guizot e
Tocqueville foi, na realidade, Furet (1989, p. 149-153).

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sistemática por parte de Guizot, Tocqueville não apresenta propria-
mente uma objeção, mas antes uma reformulação.
Para desenvolver essa hipótese, tratarei separadamente a discussão
dos dois autores sobre o significado histórico da Revolução Francesa e
sobre a validade dos princípios revolucionários, para no final fazer um
balanço da posição tomada por cada autor em cada um desses dois cam-
pos de disputa a respeito do legado da Revolução Francesa. Antes disso,
porém, será preciso fazer uma breve comparação entre os pressupostos
de filosofia da História subjacentes à obra de cada um dos autores, uma
vez que as diferenças entre esses pressupostos se refletem nas discussões
tratadas a seguir.

I.
Como já sugerido, o que mais aproxima a interpretação tocquevil- G
liana da Revolução Francesa daquela já empreendida por Guizot é o es- U
forço de compreendê-la como um episódio de uma História secular que I
a transcende. Todavia, essa História secular é lida por cada autor a partir Z
O
de pressupostos de filosofia da História distintos, por vezes até antagô-
T
nicos. O conceito-chave que orienta a concepção de História de Guizot ,
é o de civilização, herdado do Iluminismo, ao passo que Tocqueville
T
pensa a evolução histórica ocidental a partir do conceito de democracia, O
ou antes de revolução democrática. É verdade que alguns comentadores C
têm tentado aproximar os dois conceitos. É o caso de Craiutu (2003, Q
p. 93), para quem, aos olhos de Tocqueville, “democracia adquiriu quase U
o mesmo significado que civilização tinha para Guizot”. É importante E
V
ressaltar, porém, que não foi esse o modo como Tocqueville foi lido
I
por seu antigo professor. Em vez de notar na filosofia da História de L
Tocqueville uma adaptação de seu próprio conceito de civilização, L
E
Guizot se surpreendeu com a ênfase de seu antigo aluno naquilo que ele
entendia ser apenas um dos elementos da civilização: o elemento demo- .

crático. Essa percepção é expressa por Guizot no discurso proferido em


463
1861 na Academia Francesa, por ocasião da posse de Henri Lacordaire
na cadeira até então ocupada pelo recém-falecido Alexis de Tocqueville:

Eu estudei por muito tempo o desenvolvimento das antigas


sociedades europeias e os elementos diversos que foram como os

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atores de sua história: a realeza, a nobreza, o clero, a burguesia,
o povo, o Estado, a Igreja, as comunhões dissidentes; eu os segui
e os observei em suas misturas, suas lutas, seus sucessos e seus
reveses; eu adquiri, nesse espetáculo, o hábito de enxergar esses
elementos diversos como essenciais a nossas grandes sociedades
europeias, de compará-los, de pesar seus direitos e suas forças
mútuas, de atribuir a cada um deles, na ordem social, seu lugar e
sua parte. O Sr. Tocqueville, ainda jovem, dedicou-se inteiramente
à observação da República americana; a democracia foi o grande,
quase o único personagem da sociedade e da história de que ele
fez o objeto particular de seu estudo. Ele foi, assim, naturalmente
conduzido a dar ao elemento democrático um lugar quase exclusivo
A em seu pensamento político, como eu a levar sempre em grande
consideração os elementos diversos que desempenharam um
N
grande papel na sociedade francesa, e a unir ainda suas bandeiras
O
(GUIZOT apud TOCQUEVILLE, 1989, p. 342-343).
V
A
Portanto, antes de analisar o significado que cada autor atribuía à
C Revolução Francesa dentro da História francesa e europeia, é preciso
I analisar, ainda que brevemente, as diferenças entre esses dois conceitos
Ê
N
organizadores da concepção de História de cada escritor: civilização e
C democracia.
I
A O conceito de civilização, tomado por Guizot da filosofia ilumi-
nista da História formulada no século XVIII, tem como ideia central a
D
A de progresso. Mais precisamente, o conceito de civilização evocava, para
ele, a ideia de aperfeiçoamento progressivo das relações sociais, de modo
P
O
que a sociedade produzisse cada vez mais e distribuísse seus produtos de
L modo cada vez mais equitativo:
Í
T
I Tal é, com efeito, a ideia primeira que se apresenta ao espírito dos
C
homens quando se pronuncia a palavra civilização; representa-se
A
imediatamente a extensão, a maior atividade e a melhor organização
. das relações sociais: por um lado, uma produção crescente de
meios de força e de bem-estar na sociedade; por outro lado, uma
464 distribuição mais equitativa, entre os indivíduos, da força e do bem-
estar produzidos (GUIZOT, 1985, p. 62).

Se a ideia de progresso não era, em si mesma, original, mas antes uma


noção recorrente nas grandes filosofias da História dos séculos XVIII e
XIX, uma das grandes inovações de Guizot foi teorizar os progressos

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da civilização europeia como movidos pela luta entre seus diversos ele-
mentos constitutivos – a realeza, a nobreza feudal, o clero e o Terceiro
Estado. Trata-se de uma concepção agonística do desenvolvimento his-
tórico, bastante original na época de sua formulação, a qual teve como
um dos desdobramentos mais célebres o conceito marxiano de luta de
classes – conceito este que o próprio Marx sempre esteve pronto a reco-
nhecer ter sido tomado de empréstimo por ele dos “historiadores bur-
gueses” do início do século XIX, com destaque para Augustin Thierry e
Guizot (MARX; ENGELS, 1983, p. 61-62). Diferentemente do modo
como Marx compreenderá a luta de classes, contudo, as classes que pro-
tagonizam a História da Civilização de Guizot não se relacionam dire-
tamente ao sistema produtivo, mas são antes princípios de organização
social que se referem primeiramente à forma de governo (monarquia,
aristocracia, teocracia e democracia). Além disso, o télos da História te-
orizada pelo doutrinário não é a vitória final de uma das classes, mas
um processo silencioso de aproximação e fusão entre as classes que faria G

emergir, do seio da diversidade e da guerra entre os vários elementos U


I
da civilização, “certo espírito geral, certa comunidade de interesses, de Z
ideias, de sentimentos” (GUIZOT, 1985, p. 182) – ou seja, uma uni- O
dade nacional. O trabalho da civilização e o advento da modernidade se T
caracterizam, para Guizot, como um movimento paralelo de unificação ,

e de aumento da complexidade do social, por meio do qual todas as T


sociedades particulares se fundem entre si, e passa-se de uma justaposi- O

ção de pequenas unidades simples e isoladas para uma unidade global C

e complexa (ROSANVALLON, 1985, p. 40). Os elementos primitivos Q


U
da civilização (realeza, nobreza feudal, clero e Terceiro Estado), que nos
E
primórdios da História europeia combatiam como forças privadas, são V
colocados de lado pela emergência moderna das duas forças públicas do I
povo e do governo (GUIZOT, 1985, p. 192). Isso não implica, em sua L
L
visão, que a sociedade moderna tenha passado a ser regida por um único
E
princípio dominante – por exemplo, o princípio democrático, como
.
ocorrerá na compreensão de Tocqueville –, mas que todos os antigos
elementos da civilização continuam conservando seu lugar e seus direitos,
465
agora sobre bases modernas (ou seja, subordinados às forças públicas do
povo e do governo). Em outras palavras, a sociedade moderna conser-
varia o elemento democrático trazido pelo Terceiro Estado, o elemento
unificador e centralizador trazido pela realeza e o elemento aristocrático
trazido pela antiga nobreza e pelo clero (trazendo este último também a

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importante ideia de um poder espiritual), embora esses elementos não
se cristalizem mais nos atores políticos e sociais que os portavam em
seus primórdios.
Depreende-se do que já foi dito que um aspecto importante da
noção guizotiana de civilização são os progressos da igualdade. Na
própria definição do conceito, encontra-se a ideia de uma distribuição
cada vez mais equitativa dos meios de força e de bem-estar na socie-
dade. Todavia, a igualdade não era pensada por Guizot como ausên-
cia de aristocracia, mas como substituição de uma aristocracia falsa,
porque baseada na força, no nascimento e em uma hierarquização fixa
e artificial da sociedade, por uma aristocracia verdadeira ou natural,
A baseada na capacidade, na virtude, na mobilidade social e no livre re-
N
conhecimento dos inferiores sobre o direito de as “superioridades na-
O turais” governarem. É importante destacar que Guizot era um herdeiro
V da cultura política dominante entre os principais atores das revolu-
A
ções americana e francesa, preocupados em constituir uma aristocra-
cia governante que, sendo recrutada do próprio universo igualitário
C
I por meio dos critérios da competência e da confiança dos cidadãos,
Ê seria uma antítese da antiga aristocracia, caracterizada pelo privilégio
N
(MANIN, 1997; ROSANVALLON, 1998, p. 56-74). Como argu-
C
I menta Rosanvallon (1998, p. 69-70), Guizot é herdeiro inclusive da
A ambiguidade que cerca a noção de eminência democrática durante a
D Revolução Francesa – eminência esta que ora é pensada em oposição
A a qualquer determinação sociológica, ora é buscada por meio de uma
P
filosofia estritamente censitária, a qual associa diretamente a capacidade
O à riqueza. Ao interpretar a nova sociedade produzida pelos progressos
L históricos da civilização europeia, o interesse do autor não é, portanto,
Í
T apenas destacar a igualdade de direitos e a ausência de privilégios, mas
I também apreender em seu interior “aquela aristocracia verdadeira e le-
C
A
gítima, pela qual ela [a sociedade] tem o direito de ser governada e que,
.
por sua vez, tem o direito de governá-la” (GUIZOT, 2008, p. 152). A
divisão da sociedade em classes continua sendo importante na interpre-
466
tação de Guizot sobre a sociedade moderna, mesmo que essas classes
não sejam mais fixas, como eram os estamentos do Antigo Regime,
mas, ao contrário, abertas ao livre concurso das aptidões individuais.
Para o doutrinário, o poder político se fundamenta em uma superio-
ridade de classe: ele é, na sociedade moderna, a consequência e a ex-
tensão do poder social da burguesia, a classe vencedora historicamente

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e capaz de dotar de um governo a nova sociedade saída das poeiras
da Revolução.5
Essa caracterização do conceito guizotiano de civilização permite
estabelecer o contraponto com a noção tocquevilliana de uma “revolu-
ção democrática” de sete séculos, apresentada na Introdução da primeira
Democracia na América, de 1835. A obra de Guizot já foi apontada por
alguns comentadores, com destaque para Craiutu, como uma das fontes
de inspiração decisivas para essa leitura da História ocidental apresentada
na Introdução da primeira Democracia na América, e, de fato, é possível
perceber nela muitos ecos das lições aprendidas pelo jovem Tocqueville
de seu mestre doutrinário: os atores que contribuem, mesmo sem saber,
para o advento da nova sociedade igualitária são os mesmos já elencados
pelo doutrinário – reis niveladores, nobreza decadente, clero que abre
suas portas indistintamente para ricos e pobres, Terceiro Estado em
ascensão –, e o próprio recurso à Providência, como princípio capaz
G
de conciliar o direcionamento da História para um objetivo não es-
U
colhido intencionalmente pelos homens com sua ação enquanto seres
I
livres e inteligentes, pode ser interpretado como uma inspiração que Z
Tocqueville retirou de Guizot (JASMIN, 2005, p. 173-176). Todavia, O
como bem notou Guizot no discurso de 1861 citado acima, Tocqueville T
,
modifica o esquema conceitual de seu antigo professor, na medida em
que não trata mais da fusão de todos os elementos primitivos da civili- T

zação em uma nova unidade, mas do advento de um novo princípio de O


C
organização social que passa a subordinar ou mesmo eliminar todos os
Q
outros: o princípio democrático. Essa inovação implica duas rupturas
U
centrais com o conceito guizotiano de civilização. E
Em primeiro lugar, o conceito de democracia implica um movi- V
mento em direção à igualdade muito mais profundo do que o pres- I
L
suposto no conceito de civilização. Para Tocqueville, a igualdade não L
representa nas sociedades modernas apenas uma tendência à distribui- E
ção equitativa dos bens produzidos pela sociedade. Ela é antes de tudo .
uma paixão – a paixão por excelência dos povos democráticos, e que
tende a se tornar cada vez mais insaciável, à medida que a sociedade vai 467

5
Sobre a noção de poder social, no contexto do pensamento político doutrinário,
e a nova filosofia das relações entre o social e o político subjacente a essa noção,
ver: ROSANVALLON, 1985.

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se tornando mais igualitária, de modo a impulsionar a sociedade a bus-
car cada vez mais igualdade. Por isso, enquanto Guizot acreditava que
o processo de igualização das condições já havia, no essencial, atingido
seu termo, Tocqueville via a revolução democrática como um processo
muito mais radical e profundo que, após ter destruído a nobreza e der-
rubado os reis, não iria se estabilizar tão facilmente por meio do governo
das classes médias almejado pelos doutrinários (TOCQUEVILLE,
2005, p. 11). Não que a democracia implicasse a ausência de distinção
entre burguesia e proletariado, ricos e pobres. Mas o que Tocqueville
contesta, estabelecendo desde o início de sua carreira intelectual uma
ruptura com o projeto político dos doutrinários, é que a esfera política
A possa se estruturar na sociedade moderna com base nessas distinções
N de classe. Para o autor d’A Democracia na América, as classes da socie-
O dade moderna não se diferenciam dos estamentos do Antigo Regime
V apenas pela mobilidade social (um ponto já tratado por Guizot), mas
A
também por serem específicas a certas áreas da vida. No caso dos amos
e dos servidores, a desigualdade mais patente nas sociedades democrá-
C
I ticas, a relação de subordinação entre eles só poderia ocorrer na esfera
Ê
do trabalho regulada pelo contrato, não se expandindo para as demais
N
C
áreas da vida (TOCQUEVILLE, 2004b, p. 224). Na nova sociedade, as
I desigualdades decorrentes das situações de classe são pontuais; apenas a
A
igualdade é universal e capaz de modelar o conjunto das relações sociais.
D O essencial é que “é impossível que a igualdade não acabe penetrando
A
no mundo político como em outras partes” (TOCQUEVILLE, 2005,
P p. 63). Diferentemente da História da Civilização de Guizot, que cul-
O minava em uma sociedade sem privilégios e em que os direitos civis
L
Í são garantidos a todos, mas em que as diferenças de classes continuam
T sendo relevantes para a atribuição de direitos políticos, a revolução de-
I
C mocrática de Tocqueville culmina em uma sociedade na qual é “dificí-
A limo, portanto, perceber um termo médio entre a soberania de todos e
. o poder absoluto de um só” (TOCQUEVILLE, 2005, p. 63).
A segunda ruptura de Tocqueville com os pressupostos de filosofia da
468
História assumidos por Guizot diz respeito à noção de progresso. Este é
posto em xeque na medida em que a democracia, embora pensada como
mais justa do que a ordem social anterior, a aristocracia, não implica
uma síntese de todos os progressos históricos alcançados até seu advento,
como ocorre com o governo representativo na História da Civilização

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de Guizot. Como afirma Manent (1991, p. 156), a democracia, para
Tocqueville, “não supera, não contém a aristocracia ‘conservando seus
ganhos’ e ‘ultrapassando seus limites’”. A maior justiça da nova ordem
social não significa necessariamente maior liberdade. Uma das maiores
preocupações do autor d’A Democracia na América reside justamente
no fato de que as barreiras que a sociedade aristocrática havia erigido
contra o despotismo lhe parecem pouco garantidas na nova sociedade
democrática – uma perspectiva bastante diferente da concepção cumu-
lativa de História de Guizot, para quem os esforços feitos pela antiga
aristocracia para limitar a tirania do rei haviam se convertido em ganhos
irreversíveis da civilização, tendo apenas se aperfeiçoado ao se transfor-
mar nos mecanismos de controle do regime representativo moderno. É
verdade que o advento da democracia também não é, para Tocqueville,
uma decadência, como para muitos autores conservadores do período.
Talvez o grande traço de sua filosofia da História seja a indeterminação,
G
a qual recusa a certeza de Guizot (e de outros tantos autores dos séculos U
XVIII e XIX) em um futuro glorioso e livre, mas também não exclui a I
possibilidade de que os homens dos tempos democráticos cheguem a ele Z
O
por meio de uma ação política esclarecida (JASMIN, 2005, Cap. V).
T
Essa segunda ruptura que Tocqueville promove com o pensamento ,
histórico de Guizot, ao rejeitar a noção de progresso como chave para a T
interpretação da evolução histórica ocidental (rejeitando com isso, vale O
destacar, não apenas o legado de Guizot, mas de quase toda a filosofia C
histórica dos séculos XVIII e XIX), tem uma importância fundamental Q

na comparação entre o modo como cada um dos autores interpreta a U


E
evolução histórica francesa, especialmente o papel desempenhado pela
V
Revolução Francesa nessa evolução – ponto a ser tratado na próxima I
seção. L
L
E

II. .

Os conceitos de civilização e de democracia (ou de revolução de- 469


mocrática) são centrais para a interpretação que Guizot e Tocqueville,
respectivamente, fazem da Revolução Francesa, na medida em que são
pressupostos de filosofia da História que organizam a visão de cada
autor sobre o sentido da macroevolução histórica ocidental e sobre a
caracterização genérica da forma de sociedade própria da modernidade.

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Para ambos os autores, a Revolução Francesa não foi senão um episódio
(talvez o mais decisivo, mas ainda assim um episódio entre muitos ou-
tros) desse macroprocesso secular compreendido pelo nome de civiliza-
ção ou de revolução democrática. O que ela teria feito, em termos gerais
e sintéticos, teria sido consagrar uma sociedade igualitária que já estava
formada antes da Revolução, embora em desacordo com instituições
aristocráticas que permaneciam em seu entorno, tendo sido a tarefa da
Revolução justamente a erradicação definitiva desses restos de institui-
ções aristocráticas que entravavam o pleno desenvolvimento da nova
sociedade. Nesse nível mais geral, abstrato e sintético, as interpretações
de Guizot e Tocqueville sobre a Revolução Francesa assumiam, no sé-
A culo XIX, o sentido de uma defesa da inevitabilidade e irreversibilidade
N da sociedade igualitária pós-revolucionária, na medida em que ela não
O seria uma imposição artificial de revolucionários imbuídos de doutrinas
V quiméricas sobre a igualdade, como queriam os contrarrevolucionários,
A
mas antes uma realidade histórica que precedia a própria Revolução
Francesa, sendo antes sua causa do que sua consequência.
C
I No entanto, a interpretação de ambos os autores sobre a Revolução
Ê
N
Francesa não se limita a esse nível geral, abstrato e sintético, em que
C o sentido da Revolução é quase inteiramente deduzido dos conceitos
I
A
de civilização e de democracia. Guizot e Tocqueville tinham como
preocupação central compreender o sentido assumido pelo evento da
D
Revolução Francesa na trajetória histórica particular da França – algo
A
que não podia ser simplesmente deduzido de seus pressupostos de fi-
P losofia da História. De especial relevância, no contexto em que ambos
O
L
os autores escreveram, era comparar a trajetória histórica francesa com
Í a inglesa. Tratava-se de uma comparação recorrente e quase obrigató-
T
I ria para os historiadores franceses do século XIX, especialmente nos
C meios liberais e conservadores, nos quais o modelo inglês – “atrativo
A
e impossível”, na feliz expressão de Jaume (1997, p. 290-295) – exer-
.
cia um verdadeiro fascínio. Embora por razões diferentes, a Inglaterra
tendia a ser vista como um caso bem-sucedido de país que realizou a
470
transição moderna sem pôr em risco a liberdade. Contrariando a vi-
são de comentadores como Siedentop e Craiutu, que veem nas obras
de Guizot e de Tocqueville uma mesma contraposição das trajetórias
históricas francesa e inglesa (ver a Introdução deste capítulo), argumen-
tarei que a principal divergência entre as interpretações de Guizot e de

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Tocqueville sobre o significado da Revolução Francesa diz respeito à
questão de quanto a Revolução aproximou as trajetórias da França e da
Inglaterra ou as afastou.
Na reconstituição da história da França efetuada por ambos os au-
tores, sobressaem três momentos fundamentais: o momento da eman-
cipação das comunas medievais (séculos XI e XII), o momento da
centralização monárquica (séculos XV a XVII) e a Revolução Francesa.
Nesses três momentos, está em jogo a relação entre centro político e li-
berdades locais, bem como as implicações dessa relação para a liberdade
política. Os debates que opunham partidários da centralização e da des-
centralização, bastante em voga na França pós-revolucionária, são assim
incluídos nas investigações historiográficas de Guizot e Tocqueville,
influenciando os aspectos da vida política francesa que despertam seu
interesse na análise histórica. Analisarei a seguir o modo como cada
autor interpreta e avalia cada um desses três momentos históricos, pres- G
tando especial atenção à comparação que é efetuada por cada um deles U
entre França e Inglaterra. I
Z
A emancipação das comunas medievais, nos séculos XI e XII, é um O
dos momentos mais importantes da História da Civilização Europeia T
teorizada por Guizot em seu curso de 1828. Ele é interpretado como o ,

momento de eclosão da luta de classes que culminaria, seis séculos depois, T


na Revolução Francesa, já que seria esse o momento de nascimento da O
burguesia, o mais importante agente do progresso na História teorizada C
por Guizot (como será na História teorizada por Marx, até o momento Q
em que o proletariado emerge como ator histórico). Entretanto, Guizot U
E
está longe de fazer uma apologia da forma de governo correspondente
V
a esse primeiro momento de emancipação burguesa, o governo interior I
da comuna autônoma. Nisso, o autor contrasta com outros historia- L
L
dores “burgueses” do início do século XIX, como Augustin Thierry,
E
que se notabilizou por ver na emancipação das comunas medievais um
.
germe do governo representativo moderno (GUIZOT, 1985, p. 188;
REIZOV, s. d., p. 314-315). Para Guizot, ao contrário, o governo co-
471
munal era precário, caótico e irregular, incapaz de servir de modelo
definitivo para a civilização europeia (GUIZOT, 1985, p. 187). Essa
precariedade é atribuída pelo doutrinário a sua avaliação de que as liber-
dades locais, embora importantes, são inúteis e sem garantias quando
não estão articuladas a um centro político bem definido, em que impere

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um regime livre.6 A estabilidade da liberdade comunal conquistada pela
burguesia nos séculos XI e XII estava comprometida pela inexistência,
até o século XV, de um centro político por meio do qual a vida política
da nação pudesse adquirir um mínimo de unidade e de generalidade,
e onde a burguesia pudesse exercer uma influência política condizente
com sua potência como classe.
A avaliação de Tocqueville sobre a emancipação das comunas
medievais é inicialmente influenciada pela de Guizot. Na primeira
Democracia na América, o jovem escritor ecoa a visão de seu antigo
professor a respeito dos efeitos deletérios da ausência de centralização
governamental na sociedade medieval:
A

N O que produziu todas as misérias da sociedade feudal é que o poder,


O não apenas de administrar, mas de governar, estava partilhado
V entre mil mãos e fracionado de mil maneiras; a ausência de toda e
A qualquer centralização governamental impedia então que as nações
da Europa marchassem com energia em direção a qualquer objetivo
C (TOCQUEVILLE, 2005, p. 99-100).
I
Ê
N Naquela época, em 1835, Tocqueville já era um ardente defensor
C da descentralização administrativa, porém, possivelmente devido à in-
I fluência de Guizot, insistia na necessidade de que ela se combinasse com
A
uma centralização governamental, isto é, com a existência de um centro
D político bem constituído (inexistente na sociedade medieval), o qual
A
não deveria invadir o âmbito da administração e dos negócios locais.
P Em O Antigo Regime e a Revolução, contudo, a influência guizotiana é
O
bem menos nítida. Embora a ideia de centralização governamental (en-
L
Í quanto distinta da centralização administrativa) não seja em si mesma
T criticada, Tocqueville apresenta em seu último livro, de 1856, uma vi-
I
C são muito mais positiva do que a de seu antigo mestre doutrinário a
A respeito do governo interior das comunas medievais. Ressaltam em sua
. análise das comunas as noções de independência, autogoverno e cida-
dania ativa:
472

6
Essa avaliação é formulada no primeiro ensaio de seu livro Essais sur l’histoire
de France, de 1823, no qual se argumenta que as liberdades locais e as
liberdades gozadas em um centro político devem estar “unidas no mesmo
sistema, e ligadas de maneira a se garantir reciprocamente” (GUIZOT, 1844,
p. 35).

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Até por volta do final do século XVII encontram-se cidades que
continuam a formar como que pequenas repúblicas democráticas,
em que os magistrados são livremente eleitos por todo o povo e
responsáveis perante ele, em que a vida municipal é pública e ativa,
em que a cidade ainda se mostra orgulhosa de seus direitos e muito
ciosa de sua independência (TOCQUEVILLE, 2009, p. 50).

A maior divergência, no entanto, diz respeito à avaliação histórica


da centralização monárquica. Para Guizot, a centralização monárquica
operada a partir do século XV teve um papel eminentemente progres-
sista. Sua principal obra foi a criação de um centro político que não
existia até então, e cuja inexistência impedia, como visto, a transforma-
ção da burguesia em classe efetivamente governante. É por possibilitar
a emergência de um governo central e de uma opinião pública do
seio de uma sociedade em que “tudo ainda era local demais, especial
demais, estreito demais, diverso demais nas existências e nos espíritos”
G
(GUIZOT, 1985, p. 236) que a realeza assume um papel progressista
U
tão importante na história da civilização de Guizot, comparável mesmo I
ao papel da burguesia. O autor a considera como “a instituição que Z
talvez mais contribuiu para a formação da sociedade moderna, para essa O
T
fusão de todos os elementos sociais em duas forças, o governo e o povo” ,
(GUIZOT, 1985, p. 206).
T
É verdade que, em um primeiro momento, essa centralização O
promovida pela realeza não resolve o problema da falta de influência C
da burguesia no centro do Estado. Pelo contrário, essa centralização Q
monárquica acaba destruindo o pouco que a burguesia já havia con- U
quistado, as liberdades municipais, sem instituir no centro do Estado E
V
instituições livres que pudessem garantir o governo das classes médias. I
É sobretudo a partir desse momento que a comparação entre França L
e Inglaterra passa a ser relevante. Na Inglaterra, o estabelecimento da L
E
realeza absoluta logo encontra fortes resistências, devidas à trajetória
.
particular seguida pelo país desde a invasão normanda do século XI.
Essa invasão teria engendrado forças coletivas de governo e de resis-
473
tência que se traduziriam posteriormente na luta entre realeza e aris-
tocracia, entendidas como forças públicas. Dessa luta teria resultado a
criação do Parlamento, ainda no século XIII, resultando disso a preco-
cidade de um regime livre que seria apenas confirmado no século XVII,
no contexto da luta entre os dois fatos distintivos da modernidade: a

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centralização do poder operada pela realeza e o princípio do livre exame,
que Guizot interpreta como o principal resultado da Reforma protes-
tante (GUIZOT, 1985, p. 270). Na França, ao contrário, a instituição
de um governo livre teria exigido um trabalho muito mais longo da
civilização (GUIZOT, 1844, p. i). Tendo o feudalismo se caracterizado
nesse país pela dispersão do poder entre pequenos déspotas isolados
uns dos outros, a guerra entre realeza e aristocracia não teria sido um
embate entre forças coletivas capazes de se cristalizar em instituições,
como na Inglaterra, mas a conquista, por parte de um senhor mais po-
deroso, dos territórios dominados outrora por pequenos tiranos. O re-
sultado teria sido a concentração de todos os poderes nas mãos do rei,
A implicando despotismo no governo central e aniquilação das liberdades
N locais. Assim, em um primeiro momento, a centralização monárquica
O é interpretada por Guizot como tendo produzido um resultado mais
V feliz na Inglaterra, onde ela logo conseguiu se conciliar com a produção
A
de um governo livre, e até mesmo com o respeito às liberdades locais.
C
Não obstante, embora o produto mais imediato da centralização mo-
I nárquica na França tenha sido o despotismo de Luís XIV, que Guizot
Ê
N
estava longe de considerar como um modelo de liberdade, o autor não
C deixa de considerar esse despotismo como uma etapa para a produção
I de um governo livre na França. Luís XIV teria dado uma contribuição
A
importante para a História ao conferir consistência e regularidade ao
D governo e unidade e coesão à sociedade, possibilitando a emergência
A
da própria sociedade que seria capaz de exercer por si mesma o poder a
P partir da Revolução Francesa.
O
L A centralização monárquica tem uma importância central tam-
Í bém para Tocqueville, mas em uma chave diferente. A comparação en-
T
I tre França e Inglaterra é retomada pelo autor de O Antigo Regime e
C
a Revolução, mas a centralidade da análise se desloca das implicações
A
de longo prazo da invasão normanda do século XI para os compor-
.
tamentos diferentes das nobrezas inglesa e francesa a partir do século
474
XIV. Segundo Tocqueville, a nobreza inglesa permanece a partir dessa
época uma aristocracia governante e, para legitimar essa posição pe-
rante a sociedade, abre-se às demais classes e assume os encargos pú-
blicos mais pesados, deixando os pobres gozarem da isenção tributária.
A nobreza francesa, ao contrário, abre mão de suas responsabilidades
enquanto classe governante, deixando a administração do país para o

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Estado e buscando compensações para a perda de sua influência po-
lítica no fechamento para as outras classes e nos privilégios arraigados
ao sangue, sendo o mais odioso deles a isenção tributária. Desse modo,
essa nobreza vai deixando de ser uma aristocracia e se convertendo em
uma casta (TOCQUEVILLE, 2009, p. 97). É desse fenômeno, cuja
principal responsável é a nobreza, que decorre, segundo Tocqueville, a
radical centralização administrativa implementada na França durante o
Antigo Regime, analisada minuciosamente nos capítulos 2 a 7 do Livro
II de O Antigo Regime e a Revolução. Nesses capítulos, a centralização
administrativa é analisada com uma linguagem próxima daquela com
que os republicanos clássicos haviam tratado o fenômeno da corrupção
– como uma perda da liberdade que se enraíza no fundo da alma dos ci-
dadãos (diríamos hoje, em sua cultura política), o que torna tão difícil,
às vezes até impossível, o restabelecimento posterior da liberdade (cf.
MAQUIAVEL, 2007, p. 69-72). A centralização administrativa teria se
G
enraizado tanto na alma dos cidadãos franceses que nem mesmo as re-
U
formas radicais conseguiriam mais ser pensadas sem ser sob a condução I
e a tutela do Estado centralizado (TOCQUEVILLE, 2009, Livro II, Z
Cap. 6). Se, para Guizot, o Estado absolutista centralizado que atinge O
T
seu auge com Luís XIV podia servir como uma etapa na evolução da ,
França em direção ao governo livre, para Tocqueville, esse Estado não
T
podia senão corromper o espírito cívico dos franceses, dificultando as
O
tentativas ulteriores de produzir governos livres. É essa divergência de C
leitura do papel histórico da centralização monárquica que explica, fun- Q
damentalmente, a divergência de leitura a respeito do papel histórico da U
Revolução Francesa. E
V
Guizot interpreta a Revolução Francesa à luz do embate moderno I
entre a centralização do poder operada pela realeza e o espírito de livre L
exame advindo da Reforma, o qual já havia, no século XVII, produzido L
E
a Revolução Inglesa. O sentido dessa interpretação é mostrar que as
duas revoluções, apesar de suas diferenças, tiveram o mesmo significado .

histórico, podendo ser consideradas “duas vitórias na mesma guerra


475
e em proveito da mesma causa” (GUIZOT, 1845, p. VII). Com isso,
Guizot promove uma inflexão da anglofilia àquela altura já tradicional
no pensamento político francês (na verdade, desde o século XVIII, com
Voltaire e Montesquieu): a Inglaterra deixa de ser um modelo diante do
qual a França sempre contrasta negativamente, tornando-se apenas um

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país que atingiu o equilíbrio entre ordem e liberdade prematuramente,
mas cuja superioridade em relação à França teria deixado de existir
após a Revolução Francesa, a qual teria feito a França chegar, por cami-
nhos diferentes, à mesma realidade política de liberdade já gozada pela
Inglaterra.
Em comparação com o estágio histórico anterior, o da centralização
monárquica, a Revolução Francesa, tal como lida por Guizot, pode ser
interpretada tanto como uma negação quanto como uma continuação.
Uma negação, no sentido de que seu sentido político fundamental teria
sido o combate ao absolutismo: tratava-se da rebelião do espírito de
livre exame advindo da Reforma contra a monarquia pura. Todavia,
A
também uma continuação, no sentido de que a Revolução não anu-
N lou, mas antes aproveitou os progressos que a centralização monárquica
O trouxe para a civilização: a redução de todos os elementos primitivos
V
A
da civilização europeia (aristocracia feudal, Igreja, realeza e comunas)
a apenas duas forças públicas, o povo e o governo, e a criação de um
C centro político que não existia até o século XV. A obra fundamental da
I Revolução Francesa teria sido elevar a burguesia até esse centro político,
Ê
N
completando a ascensão iniciada no século XII, com a emancipação
C das comunas, e possibilitando a construção de instituições livres nesse
I centro político. Como se vê, é uma visão bastante otimista da obra da
A
Revolução Francesa que transparece na interpretação de Guizot: ela te-
D
ria aproveitado os progressos do passado, neutralizado seus vícios e anu-
A
lado as defasagens que a França tinha em relação à Inglaterra, abrindo
P para os franceses a possibilidade de um futuro livre e glorioso.
O
L A visão mais negativa de Tocqueville a respeito da centralização
Í monárquica também o leva a ter, em contraste com Guizot, uma visão
T
I mais negativa da própria Revolução Francesa. Em sua interpretação, a
C corrupção operada pela centralização administrativa do Antigo Regime
A
sobre o espírito cívico francês foi tão profunda, que ela afetou de modo
.
inconsciente o empreendimento dos revolucionários de 1789. Desde a
primeira Democracia na América, o autor deixa transparecer a interpre-
476
tação de que a Revolução Francesa não foi apenas antiabsolutista, como
ressaltou Guizot, mas também centralizadora (TOCQUEVILLE, 2005,
p. 109-110). Nesse sentido, a ênfase de Tocqueville, ao fazer um ba-
lanço histórico da Revolução Francesa, é em mostrar que os revolucio-
nários promoveram uma ruptura menor do que a que eles acreditavam

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estar fazendo com a obra da realeza. Mesmo com a intenção consciente
de destruir toda a sociedade que tinham à sua frente, os revolucionários
carregavam inconscientemente em suas almas os fundamentos da cen-
tralização administrativa que seria reerguida em seguida:

Não nos surpreendamos mais ao ver com que facilidade espantosa


a centralização foi restabelecida na França no início deste século. Os
homens de 1789 haviam derrubado o edifício, mas suas fundações
permaneceram na alma dos que o destruíram; e sobre essas
fundações foi possível reerguê-lo novamente de uma só vez e
construí-lo mais sólido do que nunca antes (TOCQUEVILLE, 2009,
p. 80).

Ao estabelecer esse vínculo entre a centralização administrativa


do Antigo Regime, enraizada nas almas dos cidadãos, e a centraliza-
ção administrativa reforçada inconscientemente pelos revolucionários,
Tocqueville contesta a compreensão de Guizot do absolutismo mo- G
nárquico como uma etapa que a França precisou percorrer para che- U
I
gar à realidade política de liberdade já gozada pela Inglaterra. Em sua Z
interpretação, a Revolução Francesa não colocou a França na rota já O
seguida pela Inglaterra. Pelo contrário, aprofundou ainda mais a dis- T
tância entre os dois países, ao reforçar o traço especificamente francês ,

da centralização administrativa. Nesse sentido, a interpretação defen- T


dida aqui se choca com a sustentada por autores como Siedentop e O
Craiutu, para quem, como vimos, haveria uma mesma interpretação C

da relação entre as histórias da França e da Inglaterra desenvolvida Q

por Guizot e por Tocqueville, baseada em uma diferença no padrão U


E
de alianças da luta de classes nos dois países. De fato, os dois auto-
V
res concordavam, em linhas gerais, com a tese de que, na Inglaterra, a I
aristocracia havia se unido ao povo contra a realeza, ao passo que, na L
L
França, a realeza havia se unido ao povo contra a aristocracia, como
E
sustentam Siedentop e Craiutu. Contudo, mais relevante do que isso
.
para o pensamento político de cada um é que, para Tocqueville, os dois
países continuam seguindo trajetórias divergentes após a Revolução
477
Francesa, ao passo que, para Guizot, a Revolução Francesa concilia as
duas histórias.
O foco da divergência reside em um pressuposto que poderia ser
formulado por meio da seguinte pergunta: o despotismo pode ser con-
siderado como uma etapa do progresso da civilização, ou ele contamina

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todo o desenvolvimento subsequente da sociedade que se submete a ele?
Adotando como pressuposto a primeira opção (cf. GUIZOT, 1985, p.
59), Guizot considera que o absolutismo monárquico contribuiu para
o progresso da civilização, com suas contribuições aproveitadas e seus
males “superados” pela Revolução Francesa. Tocqueville, ao contrário,
adota como pressuposto a segunda opção. Assim, sua interpretação da
Revolução Francesa não aponta, como a de Guizot, para a resolução
das contradições da História passada da França, mas, ao contrário, para
o modo como a Revolução, contaminada inconsciente, mas decisiva-
mente pelo passado despótico e centralizador da França, prepara a re-
produção desses vícios políticos no futuro.
A

N
III.
O
V A seção anterior procurou confrontar uma visão otimista e mesmo
A
triunfalista acerca do lugar da Revolução Francesa na História (a de
Guizot) com uma perspectiva muito mais pessimista (a de Tocqueville).
C
I Todavia, a recepção da Revolução Francesa pelos autores políticos
Ê do século XIX não estava ligada apenas à interpretação do lugar da
N
C
Revolução na História – ou seja, àquilo que se entendia como a obra
I da Revolução, aquilo que ela teria feito –, mas também à aceitação
A
ou refutação dos princípios políticos proclamados pelos revolucioná-
D rios. O princípio revolucionário que, no século XIX, aparecia como
A mais problemático era certamente o da soberania do povo, marcado
P indelevelmente por seu emprego pelos jacobinos durante o período
O do Terror. Apesar da rejeição quase unânime dos pensadores políticos
L
Í franceses do século XIX ao modo como Rousseau havia compreendido
T a soberania popular (uma vez que a linguagem rousseauniana era res-
I
C ponsabilizada, justa ou injustamente, pela aplicação tirânica do princí-
A pio da soberania do povo pelos jacobinos), havia muitas divergências
. quanto ao que fazer com o princípio da soberania do povo herdado da
Revolução Francesa: rejeitá-lo categoricamente e substituí-lo por outro
478 princípio mais adequado, ou aceitar o princípio, ainda que de modo
reformulado?
Argumentarei nesta seção que a resposta a essa questão não se de-
preendia imediatamente da interpretação do lugar positivo ou negativo
da Revolução Francesa na História. Guizot, um partidário do lugar da

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Revolução na História, propunha a refutação do princípio da soberania
do povo, ao passo que Tocqueville, um crítico do lugar da Revolução
na História, assumia o princípio da soberania do povo, propondo ape-
nas sua reformulação. Trata-se de uma inversão que torna complexa a
questão de qual dos dois autores era mais partidário ou mais crítico da
Revolução Francesa.
Para Guizot, assumir o legado da Revolução Francesa e reabilitá-la
diante dos ataques contrarrevolucionários era uma tarefa indissociável
da redefinição dos fundamentos político-intelectuais da Revolução, de
modo a substituir as doutrinas feitas para destruir o Antigo Regime por
doutrinas mais próprias à construção da ordem nova. Entre essas “armas
de destruição” eficazmente utilizadas pelos revolucionários, a principal
seria o princípio da soberania do povo. O empreendimento de refu-
tar esse princípio e formular o princípio concorrente da soberania da
razão constitui o cerne do trabalho de Guizot como teórico político,
G
desenvolvido sobretudo em alguns capítulos de natureza mais teórica U
de seu curso de 1820-1822 sobre A História das Origens do Governo I
Representativo na Europa e no tratado inacabado Philosophie politique: Z
O
de la souveraineté, escrito entre 1821 e 1823.
T
Em um primeiro aspecto, a crítica guizotiana ao princípio da sobe- ,

rania do povo se inscreve em um movimento mais amplo, característico T


do liberalismo oitocentista, de, em reação aos abusos cometidos pelos O
jacobinos em nome de uma soberania absoluta e ilimitada do povo, C
negar a qualquer poder terreno o direito a uma soberania absoluta e Q

ilimitada. Nesse primeiro aspecto, a afirmação de Guizot de que “ne- U


E
nhum poder absoluto saberia ser legítimo. (...) Portanto, não há, sobre
V
a Terra, soberania nem soberano” (GUIZOT, 1985, p. 327) ecoa a de I
Benjamin Constant de que “nenhuma autoridade sobre a Terra é ilimi- L
L
tada” (CONSTANT, 1997, p. 317). Entretanto, a crítica de Guizot é
E
muito mais radical do que a de Constant. Este não criticava propria-
.
mente a atribuição da soberania ao povo, mas apenas argumentava pela
limitação dessa soberania, de modo a impedi-la de violar direitos indivi- 479
duais. Para Guizot, ao contrário, não basta limitar a soberania do povo
com a barreira dos direitos individuais: é preciso remeter a soberania
a outra fonte que não a vontade geral. Essa outra fonte seria a Razão,
entendida como um atributo divino que permitiria chegar à resolução
verdadeira e justa de todas as controvérsias humanas, mas cuja posse

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absoluta não poderia ser reivindicada por nenhum humano ou grupo
de humanos.
Portanto, a lei legítima não é, para Guizot, aquela que expressa a
vontade geral, mas aquela que se aproxima mais das leis estabelecidas
pela razão eterna e divina. O princípio da soberania do povo é atacado
no que se entende ser sua própria base, o princípio da soberania pessoal,
ou o direito de cada indivíduo de só obedecer a leis consentidas por
sua vontade. Segundo o autor, “o homem não tem, em virtude de sua
liberdade, a plena soberania sobre si mesmo. Como ser racional e moral,
ele é súdito, súdito de leis que ele não faz e que o obrigam em direito”
(GUIZOT, 1985, p. 368). Com essa teoria, Guizot pretendia atacar
A não apenas as consequências, mas os fundamentos mesmos da teoria do
N contrato social de Rousseau, na medida em que esta visava a uma forma
O de associação “pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedeça, con-
V tudo, a si mesmo” (ROUSSEAU, 2006, p. 20). Para Guizot, obedecer
A
a si mesmo equivale a conferir direito à mera vontade, ao passo que “a
C
vontade não confere nenhum direito, nenhum poder legítimo; a razão
I tem direito sobre todas as vontades” (GUIZOT, 1985, p. 370).
Ê
N
Na perspectiva de Guizot, o princípio da soberania do povo não
C passa de uma consequência extraída do falso princípio da soberania pes-
I
A
soal. Se este reivindica para cada indivíduo o direito de só obedecer a sua
própria vontade, aquele não faz mais que concluir que todos os indiví-
D
duos devem ter direitos políticos pelo simples fato de terem vontades.
A
“O princípio da soberania do povo aplica-se a todos os indivíduos sim-
P
plesmente porque eles existem, sem exigir deles nada mais” (GUIZOT,
O
L
2008, p. 161). Para o doutrinário, o direito político (incluído aí o direito
Í de eleger e de julgar o governo) só pode existir como decorrência de uma
T
I capacidade presumida de agir conforme a razão. Como essa capacidade
C presumida não pode nunca ser considerada como uma presunção de
A
infalibilidade, nenhum poder humano pode reivindicar uma autoridade
.
absoluta, ilimitada e incontestável, precisando sempre estar sujeito à
contestação e à necessidade de provar sua legitimidade. É desse princí-
480
pio que Guizot deriva as instituições básicas do governo representativo,
como a divisão dos poderes, as eleições, a publicidade dos debates e
das decisões e a liberdade de imprensa – instituições que teriam como
objetivo impedir que um único poder fuja à contestação e se proclame
em eterna correspondência com os princípios da razão. O ponto a ser

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notado é que, ao lado do critério da limitação e contestação de todos os
poderes, o princípio da soberania da razão implica uma recusa do nú-
mero como critério de legitimidade. O critério do número constituiria
o maior erro dos partidários da soberania do povo, os quais identifica-
riam na maioria das opiniões, dos sufrágios e das vontades a prova da
legitimidade do poder, ou seja, de sua conformidade provável com as
leis da justiça. Guizot faz um apelo à História para provar que a maioria
dos sufrágios está longe de conferir uma boa prova da legitimidade do
poder, insistindo na alta improbabilidade de que as decisões da maioria
desqualificada respeitem os princípios da justiça:

Não é preciso perscrutar longamente a história do mundo para


encontrar nela os erros, os erros imensos das maiorias as mais
perseverantes e melhor constatadas. A Europa cristã quis a opressão
dos judeus. A grande maioria da Inglaterra se acreditou no direito de
perseguir os católicos. Não há nenhum povo cuja opinião não tenha G
tido suas doenças, cuja vontade não tenha consagrado, invocado U
mesmo alguma terrível violação da justiça e do direito. E, quando I
esse povo se encontrou livre, quando seus sufrágios decidiram a Z
lei, a lei foi falsa como seu pensamento, iníqua como sua vontade O
(GUIZOT, 1985, p. 377). T
,

Enfim, para Guizot, soberania do povo significa pura e simplesmente T


a consagração da autoridade do número enquanto tal, a transformação O
em lei das vontades iníquas e irrefletidas da maioria desqualificada, do C

que não poderia resultar senão a produção de leis e decisões políticas Q

frontalmente contrárias aos princípios da razão e da justiça e a opressão U


E
das minorias (GUIZOT, 2008, p. 162). Sem deixar de reconhecer o
V
importante papel revolucionário desempenhado pelo princípio da so- I
berania do povo na História, na medida em que ele serviu para unificar L
L
as massas e fornecer-lhes as palavras de ordem usadas na derrubada do
E
Antigo Regime, o autor é enfático em afirmar que o princípio deixa de
.
ter serventia quando as camadas sociais que fizeram a Revolução não
têm mais o que destruir, apenas o que construir. Como sugere Lefort,
481
Guizot trata a soberania do povo como uma ideologia, no sentido que
Marx dará ao termo, ou seja, como uma reivindicação universalista que
mascara seu verdadeiro sentido histórico, a legitimação da batalha tra-
vada pela burguesia contra a antiga ordem social. Uma vez garantida a
vitória da burguesia, Guizot acredita que ela deve “extrair da linguagem

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que lhe foi por um momento necessária a verdade de sua prática e de
suas aspirações” (LEFORT, 1987, p. 25). Desse modo, o autor não via
contradição entre sua crítica aos princípios de 1789 e sua celebração do
lugar da Revolução Francesa na História: ambos os empreendimentos
intelectuais eram interpretados como parte de uma mesma tarefa, a de
assegurar e regularizar a vitória final das camadas sociais que fizeram
a Revolução, provendo-as com as teorias de que elas estariam preci-
sando uma vez encerrada a obra de destruição do Antigo Regime e che-
gado o momento de construir as novas instituições. Esse duplo aspecto
da tarefa intelectual assumida por Guizot faz com que o legado que
esse importante defensor da Revolução Francesa deixou para a teoria
A política acabe sendo extremamente crítico dos princípios que orienta-
N
ram explicitamente a Revolução. Diferente será o legado deixado por
O Tocqueville, que, sem exaltar o papel da Revolução na História e muito
V menos as classes que fizeram a Revolução, não estendeu sua crítica aos
A
“princípios de 1789” – pelo menos não a sua dimensão explícita.
C
Uma das originalidades do tratamento que Tocqueville confere à
I Revolução Francesa consiste em tentar salvar justamente aquilo que
Ê
N
Guizot havia condenado: suas teorias, especialmente a da soberania do
C povo. O modo como Tocqueville confere uma nova legitimidade a essa
I bandeira à qual se associavam lembranças tão terríveis é desvinculando-
A
-a, ao menos em um primeiro momento, de sua aplicação específica
D pelos revolucionários franceses. Como argumentei na seção I, o autor vê
A
as sociedades modernas (e não apenas a francesa) como produto de um
P movimento igualitário tão radical, que não sobraria a elas alternativas
O
entre a soberania do povo e o poder absoluto de um só. Em consequên-
L
Í cia, a soberania do povo não poderia mais ser pensada como uma arma
T
I
de destruição historicamente circunscrita ao momento de transição para
C a nova sociedade, precisando ser pensada como uma realidade inevitável
A no novo estado social, independentemente da necessidade contingente
. de derrubar uma aristocracia. A prova disso seria a centralidade da sobe-
rania do povo como princípio gerador de todas as leis e instituições nos
482
Estados Unidos, país que nunca precisou derrubar uma aristocracia e no
qual não faria, portanto, nenhum sentido falar no dogma da soberania
do povo como uma “arma de destruição”.
Embora Tocqueville considere inevitável o princípio da sobe-
rania do povo nas sociedades modernas (sendo a única alternativa o

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despotismo de um só), o princípio não é tratado por ele como des-
provido de problemas. Já na primeira Democracia na América, o autor
bate de frente com o fantasma que outros liberais já haviam associado
à soberania do povo: a tirania da maioria. Diante desse inevitável
impasse – “Considero ímpia e detestável a máxima de que, em ma-
téria de governo, a maioria do povo tem o direito de fazer tudo; ape-
sar disso situo na vontade da maioria a origem de todos os poderes.
Estarei em contradição comigo mesmo?” (TOCQUEVILLE, 2005, p.
294) –, Tocqueville dá uma resposta que, à primeira vista, se aproxima
da de Guizot, na medida em que apela para uma espécie de soberania
da justiça, ou do gênero humano, que se colocaria acima da soberania
do povo:

Existe uma lei geral que foi feita ou, pelo menos, adotada não apenas
pela maioria deste ou daquele povo, mas pela maioria de todos os
G
homens. Esta lei é a justiça.
U
A justiça constitui, pois, o limite do direito de cada povo.
I
(...) Assim, quando me recuso a obedecer a uma lei injusta, não nego
Z
à maioria o direito de comandar; apenas, em lugar de apelar para
O
a soberania do povo, apelo para a soberania do gênero humano T
(TOCQUEVILLE, 2005, p. 294). ,

T
Contudo, importa destacar a diferença dos usos que os dois auto- O
res faziam do princípio da soberania dessa justiça transcendente histó- C
rica e socialmente. Tocqueville, ao contrário de Guizot, não almejava Q

um governo que se aproximasse o máximo possível dos preceitos da U


E
razão, precisando para isso excluir o grande número. Em sua visão, a
V
autoridade só pode, nas sociedades democráticas, pertencer ao grande I
número. Sua única preocupação era encontrar obstáculos e contrapesos L
L
que pudessem moderar a vontade da maioria e impedi-la de ultrapas-
E
sar os limites que levam à tirania. Esses obstáculos e contrapesos são
.
encontrados nas instituições e, principalmente, nos costumes. A divi-
são dos poderes, o bicameralismo, a descentralização administrativa, a 483
influência dos juristas e o papel preponderante da religião (para men-
cionar apenas alguns fatores institucionais e culturais encontrados por
Tocqueville nos Estados Unidos) servem, em seu entendimento, como
obstáculos ocultos que, retardando ou dividindo o fluxo da vontade po-
pular, dificultam sua transformação em uma vontade tirânica unificada

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a ser exercida sem apelo contra as minorias.7 Por meio de todos esses
exemplos de contrapesos possíveis à vontade impetuosa da maioria, o
autor quer demonstrar que é possível que a maioria governe sem neces-
sariamente oprimir as minorias, o que, como vimos, Guizot considerava
impossível.
Na segunda Democracia na América, Tocqueville volta a se defron-
tar com o problema da possibilidade de um regime despótico realizado
à sombra do princípio da soberania do povo, porém a caracterização do
problema passa por mudanças significativas. No lugar de uma maioria
que oprime as minorias, o quadro passa a ser o de um recolhimento
tranquilo de cada indivíduo em sua vida privada, deixando volunta-
A riamente os negócios públicos nas mãos de um Estado centralizado e
N
todo-poderoso, que suprime os poderes intermediários e as liberdades
O locais e logo tira dos cidadãos até a necessidade de pensar e de agir. Esse
V despotismo de novo tipo opera uma combinação da liberdade na esfera
A política, por meio de uma representação nacional que institui formal-
mente a soberania do povo, com o despotismo na esfera administrativa,
C
I
relegando todas as decisões a uma administração centralizada que es-
Ê capa ao controle dos cidadãos, colocando-os em uma dependência tão
N grande que não pode ser corrigida pelo uso sazonal do direito de eleger
C seus representantes. Logo se vê que a causa desse despotismo temido
I
A por Tocqueville não é a soberania do povo. Pelo contrário: o que o autor
denuncia é uma realização puramente formal da soberania popular, sem
D
A
que os cidadãos estejam efetivamente envolvidos na participação dos
negócios públicos.
P
O
É à luz dessa crítica à realização puramente formal da soberania do
L povo que ganha sentido a crítica aos revolucionários franceses feita por
Í Tocqueville em O Antigo Regime e a Revolução. O que é criticado na
T
I
C
A
7
É nesse contexto que ganha importância a valorização dos corpos inter-
.
mediários, que conecta Tocqueville à tradição do liberalismo aristocrático
associada ao nome de Montesquieu (DIJN, 2008). A soberania do povo pensada
484 por ele não implica necessariamente um poder único, mas uma multiplicidade
de poderes secundários que retardam e dividem o fluxo da vontade popular,
impedindo-a de se unificar. Na realidade, o estado social democrático e o
princípio da soberania do povo suscitam ideias que tendem à supressão dos
poderes secundários e à formação de um poder único (TOCQUEVILLE, 2004b,
p. 359-362), mas isso é tratado justamente como uma tendência passível de
superação, não como uma essência incontornável da soberania do povo.

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obra dos revolucionários não é a tentativa de fundar uma nova ordem
política com base no princípio da soberania do povo, mas a tentativa
de conciliar esse princípio com a centralização administrativa herdada
inconscientemente do Antigo Regime, a qual reduziria a alegada sobe-
rania popular à mera formalidade:

Decidiram, portanto, misturar ao mesmo tempo uma centralização


administrativa sem limites e um corpo legislativo preponderante: a
administração da burocracia e o governo dos eleitores. A nação como
tal teve todos os direitos da soberania, cada cidadão em particular
foi restringido à mais estreita dependência (TOCQUEVILLE, 2009,
p. 185).

Há, então, na obra de Tocqueville, não uma crítica ao princípio da


soberania do povo, mas sim ao princípio da soberania do povo à moda
francesa. Como afirma Jaume (2008, p. 34): “Tocqueville critica, na
realidade, com uma violência dissimulada, a concepção francesa que G
confia ao Estado a realidade dessa soberania do povo tão alegada desde U
1789”. Se há algo na experiência política americana que excita a imagi- I
Z
nação do autor, é justamente o oferecimento de outro paradigma para o
O
princípio da soberania do povo, em que esta, em vez de concentrada no T
topo do Estado, reduzida à formalidade e transformada em retórica de ,
legitimação para a expansão das atividades de um Estado que reivindica T
a encarnação do povo, exerce-se de baixo para cima, primordialmente O
no âmbito comunal e dispersa em frações do território (cf. JAUME, C
2008). Q
U
Percebe-se, assim, na obra de Tocqueville, uma crítica original à
E
obra dos revolucionários de 1789 – crítica esta que vai na contramão
V
da efetuada por Guizot. Este havia celebrado o lugar da Revolução I
Francesa na História, mas criticado as doutrinas explícitas que haviam L
L
orientado os revolucionários, com destaque para o princípio da sobera- E
nia do povo. Tocqueville, por sua vez, considera as bandeiras explícitas
.
da Revolução, especialmente a da soberania do povo, como sua parte
mais benéfica, mas que teria sido contaminada pela cultura política 485
inconscientemente centralizadora do Antigo Regime, a tal ponto que
o próprio princípio se encontrou desfigurado (o Estado acabou usur-
pando a soberania do povo), e a Revolução acabou realizando, sem ter
plena consciência disso, uma obra perniciosa, cujo principal resultado
foi o fortalecimento da centralização administrativa e o aumento das

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dificuldades de erigir um governo livre na França. O interessante é ver-
mos um autor muitas vezes tratado como conservador concentrar sua
crítica à Revolução Francesa não no que ela trouxe de novidade (a ten-
tativa de fundar uma nova ordem política com base no princípio da
soberania do povo), mas naquilo que ela teria mantido de continuidade
com a ordem anterior: a tentativa de acomodar as bandeiras novas à
centralização administrativa herdada do Antigo Regime.

Considerações finais
Cabe, nestas considerações finais, realizar um breve balanço das
A posições dos dois autores analisadas no capítulo em termos de seu sig-
N
nificado para o presente. Afinal, como se pretendeu demonstrar na
O Introdução, os debates políticos e historiográficos sobre a Revolução
V Francesa travados no século XIX constituem uma importante mediação
A
entre o legado revolucionário e a época contemporânea.
C
A posição política de Guizot não pode ser apreendida na contem-
I poraneidade sem certa distância, na medida em que, diferentemente
Ê
N
da época em que atuou o autor, a democracia e o sufrágio universal são
C hoje valores incontornáveis em praticamente todos os campos políticos.
I É como se o ideal democrático que se ergueu na Revolução Francesa
A
tivesse dado o troco a Guizot (e a todos os que se opuseram ao advento
D da democracia política no século XIX) e mostrado que a soberania do
A
povo não havia sido uma simples arma de guerra passageira, mas (como
P percebeu prematuramente Tocqueville) um ideal político incontornável
O
nas sociedades modernas. De todo modo, a reflexão de Guizot em torno
L
Í da contraposição entre os princípios da soberania do povo e da sobe-
T
I
rania da razão continua sendo instrutiva para se pensar os problemas
C da democracia. Como argumenta Rosanvallon, só é possível pensar a
A democracia a fundo se nos voltarmos criticamente às questões formula-
.
das na época em que o ideal democrático ainda não estava estabilizado,
mas permanecia uma questão a elucidar, uma contradição a resolver
486
(ROSANVALLON, 1985, p. 375). Embora a posição de Guizot fosse
de oposição à democracia, entendida como consagração da autoridade
do número em detrimento da razão, sua recepção crítica do princí-
pio revolucionário da soberania do povo continua importante para o
pensamento contemporâneo da democracia, na medida em que esta

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permanece constituída pela tensão irresolúvel entre número e razão/jus-
tiça (uma variante do que alguns chamam de tensão entre democracia
e liberalismo, participação majoritária e garantias liberais, etc.). E parte
dos argumentos de Guizot no tratamento dessa tensão é considerada
por alguns teóricos contemporâneos como compatível com a ideia mo-
derna de democracia, desde que o debate incessante em torno da razão,
da justiça e da legitimidade do poder proposto pelo doutrinário deixe
de ser restrito às fronteiras da classe social dirigente e passe a envolver a
sociedade como um todo (LEFORT, 1987, p. 34).
É preciso fazer um balanço também do lugar que Guizot atribuía
à Revolução Francesa na História. O que vimos é uma celebração
da Revolução Francesa como ponto culminante da História, o qual
sintetizaria todos os progressos realizados até então pela civilização eu-
ropeia e corrigiria todos os vícios da História passada da França, apro-
veitando da realeza a centralização governamental e a unidade nacional, G
mas enterrando no passado todos os defeitos do absolutismo. O que U
se pode criticar nessa concepção histórica é justamente o aspecto de I
Z
que vimos Tocqueville se livrar: a crença um tanto ingênua em uma
O
visão etapista da História, a qual não questiona os efeitos que o absolu-
T
tismo pode produzir na cultura política de longo prazo de um povo, de ,
modo a validar ou “justificar” o despotismo enquanto etapa histórica.
T
Não ocorre a Guizot, talvez por causa da importância que a noção de O
progresso tinha em sua filosofia da História (e não só na sua), que a C
Revolução Francesa pode ter herdado não só os aspectos positivos da Q
obra da realeza, mas também os aspectos negativos, com destaque para U
a centralização administrativa. Todavia, se Guizot pode ser acusado de E
V
ter apresentado uma concepção pouco crítica do processo histórico que
I
culminou na Revolução Francesa, é preciso reconhecer que essa concep- L
ção serviu plenamente à finalidade política que a orientou, a legitima- L
E
ção da Revolução Francesa perante os ataques que ela vinha sofrendo
durante a Restauração por parte dos contrarrevolucionários. .

Passemos ao balanço da recepção tocquevilliana da Revolução


487
Francesa. Talvez a grande contribuição de Tocqueville para o legado
revolucionário tenha sido a reformulação do princípio da soberania do
povo, de modo que essa soberania possa se realizar dispersa em liber-
dades locais e não concentrada no topo de um Estado hipercentrali-
zado, como na França. Essa reformulação serve, sobretudo, como um

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potencial crítico contra as pretensas encarnações estatais da soberania
popular, embora seja importante assinalar o risco de essa crítica levar a
uma concepção reducionista da democracia, a qual poderia se encontrar
reduzida ao exercício das liberdades locais.
No que tange à intepretação sobre o lugar da Revolução Francesa na
História, pode-se dizer que o grande legado de Tocqueville consiste na
ênfase naquilo que a Revolução herdou inconscientemente da centrali-
zação monárquica que a precedeu. Como argumentei há pouco, esse é
justamente um dos pontos cuja falta é sentida no balanço da interpre-
tação de Guizot, a qual padece, quando comparada à de Tocqueville, de
um déficit de crítica. É verdade que uma interpretação da Revolução
A
Francesa preocupada em enfatizar aquilo que a Revolução herdou in-
N conscientemente da centralização monárquica corre o risco de perder a
O dimensão do evento enquanto produtor de uma nova ordem mundial,
V
A
para além de seus efeitos mais imediatos sobre a política francesa. Como
comenta ironicamente Eric Hobsbawm a respeito da historiografia revi-
C sionista inspirada em Tocqueville:
I
Ê
N
Reduzir o efeito de um acontecimento tão grande na história
C mundial à aceleração de uma tendência na administração do Estado
I francês é análogo a dizer que a principal consequência histórica do
A Império Romano foi dotar a Igreja Católica de uma língua para as
encíclicas papais (HOBSBAWM, 1996, p. 149).
D
A
A crítica de Hobsbawm a essa historiografia revisionista serve para
P
indicar os riscos corridos pela interpretação tocquevilliana da Revolução
O
L Francesa no caso de exacerbação de alguns de seus argumentos. Apesar
Í desses riscos, o enfoque na herança que as revoluções, mesmo as mais
T
I radicais (como foi o caso da Revolução Francesa), recebem, muitas vezes
C involuntária e inconscientemente, do passado de seus países continua
A
sendo relevante para todos os que querem pensar sobre as grandes re-
.
voluções. O próprio Marx não deixou, em seus melhores momentos,
de refletir sobre a herança que as revoluções recebem do passado. É
488
interessante notar como, em seu Dezoito Brumário de Luís Bonaparte,
também aparece a temática, tipicamente tocquevilliana, da sobrevivên-
cia e mesmo do fortalecimento do Estado centralizado produzido pela
monarquia francesa ao longo de todas as revoluções francesas (MARX,
1997, p. 126). É essa acuidade que alguns autores do século XIX (como

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Guizot, Tocqueville e Marx, em suas diferentes perspectivas) tiveram em
identificar os traços de ambiguidade da herança da Revolução Francesa
que levou Furet (2001, p. 21) a clamar por uma “volta aos bons autores
do século XIX”. Certamente, o alcance dos diagnósticos que os autores
daquele século formularam sobre a Revolução Francesa, perplexos pela
profunda ambiguidade de um evento ainda tão próximo, ainda não se
esgotou.

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O
C
Q
U
E
V
I
L
L
E

491

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Roberta K. Soromenho Nicolete

Pós-doutoranda no Departamento de
Filosofia (USP-Brasil). Doutora (2017) pelo
Programa de Pós-Graduação em Ciência
Política (USP) e pela École des Hautes
Études en Sciences Sociales (EHESS-França),
cuja tese ganhou o Prêmio Capes (2018) e
menção honrosa do Tese Destaque-USP
(2019). Autora de Quando a política caminha na
escuridão – Interesse e virtude n’A Democracia na
América de Tocqueville (Alameda, 2018).

Desde 2019, é pesquisadora-convidada no


Centre d'études sociologiques et politiques
Raymond Aron (CESPRA-EHESS).

A pesquisa de doutorado que fundamenta o presente capítulo revela a concorrência


entre a linguagem da autoridade política tradicional e os discursos que propuseram
uma nova ordem, na França setecentista. Se durante muito tempo se sustentou a
Revolução francesa como uma ruptura radical, este trabalho compromete-se com
a análise da transformação das linguagens políticas numa escala miúda, ancorada
em fontes consideradas menores pela tradição acadêmica (panfletos, brochuras,
atas parlamentares). Trata-se de um modo de fazer teoria política que não adota um
conceito ideal de autoridade, que não resolve as nossas questões políticas imediatas,
mas que tampouco toma um período da história como sofisticação empírica diletante.
Ao identificar um contexto linguístico mais amplo, no qual os autores e testemunhas
desse período articulavam seus discursos, bem como os limites do vocabulário
disponível em certa época, o que se faz é tirar os traços de “evidência” que o presente
confere à dinâmica política e resgatar a temporalidade específica do político: a
contingência.

Atualmente, minhas pesquisas buscam fragmentos da participação política


das mulheres, nos debates do século XVIII, mediante outra retórica da presença
normalmente não escutada (em recusas, gestos e silêncios), além dos discursos
políticos propriamente, notados em assinaturas em petições, panfletos, cartazes, em
espaços não considerados políticos aos olhos da epistemologia tradicional.

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CATECISMO DO CIDADÃO –
CONSTITUCIONALISMO E SOBERANIA
POPULAR EM GUILLAUME DE SAIGE1*

Roberta K. Soromenho Nicolete

“Chaque pas aggrave le mal. On écrit, on répondra […]


les lumières qu'acquièrent les peuples doivent
un peu plus tôt, un peu plus tard,
opérer des révolutions.”
(Madame d’Épinay ao abade Galiani)

Introdução
O dia: 11 de junho de 1775. A cerimônia de coroação de Luís XVI
foi, como as demais, um longo período de festividades e de aclamação
ao rei, quem, mesmo não nascendo em Reims, apenas ali, na cidade
que abrigava a cerimônia, podia se tornar um monarca, colocado em
uma posição intermediária entre os súditos e Deus (cf. COSANDEY
e DESCIMON, 2002, p.85). Com efeito, o corpo político encontra
na cerimônia de Reims a sua unidade representada no corpo visível do
rei, seguindo um dos instrumentos retóricos mais estáveis no tempo:
a encenação dos dois corpos do rei (cf. KANTOROWICZ, 1981).
Todavia, naquele 11 de junho, na última sagração do Antigo Regime,
certa parte do cerimonial foi suprimida. Por anódino que isso possa
parecer, tal alteração litúrgica abriu uma fenda na unidade do corpo
político, mediante brochuras e panfletos nos quais se atacava o “des-
potismo” e se recolocava em questão a natureza e os limites da autori-
dade legítima. Tais escritos – que raramente figuram como objeto de

1
* Artigo originalmente publicado na Revista Brasileira de Ciências Sociais, 2019.
Agradecemos aos editores a autorização para publicação nessa coletânea

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investigação na área de teoria política – circularam em escala inédita na
França e foram intensamente debatidos, a ponto de a censura e o exílio
de seus autores serem as respostas dos defensores do governo absoluto.
Amparado nestas obras de contestação, este trabalho sustenta que, se a
linguagem tradicional da autoridade política, baseada no direito divino,
pode ser dita vencida com os processos iniciados contra o rei, em 1791,
e com a condenação e morte de Luís Capeto, nos anos seguintes, os
discursos políticos que erodiram as bases de tal linguagem já estavam
em circulação, nas décadas anteriores, e não foram veiculados apenas na
pena dos iluministas (BIGNOTTO, 2013, p.176). Antes, tais discursos
eclodiram nesses panfletos, ditos “patriotas” [patriotes], precisamente
A na cerimônia que tentava performar a criação de um corpo sagrado
que presta contas somente a Deus e pretendia reafirmar as bases de um
N
O
poder absoluto. Com efeito, a contribuição esperada deste trabalho é
V a interpretação desses escritos de circunstância como a produção e a
A defesa consistente de diversos princípios de legitimação da autoridade
política, entre eles: a origem eletiva da monarquia, a origem popular da
C
I
soberania e a irrevogabilidade das obrigações recíprocas entre os súditos
Ê e o soberano.
N
De partida, é preciso observar que alguns trabalhos historiográficos
C
I abordam essa explosão de panfletos e brochuras em circulação entre os
A anos 1770 e 1780 como consequências diretas do exílio do Parlamento
D de Paris (1771) e da substituição dos antigos parlamentares pelo “novo e
A dócil tribunal” do chanceler Maupeou (DARNTON, 2010, p.171)2. O
P historiador Robert Darnton é o principal representante da tese, segundo
O a qual os principais opositores da ordem tradicional eram escritores de
L segunda ordem cujos opúsculos circulavam nas ruas (cf. DARNTON,
Í
T 2012, p.16). O estudioso Kenneth Margerison, por sua vez, refuta tal
I tese sustentando que os principais oponentes do regime eram os advo-
C
A gados no interior dos parlamentos (cf. MARGERISON, 1998, p.2).
.
2
Eu agradeço aos comentários e leituras rigorosas de Eunice Ostrensky, Luís
494 Falcão, Ricardo Fabrino e Raissa Wihby Ventura a versões anteriores deste
trabalho. Este trabalho contou com o apoio da Fapesp Processo 2017/26135-0
para a sua realização.
É preciso ressaltar, entretanto, que o objetivo aqui não é discutir as teses
específicas acerca da circulação dos panfletos. Dito de outro modo, os panfletos
são evidências de que a autoridade política portava muitos discursos, antes
mesmo dos eventos disruptivos da Revolução francesa.

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Saídas das penas de escritores obscuros ou de parlamentares, essas obras
de protesto a Maupeou, que deu base ao que se convencionou cha-
mar de “ideologia parlamentar” (cf. ECHEVERRIA, 1972, p.554), fo-
ram escritas e publicadas, em sua maior parte, anonimamente, pelos
patriotas3 – como eram nomeados aqueles que defendiam a soberania
da Nação, entre eles: Claude Mey, Léon Louis Brancas, André Blonde,
Guy Target, Martin Morizot, Jean-Claude Marivaux e, de modo mais
explícito, Guillaume de Saige. Todavia, os magistrados não eram apenas
parlamentares, mas constituíam um grupo político que agregava ma-
gistrados das cortes a propagandistas do Terceiro Estado. Pelas origens
sociais e ocupações dos integrantes, o grupo difundiu a própria obra em
escala maior e nos estratos mais populares da França setecentista. Apesar
de mais de quatro anos de intensas publicações, após a restauração do
Parlamento, o grupo se diluiu. À sombra de 1789, isto é, dos eventos
C
considerados tanto pela historiografia clássica do tema quanto pelos re-
A
visionistas4 o ponto essencial da Revolução Francesa, é compreensível T
que pouca atenção tenha sido concedida à produção de tal grupo polí- E
tico, ao conceito de autoridade e soberania por ele sustentado e que se C
I
tenha fixado o consenso de que a atuação dos patriotas na contestação da
S
M
O

3
Echevarria (1985) associa um vasto conjunto de autores, magistrados das D
cortes e advogados, ao patriotismo dos anos 1770-1780: Claude Mey, Brancas, O
Guillaume de Saige, Martin Morizot, Jean-Claude Marivaux, entre outros.
Para o conceito de Pátria, ver: KANTOROWICZ, 1951. Estamos de acordo com C
Echevarria sobre o fato de não caber falar em rejeição da monarquia, entre I
alguns patriotas – faz eco, nesse sentido, à tese de Franco Venturi (1971). D
Todavia, quando da defesa da soberania da Nação, a Constituição monárquica A
será definitivamente colocada em questão. D
4
Tal nomenclatura é usual entre os estudiosos da Revolução francesa. Por Ã
historiografia ortodoxa, compreende-se o conjunto de trabalhos cujas O
análises dos eventos da Revolução privilegiam a explicação da ação dos atores
políticos, notadamente, a partir do seu pertencimento e interesse de classe. .
Especialmente após os trabalhos apresentados por ocasião do Bicentenário
da Revolução, os estudos voltaram-se à compreensão das ideias nas origens 495
da Revolução. Trabalhos tão distintos quanto os de François Furet, Dale Van
Kley, Keith Baker (os quais serão mencionados ao longo deste texto) foram
abrigados na rubrica “revisionista”. Para uma discussão da nomenclatura
e do desenvolvimento do debate, ao longo da história, ver: KATES, 2006,
especialmente “The Overthrow of the Marxist Paradigm” e “The Revisionist
Orthodoxy”.

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sagração não se deu senão como mera oposição do chanceler Maupeou.
Todavia, essa não é a interpretação aqui sustentada.
Para compreendermos a ocasião que propiciou discussões intensas
acerca da autoridade política, é preciso voltar aos rituais de 11 de junho.
Isso é feito na primeira seção deste trabalho, intitulada “A coroa, o con-
sentimento e o Catecismo do cidadão”. Revelado o intenso debate sobre a
autoridade legítima (os argumentos em sua dinâmica e não como ideias
perenes) em um período tomado como um monolítico pela historiogra-
fia clássica sobre o tema e na história do pensamento político, o Antigo
Regime, lançamos luz aos diversos princípios da autoridade política que
circularam nos escritos patrióticos, de maneira geral e, em particular,
A na pena de Guillaume de Saige, autor do Catecismo do cidadão. Isso é
N feito nas segunda e terceira seções, intituladas “Os elementos do direito
O público francês no Catecismo do cidadão” e “A constituição em face ao
V ato da vontade geral”. Com efeito, este trabalho parte da análise do rito
A
em questão para compreender que sentido de ordem política legítima
se tentava afirmar, numa época que se esforçava por definir (e redefinir)
C
I noções fundamentais como a liberdade, a igualdade, a soberania (cf.
Ê VALENSISE, 1986, p.544). Em que medida tais definições nos pa-
N
recem triviais, hoje, a ponto de quase serem dispensadas investigações
C
I como essa – feitas nas franjas entre a teoria política e a história ema-
A parada em discursos políticos – é matéria tratada nas considerações de
D cunho metodológico, na conclusão deste trabalho.
A

P
A coroa, o consentimento e o Catecismo do cidadão
O
L De acordo com a liturgia, uma vez coroado o rei, a cerimônia deve-
Í
T ria seguir com o pronunciamento do ungido “diante de Deus, do clero
I
C
e do povo”5. Porém, naquela última cerimônia de coroação, o povo per-
A maneceu fora da Catedral e foi admitido na nave desse espaço simbó-
. lico do poder apenas após a entronização. Além disso, os bispos Laon
e Beauvais, os então responsáveis pela última cerimônia clássica do
496 Antigo Regime, suprimiram todo apelo ao povo. Com efeito, é possível

5
De acordo com Le Goff, na sua análise do manuscrito da liturgia da sagração, da
qual um exemplar (datado de 1246, grafado em latim) é guardado na Biblioteca
Nacional Francesa (BnF).

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interpretar que, mediante a modificação da liturgia da coroação, abolia-
-se a ritualização da eleição do monarca – entenda-se: o consentimento
popular do governo ao eleito de Deus. Afirmar a existência desses prin-
cípios de legitimidade, isto é, a eleição do rei e o consentimento do
povo, pode parecer estranho quando se está convencida de que a mo-
narquia era legítima apenas graças à linguagem jurídica6 que sustentava
a sucessão dinástica. No entanto, alterações aparentemente superficiais
de um ritual de legitimação da autoridade podem nos revelar muito
sobre os diversos discursos do poder em um determinado contexto. Se
é assim, não parece correto sustentar a tese historiográfica, segundo a
qual o rei faz apenas uma “simulação” de consulta ao povo (LE GOFF,
1984, p.134), durante a cerimônia, pois ela redunda na compreensão
de que a autoridade do Antigo Regime se amparava em uma, e ape-
nas uma, linguagem: o absolutismo monárquico. Ora, se o consenti-
C
mento do povo não fosse, de fato, critério da autoridade considerada A
legítima, o poder de Luís XVI se justificaria apenas pelo rito, tal como T
foi feito. Com efeito, se não existissem outros princípios de legitimação E

em concorrência, a alteração da liturgia da cerimônia não alimentaria C


I
a “revolução em curso”, segundo os termos de Madame d’Epinay, de S
quem tomamos a epígrafe deste texto. M

É verdade que, durante a Idade Média, o rito da coroação perdeu o O

seu valor legal, quando a transmissão do poder foi regulada pelo direito D
público do reino7. A linguagem jurídica prevalece, nesse momento, so- O
bre a da vontade (a do rei) na passagem legítima de poder (no geral, aos
seus descendentes). Se o ritual da coroação perde constantemente o seu C
I
sentido jurídico, as alterações do cerimonial e a supressão às alusões do D
poder originário popular, na sagração de 1775, podem ser lidas como A
D
Ã
6
A referência para o termo “linguagem política” é o historiador John Pocock.
O
Como se sabe, o autor discute o modo pelo qual a centralidade do papel da lei
e os vocabulários e idiomas de uma atividade específica, o Direito, permitiram, .
tal qual um verdadeiro paradigma, a articulação do pensamento político ao
longo da história. Para a discussão deste ponto, ver: POCOCK, 1995, pp. 37-50. 497
7
Segundo Marina Valensise, foi casual o fato de, por três séculos, os capetos
(capétiens), terem sempre um filho à disposição para associá-lo ao trono, o que
teria acionado a percepção (pois ainda não era assim regulado) da dimensão
hereditária do trono. Sobre a necessidade do estabelecimento urgente de um
sucessor e da matéria que se abriu pelo direito público do reino, quando da
morte inesperada de São Luís, em 1270, ver: VALENSISE, 1986, p.548 e ss..

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respostas aos ataques crescentes que a autoridade tradicional recebia: o
rei recorre, então, à retórica convencional da monarquia (em especial,
ao discurso do direito divino) como meio de tentar alterar a percepção
social sobre os elementos indispensáveis para a instituição do governo.
Se essa interpretação é correta, o núcleo da controvérsia do período, não
diz exatamente respeito à oposição a uma reforma pontual de Maupeou,
como sustenta a historiografia clássica sobre o tema, mas à emergência
de um verdadeiro debate político sobre a legitimidade da autoridade.
A supressão do momento do consentimento da cerimônia permite
a abertura a contestações e muitos comentários, mais ou menos sarcás-
ticos. Até mesmo alguns dos patriotas que não se opunham, de saída,
A
à forma monárquica, enfatizavam que o rito da sagração era o reco-
N nhecimento do princípio da eleição nacional do rei. Reconhecer tais
O princípios implicava, todavia, expressá-los, enunciá-los diante do povo
V
A
– e não um acordo tácito. É por isso que propagandistas do que chama-
mos, em nossa interpretação, de uma “teoria da eleição monárquica”,
C amparados no princípio do poder originário popular, denunciam a ile-
I gitimidade da supressão do juramento feito diante dos nobres, do clero
Ê
N
e do povo. Por mais vã que seja a cerimônia, como exprime em tom de
C desaprovação o publicista Pidansat de Mairobert, autor do clandestino
I jornal Mémoires secrets [1775], o clero tirou proveito de tal supressão –
A
ato que não passou despercebido dessa “outra parte” do corpo político,
D
o povo, apartada do piedoso espetáculo, é verdade, todavia atenta à
A
parcela de autoridade que lhe cabia de direito. Poderia, então, o rei dis-
P pensar o “sim” aclamado pelo povo? Assim acusa o mesmo Pidansat de
O
L
Mairobert: “eu escutei um orador lhe dizer que ele recebia a sua potência de
Í Deus e apenas de Deus, e que ele não deveria prestar contas senão a Deus”8.
T
I Notemos que a ideia de que o poder real vem exclusivamente de Deus e
C que apenas a Ele o rei deve prestar contas, isto é, a tentativa de restabe-
A
lecer a tese de que o rei era senhor de seus próprios atos (legibus solutus)
.
atiça a ira de Mairobert. Mas foi como “ato contrário à soberania do
rei” que outros publicistas patriotas, Guillaume de Saige e Mariveaux,
498
tiveram suas obras, o Catéchisme du citoyen ou Éléments du droit public
français [1775] e L’Ami des Lois, banidas por sentença parlamentar. Não
restam dúvidas de que se está diante de ampla disputa em torno da

8
As traduções são de responsabilidade da autora.

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legitimidade da autoridade, seus limites e fundamentos, travada em dis-
tintos discursos políticos do período.
Este trabalho mostra que, entre as obras banidas, a ameaça do
Catecismo do cidadão, de Saige, às pretensões dos absolutistas poderia
ser lida como a mais radical entre os patriotas do período, razão pela
qual recebe destaque na sequência. Publicado em 1775, o Catecismo
foi banido, em 30 de junho do mesmo ano, pelo próprio Parlamento,
junto com a obra de Marivaux, como foi afirmado anteriormente.
Após receber novas edições em Londres, o panfleto voltará a circular
anonimamente, com uma intensidade comparável apenas às obras de
Rousseau, uma década depois da publicação de sua primeira edição,
com acréscimos e notas mais detalhadas da situação política do período
– eis a importância de uma obra de teoria política bastante esquecida. É
uma importante obra também, porque, ao levarmos em conta uma tes- C
temunha do período, Pidansat de Mairobert, a linguagem do panfleto A
permitiu que ela fosse mais lida pelos comuns do que as passagens mais T
E
abstratas de Rousseau e Montesquieu (PIDANSAT de MAIROBERT, C
1775, p.133-4). O trabalho aplicado entre as duas edições da obra, isto I
é, entre 1775 e 1788, após o capítulo XI, destinado à recapitulação dos S

argumentos dos capítulos anteriores, compreende a inserção de uma se- M


O
gunda parte intitulada “Fragments politiques”, que basicamente dobra
o número de páginas da edição anterior. D
Ora, um discurso com caráter fortemente constitucionalista sobre a O

autoridade política pode ser encontrado tanto nas Remontrances (os do-
C
cumentos parlamentares produzidos na grande crise entre parlamento I
e rei, em 1753-1754) quanto na obra de Marivaux9. Com efeito, os D

costumes, as leis fundamentais, o juramento do rei, as obrigações e re- A


D
ciprocidades são regulações e limites da autoridade pública afirmados
Ã
amplamente nesses escritos parlamentares e patrióticos. Que haja, por- O
tanto, um discurso constitucionalista em circulação no período, não há
.
dúvidas. Todavia, não é claro no interior dessas obras quem, em última
análise, estaria habilitado a limitar o poder, mesmo que não possamos 499
reduzir a linguagem política constitucionalista a um discurso centrado

9
L’ami des Lois ou les Vrais Principes de la monarchie française, de Jacques-Claude
Martin de Marivaux, de 1775, panfleto do qual não restaram senão algumas
páginas fragmentadas.

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na mera imposição de limites à autoridade (cf. LEE, 2016, p.2). Se, em
ampla medida, essa é dita uma linguagem de longa duração, a nossa
interpretação está interessada em analisar também as rupturas nas lin-
guagens da autoridade na pena de Guillaume de Saige e, mais especifi-
camente, atenta para a articulação entre princípios antigos e modernos,
em um mesmo discurso. Nesse sentido, embora o princípio da origem
popular do poder já estivesse apresentado na pena dos outros panfletis-
tas patriotas, Guillaume de Saige apresenta uma resposta mais refinada
e mais radical10 sobre quem pode ser designado o detentor último da
autoridade, isto é, aquele que pode reclamar de volta a soberania que lhe
pertence originalmente. Não se trata apenas de uma diferença de ênfase
A entre as obras patrióticas analisadas: Saige, de fato, apresenta um avanço
N em relação à linguagem constitucionalista e à origem popular do poder.
O As análises do estudioso Daniel Lee sobre a relação entre contes-
V
A
tação e constitucionalismo nos indicam que sem a designação de um
núcleo de contestação ativa o projeto constitucionalista não se completa
C (LEE, 2016, p.8). Com efeito, não apresentamos o Catecismo como
I obra exemplar do constitucionalismo moderno, supondo que o pe-
Ê
N
ríodo anterior à Revolução Francesa carecesse de teorias da autoridade
C pública. O Antigo Regime, como temos argumentado, já apresentava
I princípios de regulação, mesmo que incompletos do ponto de vista da
A
contestação da autoridade. O fato é que, a seguirmos a sugestão de Lee,
D o constitucionalismo moderno se modifica com a introdução de uma
A
questão específica11, a saber: a quem é reputado o direito legal aos po-
P deres de imperium e juridictio? (cf. LEE, 2016, p.120). Guillaume de
O Saige teria respondido: “o povo”, amparando a sua resposta no princípio
L
Í da soberania da Nação. Em face dos demais defensores patriotas, ele dá
T
I
C 10
O historiador Keith Baker apresenta interpretação semelhante no que diz
A
respeito à expressão radical do princípio de soberania nacional, no interior da
. obra. Para o autor, o panfleto de Saige é uma “resposta direta” à reforma de
Maupeou. A sua tentativa de “exumar” (a expressão é dele) este panfleto do
500
terreno dos esquecidos publicistas do período pré-revolucionário faz parte de
uma pesquisa mais ampla de exploração das origens ideológicas da Revolução
francesa (Ver: BAKER, 1990, pp.128-152).
11
A afirmação de que ocorre uma mudança no constitucionalismo abarca
uma tese mais fundamental acerca da existência de uma linguagem
constitucionalista antes do chamado “período moderno”, a qual pode ser
corroborada pelos seguintes trabalhos: McILWAIN, 2010 e KRITSCH, 2002.

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um passo adiante ao articular a soberania da nação ao constituciona-
lismo (isso será desenvolvido adiante). Talvez nessa resposta resida a ira
do censor do governo e, em consequência, a razão da abolição da obra
Catecismo do cidadão.
Nas seções seguintes, não nos propomos esgotar todos os elementos
trazidos por Guillaume de Saige, o parlamentar de Bordeaux, nem ava-
liar o trabalho em relação a suas referências mencionadas nas notas do
Catecismo, embora elas devam ser mencionadas: Harrington, Maquiavel,
Tácito, na primeira edição da brocura12; Buchanan, Hotman e Calvino,
nas notas dos Fragmen[t]s, acréscimo da segunda edição da obra13; e
sua referência constante, donde extrai longas paráfrases, mas raramente
as torna explícitas: Jean-Jacques Rousseau14. Serão expostos, na seção
“Os elementos do direito público francês no Catécismo do cidadão” os
elementos presentes na obra de Saige que nos são particularmente im-
C
portantes para o argumento que pretendemos desenvolver, sejam eles, A
o contraste entre uma ordem política criada por um contrato e uma so- T
ciedade criada por poder divino; o discurso político que localiza o poder E
legítimo no corpo da Nação (e seu consentimento ao rei), por vezes, o C
I
autor emprega o termo “corpo do povo” e compreende por isso a antiga S
assembleia dos três estados; o emprego de discursos históricos em favor M
da origem eletiva da monarquia, embora se diga que o pensamento po- O
lítico, no século XVI, havia enterrado essa via de legitimação com a de-
D
fesa dos argumentos jurídicos em favor da sucessão dinástica. Como se
O
verá nas próximas seções, o emprego de tais discursos era concomitante
C
I
D
12
Sendo observadas essas referências, não parece correta a afirmação de
A
Echevarria sobre as fontes dos patriotas, pois, tanto quanto os demais patriotas,
D
Saige estava informado das mais importantes obras clássicas estrangeiras,
Ã
como se pode observar nas próprias notas do autor. Ver: ECHEVARRIA, 1985,
p.63. O
13
A obra aparece grafada “Fragmens”. Deste ponto em diante, empregaremos a .
grafia da palavra (http://www.cnrtl.fr/etymologie/fragment) com o acréscimo
do [t]. 501
14
Segundo Echevarria, a referência ao Contrato Social, de Rousseau, nas obras dos
opositores a Maupeou, os patriotas, era feita de forma velada, especialmente
após a condenação do Emílio. Ver: ECHEVARRIA, 1985, p. 63. Em sua leitura
do panfleto, Keith Baker enfatiza a proximidade de Saige com o seu mestre
Rousseau, sem que a estrutura argumentativa d’O Contrato Social seja
inteiramente endossada (cf. BAKER, 1990, p.142).

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à versão moderna da linguagem constitucionalista, na qual se destaca
uma teoria da soberania popular. Se estivermos corretas em nossa inter-
pretação, ao final da terceira seção, intitulada “A constituição em face ao
ato da vontade geral”, será justificado que a linguagem do constitucio-
nalismo conhece uma inflexão em conjunção com a doutrina da sobe-
rania popular, indicando que esta não é apenas um discurso de reação,
mas um discurso de legitimação da autoridade política.

Os elementos do direito público francês no Catecismo do


cidadão
A Ainda em resposta à crise de autoridade política da França sete-
N
centista, os discursos políticos em circulação no período aceleravam
O o debate sobre a constituição do governo, parafraseando novamente
V a marquesa d’Épinay, que fornece epígrafe ao texto15. A circulação se
A intensifica após a criação do “novo e dócil tribunal” (DARNTON,
2010, p.171) do chanceler Maupeou, em substituição ao Parlement de
C
I
Paris, em 1771, mas também pela insidiosa alteração da cerimônia da
Ê Sagração, como já tratamos na seção anterior. Na crise de 1753-1754,
N os parlamentares sustentavam que o rei não era livre das determina-
C
I ções das leis (ele não era legibus solutus), mas limitado pelos termos
A do juramento feito diante dos nobres, do clero e do povo e pelas leis
D fundamentais16. Além da garantia das leis, os parlamentares defendiam
A

P
O
15
L Trata-se da correspondência entre a marquesa d’Épinay e o abade de Galiani,
Í em Abril de 1771, da qual extraímos a epígrafe. A amiga de Diderot mostra
T clareza sobre a questão política do período ao afirmar que o debate reabre uma
I questão antiga sobre a autoridade: “É certo que, desde o estabelecimento da
C
monarquia francesa, essa discussão da autoridade, ou ainda, do poder, existe
A
entre o rei e o parlamento. Essa indecisão mesma faz parte da constituição
. monárquica; pois, se é decidida em favor do rei, todas as consequências disso
o tornam absolutamente um déspota. Se a questão é decidida em favor do
502
parlamento, o rei não possui mais autoridade do que o rei da Inglaterra; de um
modo ou de outro, ao decidir a questão, muda-se a constituição do Estado”
(GALIANI, 1881, p.226. tradução nossa).
16
Sobre a maior crise do Antigo Regime, envolvendo Parlamento e rei, ver:
ROGISTER, 1995. Sobre a natureza e discursos genealógicos da realeza e
as disputas de cunho “histórico” que travestiam conflitos de sucessão, ver:
VIERHAUS, 1977.

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limitações institucionais, isto é, mediante os poderes ordinários e as
funções específicas dos magistrados.
Essa é também a matriz dos argumentos de certos panfletistas pa-
trióticos, como Morizot (autor de Inauguration de Pharamond, 1772) e
Marivaux (L’ami des Lois, 1775) os quais insistem nos princípios da lei
natural e na variante moderna do dictum romano Salus populi suprema
lex esto: a utilidade pública (utilité publique). Ambos os autores ressalta-
ram os termos das obrigações recíprocas e acionaram a lei divina como
freio das pretensões de domínio do rei, alegando que a declaração de
que o rei era legibus solutus seria pretender ocupar o lugar de Deus. Em
parte, esses elementos são endossados por Guillaume de Saige (1746-
1804) ao reagir às investidas arbitrárias dos ministros do rei, do clero
e ao banimento da parte consultiva da cerimônia, em um opúsculo de
mais de uma centena de páginas.
C
O ponto de partida da obra de Saige, Catecismo do cidadão, é a ex- A
posição dos fins da sociedade política, a discussão da articulação entre a T
E
manutenção das leis e da liberdade dos súditos, mediante uma constru-
C
ção textual em perguntas e respostas – por isso é dito um “catecismo”17. I
Desde o primeiro dos onze capítulos que constituem o Catecismo, o ad- S
vogado do Parlamento de Bordeaux afirma existir um “direito público M

francês”, isto é, o conhecimento das leis e da constituição da sociedade O

política. Após esta questão de abertura, que invoca a autoridade sufi- D


ciente para tratar dos temas “leis” e “constituição da sociedade”, Saige O
condiciona a manutenção da origem livre e independente dos homens,
pressupostos de sua teoria, à constituição de uma sociedade política, C
I
mediante um construto hipotético: o estabelecimento de um contrato. D
O indivíduo, como unidade básica do direito, aparece apenas nesse A
momento da argumentação, para justamente marcar a relação entre os D
homens no estabelecimento do corpo político18. Tendo por finalidade Ã

conservar os “direitos imprescritíveis dos indivíduos” que se unem e O

17
Sobre a ampla tradição da literatura política denominada “catecismos”, por sua 503
forma em perguntas e respostas, a qual perdurou até o século XX, no contexto
da Revolução russa, ver: BUTTIER, 2015.
18
Trata-se de uma resposta retirada na segunda edição da obra, mas que diz
respeito precisamente às partes contratantes. O autor afirma que o contrato
é feito com a massa dos associados, de uma parte, e cada indivíduo, de outra
parte (SAIGE, 1775, cap. 1).

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determinam em comum a causa e o objetivo da associação, nos termos
de Saige (cf. SAIGE, 1775, p.4), o contrato ocupa o espaço primor-
dial na constituição da sociedade, de modo que qualquer violação a
ele equivaleria à dissolução do corpo político ou a um atentado à von-
tade da Nação do qual todo poder civil é, ainda seguindo o autor, uma
emanação (cf. SAIGE, 1775, p.12). Saige parece repetir o enunciado
do Contrato Social (I, 1), no qual se coloca em questão precisamente a
passagem de um estado de liberdade para um estado de submissão às
leis: “o homem nasce livre, mas se vê acorrentado por toda parte”. Não há
demoras, portanto, para explicar a origem livre dos homens. Trata-se
de um pressuposto da obra, mas cuja complexidade se revela quando
A tentamos compreender a necessária saída de um estado de ausência de
N quaisquer garantias, bem como os meios de se legitimar o assentimento
O voluntário às leis. Compreender a centralidade que a linguagem da von-
V tade aos poucos passa a adquirir é fundamental para iluminar o arranjo
A
de um discurso que associa a vontade à soberania popular.
C Em que medida a defesa de um contrato que vincule todas as partes
I livres do reino contrasta com outras teorias acerca da associação polí-
Ê
N tica? Uma, em especial, qualificada pelo autor como “supersticiosa”, nas
C suas notas, faz o governo civil derivado da vontade de Deus, revestindo
I
A
os chefes da nação de uma autoridade celeste (cf. SAIGE, 1775, p.85),
pela qual eles não devem prestar contas de seus atos e aos quais devem
D
os homens apenas obedecer. Restam poucas dúvidas de que o autor se
A
voltava, com esse passo, às teorias de Charles Loyseau, eminente jurista
P do século XVI, e de Jacques Bossuet. Ambos os autores eram consi-
O
L
derados autoridades acerca das formas legais e princípios morais que
Í amparavam a ordem social tradicional e, portanto, eram as referências
T
I
na defesa da tese real sobre a autoridade política.
C
De acordo com Bossuet, a autoridade real é paterna, sagrada, abso-
A
luta e subordinada à razão (cf. BOSSUET, 1707, L III, art.1). Na versão
.
histórico-religiosa de Bossuet, defende-se que a perenidade da aliança
entre Deus e os homens permitiria aos reis por Ele escolhidos arbitrar
504
com independência as regras do justo e do verdadeiro. Com efeito, a va-
riante religiosa do contrato, apresentada pelo bispo de Meaux, nega que
a autoridade real esteja submetida ao consentimento das Assembleias,
ao afirmar que basta a autoridade dos príncipes, guardiões do interesse
público, para a imposição das leis (“não se quer dizer com isso que a

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autoridade das leis dependa do consentimento e aquiescência dos povos: mas
apenas que o príncipe, aliás, por seu caráter, não tem outro interesse senão
aquele do público [...]”). E ampara a sua explicação em excertos bíblicos,
nos quais se afirma que, assim como Deus reuniu o povo por mediação
do príncipe Moisés, quem transmitiu as leis verdadeiras ao povo, assim
também os reis franceses seriam os depositários da confiança do povo
francês (BOSSUET, 1707: LIII, art.4, prop. VI, p.32-3).
A primeira das propriedades da analogia com o poder paterno,
apresentadas no livro 3 do Politique Tirée des Propres Paroles de l’Écriture
Saintes, é refutada por Saige, pois a autoridade de um homem sobre
outro só poderia existir enquanto um deles não pudesse dispor de sua
própria razão – o que se passaria legitimamente nos núcleos familiares,
mas certamente não nas associações políticas. Nas palavras do advogado
de Bordeaux: “A opinião que enxerga o poder paterno como a fonte do C
governo civil é inteiramente destituída de fundamento; a autoridade dos A
pais é puramente limitada ao tempo da infância” (SAIGE, 1775, p.85). T
Após certa idade e com o desenvolvimento das próprias faculdades, o E
C
indivíduo (o termo é dele) adquire o direito de ser o seu próprio senhor I
e árbitro da sua conduta. Além disso, é um equívoco quanto aos desíg- S
nios de Deus, prossegue o autor, afirmar que o Ser Supremo possa agir M
no mundo moral do mesmo modo como o faz na ordem física. Desse O
modo, ele se dirige contra outra das propriedades fundamentais da ins-
D
tituição monárquica: a sacralidade – contestação fundamental para que,
O
nas décadas seguintes, o rei fujão19, Luís XVI, fosse submetido a julga-
mento como cidadão comum. O engano dos “sistemas supersticiosos”, C
como nomeia Saige, é que ao fazer intervir a vontade de Deus no esta- I
D
belecimento das sociedades revestem “os chefes das nações de uma auto- A
ridade celeste e transformam a Magistratura em uma espécie de sacerdócio” D
(SAIGE, 1775, p.85). Nada mais longe disso do que uma teoria que Ã
O

19
Referência à noite de Varennes, noite de 21 junho de 1791, na qual Luís XVI .
e sua família fugiram do Palácio das Tulherias e foram flagrados em delito
de fuga no povoado de Varennes. Sobre a fuga e as consequências políticas 505
desse evento, ocorridos no período que se estende de 21 de junho e 14 de julho
(respectivamente, o dia seguinte à fuga a Varennes e o dia da entrega dos
relatórios dos comitês da Assembleia), ver o capítulo 5, intutulado “A autoridade
política à sombra de dois corpos” (SOROMENHO NICOLETE, 2017). Além dessa
referência, os primorosos trabalhos são referência na área para compreender a
noite de Varennes: OZOUF, 2009 e TACKETT, 2003.

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sinaliza para uma ordem justificada nas convenções estabelecidas entre
seres iguais, isto é, “dotados dos mesmos poderes físicos e morais” (SAIGE,
1775, p.86). Em outros termos, em oposição a uma ordem natural e
absoluta, Saige afirma que apenas uma ordem convencional é legítima.
De fato, afirmar que o poder civil é a emanação da vontade da
Nação equivale, também no Catecismo de Saige, a minar a crença na
operação exclusiva da “reta razão”, como a base das leis civis, como
defendeu o autor de Politique tirée... (cf. BOSSUET, 1707, pp.31-32).
Quando discorre sobre o caráter da liberdade dos homens, Saige afirma
que cada indivíduo da espécie humana é livre e independente por sua
natureza e conclui que o seu estado apenas pode ser modificado por
A
sua vontade mediante um consentimento. O contrato, portanto, é
N necessário para determinar a causa e o propósito (la cause et le but) da as-
O sociação, isto é, a conservação e o bem-estar dos membros. Diversos ele-
V
mentos são fornecidos como causa do reconhecimento da necessidade
A
de associação: “A fraqueza dos indivíduos, a necessidade que eles têm uns
C dos outros, a opressão dos fracos pelos fortes [...]” (SAIGE, 1775, p.4-5).
I Com efeito, o autor não destina uma parte de suas análises para tratar
Ê
N
das condições hipotéticas de um estado primitivo, como nas chamadas
C teorias contratualistas, mas discorre fundamentalmente sobre os meios
I de estabelecimento desse contrato. O intento nos parece trivial, hoje,
A
mas Saige estava tentando vincular essencialmente a “força” que dirige a
D “máquina política” (o termo é do autor), isto é, a autoridade soberana, a
A
uma vontade. Força, nesse contexto, não é uma espécie de ameaça, mas
P conota a direção e o movimento da sociedade política. Vontade que, por
O
L
sua vez, não deve nunca se afastar do interesse público. Mas se a vontade
Í pode se desviar de seu objetivo inicial, conclui o autor “a segurança seria
T
I
nula para os membros da associação, porque o estado deles seria incerto”
C (SAIGE, 1775, p.5-6). E um estado civil que traz insegurança e incer-
A
teza em relação à vida, à liberdade e aos bens é tomado por um estado
.
ilegítimo e “contrário à constituição do homem” (SAIGE, 1775, p.6).
Como o autor, então, consegue articular a permanência da von-
506
tade que dirige a associação – vontade que não deve se desviar nunca
do propósito de promover o bem público – com o seu caráter inevita-
velmente contingente (porque se trata de uma vontade) e a necessária
segurança que indivíduos devem ter em qualquer associação legítima?
Como uma teoria assim radical da soberania popular se articula com

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uma linguagem constitucional e de preservação das leis fundamentais?
A solução para tal impasse20 parece, de fato, estar fundada no retorno
à distinção rousseauísta entre autoridade executiva e legislativa (cf.
BAKER, 1990, p.144). Saige demonstra convicção bem maior do que
os demais patriotes, quando localiza no “corpo do povo” e, especifica-
mente, nas assembleias gerais o poder legislativo legítimo – esforço que,
para o pensamento político, pode ser lido como o de fundamentar a
soberania popular. Com efeito, se atingida a autoridade legislativa que
pertence à nação (como os golpes do chanceler Maupeou o fizeram, por
exemplo), deve-se admitir explicitamente a revogabilidade de tal ordem
e o retorno ao estado originário.
A motivação dos indivíduos para a instituição do corpo político
e consequente saída de uma situação de insegurança, no raciocínio de
Saige, é de interesse próprio, isto é, para a preservação da vida, da li- C
berdade e propriedade de todos os associados. Além disso, é a natureza A
que concede a cada um o poder absoluto para dispor da própria vida21. T
E
Assim como o era para Rousseau, nos seus princípios do direito polí-
C
tico, reunidos no Contrato Social [1762], também para Saige, a vontade I
S
M
20
É preciso lembrar que as teorias constitucionalistas contemporâneas sustentam O
que a soberania popular é, em ampla medida, uma doutrina negativa ou de
contestação a um poder arbitrário. Tal constatação emerge de um “paradoxo D
do constitucionalismo”, como nomeiam os estudiosos, que diz respeito à O
indeterminação de “povo” (LOUGHLIN; WALKER, 2007). A teoria da soberania
popular é ainda desacreditada por aqueles que a tomam como incompatível C
com a “rule of law” por ser intrinsecamente absolutista (Ver: ELEFTHERIADIS, I
2010, p. 538). A nossa argumentação, mesmo que o trabalho não se justifique D
pelo diálogo com teorias contemporâneas, segue outra tese e busca sustentar A
que tal impasse é ilusório; a soberania popular exerce a função de um princípio D
que é formador e agregativo – e não resposta a uma força. Enquanto tal, trata-
Ã
se de uma teoria constitutiva da autoridade política. (cf. LEE, 2016).
O
21
Para sustentar que o povo não pode jamais alienar um direito que é inerente
a ele, Saige teria uma tradição medieval francesa à sua disposição (sem com .
isso afirmarmos a manutenção da linguagem sem alterações decorrentes das
determinações do tempo específico): a tradição conciliarista desenvolvida 507
por Jean Gerson, na Grande Cisma, e reapropriada de modo mais radical
pelos sorbonistas John Mair e Jacques Almain, no início do século XVI. Sobre
o conciliarismo como um fundamento do constitucionalismo moderno,
ver: SKINNER, 1996, cap.13). Dale Van Kley apresenta o “jansenismo-gallico”
como parte fundamental do constitucionalismo francês. Ver: VAN KLEY, 1979,
pp. 629-666.

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geral tem por objeto o interesse público, portanto, as leis nela ampara-
das são generalizáveis a todo o corpo político:

De onde deriva a tendência necessária da vontade geral à felicidade


de todos? Do amor de si, desse sentimento que a natureza imprime
em cada indivíduo da espécie humana e pelo qual ele tende
necessariamente à própria felicidade; no estado civil, a vontade
dos associados, reunidos por contrato primitivo, forma a vontade
pública (SAIGE, 1775, p.7).

Com efeito, há um ato de consentimento e de criação de uma so-


ciedade política legítima, a partir de um estado de mera agregação origi-
A
nal, onde os homens eram independentes, mas viviam em certo estado
de insegurança. O consentimento, portanto, é a chave dessa passagem
N
de um estado agregativo a um estado político. A ligação constante e
O
V essencial da sociedade política criada com o bem público está na von-
A tade geral, “o desejo comum de todos os membros da sociedade, manifesta
claramente e relativa a um objeto de interesse público” (SAIGE, 1775,
C p.7). Portanto, a vontade geral não é uma suposição individual ante-
I
Ê rior à instituição da própria sociedade política, mas a vontade de um
N corpo específico: o corpo da Nação. A vontade geral tampouco é uma
C
I
transformação da vontade particular, mas ela é certa disposição da von-
A tade dos associados22. Disso decorre que a autoridade soberana não é
D
ligada permanentemente ao interesse geral por nenhuma razão inerente
A à natureza humana, mas tão somente porque o estado que precede o
P
consentimento é precário, monstruoso, absurdo, desumano até, nos ter-
O mos empregados pelo autor, e coloca em perigo cada um dos associados
L (SAIGE, 1775, p. 7).
Í
T Seria preciso indagar por que é que Saige precisou inserir, na se-
I
C
gunda edição do seu Catecismo, uma conclusão bastante direta acerca
A da autoridade soberana, no passo argumentativo que articula o consen-
. timento dos indivíduos e a instituição de uma vontade geral – diferente
da versão do texto de 1775. No excerto da segunda edição, às véspe-
508 ras da Revolução, o advogado sustenta que a autoridade soberana não

22
É preciso assinalar que a tradição escolástica, de acordo com Skinner, já havia
seguido essa matriz explicativa amparada no conceito de consentimento para a
composição da sociedade política, mas não da forma acabada como a vemos
nos séculos XVI e XVII. Ver: SKINNER. 1996, cap.14.

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pode residir legitimamente senão no “corpo do povo” (corps du peuple)
(SAIGE, 1788, p.10)23.
O autor associa, desde a primeira versão, o poder soberano à auto-
ridade legislativa; na segunda edição, ele antecipa tal argumento, asso-
ciando diretamente o poder legislativo ao corpo do povo e, portanto, à
reunião dos estados gerais (nos quais se localiza a autoridade legislativa).
Pode parecer sutil essa introdução, mas ela é, de fato, uma ênfase deli-
berada buscada pelo autor. A exposição dos princípios da autoridade é
marcada, de saída, por uma tese radical da soberania popular. Apenas
nessa assembleia legislativa da nação podem ser aprovadas as leis e taxas
(in generali populi conventu) e a mais importante prerrogativa: a altera-
ção da constituição. Não é, então, nem o rei e tampouco o Parlamento
quem deve convocar tal reunião, mas a própria assembleia:
C
[...] por uma consequência natural, a autoridade soberana pertence A
necessariamente à única vontade que não pode jamais se afastar de T
seu propósito social, isto é, a vontade da nação. Desse modo, por E
razões igualmente aplicáveis a todos os corpos políticos, a nação C
francesa possui o direito mais incontestável ao poder legislativo I
(SAIGE, 1775, pp.16-7). S
M
Na segunda edição do Catéchisme, o autor insere a questão sobre O
a instituição da autoridade soberana, indagando se o poder absoluto
D
conferido a cada um pela natureza deve ser transmitido ou apenas con- O
fiado ao soberano. Na longa resposta desenvolvida, o parlamentar de
Bordeaux afirma que a alienação, seja passageira ou permanente, é con- C
I
trária aos direitos do homem e à natureza do corpo político (SAIGE, D
1788, p.12-16). Se fosse transferido o poder, o corpo político perde- A
ria a sua orientação fundamental, que é aquela da vontade geral. Além D
disso, em tal situação, cada indivíduo perderia o seu direito natural e Ã

sagrado de autoconservação (SAIGE, 1788, p.11). Ora, se a alienação O

é, segundo Saige, ato contrário aos direitos do homem e à natureza do .


corpo político e se a autoridade soberana não pode ser submetida a uma
509
força qualquer (pois a força deforma a soberania), disso se segue que
a soberania cabe apenas ao próprio corpo do povo. Mesmo quando a

23
Nas notas, a referência do autor neste ponto é o inglês J. Harrington, de cuja
obra Oceana Saige extrai diversos excertos.

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autoridade legislativa concede poderes aos magistrados, trata-se de um
poder derivado do povo e, por isso, eles estão subordinados à vontade
pública (SAIGE, 1788, p.115, nota 6).
O argumento não é simples, pois o autor pretende rejeitar a ideia de
uma transferência parcial do poder individual ao soberano e ao mesmo
tempo manter a origem popular da soberania. Com efeito, mediante
a introdução da afirmação, segundo a qual a autoridade soberana re-
side no corpo da nação, Saige associa a teoria da soberania popular à
linguagem constitucionalista, tornando-a uma doutrina de legitimação
da autoridade política. Todavia, o constitucionalismo defendido não se
apresenta nos mesmos moldes com que os parlamentares, por exemplo,
A defenderam a sua autoridade nas Remontrances. Isso porque, quando
N Saige afirma que a vontade geral é absoluta, a constituição também é
O contingente24 e, portanto, dependente dos atos dessa vontade.
V
A
É verdade que no Inauguration de Pharamond, o patriota Morizot
afirma que apenas a nação pode mudar as “condições do contrato”,
C como bem lembra Echevarria (1985, p.78). Entretanto, à diferença de
I Saige, Morizot não acentua o caráter absoluto do direito político. Essa
Ê
N
nos parece ser a razão pela qual Saige é muito enfático, na segunda edi-
C ção da obra, ao afirmar que a sociedade eleva um cidadão à magistratura
I não sob convenções apenas, mas sob verdadeiras “ordens”25. Sobre essa
A
dependência do soberano em relação à vontade da nação, Saige sus-
D tenta nos Fragments: “Sem poder discutir sob quais condições, cabe a ele
A

P
O
24
L Para pensar a contingência, a nossa referência é John Pocock: trata-se de uma
Í dimensão do tempo secular, no qual se estabelece que uma ação depende do
T curso de outras ações no tempo, de modo que é sempre uma ação particular.
I A contingência é o plano histórico que acolhe o imprevisto e do inesperado; é,
C
propriamente dizendo, o terreno da instabilidade (POCOCK, 1975, p.268). Outra
A
referência, em outra matriz do pensamento, mas ainda em franca oposição
. às teorias que supõem as ações como “resultados” previamente calculados e
limitados, é Hannah Arendt. (ARENDT, 1993 [1961]).
25
510 É importante ressaltar que, a despeito de mostrar todas as práticas políticas
historicamente constituídas submetidas aos atos da vontade geral, isso
não significa que Saige desprezasse o parlamento enquanto instituição.
Era necessário mostrar que a autoridade legislativa da Nação estava sendo
usurpada. Baker chama a atenção para o fato de que o parlamento continuava
a exercer um papel político e jurídico, na partilha da autoridade executiva (cf.
BAKER, 1990, p.145).

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cumprir o seu dever de súdito aceitando as funções que lhe são destinadas,
exercendo-as de maneira que lhe é prescrita pela vontade geral. Ele deve
tudo à nação” (SAIGE, 1788, p.39). “Ele deve tudo à nação” é a síntese
do autor para uma longa disputa que visa impedir o rei de atuar com
independência ou de se sentir obrigado a prestar contas de seus atos
políticos apenas a Deus.

A constituição em face ao ato da vontade geral


Bastariam tais raciocínios sobre o estabelecimento do contrato, via
única e convencional que permite tirar os homens do estado de insegu-
rança, e a caracterização da instituição de um corpo político cuja legiti-
midade está na vontade da nação, para evidenciar a legitimidade da ação
dos depositários da ação legislativa (nação) e executiva (magistrados)?
C
É especial o modo como Saige articula em seus argumentos a his- A
tória e o vocabulário moderno dos direitos, implodindo o esquema bi- T
nário que apresenta, de um lado, a história como elemento justificador E
do constitucionalismo antigo (e apenas dele) e, de outro, os direitos C
I
adquiridos pelo contrato como a ruptura total com esse mundo regido S
por códigos antigos. De fato, ele deixa sobrepostos elementos de dis- M
tintas linguagens: são mobilizados os discursos do direito natural (cada O
indivíduo é portador de um direito absoluto conferido pela natureza
à conservação de sua pessoa...) ao lado de discursos históricos como D

“provas da constituição da autoridade” em certos moldes (a exemplo O

do exercício do poder legislativo sob as “três raças reais”, enfatizando as C


narrativas das primeiras assembleias). Nos capítulos seguintes à exposi- I
ção dos princípios do direito público, Saige destaca os elementos cons- D

titucionalistas na própria história da nação para dar provas irrefutáveis A


D
dos princípios por ele defendidos. Nos termos de Saige:
Ã
O
A essas provas gerais e da razão juntam-se as provas positivas
que nós possuímos em nossas constituições primitivas, nas leis .

subsequentes, na história de nossos ancestrais, na tradição e na


crença política dos primeiros séculos de nossa Monarquia (SAIGE, 511

1775, p. 17).

Com efeito, para bem fundamentar o que compreende por “nação


francesa”, Saige volta-se para a formação do povo a partir da linhagem
germânica. Quando esta linhagem é mencionada, a intenção é realçar

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a tradição na qual o poder legislativo reside no corpo dos cidadãos,
mediante uma assembleia que reúne rei e estados26. O modelo são os
atos legislativos, sob os carolíngios, os capitulaires, nos quais as leis são
propostas nas assembleias públicas. Apenas se houver consentimento
são aprovadas as leis (lex fit consensu populi et constitutione Regis), em
oposição à intransigência e aos atos absolutos da autoridade amparada
no poder divino. E o autor acrescenta que, sendo a nação a parte mais
interessada, ela deve predominar sobre qualquer outra vontade. A con-
sequência radical desse raciocínio é que haverá situações em que os es-
tados podem agir sem o consentimento do rei (cf. SAIGE: 1775, p.17).
De acordo com Guillaume de Saige, após o reinado de Carlos
A Magno, quem recolocou o povo em posse do seu direito legislativo, fo-
N ram fixados os limites do poder real dentro dos quais a ação do monarca
O era considerada legítima e, a partir de então, vinculada a atividade legis-
V lativa à reunião de assembleias nacionais: “Sua atividade legítima, então,
A
foi fixada pelo consentimento da nação” (SAIGE, 1775, p.30). Todavia,
após a morte desse grande legislador, a nobreza retomou o controle do
C
I poder legislativo durante todo o período dito feudal até o momento da
Ê emergência das comunas e da restauração dos Estados Gerais. Esse é o
N
paradigma da constituição francesa (não escrita, mas inscrita nos hábi-
C
I tos) e, em razão disso, a essa época seria preciso remontar para conceber
A a extensão da vontade geral na constituição. De fato, nenhuma decisão
D saída da vontade geral teria aumentado ou diminuído os limites dessa
A autoridade legítima, parafraseando o autor (cf. SAIGE, 1775, p.30).
P Com efeito, a partir do recurso à história, o autor faz a passagem para o
O
L
Í 26
Não ignoramos que seja essa uma contenda aberta entre os historiadores
T
acerca das origens da monarquia francesa. A diferença repousa no contraste
I
C entre a versão romanista e a germanista do parlamento. Como os nossos
A objetivos estão associados à compreensão das linguagens políticas da história,
não parece fazer muito sentido aprofundar tal oposição. Apenas a título de
.
exemplo, a obra do jurista François de Paule de La Garde, Traité historique de
la Souveraineté du Roi et des droits. . . (1754), constitui a rejeição do direito do
512 parlamento de deliberar sobre as leis. Esta é a tese do romanista La Garde,
ecoando o padre Daniel e o abade Dubos, o qual sustenta a origem medieval
das assembleias gerais, como simples “corte de justiça”. A consequência
direta desta posição é que ela afasta do parlamento qualquer pretensão de
deliberar sobre questões fundamentais – opondo-se à versão germanista das
assembleias. Sobre esses debates genealógicos que se faziam “históricos”, em
verdadeira batalha ideológica, ver: FUMAROLI; GRELL, 2006.

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elemento político, segundo o qual a autoridade se justifica: a “vontade”.
Notemos o movimento argumentativo do autor, ao recobrar a história
do reino e a autoridade dos antigos reis: “O poder real deve permane-
cer continuamente fixado nos limites que lhe foram assinados sob Carlos
Magno, porque essa limitação se fez por um ato da vontade geral” (SAIGE,
1775, p.31). O argumento se ancora, portanto, nos monumentos his-
tóricos da constituição francesa para neles destacar o ato – absoluto, é
verdade – da vontade. Nesse caso, a história não figura senão para ser
testemunha dos atos da vontade geral27.
Essa consideração do ato da vontade geral sobre o constituído
aponta para outra contestação importante feita por Saige contra as dou-
trinas absolutistas de Bossuet. Ainda no livro IV, quando o autor trata
da natureza da autoridade política e, em particular, da régia, ele não
apenas lança a teoria de que o poder é absoluto, como indica quais
C
deveriam ser os deveres dos súditos para com os magistrados, dada esta A
natureza. Seguindo a injunção de São Paulo, a teoria da obediência de T
Bossuet indica que, uma vez que o poder tem por fonte a autoridade E
divina, todos os homens devem a ele se submeter, sem desobediência. C
I
Qualquer desobediência, mesmo ao mau príncipe poderia ser equiva- S
lente, nestes termos, a uma resistência ao próprio Deus. O contraste M
entre os princípios defendidos na obra de Saige e a teoria absolutista de O
Bossuet torna-se cada vez mais evidente: não apenas a origem da autori-
D
dade política é conferida ao povo, como, em decorrência do direito que
O
é mantido com a nação, mesmo após a instituição da autoridade, esta
pode legitimamente contestar a ordem instituída. O parlamentar de C
Bordeaux afirma: “desse modo, a nação pode criar, destruir e mudar todas I
D
as magistraturas do estado, modificar ou anula-la para formar uma nova
A
[...]” (SAIGE, 1775, p.12).
D
Em pelo menos dois momentos do Catecismo, Guillaume de Saige Ã
sustenta que é necessário recusar obediência aos tiranos (SAIGE: 1775, O
p.12; 1788, p.21) ou negar submissão aos magistrados que falam em .
nome da vontade geral, mas agem sem autoridade (cf. SAIGE, 1775,
p. 41). 513

27
Como lembra Baker, a vontade geral tem força para revogar qualquer ordem: “a
inviolabilidade constitucional dos parlamentos depende, de acordo com Saige,
não da historicidade deles, em si mesmo, mas do sustentado ato da vontade
geral do qual a historicidade deles é apenas testemunho” (BAKER, 1990, p.145).

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Por essa via de resposta, o argumento do autor parece retomar um
debate, já antigo em solo francês, acerca do poder que cabe aos homens,
após a instituição da sociedade política. Com tal afirmação, não esta-
mos desenvolvendo nenhuma linha de continuidade que atravessaria ao
menos dois séculos da história do pensamento político. Estamos ape-
nas sugerindo que havia um repertório especificamente desenvolvido na
história constitucional francesa, mediante o qual Saige poderia ter sus-
tentado a ideia da origem popular do poder. O povo pode muito bem
delegar a sua soberania original, mas permanece de mesma forma o seu
detentor ou o supremo locus da autoridade. Essa ideia foi bastante de-
senvolvida na retomada do direito romano28, na esteira das interpreta-
A ções humanistas pré-modernas da lex Regia, no século XVI (SKINNER,
1996, p.403-ss e LEE, 2016, p.24-ss). Entretanto, é comum ser lem-
N
O
brado apenas que o direito romano ajudou a fundamentar as pretensões
V de direito absoluto da autoridade do imperador, que não era limitado
A pelas leis (legibus solutus). Ora, é a mesma matriz de discurso (ao afir-
mar que a autoridade imperial [imperium] do príncipe remontava ao
C
I
povo, isto é, pertencia originalmente a ele) que também fundamentou
Ê uma doutrina da soberania popular no interior do constitucionalismo
N pré-moderno.
C
I O débito intelectual ou o recurso à tradição, que conferiria au-
A toridade às suas afirmações, parece ficar claro, no segundo Fragment,
D quando Saige nomeia os três defensores da liberdade, Calvino,
A Buchanan e Hotman, os melhores escritores seiscentistas, nos termos
P dele. De acordo com o autor do Catecismo, eles teriam sustentado que
O é em função do contrato que se estabelece a igualdade entre magistra-
L dos e povo, além de um equilíbrio de interesses, ações e poder. É por
Í
T essa razão que o contrato é defendido pelos partidários da liberdade:
I “essa opinião fora em todas as monarquias o nec plus ultrà do espírito
C
A
. 28
Sobre a centralidade do direito romano no desenvolvimento das teorias da
soberania, ver: LEE, 2016, especialmente, cap. 4, pp. 120-157. Há uma diferença
514 entre os especialistas, que não está no escopo deste trabalho discutir, mas cabe
mencioná-la. Tanto Daniel Lee quanto Quentin Skinner afirmam que a matriz
desse argumento é o direito privado romano associado ao constitucionalismo.
Mas existe uma diferença nos argumentos. Para Lee, o emprego do direito
romano, durante a Idade Média ou no período pré-moderno, teria enfatizado
a tradição do dominium, a partir do direito privado, enquanto Skinner afirma o
discurso da lei pública, na tradição do imperium.

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da liberdade. Desenvolvida e disseminada pelos melhores escritores do
século XVI, ela pode ter servido de base à conduta dos patriotas e dos
chefes populares que se ocuparam [...] de colocar limites à autoridade
dos Reis” (SAIGE, 1788, p.37). A referência a George Buchanan, o
mais radical entre os revolucionários calvinistas (SKINNER, 1996,
p.655, nota 27), não parece acidental: ambos buscam afirmar que o
povo (não os indivíduos, mas o membro do corpo social) teria direito a
destronar um príncipe legítimo – questão emergente após as reformas
na Escócia protestante, em 1560, então sob reinado de uma católica,
Mary Stuart. Buchanan não era apenas o ilustre calvinista escocês, autor
de O direito entre os escoceses [1579], mas também fora professor de la-
tim, em Bordeaux. A cidade herdeira intelectual do pensamento radical
escolástico de Buchanan foi a mesma em que Saige ocupou assento no
Parlamento. A coincidência geográfica nada comprova se não soubés-
C
semos que Saige e Buchanan concordavam tanto no que diz respeito à
A
origem não divina das sociedades políticas quanto no que diz respeito T
às implicações dessa formação da sociedade política para a possibilidade E
de limitação e, sobretudo, de contestação da ordem vigente. Além de C
I
Buchanan, Saige associa o argumento a uma tradição reconhecida pelos
S
teóricos da revolução huguenote: François Hotman. Uma parte de seus M
argumentos que pode ser associada a esses autores (e, de fato, Saige os O
nomeia em seu texto) é a defesa da origem eletiva da monarquia, fa-
zendo lembrar que os juramentos do rei feito ao povo possuem poder D

de coação ou os juramentos impõem restrições à vontade do rei. Mas O

as implicações mais radicais do pensamento de Saige parecem estar no C


argumento em favor da autoridade na assembleia dos três estados, pois I
é nesse momento que é desenvolvida uma teoria da soberania popular. D

Como o era em Hotman, o direito de eleição não é um ato único de A


D
soberania (cf. Skinner, 1996, p.582), mas um poder que implica a pos-
Ã
sibilidade de recuperar o poder, destituindo o rei, se preciso for. Esse é
O
o núcleo do que chamamos, no começo de um núcleo de contestação
.
ativa presente no constitucionalismo moderno.
Com efeito, não surpreende que, mediante referências a autorida- 515
des téoricas, a exemplo de Hotman e Buchanan, o recolhimento de
casos na história da monarquia – provas de “antiguidade e solidez de
nossos direitos” (SAIGE, 1788, p.vii) e a postulação da contingência
das constituições, Saige instigue a reação da parte da nação, a substitui-
ção da constituição, destituída dos seus direitos fundamentais por não

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poder concorrer na composição da autoridade. Ideia radical e por isso
banida à época da publicação pelos Parlamento de Paris e Bordeaux,
quando todos pareciam escutar ou os argumentos constitucionalistas
tradicionais (a tese do Parlamento, de modo geral) ou a voz de Bossuet,
porta-voz do poder absoluto real, de acordo com a qual o rei não está
submetido às leis pela aliança estabelecida, mas porque a sua pessoa era
sagrada (BOSSUET, 1707, L III, p.84). Seguir Bossuet era insistir na
trilha da obediência (mesmo ao mau príncipe): “obedeceis a vossos senho-
res, não apenas quando eles são bons e moderados, mas ainda quando eles
são severos e deploráveis” (BOSSUET, 1707, p.263), e censurar a opo-
sição à sua autoridade como “sacrilégio”. Enquanto isso, Saige sugere
A a resistência: “[...] em uma monarquia na qual o poder do Príncipe pesa
continuamente sobre a liberdade do povo, é preciso opor a essa força terrível
N
uma contra-força operante” (SAIGE, 1775, p.109).
O
V
A
Conclusão
C Desde a primeira versão do Catecismo, Saige insistia que o rei,
I
Ê longe de uma natureza elevada distinta, era um comissário do povo
N (cf. SAIGE, 1775, p. 30). Ao afirmar o rei como “a primeira pessoa do
C
I
estado” e não como autoridade independente, as notas radicais de Saige
A foram banidas. Entretanto, os argumentos dele não poderiam mais ser
D
abafados, quando se enterrou de vez a crença segundo a qual o rei es-
A taria acima das leis e governaria sem prestar contas a ninguém dos seus
P
atos (legibus solutus). Nesse sentido, os argumentos do Catecismo ga-
O nharam destaque, quando o discurso da vontade da Nação já estava
L suficientemente disseminado como o único meio de revogar a ordem
Í
T estabelecida e defender a autoridade soberana no corpo do povo29 e,
I em consequência, alterar a forma de governo. Isso ocorria não porque a
C
A
hipótese de uma vontade absoluta tenha sido substituída nos discursos
.
políticos que concorriam na legitimação da autoridade, mas porque o
corpo da Nação se tornava independente e parecia ganhar a disputa,
516
armada no campo simbólico, com o corpo do rei. Melhor seria dizer,

29
Estamos de acordo com Echevarria sobre o fato de não caber falar em rejeição
da monarquia, nesse contexto, mas da soberania da Nação (ECHEVARRIA,
1985, p.73). Esta é, aliás, a razão pela qual utiliza-se o termo “patriotas” para
designar os panfletistas do período.

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é a vontade desse corpo, a vontade da nação, que se apresenta como
potência para a aprovação de leis e impostos, da sucessão do trono e, se
fosse preciso, da alteração da sua própria Constituição, como Saige não
deixava de afirmar.
Podemos sumarizar, em conclusão, os argumentos centrais deste
trabalho bem como tecer breves considerações acerca do método inter-
pretativo empregado. Tratamos o tema da legitimidade da autoridade
ladeado pelo pacto ou momento político da fundação. O fato é que a
ação original na criação do poder, “constituinte”, derivada da vontade
do povo, pode ser razoavelmente interpretada como uma ação que não
conhece limites e, portanto, tão arbitrária quanto certos atos do rei.
Como afirmamos, tal compreensão tem sido apresentada nas teorias
constitucionalistas contemporâneas como um impasse ou um paradoxo
(ver nota 19). Segundo esses autores, uma teoria que pretende definir C
um governo de leis (para impedir o arbítrio de um homem) não poderia A
considerar legítimos os atos absolutos. A nossa interpretação é a de que T
E
o autor do Catecismo do cidadão oferece razões para se pensar a limitação
C
da autoridade, mediante a articulação do princípio da eleição nacional I
com o discurso histórico das Leis fundamentais. Leituras como esta têm S

sido deixadas de lado pelos teóricos constitucionalistas mencionados, M

uma vez que eles interpretam a linguagem da soberania popular como O

mera resistência ao exercício do poder arbitrário. Os desenvolvimentos D


deste trabalho, todavia, nos indicam que as condições do exercício da O
autoridade não se restringem ao conjunto das instituições que impõem
limites ao poder. Com efeito, os costumes, as Leis fundamentais, o ju- C
I
ramento do rei ao povo, o consentimento e as reciprocidades podem D
ser interpretadas como regulações e limites da autoridade pública. O A
avanço de Saige, como tentamos demonstrar, é que ele foi o mais claro D
dos autores ao tratar a soberania popular em consonância com o consti- Ã

tucionalismo como uma linguagem de legitimação da autoridade. O

.
Com tal argumentação, sustentamos uma tese adicional, no campo
da teoria política, segundo a qual a soberania popular, antes de se de-
517
senvolver como uma doutrina de oposição ao absolutismo, pode ser
interpretada como uma teoria de legitimação da autoridade. Se isso é
ainda insuficiente para dissolver a sombra do impasse que o caráter ili-
mitado da vontade e do direito apresentam na obra Catecismo do cida-
dão, o êxito do argumento aqui sustentado está em ter lançado luz sobre

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elementos que constituem a legitimidade da autoridade, mas que, pela
conceito atual estar tão longe desse sentido e estar fortemente implicado
na ideia de força, sequer compreendemos a coerência de elementos que
estavam no cerne da discussão no contexto específico analisado: o jura-
mento, um sistema de obrigações recíprocas, o firmamento de pactos,
entre outros elementos que compõem a legitimidade da autoridade30.
Com efeito, a via histórica sustentada nos leva a recusar certo tipo de
dogmatismo, segundo o qual apenas os conceitos “os mais evoluídos”
do presente seriam coerentes.
Além disso, o texto tentou evidenciar uma metamorfose na própria
analogia do corpo político e da ordem política que deixa de apresentar
A
o seu conteúdo pré-moderno: o corpo do rei – como pessoa sagrada
N – não representa mais o que é público (cf. MANENT, 2001, p.224).
O A analogia permite ainda pensar o corpo do rei dando continuidade
V
à monarquia (pela geração de descendentes) e a cabeça do rei inte-
A
grando todos os membros. Cada vez mais, os argumentos empregados
C
nos panfletos apontarão uma origem independente num estado natu-
I ral originário, no qual, por convenção, tem origem o corpo político.
Ê
A vontade desse corpo é representada desencarnada fora do corpo do
N
C rei – e é Saige quem vai apontá-la encarnada no corpo Legislativo da
I Assembleia. Melhor dizendo, o princípio de unidade conservado em
A
um corpo visível inclina-se à ideia de representação (de uma vontade
D geral, que guarda o interesse público e conserva o poder). Durante os
A
debates constitucionais de 1791 e, sobretudo, no momento em que a
P família real é condenada à morte declara-se a completa independência
O desse “corpo da nação” em relação ao monarca. Será hora, então, de
L
Í propor a alteração do regime monárquico. Será o momento, então, do
T ensaio republicano, o regime defendido por Guillaume de Saige em seus
I
C textos de juventude31.
A
.
30
Não estamos acusando essa transformação como algo negativo. O fato é que
518
nem poderia ser diferente, porque o registro epistêmico muda com o tempo
e estamos necessariamente vinculadas ao nosso vocabulário normativo. O
que talvez tenha de ser evitado é a sanha de mostrar essas tradições como
incoerentes ou imperfeitas simplesmente porque não são as nossas ou as
vigentes.
31
Não está no escopo deste trabalho lidar com a obra Caton. Ou entretien sur la
liberté et les vertus politiques [1770], obra na qual a alternativa constitucional de

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Por fim, a apreciação do vocabulário político geral da época (bem
como das convenções linguísticas e das questões então apresentadas) não
é uma contribuição deste trabalho para resoluções das questões políticas
da sociedade do presente – aliás, tampouco afirmamos que a história do
pensamento político é relevante somente se algum efeito tiver sobre a
política contemporânea. Os textos são elementos de um discurso mais
amplo, de acordo com as contingências e a possibilidade de uma época.
Se elas podem nos dizer algo, ensinam que 1) existem questões acerca
da vida coletiva muito diversas das nossas; o fato de reconhecer essa
distância não é assinalar com condescendência a alteridade, mas é lançar
a possibilidade de tomar essa distância como conhecimento do nosso
próprio contexto, do próprio tempo; 2) as questões do panfleto ana-
lisado (e as demais brochuras do contexto) não atravessam o “tempo”,
isto é, são questões de um contexto específico – e não as nossas – para C
as quais homens situados nessas sociedades igualmente determinadas e A
variadas forneceram respostas (cf. SPITZ, 2014, p.373). Lido nesse sen- T
E
tido, o trabalho mostra o quanto os historiadores das ideias estão pre-
C
sos ao presente, mesmo que as suas referências estejam em um passado I
muito longínquo. Os críticos desses historiadores poderiam ler nisso a S
contradição do método contextualista, tal como defendido por Skinner M

e Pocock. Além disso, esses críticos continuariam a afirmar que o es- O

forço dos historiadores das ideias de reunir o conjunto de produções do D


pensamento político do passado não revela senão o caráter “antiquarista O
acadêmico” de uma tal abordagem, isto é, o métier do homem inutil-
C
mente debruçado nos domínios das linguagens do passado. Todavia,
I
olhando de outro modo, os ditos historiadores de Cambridge estariam D
certos por terem afirmado que o interesse genuíno no passado não os A
torna simples diletantes. Enquanto a política ainda nos colocar questões D

– ainda que a questão nunca possa ser a mesma do passado – o ofício Ã


O
que se faz no cruzamento da teoria política e da história jamais poderá
ser reduzido a mera curadoria na galeria dos textos do passado. .

519

Saige é deliberadamente republicana.

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L
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I
C
A
.

524

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PARTE V: TEORIA POLÍTICA
CONTEMPORÂNEA

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San Romanelli Assumpção

Professora do IESP-UERJ e coordenadora de


seu Programa de Pós-Graduação em Ciência
Política, possui bacharelado em Ciências
Sociais pela FFLCH/USP (2005), mestrado
(2008) e doutorado (2012) em Ciência Política,
com ênfase em teoria política contemporânea,
pelo DCP/FFLCH/USP.

Atuo em pesquisas, docência, textos e


trabalhos políticos construídos a partir de
uma perspectiva normativa liberal igualitária,
cosmopolita e feminista, dentro das áreas
de teorias da justiça social, da justiça global,
democracia, legitimidade política, tolerância,
direitos humanos e justiça de transição.

O capítulo aqui apresentado reproduz ideias que são parte da tese de doutoramento
defendida na USP, que desenvolve a defesa de uma teoria feminista e cosmopolita da
justiça global. Foi publicado inicialmente no Dossiê Família da Revista Acervo 30, de
2017.

De 2014 a 2018, fui pós-doutoranda PNPD/CAPES do IESP-UERJ. Sou colaboradora do


Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985) – Memórias Reveladas
desde 2014, nos temas de repressão política, direitos humanos e justiça de transição.
Trabalhei como assessora da Comissão Nacional da Verdade nos anos de 2013 e 2014.

Desde 2017, sou membro do grupo de pesquisadoras que criou a Rede Fluminense
de Núcleos de Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Feminismo em Ciências Sociais
(RedeGen), da qual passei a coordenadora em 2020.

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FAMÍLIA, LIBERDADES BÁSICAS E DIREITO DE
SAÍDA: QUESTÃO DE JUSTIÇA, TOLERÂNCIA E
DIREITOS HUMANOS1*

San Romanelli Assumpção

“Sempre que há uma fronteira, há dois tipos de criaturas caminhando sobre


a terra de Alá: os poderosos, de um lado, e, do outro, os sem poder.”
Perguntei a Mina como eu poderia saber de que lado me situava. Sua
resposta foi rápida: “se você não conseguir sair, está do lado dos sem poder.”
Sonhos de transgressão. Minha vida de menina num harém.
Fatima Mernissi

If the so-called private sphere is alleged to be a space exempt


from justice, then there is no such thing.
The Idea of Public Reason Revisited.
John Rawls

Introdução à questão de gênero e família na teoria


política normativa, por meio de exemplos factuais
Não há país no qual a construção social do gênero e das relações
de gênero não resulte em diferenças no acesso a direitos e liberdades
civis, políticos, socioeconômicos e culturais. Diferenças estas que vão
de desigualdades e restrições de liberdade comumente consideradas
menos agressivas – como diferenças no acesso à educação escolar por
meninos e meninas – a violações graves como a violência doméstica e o

1 *
Esse capítulo foi publicado originalmente em Acervo: Revista do Arquivo Nacional,
v. 30, n.1, pp. 209-222, 2017. Agradecemos aos editores a autorização para
publicação nessa coletânea.

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femicídio2. Sendo que as desigualdades de gênero consideradas menos
agressivas, como as diferenças de salário e a divisão sexual do trabalho
doméstico, impedem mulheres de saírem de situações de opressão que
resultam em experiências trágicas, refletidas no alto número de violên-
cias e mortes causadas por construções sociais e culturais dos papéis
de gênero, nas quais as mulheres são simultaneamente conformadas e
sujeitos ativos.
Estudos da Anistia Internacional (Amnesty International, 2005) e
da Organização Mundial de Saúde (WHO, 2002; 2005; 2013) mos-
tram que, em todo o mundo, mulheres sofrem cotidianamente vio-
lência física e sexual e agressões não-físicas orientadas por questões de
A
gênero; os agressores são seus parceiros, suas famílias, vizinhos e desco-
N nhecidos. Estas agressões não causam apenas sofrimento físico e emo-
O
cional imediato, possuindo profundo impacto sobre as mais diversas
V
A dimensões da vida das mulheres e suas crianças ao longo de toda a sua
existência, afetando sua saúde de modo global, seu bem-estar psicoló-
C gico, sua inserção social e econômica, a segurança de suas famílias e de
I
Ê
suas comunidades.
N Este problema de desigualdade e violação de liberdades é construído
C
I
e perpetuado social e culturalmente e faz parte da própria construção
A do gênero como a “organização social da relação entre os sexos” (Scott,
D 1986, p. 1053), ou, mais especificamente, como a “institucionalização
A da diferença sexual” (Okin, 1989, p. 6).
P Como aponta Amartya Sen,
O
L
Í A tolerância à desigualdade de gênero é intimamente relacionada
T a noções de legitimidade e correção. No comportamento familiar,
I desigualdades entre mulheres e homens (e entre meninas e
C
meninos), são frequentemente aceitas como “naturais” ou
A
“apropriadas” (mesmo quando, tipicamente, não são explicitamente
.
discutidas). Muitas vezes, as decisões operacionais relativas a essas
desigualdades (como prover mais cuidados de saúde e atenção
528

2
Feminicídio ou femicídio são termos para designar os assassinatos de mulheres
ocorridos de modo que a morte possa ser associada ao sexismo. Atribui-se
o surgimento do termo a Diana Russell, que o utilizou durante o “Tribunal
Internacional de Crimes contra Mulheres” em Bruxelas em 1976.

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à nutrição dos meninos frente a das meninas) são tomadas e
executadas por meio da agência das próprias mulheres. A percepção
F
da justiça dessas desigualdades e a ausência de qualquer senso
A
de profunda injustiça exercem papel fundamental na operação e
M
sobrevivência desses arranjos (1995, p. 260, tradução nossa)
Í
L
Este caráter social e cultural do gênero e suas desigualdades é ema- I
ranhado por regras e práticas expressas em leis e em políticas estatais A
,
que desfavorecem as mulheres. Está em legislações trabalhistas em que
as mulheres se saem desfavorecidas pela gravidez e pela divisão sexual L
I
do trabalho doméstico, que as torna mais vulneráveis economicamente B
e menos aptas a sair de situações familiares opressivas; assim como na E
atuação da polícia e do Judiciário, que desfavorecem as mulheres ao se R
D
orientarem por concepções sociais do dever ser do comportamento fe-
A
minino e da honra familiar. Há países em que isso se expressa explicita-
D
mente na própria lei, especialmente no Direito de Família, que restringe E
o direito das mulheres de ir e vir, de expressão, de propriedade e de S
exercício profissional – que pode depender da aprovação de maridos, ir- B
mãos e pais – ou que atenua as penas de familiares homens que agridem Á
e até mesmo matam mulheres por questões de honra (sobre a relação S
I
entre desigualdade de gênero e Direito de Família e Direito Civil, vide
C
Shachar, 1998; 2001). A
Este entrelaçamento de construções culturais e sociais com práti- S

cas e legislações estatais torna o problema de gênero, simultaneamente, E


uma questão de discriminação social e de injustiça política-institucio-
D
nal. Discriminação social, porque ubiquamente praticada nas intera-
I
ções entre todas as pessoas morais3 socialmente concebíveis, sejam R
atores individuais ou coletivos, para além do Estado e das instituições E
I
formais. Injustiça política e institucional, porque impressa nas institui- T
ções e arranjos estatais. Esta concomitância é válida para a realidade da O
construção da desigualdade de gênero em todos os países e faz parte da .
força descritiva do slogan feminista “o pessoal é político”.
529

3
Utilizo aqui o termo “pessoas morais” do modo como Georg Cavallar o utiliza
a partir de Kant, como equivalente a “pessoas jurídicas” e “sujeitos de direitos”,
podendo ser indivíduos, associações, comunidades, empresas, igrejas, Estados
etc. (Cavallar, 1997).

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Outro entrelaçamento importante ocorre entre as violações à in-
tegridade física e psicológica das mulheres e as possibilidades socioe-
conômicas e culturais das mulheres alterarem situações de opressão de
gênero ou saírem delas (tanto no âmbito familiar quanto no profissio-
nal). Necessidades socioeconômicas das mulheres e seus filhos fazem
com que, frequentemente, mulheres se submetam a violações e adversi-
dades. A saída feminina de uma situação de opressão de gênero é difícil
em realidades de relativa facilidade de sobrevivência econômica, devido
a inúmeros fatores de ordem emocional e cultural, e é ainda mais difícil
quando exercer a liberdade de saída inclui profunda pauperização para
as mulheres e seus filhos ou até mesmo a separação de mães e filhos –
A pensemos no que podem significar a separação e o divórcio para uma
N
mulher sueca em comparação com uma brasileira, israelense, indiana
O ou saudita4, por exemplo.
V
A gravidade da dificuldade do direito de saída feminino5 fica patente
A
no fato de que, segundo a Organização Mundial de Saúde, em todo o
C mundo, o fator que mais aumenta a possibilidade de uma mulher sofrer
I violência física e sexual é viver com um parceiro homem (WHO, 2002,
Ê
N
p. 157). Sendo que, do total de mulheres assassinadas, de 40 a 70% –
C variando conforme o país – são mortas por homens com quem viviam
I na época do assassinato ou viveram em uma época anterior (WHO,
A
2002, p. 93). Um relatório preparado pela Anistia Internacional (2005,
D p. 5) cita artigo de Ramonet (2004) segundo o qual,
A

P
O
L
4
Í Novamente, para aprofundamento no entendimento comparado das relações
T entre desigualdade de gênero e Direito de Família, ver Shachar, 1998 e 2001.
I 5
C
Neste capítulo, o conceito de saída é retirado de Hirschman (1973), referindo-se
A à capacidade de se retirar de uma determinada situação. Como o nosso tema
é, especificamente, o direito de saída feminino, trata-se especificamente do
.
divórcio (quando a mulher está em um casamento em que se sente oprimida
ou violada), do rompimento com a família ou com grupo tradicional (quando
530 comunidades, pais e irmãos exigem das mulheres comportamentos e ações
que estas consideram opressivos ou violadores, como um casamento forçado
ou a mutilação genital feminina), da apostasia (caso das mulheres que se
consideram oprimidas ou violadas por regras religiosas) e direito ao refúgio
(caso, por exemplo, das refugiadas que fogem de conflitos em que o estupro
é arma de guerra ou butim, ou de refugiadas que fogem de seus países para
evitar casamento forçado ou mutilação genital).

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Para mulheres entre 16 e 44 anos, violência doméstica é a principal
causa de injúria e morte, sendo mais letal do que acidentes
F
automobilísticos e câncer. Entre 25% e 50% das mulheres são vítimas
A
de violência doméstica. Em Portugal, 52,8% das mulheres dizem
M
que foram violentamente tratadas por seus maridos e parceiros.
Í
Na Alemanha, quase 300 mulheres por ano – ou três a cada quatro
L
dias – são mortas por homens com quem viviam. No Reino Unido, I
uma mulher morre em circunstâncias similares a cada três dias. Na A
Espanha, uma a cada quarto dias. Na França, seis mulheres morrem ,
dessa forma por mês: 33% são esfaqueadas, 33% por tiros, 20%
L
estranguladas e 10% espancadas. (tradução nossa) I
B
O mesmo relatório cita que, na África do Sul, uma mulher é as- E
sassinada por um parceiro íntimo a cada seis horas, numa média de R

28 mortes por semana; e 50% das mulheres sul-africanas assassinadas D


A
são mortas por homens com quem tiveram relação íntima em algum
D
momento da vida (Matthews et al, 2004, apud International Amnesty, E
2005, p. 23). Este relatório também afirma que, segundo dados da S
Human Rights Watch, na Jordânia, pelo menos 17 mulheres foram mor-
B
tas em assassinatos de honra6 em 2003, 22 em 2002 e 19 em 2001 Á
(International Amnesty, 2005, p. 23). E o Estado indiano, através de S
seu National Crime Records Bureau, reporta que, em 2010, houve ao I
C
menos 8391 casos de dowry death ou dowry murder, ou seja, a cada no- A
venta minutos uma mulher foi assassinada pela família de seu marido, S
por esta considerar seu dote inferior ao desejável.7
E
Passando ao caso brasileiro, Rosana Heringer, Coordenadora do
Programa de Direitos da Mulher da Action Aid no Brasil, afirma que, D
I
neste país, “a cada 16 segundos uma mulher é agredida por seu compa- R
nheiro e 70% das mulheres assassinadas foram vítimas de seus próprios E
maridos”.8 Segundo pesquisa do Instituto Zangari a partir de dados do I
T
O

.
6
Assassinatos motivados por defesa da honra masculina (de maridos, pais,
irmãos e demais homens da família) e da honra da família, entendida como
531
honra relativa, principalmente, aos homens da família, à religião e à tradição
(vide Wikan, 2010).
7
Ver <http://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/asia/india/9108642/
Indian-dowry-deaths-on-the-rise.html>. Acesso em: setembro de 2012.
8
Ver <http://www.actionaid.org.br/Portals/0/Releases/DireitoMulheres/
Mulheres_2006.pdf>.

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Sistema Único de Saúde (SUS), quase 40% dos assassinatos de mulhe-
res no Brasil ocorre em suas casas.9 Informações como estas mostram
que a realidade brasileira da desigualdade e violência de gênero guarda
semelhanças com a dos demais países.
Do ponto de vista da teoria política normativa, esses dados mostram:
1. que gênero conforma indelevelmente o exercício de direitos
e liberdades, as possibilidades de vida acessíveis a mulheres e
homens e o bem-estar pessoal, o que faz com que seja necessá-
rio refletir sobre a relação entre gênero e categorias centrais da
teoria política como justiça, democracia, tolerância, direitos
A humanos, igualdade, liberdade, autonomia, bem, esfera pú-
blica e esfera privada10;
N
O 2. que gênero é uma construção social que faz parte igualmente
V do privado e do público, sendo empreendida pela família, re-
A
ligião, tradição, mercado, Estado etc.;
C 3. que a centralidade da família na construção das violações ge-
I nerificadas – em especial, vimos violações da integridade física
Ê
N que podem ser qualificadas como graves violações de direi-
C tos humanos11 – torna necessário, caso acreditemos que o fato
I
A
de ser mulher não deve tornar uma vida mais vulnerável, que
sejam repensadas, especificamente, as relações entre família,
D
A
direitos humanos, tolerância e justiça.
Passemos a isso.
P
O
L
Í
T
I
C
A
.
9
Ver <http://www.sangari.com/mapadaviolencia/#mulheres e http://www.
sangari.com/mapadaviolencia/pdf2011/homicidio_mulheres.pdf>.
532
10
Essa necessidade teórica fica evidenciada no fato de que teóricas feministas
sistematicamente empreenderam essa reflexão, nas mais diversas vertentes
teóricas feministas, o que pode ser verificado, entre outros, em Tong, 2014;
Okin, 1989; MacKinnon, 1989; MacKinnon, 1987.
11
São qualificadas como “graves violações de direitos humanos” aquelas que
incidem sobre a integridade física.

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Gênero e família: questão de direitos humanos? de
tolerância? de justiça? F
A
Como mostra Susan Okin (1989), a filosofia política considerou M
por séculos que a família era assunto privado e íntimo, sobre o qual o Í
Estado não deveria interferir, além de ser uma esfera em que a virtude L
I
da justiça seria desnecessária, por ser locus de uma virtude superior à jus- A
tiça, o amor. Ainda no século XX, autores como Robert Nozick (1974) ,
e Michael Sandel (2008) afirmaram que a família não deveria sofrer L
interferência pública e, Sandel (2008), defendeu ainda ser a família uma I
B
esfera de virtudes morais – como amor, altruísmo e cuidado – que dis-
E
pensariam a justiça. R
No entanto, como vimos na seção anterior, a principal forma de D

violência que permeia e constrói a vida e a morte de mulheres ocorre na A


D
família, além da divisão sexual do trabalho intrafamiliar e no mercado
E
sobrecarregar e pauperizar mulheres e crianças. Isso é parte seminal do S
que está implícito na multiplicidade de significados teóricos advindos
B
do slogan “o pessoal é político” e em toda a crítica feminista da dicoto-
Á
mia entre esfera pública e privada12, dicotomia que pressupõe e defende S
tradicionalmente que a esfera pública é a que importa para a razão pú- I
C
blica e para a moralidade política. O que justificaria isso, se a família é
A
uma esfera em que violações não são raras? S
Se o axioma da igualdade humana fundamental – segundo o qual
E
todas as pessoas devem possuir igual liberdade de seguir suas concep-
ções de bem e boa-vida – e o individualismo ético – segundo o qual D
I
todas as pessoas possuem valor intrínseco e são unidades últimas de R
preocupação moral, não devendo ser instrumentalizadas – forem pon- E
tos de partida normativos e fundantes de nossas reflexões sobre direitos I
T
humanos, tolerância e justiça, devemos assumir O

533

12
Cara à grande parte do liberalismo, do comunitarismo, do republicanismo e
das teorias democráticas deliberacionistas (vide Okin, 1989, a respeito das três
primeiras; e Fraser, 1989, sobre as últimas).

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(A) que mulheres e homens devem ser igualmente respeita-
dos;
(B) que é “moralmente arbitrário”13 que mulheres possuam me-
nos acesso a direitos e bem-estar pelo simples fato de serem
mulheres;
(C) que se dimensões da vida social comumente entendidas como
privadas dificultam o acesso das mulheres a direitos e bem-es-
tar e diminuem sua fruição de integridade física, estas dimen-
sões também devem ser regidas pela justiça, pela tolerância e
pelos direitos humanos.
A

N Daí não devermos simplesmente pressupor que coerções públicas


O sejam objeto de preocupação da teoria política e, coerções privadas e
V
A
íntimas, não. Como defende Frank Michelman – a partir de Catherine
MacKinnon (1989 e 1987)14 – poderes públicos legais e estatais não são
C os únicos que incidem sobre liberdades e não podemos simplesmente
I pressupor, sem justificações, que as subversões da liberdade cometidas
Ê
N
pelo poder público são mais perigosas para a liberdade e igual proteção
C pela lei do que as subversões cometidas pelos poderes e interesses pri-
I
A
vados (Michelman, 1988-1989). Assim, afirmo que, como hierarquias,
poderes e interesses intrafamiliares criam, acentuam e reproduzem de-
D
sigualdades, coerções e violações, essas hierarquias, poderes e interesses
A
são questão de direitos humanos, tolerância e justiça, mesmo que isso
P
tenha sido obliterado pelo cânone da teoria política até o advento do
O
L
feminismo e mesmo hoje não seja devidamente tratado por teorias main
Í stream da moralidade política.
T
I
C
A 13
Termo rawlsiano. Algo é arbitrário do ponto de vista moral quando é fruto
. dos acasos da distribuição natural de qualidades e de contingências sociais.
Isto é, as arbitrariedades morais geram vantagens que não foram merecidas,
534
porque são fruto dessa distribuição natural de qualidades e das contingências
sociais. Assim, é moralmente arbitrário que alguém consiga um maior acesso
a vantagens sociais porque nasceu em uma determinada classe, etnia, gênero
ou com determinadas características físicas ou talentos (Rawls, 2008, 2011,
2003).
14
Mais especificamente, a partir de reflexões sobre as defesas por parte desta
autora de que a pornografia seja proibida.

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Dado o curto espaço que possuímos, consideremos que
(i) “cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça”, F
A
que não pode ser desconsiderada em função de nenhum bem
M
ou objetivo (Rawls, 2008, p. 4); e que a justiça diz respeito à
Í
esfera de igualdade equitativa que a sociedade e o Estado de- L
I
vem a cada pessoa;
A
(ii) que a tolerância é o âmbito da justiça relativo à convivência ,

pacífica e livre entre pessoas e grupos divididos em uma multi- L


plicidade de crenças sobre o bem e a felicidade, no “pluralismo I
B
moral”15 que é próprio das sociedades contemporâneas; E
(iii) que direitos humanos são minimalistamente entendidos como R

direitos básicos, isto é, direitos indispensáveis ao exercício de D


A
quaisquer outros direitos e exigíveis de quaisquer Estados e
D
sociedades, incluindo segurança pessoal (integridade pessoal), E
liberdades civis (como liberdade de consciência, de ir e vir, de S
associação e de expressão) e subsistência (socioeconômica)16. B
Á
S
E que (i), (ii) e (iii) existem em dois planos: (a) o das “virtudes
I
sociais” e “políticas informais” – no sentido de que são socialmente pra- C
ticadas nas interações entre as pessoas morais – e (b) o das “virtudes A
políticas” e “políticas formais” – impressas nas instituições e arranjos S

políticos17. Sendo que ambos os planos (a) e (b) constroem relações de E


gênero.
D
I
R
15
O conceito de “pluralismo moral”, segundo o qual há diversidade de concepções E
de bem nas diversas sociedades, é próprio de toda a tradição do “liberalismo I
político” e pode ser verificado em Rawls (2011) e Larmore (1999). T
16 O
Baseio-me aqui, um pouco livremente, na concepção de direitos humanos
de Henry Shue (1985), que inclui estes direitos e esta concepção de “direitos .
básicos” e que foi incorporada posteriormente por Rawls em sua teoria de
Direito dos Povos (Rawls, 2001). 535
17
Tomei de empréstimo os termos “virtude social” e “virtude política” de Galeotti
(1993, p. 588) e “política informal” e “política formal” de Scanlon (2003, p. 190),
bem como os significados que estes autores atribuem a eles. A diferença, é que
Galeotti e Scanlon criam estes conceitos para pensar apenas a tolerância e eu
os empreguei ampliadamente para lidar com questões de justiça e direitos
humanos.

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Este capítulo explorará a questão da família – por ser produtora
de desigualdades e violações generificadas – como problema de justiça,
tolerância e direitos humanos entendidos segundo (i), (ii) e (iii) e nas
dimensões institucional e social compreendidas conforme definido em
(a) e (b).

Gênero e justiça local e social


As teorias normativas da justiça social, ao longo do século XX, con-
sideraram, de modo geral, que o Estado, com suas leis, suas políticas
públicas e ordenamentos democráticos, é escopo de justiça e deve ser
A regido por princípios de justiça. No entanto, a mesma concordância
N deixa de existir quando se pensa a relação entre a justiça e as dimensões
O da vida social usualmente interpretadas como privadas, como o mer-
V cado, as empresas, as religiões e as famílias, aos quais, frequentemente,
A
os princípios de justiça não são considerados aplicáveis18.
C Um rol específico de teorias da justiça considera que a separação
I
Ê
entre as esferas pública e privada e a restrição da justiça às questões
N públicas não devem ser normativamente afirmadas e que diversas ins-
C tituições usualmente entendidas como privadas são objeto de preocu-
I
A pações de justiça: os liberalismos igualitários. Conforme explica Álvaro
de Vita,
D
A
Para o liberalismo igualitário, não basta, para que cada cidadão
P
disponha das condições que lhe permitem agir a partir de suas
O
próprias concepções sobre o que é valioso na vida, que seja
L
Í
T
I 18
C
Repetindo, Nozick (1974) é um autor que considera que o mercado e a família
A não devem ser restringidos por padrões de justiça. Ainda repetindo, Sandel
(2008) é um autor que considera que a família não deve ser regida por princípios
.
de justiça. E, acrescento, Michael Walzer, com sua teoria das esferas da justiça,
considera que esferas distintas são regidas por princípios distintos (2983) e que a
536 moralidade política de sociedades diversas é idealmente diversa (Walzer, 2006,
1997, 1993a, 1993b), chegando a afirmar explicitamente que a desigualdade de
gênero e a ideia de inferioridade e modéstia feminina são conforme a tolerância
e a justiça, se forem afirmadas pelas próprias mulheres dentro do contexto de
uma comunidade de significados compartilhados (1993b). Susan Okin discute
estes e outros aspectos anti-feministas dos pensamentos de Nozick, Sandel e
Walzer em Justice, gender, and the family (Okin, 1989).

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institucionalmente garantida uma esfera de liberdade negativa;
ademais, é preciso que os arranjos institucionais básicos da
F
sociedade propiciem a cada cidadão os meios efetivos para fazê-lo,
A
incluindo um quinhão equitativo de oportunidades sociais, renda e
M
riqueza (Vita, 2008, p. 9).
Í
L
Uma das teorias fundadoras do liberalismo igualitário, a justiça I
A
rawlsiana, nas palavras de Nagel, é um desenvolvimento do liberalismo ,
que introduziu teoricamente o reconhecimento da importância das es-
L
truturas sociais e econômicas, em pé de igualdade com as instituições I
políticas e legais, como conformadoras da vida das pessoas, com gradual B
E
aceitação da responsabilidade social por seus efeitos. Quando a mesma
R
atenção moral foi voltada para aquelas, como antes foram focadas em D
instituições estritamente políticas e nos usos do poder político, o resul- A
tado foi uma expansão do ideal social liberal e uma concepção ampliada D
da justiça. De fato, o uso dos termos “justo” e “injusto” para caracterizar E
S
não apenas ações individuais e leis, mas também sociedades inteiras e
sistemas sociais e econômicos, é uma manifestação relativamente re- B
cente dessa mudança de olhar. Até o momento, o liberalismo de Rawls Á
S
é a mais completa realização que temos do ideal de justiça de uma socie- I
dade tomada como um todo, em que todas as instituições que são parte C
da estrutura básica da sociedade devem ser acessadas por um padrão A
S
comum. (Nagel, 2002, p 63. Tradução nossa)
Por trazer um conceito de liberdades efetivas e não apenas formais E

e por considerar a justiça distributiva/econômica parte fundamental da D


justiça social – e não apenas liberdades civis e políticas – o liberalismo I
igualitário acessa a antes considerada esfera privada como parte do ob- R
E
jeto da justiça. Liberalismos igualitários distintos o fazem de diferentes I
maneiras. Por questão de espaço, trataremos aqui apenas do liberalismo T
igualitário rawlsiano, que não entende separação entre público e pri- O

vado de modo canônico, como fica patente por uma das epígrafes deste .
capítulo.
537
O “objeto da justiça” rawlsiana, isto é, aquilo sobre o qual são
aplicados os princípios de justiça, é a “estrutura básica da sociedade”,
formada pelas principais instituições políticas, jurídicas, econômicas e
sociais que dão as possibilidades de vida acessíveis a cada posição social,
distribuindo os encargos e benefícios da cooperação social. A estrutura

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básica é o objeto da justiça por ser coercitiva e inescapável: a não ser que
emigremos, entramos nela ao nascer e saímos ao morrer (Rawls, 2008,
2011 e 2003), diferentemente das associações e comunidades de que
participamos, frente às quais temos direito de saída (Rawls, 2003).
O conceito de estrutura básica permite superar as deficiências anti-
-feministas da dicotomia público-privado, no entanto, como mostra
Susan Okin (1989), Rawls é ambíguo sobre a inclusão ou não da fa-
mília como instituição parte da estrutura básica: há trechos de sua obra
em que ela é, outros, em que não é. Particularmente em seu livro Justiça
como equidade, Rawls coloca a família como associação ou comunidade
do qual as pessoas possuem direito de saída, não sendo objeto de justiça
A
social (em termos rawlsianos), mas de justiça local (conceito que Rawls
N toma emprestado de Elster, 1991) (Rawls, 2003, p. 15). Citando-o,
O
V
A Temos ao todo, de dentro para fora, três níveis de justiça: primeiro, a
justiça local (os princípios que se aplicam diretamente a instituições
e associações); segundo, a justiça doméstica (os princípios que se
C
I aplicam à estrutura básica da sociedade); e, por fim, a justiça global
Ê (os princípios de justiça que se aplicam ao direito internacional)
N (Rawls, 2003, pp. 15-16).
C
I
A
A justiça social ou doméstica tem como objeto a estrutura básica,
que seria inescapável. Ao passo que a família – e também a igreja, ou-
D
tra instituição fundamental para a construção social das relações de gê-
A
nero – seria uma instituição frente à qual as mulheres teriam liberdade
P
efetiva de rompimento e saída, podendo ser internamente regida por
O
L
princípios distintos da igualdade que rege a justiça, ou seja, podendo
Í ser regida por regras especiais locais calcadas nas desigualdades entre
T
I mulheres e homens que fazem parte de concepções de bem existentes
C em pluralismo moral.
A
O direito de saída é aqui entendido dentro do arcabouço teórico
.
de Albert Hirschman, que inclui também os mecanismos de voz e
538
lealdade. A voz é a possibilidade de participação na determinação de
uma situação, relação ou organização. A saída é compreendida como a
possibilidade de se retirar de uma situação, relação ou organização. A
lealdade é a permanência (Hirschman, 1973). Em contextos de opres-
são de gênero, a voz e a saída femininas são difíceis até mesmo em
realidades de relativa facilidade de sobrevivência econômica, devido a

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inúmeros motivos de ordem emocional e cultural. E são ainda mais
difíceis quando exercer a liberdade de saída – através do divórcio, por F
exemplo – implica profunda pauperização, o que afeta não apenas as A
mulheres, mas também seus filhos. O alto preço da saída feminina M

pode enfraquecer a voz das mulheres. O enfraquecimento de sua voz Í


L
pode tornar a saída uma necessidade de segurança mais premente. A I
combinação perversa do empobrecimento dos mecanismos de voz A
,
e saída pode transformar a lealdade em nada mais que a falência das
primeiras. L
I
Podemos considerar que, idealmente, a família funciona como as- B
sociação ou comunidade, nas quais há liberdade de saída. Mas, para E
R
que a família, efetivamente, seja associação ou comunidade e, portanto,
D
objeto de justiça local e não de justiça social, deve ser regida de al-
A
guma maneira por princípios de justiça (domínio das políticas formais D
e virtudes institucionais), do contrário, a família sempre será um agru- E
pamento em que culturas e significados compartilhados (campo das S

políticas informais e virtudes sociais) diferenciam personalidades, ati- B


tudes e comportamentos por gênero de modos que fazem a condição Á
feminina vulnerável. S
I
Dentro disso, em Justice, Gender, and the Family, Susan Okin C
elenca três motivos pelos quais gênero e família são uma questão de A
justiça e, portanto, no arcabouço conceitual que incorpora de Rawls, S

devem ser “objeto da justiça” e parte da “estrutura básica da sociedade”, E


composta pelas principais instituições políticas, econômicas e sociais
D
que determinam as perspectivas de vida disponíveis a cada posição
I
social: R
• as mulheres devem ser completamente incluídas em qualquer E
I
teoria satisfatória da justiça; T
• a equidade de oportunidades é impedida pelas injustiças de O

gênero; .

• a família é uma engrenagem central da estrutura de gênero e


539
deve ser justa para que a sociedade também o seja (Okin, 1989,
p. 14).

O modo a família deve ser objeto da justiça passa pelo que já é


público (virtude política e política formal) na instituição família:

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• o Direito de Família, com seu impacto distributivo sobre
as pessoas que entram e saem da associação ou comunidade
familiar;
• o Direito Penal, que proíbe a violação da integridade física, bem
como a restrição de liberdade de ir e vir de um indivíduo por
outro;
• políticas públicas de proteção, serviço jurídico, tratamento
psicológico e acolhimento de mulheres que sofrem violência
doméstica;
• as políticas públicas de distribuição de renda e propriedade,
que permitem a todas as pessoas subsistência digna e bem-estar
A
quando decidem sair de uma associação ou comunidade, através
N de assistência jurídica pública, saúde pública, educação pública,
O
creches públicas, políticas de geração de emprego e renda etc.;
V
A • políticas de educação que dão às meninas meios para se
tornarem mulheres com efetivo exercício da liberdade de escolha
C profissional e do direito de propriedade.
I
Ê
N
C
Essas são todas instituições estatais que incidem sobre a categoria
I usualmente concebida como “esfera privada”, que dão às mulheres di-
A
reito de voz e de saída e que são compatíveis com o respeito ao plura-
D lismo moral razoável (que aceita o direito de saída de membros que
A desejam sair e que não requer o uso da força estatal para impor uma
P doutrina do bem sobre as demais), que é o cerne da questão da relação
O entre gênero e tolerância.
L
Í
T
I
C
Gênero e tolerância
A
As questões normativas do campo da tolerância são aquelas relativas
.
a como lidar com o pluralismo moral, isto é, com o fato das sociedades
possuírem pessoas e grupos que esposam diferentes “doutrinas abran-
540
gentes do bem” (Rawls, 2011) – termo rawlsiano para concepções de
bem –, que constroem diversas concepções sobre o dever ser das relações
entre as pessoas, grupos e instituições.
Em Rawls, a “razoabilidade” é uma característica das sociedades
democráticas liberais, nas quais os cidadãos são vistos como livres e

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iguais; “doutrinas abrangentes razoáveis” são aquelas que não requerem
que o poder coercitivo estatal seja usado para impor suas concepções F
de bem sobre outros (Rawls, 2011). Para Okin, este critério não é A
suficiente de uma perspectiva feminista, pois admite como razoáveis M
religiões profundamente ancoradas em visões anti-igualitárias de gênero Í
L
e desfavoráveis às mulheres (Okin, 2004). Segundo ela, I
A
Apenas permitindo que os princípios de justiça se apliquem ,

diretamente sobre a vida interna das famílias – a que Rawls L


claramente resiste – e restringindo as “concepções abrangentes do I
bem” [razoáveis] àquelas que não são sexistas, pode-se revisar a B
teoria de modo que inclua mulheres e tenha uma abordagem efetiva E
e consistente do desenvolvimento moral. Okin, 2004, p. 1.638-1.639, R
tradução nossa). D
A
Isso se deve ao fato de que, conforme lembra Okin, “doutrinas D
E
abrangentes razoáveis”, como todo corpo de crenças compartilhadas,
S
culturas e tradições, são construtoras das concepções e práticas generifi-
cadas, diferenciando mulheres e homens, o que é feito, sobretudo, atra- B
Á
vés de instituições comumente interpretadas como esfera privada, como
S
a família e a religião (Okin, 1999) e daquilo que consideramos “virtude I
social” e “políticas informais”. Sendo assim, como lidar com família e C
A
gênero de modo simultaneamente tolerante e feminista? Ou, em outras
S
palavras, qual a interpretação feminista da tolerância?
E
Dentro de uma perspectiva feminista rawlsiana, conforme a crítica
posta por Okin, lida-se com a família e com gênero de modo simul- D
taneamente tolerante e feminista, se a tolerância ao pluralismo moral I
R
ocorre conforme princípios de justiça e arranjos institucionais que tor- E
nam efetiva a liberdade das mulheres saírem de suas famílias, religiões I
e grupos tradicionais, caso sintam-se oprimidas. Ou seja, dentro de T
O
uma estrutura básica em que a igualdade humana fundamental e o in-
.
dividualismo ético prevaleçam frente aos grupos familiares, religiosos e
tradicionais, nos casos em que as mulheres sofrerem violações ou se sen-
541
tirem dissidentes. Isso implica que as liberdades civis e socioeconômicas
das mulheres sejam individualistamente protegidas e que a tolerância
feminista é sempre ancorada em direitos individuais das mulheres acima
dos direitos coletivos de suas famílias, igrejas e grupos tradicionais, den-
tro de uma perspectiva de direitos humanos.

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Gênero e direitos humanos
Como dissemos na segunda seção (gênero e família), direitos hu-
manos são direitos individuais minimalistamente entendidos e cujo res-
peito é condição de legitimidade estatal de qualquer país19. Acresce-se a
isso que, teórica e legalmente, os direitos humanos são responsabilidade
estatal e apenas os Estados violam direitos humanos (as pessoas morais
abaixo do Estado e as instituições que não são estatais cometem crimes
que, apenas se sistemáticos e objeto de conivência estatal, tornam-se
violação de direitos humanos, como veremos a seguir). Sendo assim,
como violações das liberdades básicas – segurança pessoal, liberdades
A civis e subsistência – das mulheres se relacionam com direitos humanos,
N
dado que são predominantemente cometidas e perpetuadas por agentes
O não estatais?
V Conforme teoriza Thomas Pogge, um Estado que possui cidadãos
A
(e não súditos) deve servir equitativamente a todos os seus membros,
C
devendo proteger os direitos humanos de cada pessoa. Sendo assim, o
I Estado é responsável não apenas por violações que estão na letra da lei
Ê
N
e das formulações de políticas públicas e que são cometidas por agentes
C estatais ou a serviço do Estado, mas também por violações sistemáticas
I cometidas dentro de uma sociedade sem que o Estado intervenha para
A
erradicá-las. Violações massivas, sistemáticas e endêmicas de direitos
D
básicos – como é o caso da violência doméstica e do assassinato intra-
A
familiar de mulheres – constituem “desrespeito oficial estatal pelos di-
P
reitos humanos” (Pogge, 2001). Ou seja, violações de liberdades básicas
O
L das mulheres constituem violações de direitos humanos mesmo quando
Í são praticadas pelas famílias, grupos religiosos ou grupos tradicionais
T
I e esta é a interpretação feministamente defensável da relação entre (A)
C
gênero e direitos humanos e entre (B) a responsabilidade estatal pelas
A
liberdades básicas das mulheres e a intervenção de princípios de justiça
.

542
19
Ressalvando que isso não implica qualquer defesa de que haja intervenção
em países cujos Estados deem status legal inferior às mulheres em relação
aos homens e nos quais haja desigualdades generificadas coercitivas (o que
implicaria a defesa de intervenções em todos os países, dado que não existe
país em que os gênero são iguais na distribuição dos encargos e benefícios da
cooperação social).

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e tolerância no âmbito da família. Esta é a relação feministamente rei-
vindicável entre F
• violações de liberdades básicas decorrentes de “políticas A
M
informais” sexistas e ausência de “virtudes sociais” igualitárias
Í
quanto a gênero L
I
• e correções institucionais estatais próprias do campo das A
“políticas formais” e “virtudes institucionais”. ,

L
I
Considerações finais B
E
Por tudo isso, justiça, tolerância e direitos humanos, feminista- R

mente entendidos, demandam normativamente que a família seja D


A
(I) concebida como instituição parte da estrutura básica e objeto de
D
princípios de justiça, (II) regida por princípios de tolerância igua- E
litários frente a gênero e (III) compreendida como locus de atuação S
estatal conforme o “respeito oficial pelos direitos humanos”. Isso sig-
B
nifica que justiça, tolerância e direitos humanos, feministamente, Á
borram as fronteiras entre o que se considera público e privado em S
I
nome de liberdades básicas efetivas e direito de saída efetivo para as
C
mulheres. A
S

E
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D
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Amnesty International, 2005. R
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D
I
R
E
I
T
O

547

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Camila Góes

Doutora em Ciência Política pela Unicamp


(2020), onde também é graduada em Ciências
Sociais (2011). Durante o mestrado em Ciência
Política realizado na USP (2015), fez um estágio
de pesquisa na Universidade de Princeton (2013).
A investigação conduzida na dissertação, sobre
o grupo de intelectuais indianos dos Subaltern
Studies, resultou na publicação do livro “Existe
um pensamento político subalterno?” editado
pela Alameda em 2018.

Resultado desta pesquisa, o artigo que integra


esta coletânea apresenta um estudo do livro
de Ranajit Guha, intitulado Dominance Without
Hegemony, entendido como síntese teórica
dos trabalhos subalternistas que buscaram traduzir o par conceitual de hegemonia
e subalternidade, originalmente desenvolvidos por Antonio Gramsci. Nele, retomo o
percurso argumentativo que levou Guha à categoria de “dominância sem hegemonia”,
a partir de suas considerações sobre as “falhas” que a dominação capitalista teria
encontrado na constituição de uma direção política hegemônica na colônia. De modo
subjacente, busco esboçar um paralelo com a elaboração do crítico literário Roberto
Schwarz a respeito do caso brasileiro, igualmente considerado “desviante”.

Na tese de doutorado, continuei a pesquisar intelectuais que, sob inspiração


gramsciana, buscaram interpretar ambientes periféricos. Nesse sentido, realizei um
estudo comparativo entre os coletivos editoriais da revista argentina Pasado y Presente
e da revista brasileira Presença sob a hipótese de que ambos os grupos tenham partido
de analogias históricas com a situação italiana analisada por Gramsci para traduzir a
realidade latino-americana em linguagem teórica. Como pesquisadora, atuo no Pepol
“Laboratório de Pensamento Político” desde 2009 e no grupo “Pensamento e Política no
Brasil” desde 2013.

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OS ESTUDOS SUBALTERNOS NA ÍNDIA E O
CAPITALISMO VISTO DA PERIFERIA: UMA
HEGEMONIA FORA DO LUGAR?1

Camila Góes

Neste capítulo, buscaremos apresentar e reagir criticamente à polê-


mica sobre o advento do capitalismo na Índia enquanto nação perifé-
rica e de passado colonial. Para isso, em primeiro lugar, abordaremos a
obra do historiador Ranajit Guha, fundador dos Estudos Subalternos
na Índia no início dos anos 1980.2 Retomaremos o percurso argumen-
tativo que o levou a teorizar o governo colonial britânico como uma
“dominância sem hegemonia”, a partir de suas considerações sobre as
“falhas” que a dominação capitalista teria encontrado na constituição
de uma direção política hegemônica na colônia. De modo subjacente,
traçaremos um paralelo com a elaboração do crítico Roberto Schwarz a
respeito do caso brasileiro, igualmente considerado “desviante”. O crí-
tico literário, assim como Guha, buscou teorizar a especificidade do
funcionamento ideológico no Brasil.
Em ambos os casos, os intelectuais tiveram de enfrentar os desa-
fios postos pelo “sentimento de inadequação” existente entre as referên-
cias intelectuais europeias e o ambiente social periférico e de passado

1
Este capítulo é uma versão reformulada de reflexões presentes em “Existe um
pensamento político subalterno?” (Góes, 2018).
2
Entre os que formaram os Subaltern Studies, estavam Dipesh Chakrabarty,
Gyanendra Pandey, Shahid Amin, Gautam Bhadra e Partha Chatterje. O grupo
organizou uma série de coletâneas de artigos sobre a história social indiana,
da qual o primeiro volume, Subaltern Studiesx I: Writings on South Asian History
and Society foi lançado em Délhi no ano de 1982. Esse conjunto de trabalhos,
amplamente difundidos nos anos 1980 e 1990, pretendia pensar os problemas
e os dilemas políticos da Índia pós-colonial. O último volume da série, o décimo
segundo, foi lançado em 2005 em Nova Délhi, editado por Shail Mayaram,
M.S.S. Pandian e Ajay Skaria.

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colonial. Escapando aos limites postos pelo falso problema, Guha e
Schwarz desmascararam os sentidos políticos que serviam à constatação
do “mal-estar” posto pelo descompasso entre ideias centrais e ambiente
social periférico como um problema nacional. A homogeneização e
diluição das diferenças de classe num singular “domínio da política”
(Guha, 1997, p. ix) servia para ocultar a existência de uma relativa au-
tonomia dos subalternos diante do fronte colonial ou camuflar a origem
de classe do verdadeiro desconforto, oriundo da “dificuldade de conci-
liar moralmente as vantagens do progresso e do escravismo ou sucedâ-
neos” (Schwarz, 1987, p. 47).
Nesse sentido, o manifesto assinado por Guha em 1982, quando
A
dá início aos Estudos Subalternos, denunciava a historiografia indiana
N dominada pelo elitismo colonial e pelo nacionalismo-burguês como
O produtos ideológicos da dominação britânica na Índia, inaugurando
V
uma ampla agenda de pesquisa historiográfica voltada aos subalter-
A
nos (cf. Guha, 1982). Quinze anos depois, como resultado teórico
C desse percurso voltado a evidenciar os movimentos políticos das clas-
I ses populares indianas, Guha cria a categoria de “dominância sem
Ê
N
hegemonia” como forma de ressaltar as diversas formas de resistên-
C cia à hegemonia colonial no subcontinente. Com isso, o historiador
I problematizava diretamente a chamada “tendência universalizante do
A
capital”.
D
A
Voltando-se apenas ao caminho universalista, sem enfatizar os limi-
tes e falhas – condicionados pelas especificidades da história nacional
P
– a historiografia liberal teria se aprisionado, segundo Guha, num “uni-
O
L versalismo abstrato graças ao qual se tornou incapaz de distinguir entre
Í o ideal do capital lutando por sua própria realização e a realidade de
T
I seu fracasso ao fazer isso” (Guha, 1997: 19). Para Guha, esse erro teria
C levado historiadores a assumirem que o capitalismo foi instituído com
A
sucesso na Índia, tendo superado todos os obstáculos colocados pelas
.
classes subalternas frente ao colonialismo e sua expansão. Nesse sentido,
teriam confundido “dominância” com “hegemonia” ao fazer crer que os
550
indianos aceitaram a imposição do capital sem resistência, ocultando a
agência das massas em seus embates contra as estruturas dominantes.
Essa operação historiográfica que, segundo o curso real das coisas,
leva a uma “confusão” e um “erro”, cumpriria, no entanto, uma fun-
ção ideológica fundamental. Como nos adverte Schwarz (2012), se o

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liberalismo não pode descrever a realidade de suas ex-colônias – sendo,
por isso, “uma ideia fora do lugar” – isto não o impede de cumprir pa-
peis fundamentais:

Por exemplo, ele permite às elites falarem a língua mais adiantada


do tempo, sem prejuízo de em casa se beneficiarem das vantagens
do trabalho escravo. Menos hipocritamente, ele pode ser um ideal
de igualdade perante a lei pelo qual os dependentes e os escravos
lutam. A gama de suas funções inclui a utopia, o objetivo político
real, o ornamento de classe e o puro cinismo, mas exclui a descrição
verossímil do cotidiano, que na Europa lhe dá a dignidade realista
(Schwarz, 2012: 171).

Ainda que “fora de lugar”, sem qualidade verossímil, as ideias sem- O


pre têm alguma função. Na Índia, em todos os domínios que concer- S
niam a política, o Estado e a economia, os valores do racionalismo, do E
universalismo e da ciência foram acionados pelas classes dominantes na S
tentativa de se integrar ao progresso e à modernidade que os dominado- T
res coloniais clamavam trazer. Para isso, neutralizaram ideologicamente U

o campo popular, reservando-lhe os domínios do “interior” e do “es- D


O
piritual” enquanto manifestações verdadeiras da Índia, cuja superiori-
S
dade em relação ao Ocidente seria indisputável. Esse era o domínio no
qual a elite poderia representar o “popular” com imagens da “verdadeira S
indianidade”. U
B
Com isso, os domínios do privado e do público se fundiram na A
mesma ideologia do nacionalismo. Desde suas primeiras formulações, L
essa foi a linguagem que expressou as reivindicações de uma certa cole- T
E
tividade única e específica – tanto historicamente como culturalmente
R
– enquanto que ao mesmo tempo ligada a princípios universais. Aqui,
N
as elites indianas puderam afirmar a grandeza de seu espírito, enquanto
O
encontravam suas demandas no principio universal da autodetermina- S
ção do povo. Ao mesmo tempo, tinham de enfrentar as ambiguida-
des presentes nos princípios universalistas do liberalismo, intimamente .
ligados à colonização e ensinados nas escolas por representantes do 551
Estado. Nesse sentido, tinham de “escolher um lugar de autonomia a
uma posição de subordinação ao regime colonial, que tinha ao seu lado
os recursos justificatórios mais universalistas produzidos pelo pensa-
mento social pós-Iluminista” (Chatterjee, 1993: 11). Como resposta a
essa contradição, optaram por separar, em seu entendimento da nação,

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os domínios público e privado, racional e espiritual, material e religioso
(Vezzadini, 2009:161).
Como destaca Dipesh Chakrabarty (2000: xiii-xiv), entretanto,
nada concreto e particular poderia ser também universal, pois noções
como “direito” ou “democracia” seriam apenas “grosseiramente traduzí-
veis” de um lugar para outro. O processo de tradução de noções políticas
centrais para ambientes periféricos e de passado colonial comportaria
uma série de desafios que não se reduziriam à mera relativização da opo-
sição local e universal, mas deveriam lidar, como argumenta Schwarz,
com “as reciprocidades perversas entre ex-colônia e nações imperialistas,
subdesenvolvidos e desenvolvidos, periféricos e centrais etc., oposições
A politicamente mais relevantes e carregadas” (Schwarz, 2012:170).
N
Na Índia, a forma encontrada pela elite para resolver esses proble-
O mas teria fracassado, na visão de Guha, pela incapacidade de incorporar
V as demais forças sociais em sua visão da nação. O interior, o privado, o
A religioso e todos os outros aspectos relacionados à “autêntica Índia” re-
presentaram, na verdade, o mundo cultural da elite, com o uso de cate-
C
I
gorias mais exclusivas do que inclusivas. Pensando operação análoga ao
Ê caso brasileiro, Schwarz (1987:34) chamava a atenção para os desafios
N da crítica. Afinal, a despeito da “mistificação da fórmula” – problema
C
I
central de Guha – a “imposição ideológica externa e expropriação cul-
A tural do povo” foram realidades que não deixaram de existir por seu
D
caráter despropositado. Ou seja, mesmo que a crítica à fórmula revele
A seu caráter mistificador, é preciso não incorrer no risco de supor que
“as elites poderiam conduzir de outro modo, sanando o problema, o
P
O
que equivale a pedir que o beneficiário de uma situação acabe com ela”
L (Schwarz 1987:34).
Í
T
Deve-se ter em mente que na Índia a aliança entre elite naciona-
I lista e subalternos foi bem-sucedida no processo de independência.
C
Permaneceu, entretanto, a contradição ideológica após a vitória, numa
A
imaginação da nação que não incluía a identidade cultural das classes
.
subalternas e sua autorrepresentação (cf. Anderson, 1991). O nexo pa-
radoxal permaneceu, pois, seria impossível à elite assumir os campone-
552
ses como “irmãos” – sua cooptação, portanto, não se baseou num ideal
de igualdade, mas num de diferença (Prakash, 2000).3 Por seu turno, as

3
Como argumenta Gyan Prakash (2000: 231), o capitalismo, ao contrário
de homogeneizar necessariamente a diferença, é perfeitamente capaz

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classe subalternas, ao serem excluídas da imaginação da nação, manti-
veram uma relativa autonomia em relação à ideologia das elites, de sua
explicação do mundo e de sua racionalização das hierarquias sociais.
Em outras palavras, como afirmou Chatterjee (1993), os subalternos
não se tornaram parte da “hegemonia ideológica do Estado”, que de-
sejou representar seus próprios interesses como os interesses de todos,
baseados na ideia de igualdade de todos os sujeitos. Eles foram ima-
ginados pelas elites como diferentes, “fragmentos” dentro do projeto
nacionalista. Para reconstruir a história de tais “fragmentos”, e montar o
fascinante quebra-cabeças que revela as falhas do capital em sua tendên-
cia homogeneizante, foi necessário aos subalternistas empreender uma
metodologia especial, particularmente atenta aos vãos inexplicáveis, aos
silêncios da história e seus paradoxos. O intelectual que teorizou essas O
questões, em busca de dar pistas para outros cientistas sociais foi Ranajit S
Guha, o criador dos Subaltern Studies.
E
S
T
Paradoxos de poder na Índia: a derrota do projeto
U
universalista? D

A premissa de Dominance without Hegemony é que a articulação O


S
entre dominância e subordinação na Índia colonial se constituiu por re-
lações paradoxais de poder, elaboradas por Guha a partir de “idiomas”. S
A dominância abarcava os idiomas da coerção e persuasão. A subordi- U
nação, por sua vez, os idiomas da colaboração e resistência: B
A
L
Um idioma deriva da cultura política metropolitana dos T
colonizadores, o outro das tradições políticas pré-coloniais dos E
colonizados. Eles derivam, em suma, de dois paradigmas distintos, R
um dos quais é tipicamente britânico e o outro, indiano. É a N
coalescência desses dois idiomas e sua divergência que determinam O
S

de utilizar e gerar heterogeneidade: “A noção de capitalismo é uma fonte


.
de recursos responsável por originar e envolver valores de diferença
apropriando heterogeneidade como uma diferença auto-consolidada (...) 553
Quando o capitalismo é feito para ficar para a História – de modo a apagar
a heterogeneidade das histórias do subalterno colonizado e do proletariado
metropolitano – a alteridade absoluta é apropriada como diferença auto-
consolidada. Nós somos, então, convidados a pensar uma vez mais o
colonialismo como parte da trajetória do capitalismo, demandando uma
estratégia única, indiferenciada de resistência” (Prakash, 2000: 231).

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as tensões dentro de cada elemento e definem seu caráter (Guha,
1997: 24).

Ao analisar primeiramente a dominação, Guha julgou ser evidente


que a coerção viesse primeiro que a persuasão e, na verdade, se encon-
trasse na frente de todos os outros elementos. Essa precedência advi-
nha da própria lógica da formação do Estado colonial. Não teria como
haver colonialismo sem coerção, pois seria impossível a subjugação de
um povo inteiro a estrangeiros sem o uso explícito da força. Ou seja,
o poder britânico se estabeleceu na Índia, inicialmente, por um ato de
conquista.
A
No entanto, a justificativa da ocupação britânica na Índia pelo di-
reito de conquista se sujeitou rapidamente a uma mudança dialética,
N
na medida em que o colonialismo superava sua fase inicial predatória
O
V
e mercantilista e passava, de modo mais sistemático, a um modo im-
A perial. A confiança exclusiva no poder “da espada” deu espaço a um
controle ordenado, no qual a força teve que aprender a conviver com
C instituições e ideologias designadas para gerar consenso. Nas palavras de
I
Ê Guha, “o idioma da Conquista foi substituído pelo idioma da Ordem”.
N Em meio à tradição britânica, assim como na política burguesa em ge-
C ral, a Ordem deveria ser imposta pelo aparato coercitivo do Estado.
I
A Na Índia, entretanto, a Ordem se estendeu a assuntos que, desde o
fim das monarquias absolutistas na Europa, tinham pouco a ver com o
D
A
Estado ou, ainda, com suas “funções não-coercitivas” (ibid.: 25). Além
de conduzir tudo o que dizia respeito a segurança pública, saneamento
P
O
e municipalização dos grandes centros urbanos, a intervenção coercitiva
L do Estado permitiu, na Índia rural, invadir inclusive um domínio que,
Í na metrópole, era protegido pela lei – o domínio do corpo.
T
I Um dos paradoxos característicos do colonialismo na Índia foi o
C
A
fato de ter reforçado práticas feudais no governo da burguesia consi-
.
derada como a “mais avançada do mundo”. Estruturando a Coerção
junto ao idioma da Ordem estava também o idioma de Daṇḍa, central
554
para todas as noções de dominância nativas. Daṇḍa, para além de seu
significado semântico – um conjunto de “poder, autoridade e punição”
– serviu como um meio de vigorar a força e o medo como princípios
fundamentais da política. Fonte e fundação da autoridade real, o idioma
Daṇḍa era visto como a manifestação da vontade divina nos negócios
do Estado.

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Esse conceito rígido de poder serviu, no período colonial, para le-
gitimar todas as práticas de autoridade coercitiva pelos dominantes em
todo passo que fosse tomado fora do domínio guardado pela Ordem
oficial. O aspecto sacro permitia a esta prática justificar a si própria
por uma moralidade estabelecida de acordo com os valores semifeudais
ainda pronunciados na cultura indiana. Segundo esse princípio, o uso
da violência pelas elites de casta superior contra os intocáveis, ou a ins-
tigação da luta sectária por um grupo dominante local contra os subal-
ternos, que tivessem aderido a uma fé contrária, poderia passar como
atos baseados na defesa da soberania do Dharma.4
Sanções punitivas para mulheres que desrespeitassem o código de
moralidade sexual, construída inteiramente desde um ponto de vista
O
masculino, poderiam ser justificadas, por exemplo, como essenciais para
S
a manutenção de uma ordem moral indiferenciada. Ou seja, o Daṇḍa
permitia imputar autoridade ao “rei de cada pequeno reinado”, em to- E
das as relações de gênero, geração, casta e classe. S
T
No que se refere ao elemento da Persuasão, havia também dois idio- U
mas distintos e em interação. O primeiro era o idioma britânico do D
Progresso, que informou todas as tentativas dos dominadores coloniais O
de se relacionar não antagonistamente com seus súditos. Essa assimila- S
ção só foi possível pela presença no contexto político indiano do idioma
S
do Dharma. Era ao Dharma que a elite indiana recorria para justificar e U
explicar suas iniciativas da forma mais pacífica possível. Mesmo quando B
a iniciativa era claramente liberal em sua forma e intenção, a racionali- A
dade era buscada no Dharma. Entendido, de modo geral, como a quin- L
T
tessência da “virtude” e “do dever moral”, implicava num dever social
E
de acordo com o lugar ocupado na hierarquia de castas, assim como nas R
estruturas locais de poder. Com isso, resultou que, curiosamente, “algo N
tão contemporâneo aos séculos XIX e XX, como o nacionalismo, mui- O
tas vezes aparecesse num discurso político vestido de sabedoria antiga S
Hindu” (ibid.: 36).
.

555

4
Termo amplo que abrange todos os aspectos do modo de vida hindu, usado
também para denotar quaisquer de seus momentos particulares, tal qual
moralidade, conduta, dever, religião, ritual, costume, tradição, e assim por
diante.

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Consequentemente, mesmo depois do Congresso emergir como
um partido de massas sob a liderança de Mahatma Gandhi e a elite
nacionalista adquirir uma base relativamente mais ampla, o anseio por
falar pela nação estava ainda amparado por aquelas condições materiais
e espirituais. Como resultado, o idioma do Dharma continuou a influir
no discurso político da elite. O “Ghandismo” foi, nesse sentido, a mais
importante de todas as ideologias de colaboração de classe dentro do
movimento nacionalista e também a que mais recorreu ao Dharma.
Gandhi mesmo não fazia segredo das práticas que ele tinha em
mente para essa teoria, que era formulada e declarada em oposição à
teoria socialista e em defesa do latifúndio. Com isso, a penetração do
A
nacionalismo da elite pelos interesses dos grandes negócios passou a ser
N mediada pelo idioma clássico da conciliação política. Dentro da relação
O de dominância e subordinação, se investiu o elemento Persuasão com
V
um ingrediente caracteristicamente indiano para combinar com o in-
A
grediente britânico de Progresso promovido pelo imperialismo liberal.
C O propósito perseguido por cada idioma, em seu respectivo domínio,
I era o de aplacar contradições e permitir que o mecanismo da dominân-
Ê
N
cia funcionasse sem problemas.
C O idioma britânico que informou o elemento da Colaboração foi
I
A
o da Obediência, derivado, segundo Guha, do discurso próprio do
Utilitarismo. O princípio da utilidade não negou a legitimidade da re-
D
A
sistência em “casos excepcionais”, mas manteve a obediência como “re-
gra”. Para o historiador indiano, um aspecto autoritário desse discurso
P
ressoou na ênfase nos deveres antes que nos direitos, revelando “o espí-
O
L rito de uma burguesia dominante que usou o poder da dissidência em
Í seu caminho para o topo, mas chegando lá, considerou mais fácil viver
T
I com o conformismo” (ibid.: 41).
C
A
Na medida em que o colonizador e o colonizado foram, assim, lo-
.
calizados em seus respectivos lugares – o de dominância e subordina-
ção, respectivamente –, o discurso prosseguiu valorizando os termos da
556
subordinação à lei e da prestação incondicional de serviços. Entendidos
como deveres, seu valor derivaria de dois níveis de prática: como obri-
gação “ao soberano” ou como “ato de patriotismo”. Essa identificação
entre império e pátria, entretanto, desenvolveu uma tensão dentro do
conceito de Obrigação. Por um lado, enfatizou um apego filial do sujeito
colonizado ao colonizador soberano e, por outro, implicou num senso

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de pertencimento a um só país. O reconhecimento da colônia como
“terra mãe” – isto é, um domínio político sem mediação de um poder
estrangeiro – poderia direcionar o colonizado à busca da independência.
Nesse aspecto, Gandhi teve um papel de destaque. Ao enfatizar
com o mesmo fôlego os direitos e os deveres dos indianos, Gandhi aca-
bou mudando os códigos e seguindo, quase a despeito de si mesmo, na
contramão de sua fé ensaiada na validade legal e moral de supremacia
britânica. Segundo Guha:

A noção de dever como correlata à de direito deriva de um código que


não reconhece a relação entre governantes e governados como uma
entre mestres e servos – ou seja, é um código através do qual todos
àqueles submissos ao Estado são iguais perante a lei. Tal código é O
bastante deslocado em um Estado colonial cuja legitimidade é S
baseada, em última análise, no direito de conquista (ibid.: 46).
E
S
Aqui, é possível observar os sintomas do “dilema liberal-naciona-
T
lista” que daria muito de seu tom e caráter à política indiana. O idioma U
da Obediência continuou a ser influente mesmo depois de uma mu- D
dança de atitude de Gandhi perante o governo britânico e as tendências O
conservadoras da política liberal indiana. Mais importante, esse idioma S
fez sentir sua influência mesmo dentro da variedade de nacionalismo
S
liberal. O anti-imperialismo da elite nunca conseguiu sair totalmente U
do labirinto da negociação e da pressão política para afirmar, sem equí- B
voco, o direito do sujeito se rebelar. Por isso, o legalismo, o constitu- A
cionalismo e os muitos tons de compromisso entre a colaboração e a L
T
dissidência foram tão característicos ao nacionalismo da elite.
E
Restou para a política de Colaboração, junto ao idioma da R
Obediência, o seu par indiano – a tradição do Bhakti.5 Todos os mo- N
mentos colaboracionistas de subordinação no pensamento e prática O
indianos, ao longo do período colonial, estiveram relacionados pelo S

Bhakti a uma massa inerte de cultura feudal que gerou um certo lega-
.
lismo, depositado em todo tipo de relação de poder, séculos antes da
conquista britânica. Mas esse clássico idioma da política indiana não se 557

5
Palavra que indica atitude de devoção a uma divindade ou qualquer outro
superior. Relaciona-se ao culto devocional hindu baseado na adoração do deus
Krishna.

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tornou um ingrediente da Colaboração no Raj meramente pela força
da religiosidade tradicional presente entre as classes subalternas, que
não haviam estabelecido contato com a educação ocidental e a cultura
liberal. Foi necessário adaptar-se às exigências do governo colonial – e
muitos intelectuais contribuíram nesse papel. Guha chamou a atenção,
em especial, para Bankimchandra Chattopadhyay, que baseado numa
teoria sociológica, buscou caracterizar o Bhakti como um “princípio
global de autoridade”.
As contradições envolvidas nessa tentativa de combinar o conceito
feudal de Bakhti com a noção burguesa de Progresso foram mais instru-
tivas, na visão de Guha, do que sua própria inadequação como teoria
A sociológica. Isso porque foram medidas autênticas, além de exemplares,
N das dificuldades que o liberalismo indiano encontrou ao lidar com a
O questão da autoridade, que, por sua vez, se encontrava num processo
V inexorável de mudança. Essas mudanças, entretanto, não foram muito
A
além das premissas tradicionais do Bakhti e, a despeito de sua tentativa
C
de forjar um idioma que reconciliasse o positivismo ocidental, o iguali-
I tarismo e o humanismo com a tradição indiana, o liberalismo indiano se
Ê
reverteu, ao fim, num conceito de colaboração formado primeiramente
N
C
em termos de subordinação característico da cultura pré-capitalista.
I
Para qualquer ciclo particular da reprodução da Dominância e da
A
Subordinação, a Resistência trabalhou junto com a Colaboração, como
D
um momento abertamente articulado de contradição ou como marco
A
zero de obscurecimento do seu Outro. A eliminação da Colaboração
P pela Resistência sinalizaria, para Guha, o fim de uma parte da luta e o
O
L
começo de outra. Esse ponto nunca foi alcançado na política indiana
Í sob governo do Raj, de modo que a Subordinação continuou a ser ca-
T
I
racterizada, ao longo de todo o período, por seus elementos mutua-
C mente relacionados.
A
O idioma britânico da Resistência foi chamado por Guha de
.
Dissidência Legítima. Esse idioma informou uma ampla variedade de
protestos em formas até então desconhecidas pela população indiana do
558
período pré-colonial. Alguns de seus exemplos podem ser encontrados
em assembleias, marchas, lobbies, e outros grandes encontros patrocina-
dos por organizações de massa sob lideranças eleitas em acordo aos pro-
cedimentos democráticos parlamentares. Havia uma consciência, nesse
idioma, dos limites legais e constitucionais impostos pelas autoridades

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coloniais em suas articulações. Continha-se, na maior parte do tempo,
dentro destes limites, adquirindo, por isso, um aspecto pacífico siste-
maticamente deturpado, abusado e explorado tanto pela elite nativa
quanto pela estrangeira.
Esse idioma nada tinha a ver com a tradição indiana, mas foi apro-
priado pelo povo, a partir da noção de direitos e liberdades, como
meio de pressionar a administração colonial a cumprir os seus próprios
ideais. Junto ao idioma da Dissidência Legítima, estava o par indiano de
Protesto Dharmico. Traduzido em política de resistência sob o Raj, esse
idioma implicou num esforço de corrigir o que aparentava aos indianos
como desvios dos ideais de governo inspirados pelo Dharma. Os valores
que informavam tal resistência eram carregados de religiosidade. As no-
O
ções de autoridade e obrigação se referiam às tradições do passado pré- S
-colonial que os governantes jamais conseguiram explorar totalmente.
E
Os paradoxos do poder, portanto, se estabeleceram nas relações de S
dominância e subordinação a partir dos idiomas britânicos da Ordem, T
do Progresso, da Obediência e da Dissidência Legítima, e dos idiomas U
indianos Daṇḍa, Dharma, Bhakti e Protesto Dharmico. Os idiomas de- D

rivaram de dois diferentes paradigmas da cultura política – um con- O


S
temporâneo, liberal e britânico, e outro pré-colonial, pré-capitalista e
indiano. S

As relações de dominância e subordinação se tornaram específicas U


B
e adequadas ao colonialismo através de um conjunto de efeitos sobre-
A
determinados que se constituíram por um “duplo-sentido” – ao mesmo L
tempo parte de um “conflito morto há muito tempo” e de um “conflito T
presente” – no qual as contradições sociais da Índia pré-colonial e da E
R
Inglaterra moderna se fundiram com as contradições vivas do governo
N
colonial. É nesse sentido que a originalidade da política indiana se deu,
O
baseada em diversos paradoxos que permearam todo o espectro das re- S
lações de poder. O mais importante para o argumento de Guha é a
coexistência desses dois paradigmas – pois são eles que demonstram o .
desvio histórico definidor do caráter próprio do colonialismo. A questão 559
de fundo, para Guha, era a seguinte: “porque a cultura capitalista mais
avançada e dinâmica do mundo até então, falhou, no contexto indiano,
na combinação de força e plenitude de seu domínio político na assimi-
lação, senão abolição, da cultura pré-capitalista do povo subalterno?”
(ibid.: 63).

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A resposta para essa pergunta era a de que “o colonialismo poderia
apenas continuar como uma relação de poder no subcontinente na con-
dição de que a burguesia falhasse em seu projeto universalista” (ibid.:
63). A natureza do Estado “criado pela espada” fez disso uma necessi-
dade histórica. O Estado colonial na Índia não se originou da atividade
da sociedade indiana e, como absoluta externalidade, foi estruturado
como um despotismo, sem mediações e espaços para transações entre
os governantes e os governados. Como um anacronismo, a inserção da
potência mais dinâmica do mundo nas relações de poder de um mundo
que ainda vivia no passado fez com que a “ferramenta inconsciente da
história” não alcançasse seu objetivo.
A
A primazia da Coerção na composição orgânica da Dominância
N fez da Ordem um idioma mais decisivo que o do Progresso e a estratégia
O da Persuasão derrotada. Isso demonstra, para Guha (ibid.: 67), que a
V
cultura burguesa encontrou no colonialismo “um limite insuperável” e
A
que nenhuma de suas nobres realizações – tais como a democracia e a
C liberdade – puderam sobreviver ao ímpeto do capitalismo em expandir
I e se reproduzir por meios da política de extraterritorialidade e domi-
Ê
N
nância colonial. Sob condições de dominância sem hegemonia, a vida
C da sociedade civil jamais pôde ser absorvida pela atividade do Estado.
I Disso resultou que a política pré-capitalista fosse usualmente caracteri-
A
zada pela coexistência de diversas culturas, dentre as quais a do grupo
D dominante é apenas uma delas, mesmo que seja a mais forte. Houve,
A
desse modo, a “fabricação de uma hegemonia espúria”, através da pro-
P dução intelectual burguesa.
O
L A historiografia inaugurada com a conquista britânica assumiu
Í um caráter “mercantilista”, enfatizando o elemento coercitivo da domi-
T
I nância. A fase que subseguiu, intitulada “colonialista”, esteve de acordo,
C por sua vez, com a “Era do Progresso” e apresentou como pioneiro
A
James Mill e sua obra História da Índia Britânica, publicada em 1818,
.
que lhe conferiu notoriedade como o “primeiro historiador da Índia”.
A obra de Mill é reveladora do preconceito dominante no século XIX,
560
cuja forma mais sofisticada se encontra em seu contemporâneo alemão,
Hegel, para o qual a “história real” dependia da existência do Estado.
Contra esses tipos de historiografia Guha propôs entender a história
da Índia sob o Raj como uma “dominância sem hegemonia”, contra
as concepções liberais predominantes desse campo e sua “cegueira”

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em relação à “estrutura do regime colonial”. Essa análise seria a condi-
ção e ponto de partida para qualquer crítica da própria historiografia
indiana.

Condições para a crítica e seus limites


O tema da “história indiana” foi assumido como ocupação primor-
dial pelos colonizadores britânicos desde o início de sua dominação. De
uma historiografia rudimentar, própria a uma burocracia inexperiente,
preocupada com a sucessão das famílias proprietárias, até um discurso
sofisticado e mais maduro para assegurar o controle sobre a prosperi-
dade da terra, o objetivo de reforçar o aparato britânico, junto a um
O
controle ideológico, sempre esteve presente – boa parte das energias e
S
ferramentas da intelectualidade britânica do século XIX foram atreladas
a esse projeto. E
S
Um vasto corpo de conhecimento colonialista investigou, registrou
T
e escreveu sobre o passado indiano de modo a afirmá-lo como um pe- U
destal no qual os triunfos e glórias dos colonizadores e seus instrumen- D
tos, o Estado colonial, poderiam ser vistos: O
S
Desse modo, a história indiana, assimilada à história da Grã Bretanha,
S
pôde ser usada como uma medida abrangente de diferença entre os
U
povos dos dois países – politicamente essa diferença foi explicitada
B
como àquela entre governantes e governados; etnicamente, entre
A
brancos e negros; materialmente, entre poder ocidental prospero
L
e níveis baixos de civilização, entre a religião cristã superior e o
T
sistema de crenças nativas, formado por superstições e barbárie
E
– tudo adicionado à diferença irreconciliável entre colonizadores e
R
colonizados (Guha, 1997: 3).
N
O
Como argumentou Guha, entretanto, a apropriação do passado
S
por conquista carrega consigo o risco de acabar encorajando o povo
dominado a definir e afirmar sua própria identidade e foi isso o que .
aconteceu na Índia. “A história se tornou um jogo” entre “o projeto
561
estrangeiro colonialista de apropriação e o projeto nativo nacionalista
de contra-apropriação” (ibid.: 3). Ambos se envolveram numa batalha e
as contradições do colonialismo que primeiro inspiraram a competição
permaneceram num nível ideológico mesmo depois de sua resolução,
em termos constitucionais, com a transferência do poder aos indianos.

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Ambos os lados se acusaram mutuamente como “desviantes” das
normas, exibidas como ideais, prevenindo-se assim de entenderem a
si próprios como “idiomas” dominantes da prática política. Essa in-
compreensão, muito sintomática da indisposição do liberalismo trans-
plantado às condições coloniais e pós-coloniais, informou os discursos
históricos correspondentes a ambas perspectivas e ressaltou sua falha
comum em discernir as anomalias que fizeram do colonialismo uma
forma paradoxal.
Na mesma linha paradoxal, quando da importação do liberalismo
para o Brasil no século XIX, o trabalho escravo continuava dominante,
revelando-se objetivamente, como afirmou Schwarz, uma “ideia fora do
A lugar”. Segundo o crítico, o país pôs e repôs “incansavelmente” ideias
N europeias, ainda que “sempre em sentido impróprio” (Schwarz, 1992:
O 24). Em suas palavras, o que era originalmente ideologia na Europa
V converteu-se, nos trópicos, quando muito, em ideologia de “segundo
A
grau”.
C
O paradoxo residia, tanto para o crítico brasileiro, quanto para o
I historiador indiano, no fato de que a performance dos grupos dominan-
Ê
tes estava amplamente desviada de sua “competência histórica”. Tanto
N
C Guha quanto Schwarz foram severamente criticados por essa tese. Para
I Chibber, por exemplo, a performance da burguesia indiana esteve “bas-
A
tante de acordo com sua competência” (Chibber, 2013: 84). Relutante
D em incorporar as demandas subalternas em seu programa, a burguesia
A na Índia não teria sido diferente das elites europeias em suas revoluções
P clássicas. O crítico de Guha acredita que, em ambos os casos, tanto no
O europeu quanto no indiano, as classes dominantes reagiram de modo
L
Í
similar à mobilização subalterna, tentando minimizar suas cobranças no
T que dizia respeito ao seu próprio poder.
I
C No caso brasileiro, de modo similar, muitos argumentaram que não
A teria sentido falar em “ideias fora do lugar”, uma vez que se não fossem
. funcionais ou adequadas à determinada realidade social, não haveria
porque perdurarem.6 Cerca de três décadas após a primeira formulação
562

6
A partir de escritos como os de John Locke e Adam Smith, a escravidão já havia
sido compreendida como não sendo incompatível com o liberalismo. A crítica
mais conhecida da formulação de Schwarz é a de Maria Sylvia de Carvalho
Franco, que como Ricupero explica: “Contra o argumento da inadequação
de ideias à realidade, [a autora] defende que nela está implícita uma relação

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do argumento,7 o crítico literário voltou ao tema, em defesa de seu argu-
mento, o que pode nos ajudar a entender também, em parte, as críticas
de Chibber ao fundador dos Estudos Subalternos. Schwarz afirmou que
nunca lhe ocorreu que as ideias no Brasil estivessem “no lugar errado,
nem aliás que estivessem no lugar certo”, e muito menos que lhe cabe-
ria a função de “corrigir sua localização”. Para ele, as “ideias funcionam
diferentemente segundo as circunstâncias” (Schwarz, 2012: 165).
Nesse sentido, a causa do mal-estar ideológico estaria no processo
internacional iniciado com a descolonização – “em lugar de superação,
persistência do historicamente condenado, mas agora como parte da
pátria nova e de seu progresso, o qual adquiria coloração peculiar, em
contradição com tudo que a palavra prometia” (ibid.: 168). Portanto,
O
afirmava Schwarz:
S

Seja como for, as ex-colônias não eram nações como as outras, que E
lhes serviam de exemplo e a que se queriam equiparar. A diferença S
não era um vestígio do passado, em vias de desaparecer, nem um T
acidente, mas um traço substantivo da atualidade periférica, com U
muito futuro pela frente. Daí uma comédia ideológica original, D
distinta da europeia, com humilhações, contradições e verdades O
próprias, que no entanto não dizia respeito apenas ao Brasil, como S
pareceria, mas ao conjunto da sociedade contemporânea, da qual
S
era uma parte específica, tão remota quanto integral (ibid.: 169).
U
B
A inserção das peculiaridades de nação periférica no presente do
A
mundo criava, assim, situações intelectuais e políticas originais. Tanto L
T
E
de exterioridade entre as primeiras, originárias do centro capitalista, e o R
ambiente social brasileiro. A partir daí, Carvalho Franco baseia sua crítica N
na vinculação, correta por sinal, da tese das ‘ideias fora do lugar’ à teoria da
O
dependência. Segundo ela, a caracterização que tal teoria faz da relação entre
S
antigas metrópoles e colônias, os polos centrais e periféricos do capitalismo,
como de oposição e até incompatibilidade – sugerindo-se, mesmo, que nas
.
duas situações prevaleceriam diferentes modos de produção – inspiraria a
formulação das “ideias fora do lugar”. Carvalho Franco, por sua vez, sustenta 563
que centro e periferia faziam parte do mesmo modo de produção, favorecendo
momentos diferentes do processo de constituição e reprodução do capital”
(Ricupero, 2008: 61).
7
Publicado primeiramente nos Estudos Cebrap, em inícios da década de 1970, o
texto de Schwarz comporia cerca de duas décadas depois o livro Ao Vencedor as
Batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro.

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no caso indiano, como no brasileiro, o ponto crítico consistia no im-
plícito contraste com as ideias e práticas da elite europeia. Era a ênfase
desproporcional dada por Guha a essas ideias e práticas que Chibber
criticou. Para Chibber, Guha teria aceitado, tal qual a historiogra-
fia liberal, que o principal ator da história era a burguesia – que no
caso indiano, teria falhado em seu projeto de instalação de uma or-
dem política baseada no consenso das massas. Hegemonia teria pas-
sado a significar, nesse sentido, uma expressão da integração nacional,
internalizando as próprias premissas liberais. A partir das experiências
europeias de 1640 e 1789, Chibber afirmava, de modo oposto, que
a hegemonia definida nesses termos jamais fora a âncora das revolu-
A ções burguesas (Chibber, 2013: 99). Ambas as revoluções evoluíram a
N
guerras civis, nas quais o lado revolucionário teve que recorrer a me-
O didas tais como a conscrição e aquartelamento, o que, em compara-
V ção, faria qualquer coisa feita pelo Congresso indiano ser considerada
A
acanhada.
C Nesse sentido, para Chibber, haveria pouca justificativa sustentando
I a análise de Guha, para a qual a prática do Congresso indiano é vista
Ê
N
como indicadora da derrota na obtenção de hegemonia – esse fator seria
C decorrente de sua insistência em entender a experiência europeia como
I o exemplo maior de sucesso em termos de hegemonia. Se aceitássemos
A
essa tese, para Chibber, a liderança europeia também deveria ser jul-
D
gada, ou antes, “a liderança de todo movimento moderno bem sucedido
A
deveria ser considerada não hegemônica” – o que é, em sua opinião,
P “certamente, uma conclusão perversa” (ibid.: 86). A prioridade das eli-
O
L
tes, tanto as francesas, quanto as inglesas, depois de suas conquistas, foi
Í antes excluir as classes subalternas do que fortalecer sua incorporação à
T
I nação. A agenda própria às lideranças não reservava espaço algum para
C a construção de uma comunidade política inclusiva – “as organizações
A
políticas que surgiram na esteira das revoluções burguesas clássicas eram
.
oligarquias, não ordens liberais” (ibid.: 87).
564
Guha queria demonstrar que na Índia sob condição colonial, havia
uma burguesia metropolitana que professava e praticava a democracia
em casa, mas que estava satisfeita em conduzir o governo de seu im-
pério indiano como uma autocracia. Vencedores do direito à autode-
terminação das nações europeias, teriam negado o mesmo direito aos
subalternos indianos até a última fase do Raj, e o concederam apenas

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quando foram forçados, sob o impacto dos conflitos anti-imperialistas.
Por outro lado, a burguesia indiana – gerada e alimentada pelo próprio
colonialismo – foi incapaz de corresponder ao heroísmo da burguesia
europeia em seu período de ascendência. Professava-se um liberalismo
“medíocre” – uma caricatura da cultura democrática da época da ascen-
são da burguesia no Ocidente, operacionalizado num período colonial
através de uma relação simbiótica entre as forças ainda ativas e vigorosas
da cultura semifeudal na Índia.
Foi justamente esse aspecto do argumento de Guha que Chibber
criticou – tanto no exemplo francês, quanto no inglês, se levou mais de
um século após os novos Estados instaurados para que a luta incessante
travada pelas classes trabalhadoras obtivesse quaisquer direitos políticos
O
fundamentais – os mesmos associados por Guha à ordem hegemônica, S
ordem essa que levou mais de um século para se formar. Ao contrário,
E
a experiência indiana teria, na verdade, segundo Chibber, revelado um
S
relativo avanço em relação às revoluções europeias, uma vez que nessa T
visão o novo Estado indiano teria oferecido, em grande medida, mais U
espaço político do que qualquer modelo europeu: D
O

enquanto as elites europeias foram capazes de suprimir as S

aspirações políticas subalternas em suas revoluções, os indianos


S
não foram. Tendo tido de respeitar um movimento social massivo
U
como o seu bilhete ao poder, a burguesia indiana não teve os meios
B
de desautorizá-lo. O movimento era muito forte, muito bem-
A
organizado, e contava com muito apoio da elite nacionalista. Embora L
a burguesia possa não ter desejado dotar as classes trabalhadoras de T
poder, era algo que ela tinha de aceitar (Chibber, 2013: 88). E
R
Guha estava certo, entretanto, na visão de Chibber, ao impugnar N
as credenciais liberais dos capitalistas indianos. Eles não eram, de fato, O
amantes da democracia ou do empoderamento das classes trabalhadoras. S

A reação inicial que tiveram à transformação do Congresso Nacional em


.
uma organização de massas mobilizadora, ao longo dos anos 1920, foi a
de organizar um partido rival representando as classes proprietárias. No 565

entanto, para Chibber, nenhum desses fatos distinguiria os capitalistas


indianos das elites britânicas. O que os diferenciariam seriam os tipos
de regime político gerados – decorreram duas oligarquias na Europa e
uma democracia eleitoral na Índia.

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Considerações finais
De ângulos distintos, tanto Guha como Chibber buscaram afastar a
historiografia liberal do mito da “neutralidade ideológica”. Isso porque
não seria possível escrever ou falar sobre o passado sem usar conceitos
e pressuposições derivadas de uma experiência e compreensão do pre-
sente, ou seja, das ideias através das quais o escritor ou interlocutor
interpreta seu tempo para si próprio e para os outros. Era essa a dispo-
sição principal do trabalho de Guha. Para ele, a historiografia deveria
ser vista como um meio não só de compartilhar, mas também de pro-
pagar ativamente todas as ideias fundamentais pelas quais a burguesia
A
representou e explicou o mundo, no passado e no presente. Com isso,
Guha buscava fazer a historiografia liberal falar de dentro da própria
N
consciência burguesa:
O
V
A Comprometer um discurso a falar de dentro de uma dada consciência
é desarmá-lo, na medida em que sua faculdade crítica é feita
C inoperante no que se refere àquela particular consciência. Nenhuma
I crítica pode ser totalmente ativa, a não ser que seu objeto esteja
Ê distanciado de sua agência. Isso explica porque a historiografia
N
liberal, limitada como ela é dentro da consciência burguesa,
C
I
jamais pôde atacá-la vigorosamente o suficiente como o objeto de
A sua crítica. Ao passo que os paradoxos característicos da cultura
política do colonialismo testemunham o fracasso da burguesia, na
D
compreensão das limitações estruturais da dominância burguesa
A
própria, não é surpreendente que o discurso histórico liberal também
P seja cego a esses paradoxos. Essa cegueira é necessária, e se poderia
O dizer até congênita, por meio da qual a historiografia adquire sua
L origem de classe (Guha, 1997: 7).
Í
T
I Guha entendia a historiografia liberal como cúmplice da dominân-
C cia da burguesia moderna. A interpretação liberal da história não apenas
A
estenderia os interesses da classe dominante, mas, de fato, refletiria o seu
.
próprio ponto de vista acerca do mundo. Os argumentos de Dominance
Without Hegemony procuraram ser um antídoto a essa visão. Nenhum
566
discurso poderia opor uma análise genuinamente descompromissada a
uma cultura dominante, apresentando seus mesmos parâmetros ideo-
lógicos. A crítica se originaria, portanto, de uma ideologia antagônica
à cultura dominante e lhe declararia guerra mesmo antes da classe pela
qual fala chegar ao poder.

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Ao travar a batalha antes mesmo da conquista de poder da classe
que representa, a crítica demonstraria a mudança característica de to-
dos os períodos de grande transformação social, quando uma classe as-
cendente desafia a autoridade de uma outra, antiga e moribunda, mas
ainda dominante. Dessa forma, a crítica à cultura burguesa dominante
só poderia nascer das contradições reais do capitalismo, antecipando
sua dissolução. Para Guha, a contradição central era a da tendência uni-
versalizante do capital. Sua função seria a de criar um mercado global,
subjugar todos os modos de produção antecedentes e substituir todas as
instituições concomitantes desses modos para uma cultura apropriada
à norma burguesa.
O que Guha ressaltou, a partir das páginas dos Grundrisse, é que
O
Marx não acatou a essa ilusão. Ao contrário, a discrepância entre a S
tendência universal do capital como um ideal e a frustração desta ten-
E
dência na realidade era, para ele, a proporção que as contradições das
S
sociedades burguesas ocidentais assumiram em seu tempo. Com isso, T
explicou o caráter desigual do desenvolvimento material do mundo U
burguês contemporâneo, demonstrado pelas fases claramente distin- D
tas de desenvolvimento pelas quais passavam a Alemanha, a França, a O
Inglaterra e os Estados Unidos, considerado numa ordem ascendente. S

Nas especificidades de cada contexto, Marx teria lançado luz, na visão de S


Guha, a muitas anomalias e inconsistências do pensamento e atividade U
burguesa. Em cada instância, identificou e definiu suas características B
próprias em termos da extensão das inadequações ao ideal univer- A
L
salista. T
A historiografia liberal teria ocultado esses limites, criando uma ilu- E

são sobre o poder do capital que a levou a um “universalismo abstrato”. R


N
Mas, como nos lembra Schwarz (2012, p.171), “não vivemos num
O
mundo abstrato, e o funcionamento europeu do liberalismo, com sua
S
dimensão realista, se impõe, decretando que os demais funcionamen-
tos são despropositados”. Essa realidade, consequência da subordinação .
existente dos países periféricos frente aos centrais, deveria adquirir as
567
credenciais de classe que correspondem ao verdadeiro problema político
de fundo. Seguindo o raciocínio do crítico, aplicado ao caso indiano,
a “imitação” da burguesia indiana à inglesa não seria a causa do senti-
mento aflitivo da “civilização imitada”, mas a estrutura social do país e
a segregação dos subalternos o que conferiria à cultura supostamente

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“hegemônica” uma posição insustentável, contraditória com o seu au-
toconceito (Schwarz: 1987, p. 47).
O discurso histórico, atendendo ao “despropósito” das ideias libe-
rais em seu funcionamento ideológico, produziu uma deturpação das
relações de poder próprias ao colonialismo. O ponto essencial dessa
deturpação, segundo Guha, seria o de que a dominância sob as condi-
ções coloniais foi erroneamente dotada do caráter de hegemonia. Essa
presunção propiciou um olhar distorcido sobre o Estado colonial e sua
configuração de poder posterior, ao qual o trabalho de Guha, centrado
nos movimentos dos subalternos, se opôs.
A
O esforço foi direcionado a elaborar um amplo panorama teórico
que desse conta de entender, de modo mais rigoroso que a perspectiva
N
liberal, o estabelecimento do capitalismo na Índia, salientando o que em
O
V
termos gramscianos seriam os “períodos de crise hegemônica” de suas
A classes dirigentes, em que as classes subalternas passam da passividade à
atividade. Ainda que assumamos que a classe dirigente estabeleceu uma
C hegemonia bem-sucedida na Índia, como sugere Chibber, é certo que
I
Ê não o fez sem enfrentar períodos de crise.
N Segundo Gramsci, essas ocasiões criam situações perigosas, já que
C
I os diversos estratos da população não possuem a mesma capacidade
A de orientar-se e de reorganizar-se com o mesmo ritmo que as classes
D dominantes.8 Tendo em vista essa capacidade de reestabelecimento
A da Ordem, como Guha demonstrou em sua análise, se produziu uma
P enorme descontinuidade dos movimentos subalternos na história e o
O posterior silenciamento historiográfico, cuja função ideológica é clara.
L
Í
T 8
“A classe tradicional dirigente, que tem um numeroso pessoal adestrado, muda
I
C
homens e programas e reabsorve o controle que lhe andava escapando com
A uma velocidade maior do que acontece nas classes subalternas; faz maiores
sacrifícios, se expõe a um futuro obscuro com promessas demagógicas, mas
.
mantém o poder, o reforça no momento, se serve dele para o esmagamento do
adversário e dispensa o pessoal de direção, que não pode ser muito numeroso e
568 muito adestrado. A passagem das tropas de muitos partidos sob uma bandeira
de um partido único que melhor representa e resume as necessidades da classe
inteira é um fenômeno orgânico e normal, ainda que o seu ritmo seja rapidíssimo
e quase como relâmpago compactado a tempos tranquilos: representa a fusão
de um inteiro grupo social sob uma única direção considerada sozinha capaz
de resolver um problema dominante existencial e protelar um perigo mortal”
(Gramsci, 1975 [Q.13, §23], p.1604).

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O desconhecimento da resistência ou sua neutralização cultural integra
a eficiente capacidade da classe dominante em manter sua dominância.
A despeito de contar com um poderoso fronte ideológico, a tendência
homogeneizante do capital é falha. Guha e os subalternistas destaca-
ram a persistência na história de “desafios hegemônicos”, contrapostos
ao “complexo formidável de trincheiras e fortificações da classe domi-
nante” cuja impressionante organização material está voltada a manter,
defender e desenvolver uma “fronte” ideológica.9
A categoria criada pelo historiador indiano, de “dominância sem
hegemonia”, pode ser entendida como uma forma hábil de destacar as
situações em que os subalternos, ainda sob “domínio”, já começam a
disputar a “hegemonia” (cf. Gramsci, 1975, Caderno 3 e Caderno 25).
O
Uma decorrência dessa tese é a de que tendência universalista do capital S
não se dá de modo homogêneo. As ideias da burguesia que descrevem
E
na Europa pelo menos em aparência sua realidade social e política, em
S
contextos coloniais e pós-coloniais se tornam ideologia “medíocre”, T
como coloca Guha, ou de “segundo-grau”, nos termos de Schwarz, não U
descrevendo sequer a aparência. D
O
Através da crítica a essa ideologia, Guha realiza uma tradução
S
poderosa – da realidade indiana em teoria – seguindo as pegadas de
Gramsci. Poderosa não apenas como fonte para a construção de uma S

historiografia subalterna, enquanto atividade intelectual contestatória, U


B
mas como demonstração de que a produção de teoria é possível, mesmo
A
aos considerados povos “sem história”. O remontar dos traços de auto- L
nomia das classes subalternas, como forma de escapar às armadilhas da T
historiografia liberal, desmascara sua perspectiva de classe e ilumina as E
R
possibilidades de uma atividade intelectual autônoma, através da crítica
N
e invenção categorial, sem a qual seria impossível “a superação da condi-
O
ção mental passiva, de consumidores crédulos do progresso das nações S
adiantadas (e também das atrasadas)” (Schwarz, 1999, p. 96).
.

569

9
A imprensa seria, segundo Gramsci, a parte mais dinâmica desta estrutura,
junto a tudo aquilo que influísse ou pudesse influir sobre a opinião pública
direta ou indiretamente: das bibliotecas, escolas, círculos e clubs de vários
gêneros até a arquitetura, a disposição das ruas e os seus nomes (Gramsci,
1975, Caderno 3, parágrafo 49, p. 332-333).

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Passa por essa possibilidade a superação do “gosto pela novidade”,
contrapondo-o ao trabalho de conhecimento e à continuidade de per-
cepções e teses que permitam a constituição de um “campo de pro-
blemas reais, particulares, com inserção e duração histórica próprias,
que recolha as forças em presença e solicite o passo adiante” (Schwarz,
1999, p. 31). Sem adensamento cultural, a novidade pode servir apenas
à interrupção de problemas e esquecimentos, cujo sentido é tornar-nos
cada vez mais dependentes do centro, também no campo das ideias.
Sem cair no polo contrário, ingênuo, em que se cogita um “fundo na-
cional genuíno”, Guha e os subalternistas nos dão uma sugestiva aula de
crítica e ambição teórica.
A

N Referências bibliográficas
O
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O
S

E
S
T
U
D
O
S

S
U
B
A
L
T
E
R
N
O
S

571

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Lucas Petroni

Pesquisador Associado – Cebrap

Formado em ciências sociais e filosofia pela


Universidade de São Paulo, cursei minha
pós-graduação no departamento de ciência
política da USP, instituição na qual obtive
meu mestrado (2012) e meu doutorado (2017)
em teoria política. O objetivo da minha
dissertação, da qual o artigo desta coletânea
foi extraído, foi apresentar uma tipologia
das principais vertentes do liberalismo
contemporâneo e, por meio da justificação
imparcial da coerção estatal, procurei avaliar
suas principais consequências normativas e
apresentar uma defesa circunstanciada de uma
teoria democrática da tolerância.

"Entendo que, por vezes, o trabalho teórico possa parecer demasiado restritivo".
O esforço de estabelecer distinções conceituais precisas e a busca por clareza
argumentativa pode parecer pouco emocionante quando comparado às interpretações
densas dos historiadores e historiadoras, ou diante das intrincadas explicações
explicações causais sobre os jogos de poder. Isso não significa, entretanto, que o
trabalho analítico possa ser ignorado. O fracasso em reconhecer distinções analíticas
nos impede de encontrar soluções alternativas, deixando-nos prisioneiros de nossas
próprias concepções. A minha pesquisa atual tem sido uma tentativa de escapar de
algumas de nossas prisões de significado relacionadas à inevitabilidade da pobreza e
da desigualdade social.

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TEMOS O DEVER DE TOLERAR?1

Lucas Petroni

A tolerância é um dever difícil de ser cumprido2. Por definição,


toleramos práticas ou discursos que não podemos aceitar, mas que,
por conta de considerações independentes ao seu conteúdo, acabamos
aceitando que aconteçam. Segundo a definição precisa de Thomas
Scanlon (2003, p. 187), a atitude ou ação tolerada encontra-se a meio
caminho entre a convicção e o repúdio, entre aquilo que é moralmente
correto e aquilo que é moralmente inaceitável. A tolerância é difícil,
em primeiro lugar, porque não é claro que tipo de valor a fundamenta.
Por que, afinal, teríamos um dever de tolerar aquilo que – da nossa
perspectiva – é errado? Tolerar é difícil também porque os limites
daquilo que é socialmente aceitável nos parecem permanentemente
contestáveis. Ou seja, não é crível afirmar de antemão, apenas com a
ajuda de alguns princípios idealizados, qual a classe de comportamentos
e atitudes que devem, ou não, ser tolerados. Qualquer teoria que tenha
por finalidade especificar a natureza de um dever de tolerância precisará

1
Este capítulo foi publicado originalmente na Revista Brasileira de Ciência Política,
no. 15, 2014, p. 95-125. Agradecemos aos editores a autorização para publicação
nessa coletânea. A versão aqui apresentada contém pequenas modificações
de forma e algumas correções de conteúdo, especialmente na terceira seção.
Agradeço também aos valiosos comentários de Álvaro de Vita, Andrea Lampis,
Ana Figueroa, Catalina Zambrano, Denilson Werle, Fábio Lacerda, Lilian
Sendretti, Maria Hermínia de Almeida, Mathias Alencastro, Raissa Ventura, e
Renato Francisquini, nos diferentes momentos nos quais o artigo foi debatido.
2
Corrijo aqui a afirmação, feita em uma versão anterior deste capítulo, de
acordo com a qual a tolerância precisaria ser compreendida, além de um
dever, também [grifo] como uma virtude. Limito-me ao problema, bem mais
modesto, segundo o qual deveres pessoais de tolerância são inevitáveis
em uma sociedade democrática pluralista. Deixo em aberto uma segunda
questão, igualmente importante, a saber, se a fundamentação desses deveres
exige ou não a promoção de um ethos pessoal tolerante.

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responder ao menos duas perguntas básicas: (i) qual a razão desse dever?
e (ii) qual o seu limite?
Digamos, por exemplo, que cristãos e católicos decidam contestar
politicamente a possibilidade da união legal entre pessoas de um mesmo
sexo. Digamos ainda que decidam pregar abertamente – alegando uma
suposta ameaça aos fundamentados da família – o repúdio a uma
decisão constitucional favorável ao casamento civil homoafetivo3. Do
meu ponto de vista, tenho a convicção de que ao não reconhecer outras
formas de organização de família ou da criação de filhos nossa sociedade
comete uma forma grave de injustiça. Sendo assim, a pergunta que
deveria me colocar é: o que me impede de reivindicar o uso da coerção
A coletiva para suprimir crenças e pontos de vista éticos contrários ao meu,
N proibindo que cidadãos formulem, reúnam-se, e pautem suas decisões
O políticas com base neles? A pergunta também poderia ser colocada ao
V contrário, é claro. Na verdade, talvez só possamos de fato entender a
A
dificuldade imposta pela tolerância caso possamos apresentar o caso
contra as nossas próprias convicções: o que impede que eles utilizem
C
I o Estado para proteger os valores religiosos na educação e na política,
Ê para sustentar a criminalização do aborto ou para sustentar argumentos
N
religiosos na proibição de pesquisas com célula-tronco? Se fosse uma
C
I questão fácil, não seria propriamente de tolerância que estamos falando.
A
O problema não se restringe apenas às liberdades religiosas. Se por
D democrático entendemos um regime político no qual todos os cidadãos
A e cidadãs (mas não necessariamente todas as pessoas) contam com
P chances equitativas (mas não necessariamente iguais) de influenciar os
O rumos de sua sociedade, então desacordos morais acerca dos valores
L
Í
últimos da vida social são uma característica constitutiva de uma
T sociedade democrática. Iguais em direitos precisam decidir os modos
I
C
legítimos e ilegítimos de utilização da coerção coletiva e, para isso,
A precisam fundamentar essas decisões – quer eles queiram, quer não
. – em valores moralmente controversos. Em certo sentido, portanto,
podemos afirmar que conceber o exercício da cidadania democrática em
574

3
Lembremos, por exemplo, que durante uma marcha religiosa em 2011 um
senador brasileiro afirmou, a respeito da possibilidade do reconhecimento legal
do casamento homossexual pelo Supremo Tribunal de Federal, que, acerca da
matéria, “o verdadeiro supremo é Deus”. Ver Roncaglia (2011).

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uma sociedade pluralista exige, necessariamente, entender a natureza e
as consequências do nosso (presumido) dever de tolerar.
O artigo tem como objetivo apresentar três formas distintas de
conceber esse dever: o modelo instrumental, o modelo fundado na
autonomia individual, ou perfeccionista, e o modelo fundado no
respeito mútuo, ou democrático. Particularmente, gostaria de enfatizar
as especificadas e, se tiver razão, as vantagens do modelo democrático de
tolerância, segundo o qual a razão para tolerarmos uns aos outros e umas
às outras é a necessidade de respeitarmos o outro enquanto um sujeito
de demandas políticas prima facie válidas. Os limites da tolerância nesse
T
modelo são definidos pelas condições normativas e empíricas para essa E
reciprocidade de reivindicações entre iguais. Entretanto, existiria algo M
contraditório em argumentar a favor da tolerância de maneira dogmática. O
Não será o objetivo deste trabalho desqualificar definitivamente outras S
razões para tolerar, tampouco sustentar que a interpretação democrática
O
seja a única forma verdadeira de expressar o conceito. Meu objetivo neste
artigo é bem mais modesto: mostrar como um ideal normativo fundado D
no valor do respeito mútuo é uma maneira exequível de interpretar as E
difíceis exigências do dever de tolerância. V
E
R

O Conceito de Tolerância
D
Uma prática de tolerância pode ser caracterizada, de modo geral, E

como uma situação na qual: T


(a) um agente acredita, por conta de suas convicções ou crenças O

morais estabelecidas, que certa crença ação ou atitude é er- L


E
rada4; e, no entanto,
R
(b) tais ações e atitudes podem ser aceitas, ou até mesmo estimula- A
das, pela sociedade, como um todo, e pela autoridade política R
comum, em particular. ?
.

Essa definição provisória nos ajuda a explorar algumas das caracte-


rísticas gerais da tolerância. Em primeiro lugar, por práticas de tolerância 575

4
Isto é, ou que uma prática é moralmente errada, ou que as crenças que
a sustentam são falsas e, portanto, a levam a ter consequências práticas
equivocadas.

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me refiro a padrões de ação ou regras que satisfazem às duas caracterís-
ticas, sejam tais práticas instituídas pelo Estado ou levadas a cabo pelas
pessoas enquanto um dever. Ou seja, é perfeitamente possível falar em
práticas de tolerância sem necessariamente se comprometer com um
dever pessoal específico de tolerância – podemos sustentar uma prática
de tolerância por outras razões que não a própria intenção de tolerar.
Em segundo lugar, é preciso ressaltar que um número vasto de com-
portamentos e atitudes consideradas erradas não deve ser tolerado e,
portanto, não se encontra sob o escopo da tolerância. Isto é, não apenas
elas são erradas do ponto de vista moral (o que satisfaz a condição a)
como também devem ser consideradas ilegítimas frente à autoridade
A
política (o que viola a condição b). Isso significa que existe uma distin-
N ção importante entre os conceitos de tolerância e legitimidade, que não
O
podemos perder de vista. Para fazer sentido, uma prática de tolerância
V
A precisa pressupor a legitimidade de arranjos sociais básicos, ou das de-
cisões e leis que produzem esses arranjos. Direitos constitucionais e me-
C canismos representativos constituiriam condições necessárias no caso
I
Ê
de sociedades democráticas. Quando um setor da sociedade decide que
N possui o direito de suprimir uma minoria política – extinguindo seus
C direitos e liberdades individuais ou os excluindo das decisões políticas
I
A relevantes – não faria sentido nos perguntar se devemos ou não tolerar
a natureza da medida. Tampouco faria sentido, por exemplo, tolerar
D
A
práticas distintas das nossas caso elas possam ser claramente interpre-
tadas como criminosas ou hediondas de acordo com critérios vigentes
P
O
de legitimidade – não temos o dever de tolerar, por exemplo, a “liber-
L dade religiosa” do culto de Charles Manson, nem a as “opções sexuais”
Í
T
de turistas ávidos por prostituição infantil. Os problemas de tolerância
I que tenho em mente começam quando estamos diante de interpreta-
C
ções controversas e irreconciliáveis de arranjos sociais e políticos aceitos
A
como minimamente (ou potencialmente) legítimos pelas partes envol-
.
vidas5.
576 Em último lugar, a possibilidade de separarmos, de um lado,
nossas convicções morais e, de outro, o uso apropriado da coerção
pública supõe como condição normal da vida social a convivência

5
Agradeço aos comentários de Álvaro de Vita acerca desse ponto.

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entre concepções de bem contraditórias entre si. Isto é, a tolerância e a
existência de um pluralismo moral entre concepções de bem (segundo a
formulação de John Rawls) são conceitos indissociáveis – afinal, não faz
sentido reivindicarmos tolerância em casos de diferenças moralmente
irrelevantes para nossas vidas6. Por “concepção de bem” não devemos
entender apenas doutrinas religiosas, mas qualquer orientação ética
acerca do bem e do mal, de como devemos tratar os outros e do sentido
último da vida. Tais concepções podem ser obtidas de muitos modos:
por meio da religião, de valores e filosofias seculares, da tradição etc. O
importante aqui é que suas premissas sejam minimamente coerentes,
T
partilhadas por um número razoável de pessoas e, sobretudo, que
E
exerçam um impacto relevante na vida de quem as endosse. M
Em resumo, tolerância implica, de algum modo, a autorrestrição O
pessoal contra a tentação de nos valermos da coerção coletiva para S
fazer da sociedade um reflexo direto de nossas concepções de bem. As
O
práticas de tolerância a que estamos mais habituados fazem parte de uma
concepção liberal de Estado na qual as constituições políticas e cartas D
de direitos fundamentais exigem a separação oficial entre autoridade E
política e autoridades éticas e religiosas, reconhecendo a pluralidade V
E
potencial de valores endossados por seus cidadãos. Nada nessa definição
R
nos impede, contudo, de encontrar regimes de tolerância estáveis em
sociedades abertamente antiliberais – como nos casos de concessão D
de prerrogativas especiais entre grupos ou entre castas hierarquizadas. E

Retornaremos adiante a esse ponto. O importante no momento é T


ressaltarmos a caracterização geral de uma prática de tolerância onde O
quer que a encontremos. L
E
A definição apresentada nada nos esclarece acerca das razões para
R
a existência de tais práticas. A mera existência de regras e convenções A
históricas a favor da tolerância não nos diz muito a respeito dos R
motivos pelos quais devemos respeitar essas práticas – sejam eles ?
deveres ou não. Existiria uma razão moral para respeitar pontos de .
vista francamente opostos aos nossos no momento em que precisamos
decidir coletivamente a natureza e o destino de nossa sociedade (no caso 577

6
Cf. Rawls (2001, p. 33-34) quando o filósofo defende a possibilidade de um
“pluralismo moral razoável” nas democracias contemporâneas (em oposição
ao simples conflito moral). Ver Berlin (1997a) para uma análise mais detalhada
do conceito de pluralismo moral.

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do autor deste artigo, por exemplo, uma razão moral para aceitar, ou
não, que o Estado criminalize o aborto, que permita o ensino religioso
em escolas públicas e a existência de partidos abertamente contrários
às políticas de direitos humanos e [por que não?] o subsídio público
ao futebol)? Em um sentido trivial, é verdade, autoridades e oficiais
possuem o dever de tolerar: a mera existência de uma regra de tolerância
exige, por exemplo, que aqueles responsáveis por sua aplicação tenham de
aceitar as consequências dessas práticas qua oficiais. O ponto que quero
enfatizar aqui é, no entanto, se existiria o dever de tolerar enquanto tal,
isto é, enquanto uma virtude aplicável a todos qua cidadãos e cidadãs.

A
Tolerância e Modos Vivendi
N
O A exigência de restrição quanto ao uso da coerção não é algo trivial
V em se tratando de convicções éticas. Muito pelo contrário. Surgidas a
A partir das guerras religiosas modernas e da perseguição de minorias polí-
ticas, a história das instituições liberais é, na verdade, a história de pactos
C
I
precários de convivência mútua entre inimigos morais7. Na formulação
Ê de Isaiah Berlin, “[h]istoricamente a tolerância é o resultado da consta-
N tação de que fés igualmente dogmáticas são inconciliáveis e da improba-
C
I
bilidade prática de uma completa vitória de uma sobre a outra” (1997b,
A p. 324). Em muitos casos adotar um regime de tolerância significava,
D
sobretudo, estancar o derramamento de sangue entre facções religiosas.
A Disso decorre a primeira possibilidade de justificação da tolerância: te-
mos uma razão instrumental para tolerar uns aos outros. Como afirma
P
O
o neo-hobbesiano James Buchanan (1975, p. 7), qualquer conjunto de
L instituições políticas é inviável “quando indivíduos se recusam a aceitar
Í regras mínimas de tolerância mútua”. Existe um forte incentivo racio-
T
I nal para a adesão a práticas de tolerância. Não importa especificamente
C qual concepção de bem um agente racional venha a possuir, nem quais
A
gostaria de tolerar: no cenário da ausência completa de ordem legal,
.
“de conflito generalizado”, ninguém as conseguiria realizar adequada-
mente. O controle pleno da autoridade política ou a obtenção máxima
578
de recursos coercitivos seria um resultado atrativo para qualquer agente

7
Ver Tuck (1988) e Cardoso (1996) para as relações entre ceticismo e tolerância
nos séculos XVI e XVII. Para um panorama abrangente da história do conceito
de tolerância, ver Forst, 2013.

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disposto a defender seus valores éticos. Contudo, diante de um cená-
rio de pluralismo moral, a busca por uma autoridade política eficiente
obrigaria todos os agentes a fazer certa concessão quanto à neutralidade
do Estado.
A justificação instrumental da tolerância nos permite ressaltar uma
diferença importante entre práticas tolerantes, de um lado, e pessoas
tolerantes, de outro. Como afirma Bernard Williams (2008, p. 127),
trata-se de uma distinção fundamental, já que, como vimos anterior-
mente, não devemos simplesmente “pressupor que o que sustenta uma
prática de tolerância deva ser necessariamente a virtude pessoal de tole-
T
rar”. Grupos majoritários podem, por exemplo, “tolerar” certas minorias
E
por motivos de indiferença, ou ainda tendo em vista ganhos econômi- M
cos favoráveis aos seus interesses. Iguais em poder “toleram” uns aos O
outros pelos custos políticos elevados de um conflito potencial. Nesses S
casos, a tolerância é uma propriedade exclusiva das regras em jogo, e
não das pessoas envolvidas, cada um dos membros da relação possui O

uma razão particular para aceitar um regime (minimante) tolerante, e D


nada nos permitiria afirmar que existe apenas uma razão para justificá- E
-la. Ao contrário, existiria um sem-número delas. Para Williams (2005 V
p. 138), é razoável esperar que um regime de tolerância seja sustentado, E
na verdade, por “uma variedade de atitudes, e nenhuma delas se en- R

contra diretamente ligada ao valor da tolerância ele próprio”. Teríamos D


razões externas para aceitarmos regras de convivência mútua, mas não E
propriamente razões internas aos nossos próprios padrões normativos
T
para sermos tolerantes. Entendemos prudencialmente as consequências
O
negativas de não respeitar tais regras, mas isso não implica necessaria- L
mente que as endossamos por considerações morais8. E
Por que o modelo instrumental de tolerância, tal como defendido R

por Buchanan e Williams, seria insuficiente? A principal razão para isso A


R
é o que podemos chamar de “problema da contingência”. É verdade que
?
qualquer organização estável de poder entre pessoas com diferentes con-
.
cepções de bem necessita de regras mínimas de tolerância para que cada
uma das partes possa proteger seus respectivos valores. Também é ver-
579
dade que razões de ordem puramente estratégicas são capazes de explicar
a estabilidade de um sistema mínimo de instituições liberais. Contudo,

8
Sobre a distinção entre razões “internas” e “externas” para aceitar uma regra,
ver Hart (1961, p. 86-87).

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existe um conjunto infinito de cenários de estabilidade possíveis, e, em
apenas um número muito reduzido deles, a tolerância “estratégica” é
compatível com uma reivindicação de equidade entre as partes envolvi-
das. Como mencionei anteriormente, não há nada no conceito de to-
lerância que proíba sua aplicação a regimes antiliberais. Will Kymlicka
fornece o Império Otomano como exemplo paradigmático de tolerân-
cia não liberal. A despeito da liberdade de culto entre diferentes deno-
minações religiosas, no sistema otomano não havia qualquer garantia
de liberdade individual interna aos grupos – algo como uma pequena
“confederação de teocracias” nas palavras de Kymlicka (1992 p. 35). A
tolerância religiosa, nesse caso, é restrita ao pertencimento a uma das
A
religiões oficiais reconhecida pelo regime. Em último caso, mesmo a
adoção de medidas discriminatórias, como um regime de apartheid ra-
N
cial, ou de sub-cidadania, deve ser entendida como um instrumento de
O
V
tolerância do ponto de vista instrumental. Precisamos apenas retraduzir
A tais práticas na linguagem da estabilidade social: uma maioria moral
encontra-se disposta a aceitar a presença de minorias morais contanto
C que seus valores e modos de vida não interfiram na organização da so-
I ciedade. É preciso notar, além disso, que o privilégio de ser tolerado
Ê
N nesse modelo é restrito apenas àqueles grupos e identidades capazes de
C infligir dano ao inimigo9. De um ponto de vista instrumental, portanto,
I não é apenas a tolerância que deixa de ser um valor específico, mas
A
qualquer forma de igualdade entre os indivíduos. Por que deveríamos
D respeitar, por exemplo, os valores de membros de comunidades franca-
A
mente minoritárias, como, no Brasil, certas etnias indígenas ou grupos
P sociais destituídos de recursos materiais e políticos, se eles não possuem
O (no momento) poder efetivo de causar dano aos demais? Na verdade,
L
Í bastaria que dois grupos majoritários quaisquer deixassem as diferenças
T de lado para imporem um consenso intolerante sobre todos os outros10.
I
C
A
. 9
Esses modelos equivaleriam às concepções de “permissão” e “coexistência”
na tipologia histórica de Rainer Forst (2013, seção 2). A distinção me parece,
580
contudo, mais importante para a história do conceito de tolerância do
que propriamente para sua justificação na medida em que as implicações
normativas de ambas as concepções são as mesmas do ponto de vista das
minorias. Ver também o excelente verbete de Forst para a Stanford Encyclopedia
of Philosophy, disponível em: <http://plato.stanford.edu/entries/toleration/>.
10
Podemos pensar aqui, por exemplo, na recente união estratégica entre as duas
maiores denominações religiosas francesas (católicos e muçulmanos) contra

Rogério - A nova ciencia politica.indd 580 07/05/2021 10:40:40


Por definição, minorias tendem a ser restringidas politicamente
por forças sociais majoritárias, e não há explicação instrumental que
possa justificar uma relação de tolerância equânime entre elas: x deve
ser tolerado se, e apenas se, x puder causar dano efetivo em y. Como
vimos, a despeito de constituir um critério básico de legitimidade
política, a relação de igualdade entre os sujeitos da tolerância é
apenas uma possibilidade empírica entre tantas outras de um ponto
de vista histórico. Preferi-la sobre as demais é completamente contin-
gente – e instrumentalmente irracional – caso não recorramos, além
disso, a um critério independente de justiça. Desse modo, o argumento
T
da contingência nos diz que, ou todos os agentes morais possuem prima
E
facie os mesmos direitos à tolerância, ou é arbitrário aceitarmos que M
apenas alguns sejam dotados desse direito apenas por conta de uma O
relação contingente de poder11. O ceticismo sobre o dever de tolerância S
associa-se ao ceticismo sobre o valor moral da igualdade.
O
Uma tentativa importante de superar a limitação normativa do
argumento instrumental é encontrada nos trabalhos de Judith Shklar D
(2004). A filósofa aprimorou a justificação instrumental da tolerância E
como parte de seu projeto mais amplo de conceber aquilo que denominou V
E
de “liberalismo do medo”. O respeito pela liberdade individual seria
R
a condição necessária para que as pessoas possam realizar e promover
abertamente seus valores e crenças sem medo de serem coagidas. Assim, D
na definição de Shklar, o liberalismo do medo consistiria na “defesa E

robusta da igualdade de direitos e de sua proteção legal”, já que “os T


cidadãos devem possuí-los para que possam preservar sua liberdade O
e protegerem a si mesmos contra abusos” (2004, p. 164). Quaisquer L
que sejam nossos valores ou convicções, o fato é que estaríamos em E
R
melhores condições quando contamos com as mesmas proteções legais
A
e o dever de respeito mútuo a essas liberdades. De fato, a universalização
R
do medo fornece um critério normativo mínimo para o problema ?
da contingência da equidade entre os sujeitos da tolerância – afinal, .
nada mais equitativamente distribuído do que uma paixão humana.
O problema é que, novamente, apenas deslocamos o problema. Em 581

a decisão democrática de legalizar o casamento homoafetivo no país (cf.


BARUCH, 2013). A questão é: por que eles deveriam tolerar essa derrota política?
11
Contudo, para uma tentativa de justificação “contingencial” de valores
igualitários, ver Rorty, 1989.

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primeiro lugar, nem todos possuem o mesmo poder de impor medo
aos demais. Além disso, o aparato coercitivo do Estado é notório por
sua capacidade – sinistra, é verdade – de calcular e regular a parcela de
medo que pode distribuir entre seus cidadãos e cidadãs de tal forma
que as prerrogativas da tolerância sejam facilmente operacionalizadas
em função da percepção de ameaças críveis entre os diferentes grupos
sociais12.
Para que o conceito de tolerância seja um valor atraente, ele precisa
reconhecer uma dimensão de equidade que não pode ser justificada
– a não ser contingentemente – em modelos instrumentais. Nesse
sentido, podemos concluir que reivindicações de tolerância são também
A reivindicações de justiça. Mas justiça em relação a quê?
N
O
V
Tolerância e Autonomia Pessoal
A
Razões instrumentais, ou externas, podem sustentar práticas empi-
ricamente contingentes de tolerância, mas não são condições suficientes
C
I para fundamentar um dever de tolerância entre iguais. Uma parte im-
Ê portante da tradição liberal encontrou no valor da autonomia pessoal
N
a justificação mais convincente para a tolerância: devemos reconhecer
C
I o valor intrínseco das escolhas pessoais na formação de agentes ple-
A namente morais, por mais desagradáveis e nocivos que essas escolhas
D possam ser. O fato de que diferentes indivíduos em liberdade adotam
A fins contraditórios entre si serve apenas para reforçar a convicção li-
P
beral segundo a qual agentes morais devem escolher por si próprios
O aquilo que confere sentido para as suas vidas. A defesa mais célebre
L desse ideal de autonomia pessoal encontra sua formulação em Sobre a
Í
T liberdade, de John Stuart Mill. Segundo Mill (2008, p. 63), a possibili-
I dade de vivenciarmos “diferentes experimentos de vida” é uma condição
C
A
essencial para a constituição do bem-estar humano. Mesmo concep-
.
ções de bem tidas como erradas ou repugnantes aos olhos da maioria
são, na verdade, cruciais na constituição da autonomia pessoal uma vez
582

12
Um problema adicional enfrentado pelo liberalismo do medo diz respeito à tese
empiricamente problemática segundo a qual o medo da violência física supere
sempre – como parece supor Shklar – convicções igualmente fundamentais,
como a temeridade a Deus, a dignidade pessoal, ou do desejo de reparação
histórica.

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que a única forma confiável com base na qual as pessoas podem en-
contrar aquilo que realmente faz sentido em suas vidas é por tentativa
e erro.
Levado às suas últimas consequências, o argumento liberal leva à
conclusão de natureza perfeccionista de acordo com a qual apenas uma
vida dedicada à autenticidade individual é digna de ser vivida – ou, nas
palavras de Oscar Wilde, em O retrato de Dorian Gray, que “a finalidade
da vida é o autodesenvolvimento (...) é para isso que cada um nós se
encontra no mundo” (WILDE, 1946, p. 158). Existe, contudo, um
argumento autonomista a favor da tolerância mais plausível. Se todas as
T
pessoas devem ser autônomas, i.e., se devem deliberar por elas mesmas
E
quais valores ou formas de vida devem ser priorizados ou rejeitados, M
então assegurar uma coexistência minimamente estável entre diferentes O
pontos de vista moral (ou “experimentos de vida”) é uma necessidade S
prática importante para a boa vida de todas as pessoas. Logo, teríamos
uma razão moral para aceitar as consequências potencialmente desagra- O

dáveis advindas da maximização da autonomia pessoal. De acordo com D


o argumento autonomista, portanto, conflitos morais são ao mesmo E
tempo (i) inevitáveis, mas (ii) potencialmente virtuosos para o desen- V
volvimento moral individual de todos e todas. E
R
Imaginemos, por exemplo, que uma mulher escolha livremente
uma vida de autoafirmação pessoal contra as convenções de gênero vi- D
gentes em sua sociedade. Ela recusará papéis de gênero impostos pela E
tradição e também o (suposto) dever de reproduzir tais papéis entre
T
as gerações mais novas. Digamos também que ela tenha optado de- O
liberadamente por abdicar da possibilidade de criar uma família para L
dedicar-se à causa – importantíssima do seu ponto de vista – da me- E
lhoria das condições das mulheres. A luta pela emancipação feminina R

e pela abolição de papéis de gênero opressivos tem prioridade em sua A


R
vida sobre outros comprometimentos morais possíveis. Imaginemos,
?
agora, que uma outra mulher, também por escolha pessoal13, escolha
.
dedicar sua existência à reprodução de valores familiares, optando assim
por comprometimentos éticos radicalmente diferentes. Uma série de
583

13
Ou seja, ambas as mulheres são livres para decidirem os valores que regem a
sua vida, ainda que o tipo de forma de vida que escolhem sejam distintos em
relação à valorização da autodeterminação individual. Agradeço a sugestão de
Maria Hermínia Tavares por chamar atenção para esse ponto.

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conflitos insolúveis decorria do convívio social entre essas duas posi-
ções, relacionados à descriminalização do aborto, à legalização e suporte
público para o divórcio, à educação segregada, à liberdade de expressão,
etc. Para o argumento liberal, entretanto, esse conflito de reivindicações
pode ser traduzido em reivindicações acerca do exercício da liberdade
dos agentes envolvidos, fazendo da autonomia individual a métrica de
avaliação comum. Impedir o direito de saída do casamento, ou que
as mulheres tenham pleno controle sobre sua reprodução seriam, de
acordo com essa métrica, casos claros de violação da autonomia. Mais
especificamente, teríamos de comparar as preferências de algumas mu-
lheres sobre suas próprias vidas contra preferências coletivas que tem
A por finalidade alterar ou suprimir a liberdade individual de outros agen-
tes igualmente portadores de preferências individuais. Estaríamos, nesse
N
caso, para utilizar a expressão cunhada por Ronald Dworkin (1978,
O
V p. 234-235), diante de “preferência externas” sobre como outros agen-
A tes morais deveriam conduzir suas próprias vidas. Simetricamente, o
mesmo argumento poderia ser usado contra a tentativa de proibir, ou
C dificultar, a reprodução de formas de vida tradicionais, uma vez que não
I
Ê
caberia ao Estado determinar quais são os verdadeiros valores familiares
N (ou mesmo se a instituição deveria existir), nem obrigar o controle de
C natalidade – dois casos comuns de preferências externas mobilizadas
I
A
pelo feminismo radical contra valores familiares tradicionais. Assim, as
duas mulheres do nosso exemplo encontrariam no valor da autonomia
D
individual uma razão para tolerar práticas que consideram erradas ou
A
desagradáveis.
P
O
Contudo, determinar o que conta como uma preferência interna
L (sobre a minha vida) ou externa (sobre a vida em sociedade) não é um
Í empreendimento simples. Podemos ilustrar essa dificuldade voltando
T
I ao exemplo anterior. A tolerância mútua entre uma mãe tradicionalista
C
– cujas preferências internas estão voltadas para valores tradicionais – e
A
uma feminista engajada, comprometida com seu autodesenvolvimento
.
emancipado – era possível para o argumento perfeccionista na medida
em que ambas as mulheres tinham o dever de respeitar as preferências
584
(internas) alheias. De fato, a feminista continua a ter que tolerar a deci-
são de quem escolhe uma vida dedicada aos valores familiares após livre
deliberação individual. Mas deveria ela estender essa mesma tolerância
à influência dos outros pais e mães sobre seus filhos e filhas? Afinal,
ao socializar novas cidadãos e cidadãs, os pais (e qualquer grupo social

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na verdade) poderiam estar exercendo uma preferência externa sobre
o bem-estar das outras pessoas. O mesmo poderia ser dito, evidente-
mente, do ponto de vista contrário.
Antes de continuar com o problema das preferências externas, é
preciso chamar a atenção para uma diferença importante entre o valor
substantivo da autonomia pessoal, ou individual, por um lado, e o con-
ceito de autonomia moral, por outro. Por autonomia moral, devemos
entender às condições para o pleno exercício da agência moral, isto é,
aquelas condições que nos permitem atribuir a um agente o estatuto de
pessoa moral e, portanto, alguém responsável pelas escolhas que realiza. T
Diferentes teorias normativas especificam essas condições de modos dis- E
tintos. John Rawls (1971, p. 18-19 e 514-515; 2001, p. 18-19), por M
exemplo, define autonomia moral como a presença de duas “faculda- O
des morais” interligadas: (i) a capacidade de entender e agir com base S

em princípios normativos (um “senso de justiça”), e (ii) a capacidade O


de adotar e revisar, quando necessário, uma concepção determinada de
bem, qualquer que seja essa concepção. Isto é, para Rawls, do ponto de D
E
vista da nossa moralidade pública, devemos reconhecer que qualquer
V
pessoa é capaz de agir com base em princípios e de escolher os valores E
que orientam as suas escolhas. Por si só essas condições não constituem R
propriamente um valor moral substantivo, mas apenas as condições de
D
possibilidade para a nossa agência moral. Na verdade, algumas das exi-
E
gências da autonomia moral são tão elementares que desconfiaríamos
caso alguma teoria não as incluísse em seu conjunto básico de condições T

para a agência moral. O


L
Para os efeitos deste artigo, vou considerar que a noção de agente E
moral pressuposta em qualquer modelo de tolerância exige apenas R
um critério de identidade prática ou, na célebre definição de Harry A

Frankfurt (1998, p. 12), que ela pressupõe a capacidade pessoal de for- R


?
mular desejos de segunda ordem. Isto é, a possibilidade de formular e
.
revisar nossos desejos e motivações de tal forma que possamos tanto
nos identificar com nossas escolhas quanto demandar integridade das
585
decisões alheias. Por outro lado, o que estou definindo como o valor
da autonomia pessoal, é uma tese substantiva segundo a qual a liber-
dade efetiva no momento de escolha e avaliação de valores é o elemento
mais importante daquilo que caracteriza uma vida moralmente exce-
lente. Trata-se de um princípio normativo forte, que rejeita a validade

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de formas de vida heterônomas, isto é, formas de vida que não expres-
sem a importância de escolhermos por nós mesmos aquilo que confere
sentido para as nossas vidas.
Podemos, desse modo, caracterizar o argumento milliano da tole-
rância como um argumento liberal-perfeccionista, fundado no valor da
autonomia individual, segundo o qual uma concepção de bem, indepen-
dentemente de seu conteúdo moral, deve ser permitida na medida em
que aqueles e aquelas que a sustentam tenham chegado a essa conclusão
(i) por meio de uma deliberação individual efetiva e (ii) em contextos
de abundância de escolhas. Trata-se de um princípio perfeccionista na
medida em que uma doutrina ética específica (i.e. doutrina da autono-
A
mia individual) constitui o objetivo normativo a ser maximizado pela
N autoridade política. Outros valores morais, como a equidade ou a coesão
O social, passam a contar como um valor apenas com a condição de aju-
V
A
darem na maximização do valor prioritário (no caso, a autonomia indi-
vidual). Segundo o argumento perfeccionista, caberia a nós maximizar
C diretamente, ou a apoiar as condições da autonomia pessoal, uma vez
I que, como afirma Mill (2008, p. 63), “quando não é o próprio caráter
Ê
N
pessoal que pauta a conduta de alguém, mas as tradições ou costumes
C alheios, encontra-se ausente um dos ingredientes fundamentais da felici-
I dade humana e o principal ingrediente do progresso individual e social”.
A
A especificidade de um perfeccionismo reside no tipo de valor a ser ma-
D ximizado: ao adotar o valor da autonomia individual como ideal perfec-
A
cionista, ele exige que as instituições sociais maximizem a possibilidade
P de escolha individual entre diferentes experimentos de vida.
O
L O que fazer, porém, com quem que simplesmente não quer usar sua
Í esfera de liberdade individual para o exercício de um modo de vida au-
T
I tônomo? A mera proteção legal das decisões individuais não garante que
C as pessoas tenderão a escolher formas de vida autônoma. Como vimos
A
ao tratar da distinção entre autonomia moral e pessoal, a proteção da
.
agência moral é perfeitamente compatível com a escolha de modos de
vida não-autônomos e anti-pluralista do ponto de vista social. A saída
586
do liberalismo clássico foi definir o próprio conceito de liberdade – “a
verdadeira liberdade” – como sinônimo de autonomia pessoal. Existe,
contudo, algo inquietante no raciocínio de que (i) x deve ser autônomo,
mas (ii) x opta por não ser um indivíduo autônomo e, portanto, (iii) x
não é verdadeiramente livre em sua decisão. Isaiah Berlin ilustrou esse

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paradoxo em sua análise do conceito de liberdade: “uma coisa é afirmar
que eu posso ser coagido para o meu próprio bem (...) outra coisa é
afirmar que, caso seja para o meu próprio bem, então eu não estou sendo
coagido”, já que a minha verdadeira liberdade assim o teria aprovado
(BERLIN, 1997c, p. 205, ênfase acrescida). Chegamos a um paradoxo
em relação à autonomia pessoal: podemos obrigar as pessoas a serem
autônomas, fazendo com que a cultura pública da sociedade favoreça
modos de vida mais autônomos, ou mais individualistas, do que modos
de vida concorrentes. O dever de tolerar, nesse caso, torna-se um dever
de promover a autonomia pessoal.
T
Recentemente, o princípio liberal-perfeccionista foi reformulado de E
maneira a tentar evitar esse tipo de paradoxo. Novas formas de liberalismo M
perfeccionista são encontradas no liberalismo multicultural de Charles O
Taylor, no liberalismo ético de Ronald Dworkin e, principalmente, S

na influente defesa dos fundamentos do liberalismo empreendida por O


Joseph Raz14. É possível afirmar que The Morality of Freedom, publicado
em 1986, tenha sido a tentativa teórica mais importante de refundar D
as teses do liberalismo perfeccionista desde Mill. Não é possível fazer E
V
justiça ao escopo geral da obra. Contudo, utilizarei os argumentos de
E
Raz como um exemplo contemporâneo de tentativa de justificar um R
dever de tolerância fundado no valor da autonomia pessoal.
D
Em primeiro lugar, é preciso notar que Raz rejeita, de saída, que
E
exista um problema de imparcialidade ao valorizarmos a autonomia
pessoal: se a autonomia é um dos componentes mais importantes do T

bem-estar individual, e a função de uma autoridade legítima é promo- O


L
ver o bem-estar de seus cidadãos, então garantir e promover a autono- E
mia individual constitui a própria finalidade de um Estado liberal. É o R
Estado quem assume a responsabilidade direta de promover o princípio A
perfeccionista na sociedade e não mais os indivíduos: “o princípio de R
?
autonomia não só permite como exige que governos criem oportuni-
dades moralmente valiosas e eliminem as oportunidades moralmente .

repugnantes” (RAZ, 1986, p. 417). Em segundo lugar, Raz sustenta


587
que não há contradição em priorizar a autonomia sobre os demais va-
lores. Lembremos que, de acordo com o perfeccionismo milliano, uma
concepção de bem deve ser tolerada caso duas condições possam ser

14
Cf. Taylor (2000), Dworkin (2011) e Raz (1986).

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satisfeitas: (i) ausência de intervenção na sua escolha e (ii) uma diversi-
dade de opções morais igualmente acessíveis. Raz prioriza (ii) em detri-
mento de (i), isto é, prioriza o fomento da diversidade de concepções de
bem e estilos de vida como um modo indireto de garantir que as pessoas
vivam vidas autônomas. Um grupo reduzido de concepções de bem não
deve ser o único pool de opções socialmente disponível ara as pessoas,
qualquer que sejam as suas escolhas. Se a intervenção sobre as escolhas
dos outros impede a realização da autonomia pessoal, argumenta Raz,
a escassez de opções morais disponíveis em uma determinada sociedade
também representa uma ameaça a esse valor. Devemos fomentar o plu-
ralismo de valores e a diversidade de estilos de vida como política de
A Estado (RAZ, 1986, p. 373-74).
N De que modo isso solucionaria o paradoxo da autonomia? A pro-
O moção ativa de uma “cultura pública pluralista” (RAZ, 1986, p. 421-
V
A
22) permite que o perfeccionismo maximize a autonomia pessoal de
um modo indireto, sem ter que coagir diretamente as pessoas para que
C vivam vidas autônomas. Em vez de obrigar que indivíduos tenham de
I escolher autonomamente aquilo que querem de fato escolher, o argu-
Ê
N
mento indireto de Raz exige apenas que cada pessoa entre em contato
C com em o maior número de formas de vida possíveis em sua sociedade.
I Uma cultura pluralista o ajudará indiretamente a ser autônomo em suas
A
decisões, sem que o Estado obrigue as pessoas a exercer a sua autono-
D
mia. Mesmo quando o Estado protege concepções de bem heterôno-
A
mas, a quantidade global de diversidade moral é elevada com a presença
P de mais uma forma de vida possível. Podemos utilizar uma analogia
O
L
urbanística para esclarecer o ponto: seria preferível viver em uma cidade
Í que oferece tanto agitados bairros boêmios como pacatos subúrbios
T
I
residenciais para quaisquer que sejam nossas preferências individuais.
C Mesmo que alguém nunca queira abandonar sua pacata vida familiar,
A a possibilidade de circular por clubes boêmios, por exemplo, é intrinsi-
. camente superior à ausência dessa escolha. Uma cultura pluralista – tal
como uma cidade diversificada – seria intrinsicamente superior a outras
588
formas de vida social mesmo que os agentes que nela vivem não usu-
fruam diretamente dessa diversidade em suas vidas privadas.
A coerência e a força do argumento de Raz são inquestionáveis.
Todavia, não creio que, no final, ele nos ofereça um argumento perfec-
cionista melhor do que o que Mill já havia oferecido antes. A fim de

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evitar as consequências contraditórias de um liberalismo de tipo perfec-
cionista, creio que Raz leve longe demais a divisão do trabalho moral
entre pluralismo cultural, de um lado, e a motivação pessoal, de outro.
Na verdade, a divisão é tão drástica que o próprio Raz (1986, p. 421-
422) chega a formulá-la nos termos de um “paternalismo indireto” por
parte do Estado – caberia ao Estado cuidar da diversidade moral da
sociedade, à revelia de seus cidadãos e cidadãs.
Em que medida a divisão entre pluralismo moral e motivação in-
dividual é problemática? Temos boas razões para termos um critério
de justiça para a regulação da diversidade moral. Em primeiro lugar, a T
promoção da pluralidade per se raramente é um valor genuíno do ponto E
de vista pessoal, algo que as pessoas valorizem elas próprias. Existem M
circunstâncias nas quais temos de aceitar, ou até mesmo estimular, a O

existência de opiniões divergentes em um debate público pluralista para S

que possamos desenvolver até o fim os pressupostos e implicações de O


nossos próprios argumentos. A história das liberdades de expressão e
imprensa nos fornece exemplos dos ganhos epistêmicos trazidos pela D
E
oposição de ideias. Mas isso não é a mesma coisa que valorizar a diver-
V
gência pela divergência, a não ser que eu tenha decidido, de antemão, E
que não existe uma resposta correta, ou, ainda, que não me importo de R
fato com o resultado do debate. Mesmo quando aceitamos as virtudes
D
epistêmicas da pluralidade, não devemos abrir mão da busca pela ver-
E
dade. Em segundo lugar, o encorajamento público de concepções de
bem controversas, por meio de subsídios e de reconhecimento legal, T

não deixa de ser um caso de uso da coerção pública ainda que de modo O
L
indireto. Seja na arrecadação de verbas, seja no cumprimento legal de E
políticas de identidade, o aparato estatal está sendo usado coercitiva- R
mente com base em argumentos normativos. Por definição, toda polí- A
tica particularista de fomento cultural é uma forma de seleção, fundada R
nos instrumentos de coerção, entre inúmeras outras possibilidades viá- ?

veis. Com isso quero afirmar que a teoria de Raz desloca o paradoxo da .

autonomia presente no âmbito interpessoal para a implausibilidade de


589
razões internas de obedecer ao Estado, e suas decisões sobre o grau de
pluralismo moral adequado.
Vamos aceitar que o consumo de carne se torne uma questão pú-
blica controversa no Brasil. Tomemos o caso de um vegetariano convicto
dedicado à causa da libertação animal do sofrimento causado pela ação

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humana. Do seu ponto de vista ético, o Estado brasileiro está (apenas)
parcialmente correto ao lidar com os animais. Por um lado, ele proíbe
o sofrimento injustificado de qualquer forma de vida animal, regulariza
o tratamento adequado aos animais domésticos e criminaliza a captura
e a venda de animais selvagens. Por outro, ele subsidia na prática a pro-
dução e o consumo de carne animal. Ora, ainda que o vegetariano esteja
preparado para aceitar a morte de animais para o consumo humano
em circunstâncias específicas, nada justificaria aceitar a industrialização
da vida de milhões de bois e porcos para a satisfação de preferências
gastronômicas tidas como levianas15. Por trás das convicções pessoais
do vegetariano, existe a crença de que não existe uma diferença moral
A relevante entre as espécies animais, muito menos uma diferença que
N
justifique a produção de dor e sofrimento de algumas espécies para o
O aumento relativo de bem-estar de outras. Outras concepções éticas da
V relação entre homem e animal concorrem na sociedade. Para alguns,
A
o alimento animal é uma dádiva de deus (dos deuses?) aos homens e
mulheres, portanto, sua ingestão é parte importante daquilo que nos
C
I constitui como espécie escolhida. Para outros, homens e mulheres se-
Ê riam “naturalmente carnívoros”, e, portanto, não faria sentido proibir o
N
C
consumo comercial de carne. Já para a enorme maioria dos brasileiros,
I essa é uma questão absolutamente indiferente em suas vidas, na medida
A
que nunca refletiram muito bem porque fazem churrasco aos domin-
D gos. Contudo, nosso vegetariano é irredutível: ele não quer abrir mão de
A sua luta pela criminalização da carne sob o risco de perder sua própria
P identidade enquanto sujeito moral. Estamos, mais uma vez, diante de
O um conflito moral controverso com consequências importantes para a
L
Í
sociedade. Ainda que o vegetariano não consiga aceitar a verdade moral
T da alternativa religiosa, ou a legitimidade da atitude dos apáticos sobre
I
C
o problema, o argumento autonomista oferece uma razão determinada
A para que ele tolere o consumo alheio de carne na medida em que o
. próprio pluralismo de concepções acerca do convívio entre homem e
natureza deve ser assegurado pelo Estado. O vegetariano mantém sua
590 liberdade pessoal de lutar por regras mais rígidas na produção comercial

15
Apenas em 2010 foram consumidos no país 7,5 milhões de toneladas de carne
bovina, 2,7 milhões de toneladas de carne suína e 7,8 milhões de toneladas de
carne de frango (cf. SILVA e SOUSA et al., 2011 p. 480, 483 e 486).

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de carne e, em contrapartida, deve respeitar, sob risco de coerção, a
liberdade pessoal do carnívoro de manter seus churrascos aos finais de
semana.
O problema está – tal como já estava em Mill – na razão pela qual
exigimos esse sacrifício moral. A liberdade individual não é um valor
forte o bastante para que o vegetariano aceite o apoio público ao mas-
sacre de animais, da mesma forma como ela não o é também do ponto
de vista daqueles contrários ao aborto ou ao discurso de ódio. Menos
convincente ainda é a alegação de que, no geral, o bem-estar social é
maior na presença de mais diversidade nos modos de alimentação – já T
que isso aumenta indiretamente o leque das nossas escolhas pessoais. E
Aceitar a verdade dessa proposição significaria aceitar, do ponto de vista M
pessoal, que a libertação animal é apenas parcialmente verdadeira. Ao O

reivindicarmos um dever de tolerância não podemos exigir que as pes- S

soas abram mão daquilo que as identifica como agentes morais. O


Promover o maior número de oportunidades morais é um ideal bem
D
diferente de promover condições equitativas entre essas oportunidades. E
Ao tentar realizar uma concepção de bem determinada – seja um ideal V
de autonomia individual seja uma cultura liberal pluralista –, o Estado E
passa a justificar o uso da coerção coletiva de um modo extremamente R

arbitrário do ponto de vista de concepções de bem que não consideram D


a autonomia individual um único valor prioritário. O apelo da autono- E
mia individual como razão para a tolerância vem do reconhecimento
T
de que é correto oferecer a todos as bases de uma vida autônoma. Mas
O
esse valor nada significa se não pudermos garantir que detentores de di- L
ferentes convicções éticas possuam o mesmo estatuto do ponto de vista E
da justificação da coerção pública. Mais do que o simples autodesenvol- R
vimento pessoal, o ideal de tolerância traduz também uma demanda de A
R
equidade de oportunidades morais que a valorização da diversidade per
?
se não é capaz de garantir. Se a virtude da tolerância depende apenas do
.
valor da liberdade individual, então muito provavelmente ela seria uma
virtude difícil demais de ser exigida do ponto de vista moral.
591

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Tolerância e Respeito Mútuo
Existe uma terceira possibilidade de justificarmos o dever de
tolerância. Segundo esse argumento, temos o dever de tolerar aqueles
que partilham conosco uma relação de respeito mútuo. Um exemplo
desse tipo de relação, mas não o único, é o convício entre iguais em
direitos em uma democracia. Ninguém pode ter sua concepção de
bem arbitrariamente excluída do processo de decisão democrático sem
incorrermos em uma forma grave de desrespeito.
Da saída é preciso ressaltar que, tal como os outros dois modelos
de tolerância anteriores, a noção de reciprocidade entre iguais não é um
A
argumento propriamente inédito – ainda que seja relativamente menos
conhecido que os demais. Além disso, sua filiação teórica às teorias da
N
justiça igualitária é evidente16. No que se segue, não reivindico nenhuma
O
V
originalidade conceitual significativa em relação a essas teorias. Meu
A objetivo é demostrar de que modo podemos construir uma concepção
igualitária de tolerância, alternativa aos demais modelos.
C Em sua formulação mais geral, o princípio igualitário de tolerância
I
Ê sustenta que todos os cidadãos e cidadãs têm o dever de separar – e portanto
N possuem o direito de exigir que outros o façam – os critérios de verdade
C
I
presentes em concepções morais particulares, de um lado, dos critérios
A públicos de justificação do uso da coerção coletiva, de outro, no momento de
fundamentação de questões políticas fundamentais.
D
A Assim, em um processo de decisão democrática que tenha por
P
objetivo alterar a extensão ou a natureza da sociedade, todos os agentes
O morais (qua cidadãos) possuem o dever de justificar seus argumentos
L em algo mais do que a mera constatação de uma verdade moral
Í
T controversa que, no limite, seria impossível de ser aceita por todos e
I todas. O raciocínio por trás do princípio é o de que é arbitrário excluir
C
A
alguém da cidadania apenas porque não aceitamos a verdade moral
.
de suas convicções éticas. Concordemos ou não com as crenças dos
outros, a igualdade de condição democrática nos impõe um dever de
592
respeito que, por sua vez, implica a necessidade de justificarmos nossas

16
Cf. Rawls, 1971 e 2005. Argumentos igualitários a favor da tolerância podem
ser encontradas em Barry 1995, Nagel 1987, Vita 2009 e Werle 2012. Para uma
tentativa de desenvolver uma teoria da tolerância em bases rawlsianas, ver
Petroni 2012, esp. cap. 5.

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reivindicações morais para os outros de modo apropriado. Na maior
parte dos casos podemos ter razões auxiliares a exclusão de concepções
controversas. O ponto é que o objetivo da tolerância é elevar os custos
normativos desse processo, de tal modo que minorais morais (quaisquer
que seja elas) possam se proteger contra decisões majoritárias. Como
foi dito anteriormente, toda forma de apelo à tolerância pressupõe uma
medida de legitimidade do poder político. De acordo com o argumento
igualitário, o dever de tolerar decorre do respeito pelo status do outro
enquanto uma fonte, em princípio, válida de reivindicação política,
independentemente de suas convicções morais ou formas de vida.
T
Alguns conceitos empregados nessa definição necessitam ser E
explicados. Começo pelo tipo de exigência que o dever de tolerar impõe M
sobre nós. Trata-se, a primeira vista, de uma demanda extremamente O
exigente: todos os cidadãos e cidadãs devem estabelecer uma distinção S
normativa entre dois tipos de razões: (i) razões que justificam a verdade
O
de suas crenças e (ii) razões que justificam o emprego da coerção
coletiva em uma democracia constitucional (cf. Nagel, 1987, p. 229, D
e Vita, 2009, p. 70). Não seria essa uma meta excessivamente exigente? E
Afinal, é justamente o comprometimento irredutível com a verdade de V
E
nossas crenças (e não a sua aceitabilidade pelos outros) que nos motiva a
R
enfrentar os custos elevados da participação política. Esse é justamente o
objetivo do modelo democrático de tolerância: o dever de aceitar critérios D
mais exigentes de justificação quando alguém reivindica a alteração dos E

princípios fundamentais da vida em sociedade, independentemente T


do poder de barganha que nossas concepções de bem venham a ter. O
Devemos assumir que tais princípios sejam de importância crucial para L
qualquer agente político uma vez que caso não existissem ou fossem E
R
controlados por outros não poderíamos viver de acordo com as nossas
A
próprias verdades morais. Tais processos de alteração não constituem
R
a totalidade da vida política de uma sociedade, nem esgotam todas as ?
esferas de interação social nas quais estamos inseridos. O que significa, .
consequentemente, que não temos o dever de tolerar em todas as esferas
da vida em sociedade. O princípio nos diz apenas que, por exemplo, 593
caso precisemos decidir se é correto ou incorreto alterar a constituição
para reconhecer novas formas de família, se devemos descriminalizar
certas formas de aborto, se cabe ao Estado fomentar oficialmente certas
religiões ou culturas particulares, ou ainda se devemos incluir ou excluir
formas de contestação política, então todos e todas possuem a obrigação

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de (i) oferecer justificações públicas sujeitas a deliberação e (ii) de não
recorrer apenas a verdades morais controversas que não poderiam ser
aceitas por uma parcela dos outros cidadãos. Acredito que esse requisito
de civilidade para com iguais em autoridade política é a melhor maneira
de interpretarmos aquilo que Rawls (2005) denominou de demandas
da razão pública.
Outros dois pontos importantes da definição exigem comentário.
Em primeiro lugar, o fato de uma reivindicação satisfazer a exigência de
reciprocidade não a qualifica necessariamente como legítima a ponto
de prescindir das instituições e processos decisórios convencionais que
organizam a vida política de um regime democrático. Não é porque posso
A argumentar a favor do aborto sem recorrer a argumentos moralmente
N controversos (e.g., usando argumentos médicos ou demográficos) que a
O sua legalização deveria ser válida imediatamente. Contudo, a recíproca
V é verdadeira: o fato de um argumento apelar exclusivamente para a
A
verdade bíblica da origem da vida humana não satisfaz as exigências
de reciprocidade e, portanto, torna-se um argumento potencialmente
C
I intolerante na esfera pública. Dito de outro modo, atender ao dever de
Ê civilidade é uma condição necessária, mas está longe de ser uma razão
N
suficiente para a legitimidade de uma decisão política. A finalidade do
C
I teste é de natureza negativa: barrar reivindicações intolerantes17.
A
Em segundo lugar, como já mencionado, o fardo epistêmico da
D justificação não recai nem sobre a totalidade de nossas interações sociais,
A nem sobre todos os agentes sociais da mesma maneira. Ele recairá mais
P fortemente sobre aqueles que exercem cargos e posições de prestígio
O na estrutura da autoridade política, na medida em que seu poder de
L
Í
discricionariedade nessas posições acarreta consequências duradouras
T na sociedade. Além disso, seria intolerante pelos próprios critérios de
I
C
reciprocidade exigir deveres de civilidade em todas as esferas de nossas
A vidas. Temos o dever de tolerar qua cidadãos, mas não necessariamente
. qua sujeitos sociais, de tal forma que outros tipos de relações, como as
associações civis, e a família, podem estar imunes a essa exigência. A
594 questão aqui é saber se além de custoso é possível esperar que agentes
morais exerçam papéis cognitivos diferentes sem colocar em risco sua

17
Agradeço aos comentários de Denilson Werle sobre esse ponto. O problema
dos intolerantes recebe um tratamento mais detalhado em Werle, 2012.

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integridade moral18. Essa possibilidade conta com certa plausibilidade
sociológica nas sociedades contemporâneas nas quais a tarefa de assumir
papéis e identidades distintias e potencialmente contraditórias entre si
(chefe, empregado, fiel, professor, pai, membro, eleitor, etc.) é um dado
permanente da vida social.
Contudo, o aspecto crucial do problema reside na relação entre
pluralismo moral e legitimidade democrática. Uma vez que aceitamos
a tese do pluralismo moral e a consequente irredutibilidade racional
de certos conflitos morais, o dever de separar razões de justificação de
razões de verdade é a única forma possível de evitar a alienação política
T
de uma parcela significativa de agentes morais e assegurar um ideal de E
igualdade de direitos políticos. Um critério viável de demarcação entre M
essas esferas acompanharia mais as instâncias de funcionamento das O
principais instituições políticas de uma sociedade do que propriamente S
sua cultura política como um todo. Associações, família, mercado e
O
imprensa livre19 seriam alguns exemplos de esferas sociais nas quais
exercemos outros papéis que não se resumem aos de cidadãos e cidadãs D
(ainda que, obviamente, tais instâncias sociais continuem sujeitas às E
exigências da legitimidade do poder democrático). Argumentos do tipo V
E
“homossexualismo é pecado”, “supremo só Deus”, “é preciso abolir
R

D
18
Williams (1976) elabora importante objeção às teorias da justiça contemporânea E
com base nesse argumento. Agradeço a Raissa Ventura por ter me ajudado a
esclarecer esse ponto. T
19
O problema os meios de comunicação representam um elemento crucial O
em qualquer teoria normativa que busque sua fundamentação na ideia de L
razão pública. Assumimos como trivial que ações e discursos podem ser E
legitimamente restringidos quanto à forma de sua expressão. A pergunta R
importante a ser feita é: podemos restringir o conteúdo de ações e discursos A
– supostamente intolerantes – apenas por conta de suas consequências R
na formação das crenças pessoais? Não é simples traçar os limites de uma ?
esfera pública institucionalizada, tampouco devemos subestimar o impacto
.
da mídia na configuração dos valores sociais. Entretanto, parece-me claro
que o argumento da tolerância proíbe categoricamente tanto o controle
estatal de formação de crenças como a supressão legal do debate público 595
não institucionalizado. Isso significa, por exemplo, que o discurso de ódio não
precisa ser tolerado caso possamos oferecer justificativas adicionais ao valor
de verdade de suas crenças, mas não permite, por outro lado, a censura de
uma obra odiosa como o Mein Kampf apenas pela natureza equivocada de seus
argumentos. Foi Renato Francisquini quem me chamou a atenção para esse
ponto.

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a família em nome da libertação feminina”, ou ainda “o consumo de
animais é criminoso”, são exemplos de reivindicações potencialmente
intolerantes no modelo igualitário. Devemos impedir que pautem o
funcionamento das instituições democráticas na medida em que não
poderiam justificar o uso coletivo da coerção sem alienar uma parcela
significativa de cidadãos. Mas isso não impede que temas como o aborto,
as escolhas religiosas, formas de relação afetiva, e os direitos animais,
continuem a ser debatidos e contestados publicamente. Ao contrário:
a proteção constitucional permite que eles possam ser debatidos
livremente na cultura política de uma democracia sem a possibilidade
sinistra de se tornarem fontes de conflito extrainstitucional.
A Uma vez aceita o rationale do modelo democrático, pergunta a
N ser colocada é: como determinar o escopo de rejeições arbitrárias em
O uma sociedade democrática? De saída, é preciso deixar claro que por
V democracia entendo um conceito normativo e não apenas um modelo
A
institucional de tomada de decisões políticas. Democracia deve ser
entendida como um sinônimo para uma “sociedade de iguais” (VITA,
C
I 2009, p. 84), na qual todos aqueles que se encontrem sujeitos às
Ê instituições políticas, sociais e econômicas dividem um mesmo status
N
moral enquanto cidadãos e cidadãs. É por conta dessa igualdade de status
C
I que podemos justificar tanto os mecanismos institucionais básicos de
A um regime democrático (como a igualdade de direitos civis e políticos,
D a justiça procedimental, a livre competição eleitoral etc.) quanto uma
A distribuição igualitária dos recursos para o exercício da cidadania como
P renda e riqueza e acesso a bens públicos como saúde e educação. No
O que diz respeito ao problema específico da tolerância, duas classes de
L direitos democráticos são fundamentais.
Í
T Em primeiro lugar, todos devem contar com as liberdades básicas
I
C
convencionais que compõem a cidadania. Liberdades essas compatíveis,
A em princípio, com outras formas de regimes políticos. Além disso, todos
. devem contar com o igual direito de influenciar a natureza e o destino
da sociedade. O modo convencional de expressarmos esse direito são as
596 liberdades de associação, consciência e expressão, e a igualdade de voto,
além, é claro, dos mecanismos convencionais de representação. No caso
de argumentos intolerantes, como vimos, uma parcela da cidadania
encontra-se excluída da efetividade da igual consideração democrática.
Caso a efetividade dos direitos básicos de alguém esteja condicionada

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à decência dos costumes, à deferência a valores majoritários, ou ainda,
a um conjunto predefinido de identidades socialmente aceitáveis,
estamos diante de uma forma grave de alienação política. Na excelente
formulação de Thomas Scanlon (2003, p. 193), “o que [o valor] da
tolerância expressa é um reconhecimento de igual pertencimento
político (...) um reconhecimento de que os outros possuem tanto
direito como eu de contribuir para a definição de nossa sociedade”. Isso
significa que a igualdade de direitos políticos exige não apenas que todo
cidadão tenha a igual liberdade de participar do poder, como também
os recursos e salvaguardas necessários para influenciar efetivamente os
T
resultados democráticos20. Para o modelo democrático de tolerância, o
E
dever de tolerar nada mais é do que as próprias consequências normativas M
de da efetividade de direitos de participação política entre iguais. O
A distinção entre direito e sua efetividade é crucial para entender S
os limites da tolerância. Para os efeitos de uma moralidade política
O
democrática, a perda de efetividade de direitos é, no limite, tão reprovável
quanto sua perda nominal. Uma analogia pode ser útil para ilustrar esse D
ponto. No Brasil, entre os anos 1969 e 1979, o Ato Institucional nº 5, E
promulgado pelo governo militar do general Costa e Silva, condicionou V
E
a concessão de todos os direitos políticos vigentes no país (art. 5), além
R
do acesso à justiça procedimental (art. 10), aos valores morais de uma
parcela da sociedade brasileira. Os juristas e demais defensores do regime D
empregaram a noção de “liberdade vigiada” para condicionar a validade E

da cidadania à deferência aos valores sustentados pelo regime, a saber, a T


crença de que um governo de elites militares era a única solução política O
para o país21. O caso é um exemplo extremo de exclusão de participação, L
colocando em questão não apenas a tolerância da sociedade brasileira, E
R
mas principalmente a legitimidade do regime em questão. Outras formas
A
menos extremas são, felizmente, a regra. O ponto a ser enfatizado é que
R
?
20
Para a distinção importante entre “igual direito de participar”, por um lado, e .
“oportunidades efetivamente iguais de participação”, por outro, ver Przeworski
(2010, p. 66). 597
21
Provavelmente esse seja um dos casos mais dramáticos de exclusão política
na história recente do Brasil. Contudo, ao utilizá-lo, não estou sugerindo que
esses mesmos direitos não estivessem ameaçados bem antes do AI-5, nem que
sua mera revogação legal foi suficiente para abolir mecanismos extralegais de
coerção. A respeito da noção de “liberdade vigiada”, ver o texto integral do Ato:
<http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=194620>.

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regimes democráticos podem criar e reproduzir circunstâncias nas quais
minorias morais tenham a efetividade de seu direito político alienada.
Tanto as vias institucionais como a esfera pública podem oferecer custos
e barreiras impossíveis de serem superados por adeptos de concepções
de bem minoritárias. Ainda que o quadro institucional e a natureza do
regime sejam radicalmente diferentes nos dois casos, não acredito que as
razões morais contrárias à exclusão seletiva sejam distintas.
Vimos que o modelo perfeccionista enfrenta dificuldade de validar
sua métrica de imparcialidade entre diferentes concepções de bem. Em
que medida a tolerância como um dever de reciprocidade nos levaria
mais longe? Afinal, exigir imparcialidade argumentativa de quem se
A engaja em conflitos de valores é aparentemente tão exigente quanto
N apelar a um ideal perfeccionista de autonomia individual. Como
O garantir que não estamos diante de mais um “projeto sectário de poder
V liberal” sob falsas pretensões de universalidade e imparcialidade? Na
A
medida em que uma pergunta como essa pode de fato ser respondida,
três pontos importantes da métrica igualitária precisam ser ressaltados.
C
I Em primeiro lugar, existe uma distinção básica no que diz respeito
Ê
ao sentido de imparcialidade que está sendo defendido. Afirmei na
N
C seção anterior que um vegetariano radical nunca poderia aceitar a
I legitimidade de outras concepções de bem quanto ao trato de animais
A
não-humanos sem por em risco, ao mesmo tempo, sua integridade
D moral. Referi-me a dificuldade de aceitar que o Estado seja neutro,
A ou imparcial, entre diferentes concepções de bem quando se trata de
P obedecê-lo. Contudo, isso é diferente de aceitar a legitimidade de que
O outras pessoas endossem concepções de bem diferentes das nossas. Existe
L
Í
uma diferença importante entre ter a obrigação pessoal de (i) tolerar que
T o conteúdo x de uma crença é legítimo (de algum modo) e (ii) tolerar
I
C
que uma pessoa p tenha a crença que x é legítimo. Podemos afirmar que
A (i) e (ii) representam dois níveis de legitimidade distintos que, acredito,
. argumentos perfeccionistas têm dificuldade em estabelecer22. No caso de
(i) temos o dever de tolerar o conteúdo (ou a própria concepção de bem)
598 de uma pessoa, na medida em que, como no caso de Raz, a existência

22
O próprio Rawls é ambíguo nessa questão, oscilando entre esses dois usos.
Cf. Rawls (2005, Conferência IV), na qual desenvolve a noção de um “consenso
sobreposto” de diferentes concepções de bem.

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dessa crença beneficie de algum modo a cultura política da minha
sociedade. Já no caso (ii), toleramos o outro enquanto alguém que possui
o direito de expressar crenças e desenvolver concepções de bem que –
nesse segundo caso – não tenho nenhuma obrigação de respeitar. Isto
é, pessoas tolerantes – no sentido específico do argumento democrático
– não são obrigadas a respeitarem a validade das doutrinas alheias às
suas, mas apenas a reconhecerem o status moral e a responsabilidade
individual das pessoas que as endossam. Se temos o dever de tolerar,
temos o dever de tolerar pessoas com valores distintos dos nossos, e não
suas concepções de bem.
T
Além disso, o argumento não reivindica imparcialidade quanto aos E
resultados de controvérsias morais. É provável que algumas doutrinas M
tenham mais dificuldade do que outras em se desenvolver em uma O
cultura democrática e que a disseminação de hábitos tolerantes altere S
o conjunto de valores socialmente disponíveis23. Mas isso não decorre
O
de uma tentativa estatal deliberada de fomento a certas concepções
consideradas intrinsicamente melhores do que outras. Tampouco o D
argumento pretende ser imparcial quanto aos custos pessoais envolvidos E
na tolerância. Como colocado Álvaro de Vita (2009, p. 78), “o mero fato V
E
de que decisões políticas impõem custos aos interesses ou às convicções
R
morais ou religiosas de alguns (ou muitos) cidadãos, tal como eles as
entendem, não é uma razão suficiente para considerar que há uma D
violação à norma de neutralidade”. E

Em último lugar, uma interpretação difundida da tolerância T


afirma que, em sua essência, o argumento tem por consequência O
neutralizar conflitos políticos genuínos em uma sociedade democracia. L
E
R
A
23
Isso nos leva a um segundo sentido da objeção do “fardo epistêmico” (visto R
na página 22). Concepções de bem mais distantes das expectativas culturais ?
convencionais das sociedades modernas terão mais trabalho a fazer na hora
.
de justificar publicamente suas crenças e costumes, o que – segue a objeção
– poderia ser uma fonte adicional de injustiça. Acredito que isso pode ser um
problema para o modelo democrático se a “injustiça do fardo” recair sobre 599
grupos socialmente dominados, com menos recursos pessoais, ou menor acesso
à esfera pública, mas não em relação às concepções morais minoritárias que, em
princípio, podem ser defendidas por grupos economicamente e politicamente
poderosos. Em resumo: o fardo epistêmico torna-se injusto não por conta do
conteúdo epistêmico das crenças, mas devido às condições sociais dos grupos
que as endossam. Agradeço a Fábio Lacerda pela crítica.

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Uma vez que confrontos morais são inevitáveis e, por vezes, benéficos
para a contestação do status quo político, a tentativa de contorná-los
por meio de conceitos abstratos como igualdade e imparcialidade teria
como resultado a formação de um consenso social opressivo. Os modos
de contestação política verdadeiramente transformadores ficariam de
fora da esfera pública, tanto quanto as reivindicações dos intolerantes24.
É preciso concordar que o argumento é em parte correto. Caso a
tolerância fosse a única exigência normativa da igualdade, isto é, caso
o dever de reciprocidade fosse a única dimensão da justiça social,
então a crítica faria sentido. Entretanto, as condições necessárias para
o pleno exercício da cidadania exigem a distribuição justa de recursos e
A oportunidades sociais tanto quanto práticas da tolerância. Não temos um
N dever de tolerar injustiças socais. Podemos afirmar que uma demanda
O de tolerância sem sua contraparte de justiça social é o modo típico de
V dominação simbólica em sociedades altamente desiguais. Quanto a
A
isso estamos de acordo. O dever de tolerância tem por objetivo apenas
permitir que reivindicações de minorias políticas e culturais tenham o
C
I mesmo estatuto político de fato que grupos historicamente privilegiados
Ê ou culturalmente hegemônicos quanto ao uso da coerção coletiva (o
N
que em muitos casos pode significar a própria sobrevivência física desses
C
I grupos). Os custos da contestação política em uma sociedade igualitária
A devem ser distribuídos equitativamente entre todas as reivindicações
D que atendam as exigências da cidadania.
A A consequência mais difícil da tolerância talvez seja justamente
P sua principal virtude: a proteção de todas as formas de minorias,
O sejam elas agradáveis, ou não, para nós. A questão é decidir se esse é
L
Í
um custo que vale a pena ou não pagar. Minha posição é a de que
T temos boas razões para pagá-lo. Em uma sociedade na qual minorias
I
C
de gênero têm sua integridade física ameaçada apenas por exercerem
A sua sexualidade, grupos étnicos e raciais não são levados a sério em
. sua reivindicação histórica de reparação, em que um número cada vez
maior de cidadãos e cidadãs, que se identificam como não-crentes, não
600 encontra espaço na política ou na mídia para expressar seus valores,
e reivindicações de estilos de vida socialmente periféricos são tratados

24
A crítica aparece em diferentes formas. Dois exemplos paradigmáticos são
Foucault (2001 [1984], p. 1.525) e Adorno & Horkheimer (1985, p. 27).

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com os mesmos mecanismos repressivos utilizados em governos
ditatoriais, a crítica filosófica à (suposta) neutralização dos conflitos é
um preço relativamente baixo comparado aos ganhos emancipatórios
da tolerância. Um dever democrático de tolerância teria implicações
radicais, e até hoje inimagináveis, para a história de nossa esfera
pública.

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Ficha Técnica

Formato 16 x 23 cm
Tipologia Adobe Garamond Pro 12,5/15
Papel miolo: Pólen soft 80g/m²
capa: Supremo 250g/m²

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