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SEXUALIDADE

Ilustração: Rodrigo Carvalho


primeira
vez
deles
Ao narrarem sua iniciação
sexual, jovens revelam como
um padrão hegemônico de
masculinidade influencia o
comportamento e a saúde

Fernanda Marques

s narrativas de homens

A jovens são o ponto de


partida de um estudo da
Fiocruz que tem como
objetivo principal identifi-
car a interface entre iniciação sexual,
identidade masculina e saúde. Depois
de ouvir e analisar os relatos de uni-
versitários do Rio de Janeiro, a pes-
quisa constatou que eles atribuem di-
ferentes significados à iniciação sexual.
Além disso, sentem-se pressionados a
agir de acordo com roteiros sociais que
ditam como um indivíduo deve se
comportar para provar sua masculini-
dade. Preservativo esquecido, inicia-
ção sexual cada vez mais cedo e gran-
de preocupação com a performance
foram alguns dos aspectos avaliados
pelo estudo.
O estudo foi iniciado no mestra-
do e vem sendo ampliado no douto-
rado da pedagoga Lúcia Emilia Figuei-
redo de Sousa Rebello, desenvolvidos
no Instituto Fernandes Figueira (IFF/
Fiocruz), sob orientação do sanitaris-
ta Romeu Gomes. O trabalho é parte
de uma pesquisa maior, aprovada pelo

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Conselho Nacional de Desenvolvimen- intervenções na área da saúde sexual Os jovens autores das narrativas
to Científico e Tecnológico (CNPq), e reprodutiva. também apontaram medo e ansieda-
que visa analisar os sentidos atribuí- de de não corresponderem às expec-
dos por homens à sexualidade mas- Iniciação sexual tativas de idade para a iniciação sexu-
culina e aos cuidados de saúde sexu- cada vez mais cedo al, ditadas por um modelo hegemônico
al, também em desenvolvimento no Para os universitários ouvidos du- de masculinidade. “Possivelmente, os
IFF. O estudo rendeu um artigo publi- rante o estudo de Lúcia e Romeu, a homens jovens sentem a necessidade
cado no início deste ano no periódico iniciação sexual está associada à des- de provar para si mesmos, em sua pri-
Ciência & Saúde Coletiva. coberta do corpo como fonte de de- meira relação sexual, que são ‘homens
Na maioria das vezes, tanto no sejo e prazer, assim como à demar- de verdade’’, argumentam os pesqui-
senso comum como no meio acadê- cação de uma etapa da vida, um sadores. A exigência de ser Homem
mico, a iniciação sexual se apresenta marco entre o fim da infância e o iní- com H maiúsculo pode levar os meni-
associada à primeira relação sexual cio da fase adulta. Outro significado nos a iniciarem sua vida sexual numa
entre pessoas de sexos opostos. No atribuído à iniciação sexual é o de idade cada vez mais precoce.
entanto, conforme mostra o artigo, despertar para o sexo oposto. De
identificar e trabalhar com os diferen- Preservativo esquecido
acordo com os pesquisadores, esse
tes significados que os indivíduos atri- ou deixado de lado
despertar faz parte de um roteiro so-
buem à experiência de iniciação sexu- cial de gênero ensinado desde cedo O artigo destaca, ainda, que dife-
al permite uma análise que reflete às crianças, para mostrar-lhes como rentes processos de socialização, re-
aspectos subjetivos e questões socio- deve ser a relação entre homens e produzidos a cada geração, estabele-
culturais – fundamentais para a com- mulheres. “Mesmo na narrativa do cem o cuidado com a saúde como
preensão dos scripts que permeiam a jovem que declarou ‘gostar de meni- uma característica da mulher. Portan-
conduta sexual masculina. Apesar des- nos’ este despertar para o sexo opos- to, é compreensível que, nas narrati-
sa importância, só mais recentemen- to aparece como um roteiro de inici- vas dos rapazes sobre sua experiência
te as percepções dos jovens sobre este ação sexual a ser seguido e que limita de iniciação sexual, não tenha apare-
e outros assuntos envolvendo a sexu- por longo período a expressão de sua cido a preocupação com o cuidado da
alidade começaram a ser valorizadas sexualidade”, contam Lúcia e Romeu própria saúde sexual. Com acesso à
como matéria-prima para pesquisas e no artigo. informação e pertencentes a uma ge-
ração que acompanhou à emergên-
cia da Aids – eles nasceram entre 1981
e 1987 –, os jovens estudados incluí-
am em seus scripts sexuais o uso da
camisinha, mas nem sempre. O pre-
servativo era esquecido ou deixado de
lado, principalmente, nas relações com
namoradas. “O namoro, no discurso
destes jovens, pressupõe uma relação
de exclusividade entre pessoas que se
gostam e, sendo assim, haveria uma
confiança de que ‘nada de mal acon-
teceria’”, contextualizam Lúcia e
Romeu. “Outras justificativas aponta-
das são o fato de ‘ter sido pego de
surpresa’ e a dificuldade para colocar
o preservativo”.
Não usar a camisinha temendo se
atrapalhar e estragar o momento é
mais uma prova de como os partici-
pantes da pesquisa estão enredados
nos scripts sexuais, segundo os quais
o sexo é uma performance que não
admite erros e deve ser executada
com competência. “Assim, muitos
jovens, para garantir uma boa per-
formance, preferem não correr o ris-
co de perder a ereção, em meio à

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dificuldade para colocar o preserva-
tivo, e têm relações sexuais sem pro-
teção”, alertam Lúcia e Romeu.
Segundo os pesquisadores, as nar-
rativas dos universitários são rechea-
das de elementos que sustentam o
padrão de masculinidade hegemôni-
co, mas também contêm indicadores
de que esse padrão começa a sofrer
abalos, com a progressiva valorização
das relações afetivo-sexuais. “Ainda
que não seja entendido como parte
hegemônica ou ‘tradicional’ da identi-
dade masculina, o desejo de fazer coin-
cidir a experiência sentimental e a ex-
periência sexual pode ser identificado
nas narrativas dos sujeitos deste estu-
do”, ressaltam Lúcia e Romeu. “Refor-
çamos a importância de estratégias de
promoção da saúde que encorajem os
homens jovens a mostrarem seus senti-
mentos e a falarem de suas dúvidas e
frustrações, sem a intenção de criarmos
modelos de controle e/ou de compor-
tamentos normatizados”.

A narrativa como
matéria-prima
Ao optarem pelo estudo das nar-
rativas, Lúcia e Romeu estavam inte-
ressados, especialmente, em revelar desvelados quando o assunto é sexo”, informação e uma visão mais reflexi-
questões socioculturais e aspectos afirmam Lúcia e Romeu no artigo da va em relação à própria experiência
subjetivos relacionados à experiência revista Ciência & Saúde Coletiva. de iniciação sexual.
de iniciação sexual. Na etapa de Como prova dessa dificuldade que os Além de serem alunos de gradu-
coleta de dados, não foi pedido aos homens têm para falar de suas expe- ação, os participantes tinham outras
participantes que preenchessem riências, destaca-se que alguns jovens características em comum: todos
questionários nem respondessem a não se sentiram à vontade para parti- nasceram na década de 80, marcada
perguntas. Solicitou-se apenas que cipar do estudo porque a pesquisado- pela emergência da Aids, e tiveram
contassem sua experiência sexual, li- ra era mulher e de outra geração. Para sua iniciação sexual nos anos 90, ca-
vremente, sem interrupções, a partir resolver o impasse, em algumas situa- racterizados pelo fenômeno global,
de uma metodologia própria da en- ções, Lúcia contou com um auxiliar de virtual e digital. Todos ainda mora-
trevista narrativa. Quando, de forma pesquisa homem e da mesma idade vam com suas famílias de origem,
espontânea, a narrativa terminava, a dos entrevistados. no Rio de Janeiro, considerada capi-
pesquisadora iniciava uma conversa Também para que os rapazes alvo tal de vanguarda para a liberação de
com o jovem, utilizando a mesma lin- do estudo se sentissem mais à vonta- costumes, a despeito das dificulda-
guagem dele e procurando esclare- de, eles puderam escolher o local da des em lidar com os novos desafios
cer alguns pontos da história. conversa e a maioria optou pela pró- da sexualidade juvenil. “Seja como
À primeira vista, pode parecer pria universidade. Ao todo, os pesqui- pais, educadores ou profissionais de
uma metodologia de pesquisa fácil, sadores ouviram nove universitários. saúde, de um modo geral, acredita-
mas não é. “Para o universo masculi- “Não buscamos uma representativida- mos que sabemos o que é bom para
no, falar de si e de suas incertezas de numérica e sim um aprofundamen- os jovens, o que eles precisam e o
pode ser entendido como fraqueza ou to da temática”, explicam Lúcia e que eles desejam. Admitir que po-
ausência de masculinidade e, assim, Romeu. O fato de todos serem uni- demos aprender com eles e que não
mesmo que o jovem do século 21 seja versitários – dos cursos de engenharia sabemos tudo sobre eles pode ser
visto como livre e bem informado, há e serviço social – possibilitou o traba- um caminho de mudança desta cren-
muitas dúvidas e conflitos a serem lho com um grupo que tem acesso à ça”, sugerem os pesquisadores.

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